quarta-feira, 6 de março de 2013

Starters 1 - Lissa Price (Parte 2)


11



















E
u estava olhando fixamente para as placas com os nomes das pessoas
quando o guarda se aproximou. Helena conhecia o avô de Blake? Não
podia ser somente uma coincidência. Se fosse, ele não teria que dizer que
seu avô conhecia ‚minha‛ avó?

— Posso ajudá-la, moça? — perguntou o guarda.

Pelo tom de voz que usava, ficou claro que estava disposto a me
chutar para fora dali. Examinei o resto da listagem. Nenhum outro nome
se destacou.

— Estou falando com você. — A voz dele estava carregada com um
tom de autoridade, como se estivesse prestes a explodir. — Menina.

Ele pronunciou a palavra que os seguranças geralmente usavam dez
segundos antes de nos ameaçarem com um ultimato: os inspetores. Eu me
virei para encará-lo.

— Vou subir até o 16° andar. Até o escritório do Senador Harrison.

— Você marcou um horário?

— Não. Vou só conversar com a assistente dele.

Talvez fosse o tom desafiador em minha voz, ou talvez fosse a beleza
mágica produzida pela Prime Destinations, mas ele assentiu. Em seguida,
apontou para o livro eletrônico de registros instalado no balcão.

— Assine ali. E registre a impressão digital.

Assinei e pressionei o polegar no canto da página. O elevador abriu e


eu subi até o 16° andar. Esperava descobrir qual era a relação entre minha
inquilina e o avô de Blake. Havia algo errado ali.

Quando saí do elevador, estava em frente a uma porta de vidro dupla,
decorada com letras de metal cortadas a laser que indicavam:
ESCRITÓRIO DISTRITAL, SENADOR HARRISON.

Ao entrar, um recepcionista Ender olhou para mim com um sorriso
nos lábios e desprezo nos olhos.

— O senador Harrison está?

— Lamento, ele está em um evento beneficente. Posso ajudá-la em
alguma coisa?

Olhei ao redor. Havia um corredor que levava a vários outros
escritórios, O de Harrison provavelmente era o último.

— Quando ele voltará ao escritório?

— Os eleitores precisam agendar um horário para ter uma audiência
com o senador. — Ele me olhou da cabeça aos pés. — Você ainda é um
pouco jovem para votar, não é?

Ele sorriu, como se aquela piada fosse engraçada. Enders tinham
acesso a todos os processos médicos e cirúrgicos que desejassem, mas não
havia qualquer possibilidade de consertarem aquele senso de i humor
imbecil.

— Talvez eu seja mais velha do que você imagina — eu disse.

O sorriso se transformou em uma expressão de perplexidade. Mas ele
logo se recuperou.

— Bem, você pode entrar em contato com o senador através de seu
website — disse ele, entregando-me um cartão.

Peguei o cartão, sabendo que meu z-mail seria lido somente por algum
programa de redirecionamento.

— Na verdade, talvez eu devesse ter explicado melhor. Estou
escrevendo um artigo para meu tutor particular e esperava que o senador
pudesse me conceder uma citação. Seria possível conseguir uma audiência
curta? Preciso apenas de alguns minutos.

A expressão no rosto do recepcionista ficou mais suave.

—O senador é uma pessoa muito ocupada— disse ele. — Está


concorrendo à reeleição, você sabe.

Uma Ender de aparência severa saiu bufando pela porta do primeiro
escritório e ficou atrás do recepcionista.

— Você de novo. — Ela me olhou, agressiva. — Eu não lhe disse para
nunca mais voltar aqui?

—Eu não sabia... — o homem disse para ela, com a palma das mãos
erguida.

— Você não veio trabalhar naquele dia porque estava doente — ela
disse ao recepcionista. Estivera com os olhos pregados em mim, mas se
dirigia a ele. — Chame a segurança. Dessa vez nós vamos segurá-la até as
inspetores chegarem.

Ele pegou o telefone.

Não era a primeira vez que Helena vinha a este prédio. Meu corpo
estivera aqui, com Helena dentro.

— Quando eu estive aqui?

— Não insulte minha inteligência. — A Ender marchou em minha
direção enquanto eu me afastava.

Senti que minhas costas tocaram a porta de vidro. Virei-me, abri a
porta e corri pelo corredor. Agitei a mão em frente ao detector de
movimento do elevador, mas ele estava em outro andar. Fui em direção à
escada, abri a porta de acesso e corri em direção ao térreo. Teias de aranha
se prenderam meu rosto, meu cabelo e minha boca. Xinguei os Enders
que se recusavam a usar escadas. Comecei a imaginar se conseguiria
correr mais rápido do que o guarda do saguão do prédio. Em minha mente,
ele estaria me esperando com algemas automáticas prontas para me
prender.

Quando cheguei ao térreo, parei para tomar fôlego. O guarda estava de
frente para o elevador, esperando que eu saísse. Disparei em direção a
porta principal. Quando ele se virou, era tarde demais para conseguir me
alcançar; aquelas pernas velhas não eram páreo para as minhas. Eu estava
no meio do quarteirão quando ele conseguiu chegar à porta.

— Helena, o que você fez com minha vida?

Mas, mesmo que houvesse uma conexão entre nós, ela não


respondeu.







Eu estava sentada em frente ao computador de Helena em sua suíte,
procurando freneticamente nas Páginas por informações sobre o senador
Harrison. As coisas haviam chegado a um nível mais pessoal agora. O que
Helena dissera ao senador? Ela havia falado usando meu corpo, então
provavelmente não acontecera há muitos dias. Seria bom saber o máximo
que eu pudesse, caso os funcionários do senador realmente chamassem os
inspetores.

Eu trabalhava o mais rápido possível. Como senador, Harrison estava
envolvido em muitos programas sociais envolvendo Starters. mas seu
projeto preferido parecia ser algo chamado de Liga da Juventude. Será que
aquilo estaria relacionado à neta de Helena? Helena tentara pedir ajuda ao
senador para descobrir informações sobre o desaparecimento de Emma?

Talvez ele houvesse se recusado a intervir. Helena poderia ter ido até
o escritório dele para pedir ajuda, talvez tentando encontrar uma maneira
de impedir que o banco de corpos continuasse a funcionar, e seu pedido
fora rejeitado. E, por causa disso, talvez ela tivesse decidido responsabilizar
o senador pela morte de sua neta.

Seria o bastante para querer matá-lo?

Eu estava duvidando da minha teoria, até encontrar uma data
importante nas Páginas. Harrison seria um dos convidados de honra na
cerimônia de premiação da Liga da Juventude, que aconteceria no dia 19,
a mesma data que assinalava a última entrada na agenda do celular de
Helena. Dali a dois dias. E o horário era o mesmo que estava nas
anotações de Helena: 20 horas.

Eu sabia quem teria as melhores informações sobre o senador.
Telefonei para Blake.

Quando cheguei ao mirante na estrada de Mulholland, a tarde estava
terminando. O carro vermelho de Blake era o único estacionado em frente
ao mirante. Estacionei o meu ao lado.


Blake estava sentado na grade de proteção que ladeava a estrada,
observando o sol baixar no horizonte, por trás das montanhas.

—Oi.

Ele me deu uma mão e me puxou para sentar ao lado dele. Prendi os
pés na parte mais baixa da grade e me segurei na barra mais alta. O
precipício que havia logo abaixo era bem íngreme.

— Conversei com seu amigo — disse ele, olhando para o horizonte.
—Entreguei o dinheiro a ele.

Senti meus ombros se relaxando.

— O que ele disse?

— Ele queria saber quem eu era. Disse a ele que eu e você éramos
amigos.

— Você conversou com mais alguém?

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Ele quis saber por que não me conheceu antes.

—E o que você disse a ele?

— A verdade. Que nós nos conhecemos há alguns dias. —Ele olhou
para baixo. — Consegue acreditar nisso? Parece que faz muito tempo. De
qualquer maneira, a verdade sempre funciona melhor. Você sabe disso,
não é?

Engoli em seco e estudei o rosto dele em busca de respostas. Quanto
ele sabia?

— O que ele disse quando você perguntou sobre os outros?

— Ele disse que todos os outros estavam bem. — Ele olhava para o
cânion. — O que realmente aconteceu com aquele rapaz? — perguntou.

Minha garganta se apertou, como se as mãos sujas de algum renegado
estivessem ao redor dela.

— Ele teve um pouco de azar. Seus pais morreram na guerra. E os
avós estão mortos.

Eu olhei para baixo. A grade de proteção não parecia estar muito
firme. Eu me sentia tonta.

Árvores, pedras e poeira giravam em meu campo de visão quando me
inclinei para a frente. Blake me segurou, com uma mão em minha barriga


e outra em minhas costas.

— Cuidado— disse ele. — Você está bem?

Meu coração batia forte. O toque dele me dava uma sensação de
carinho. Proteção.

— Não sei.

— É melhor sairmos daqui. — Ele me segurou pelos ombros
enquanto descia da cerca, certificando-se de que eu estava firme. Em
seguida, ele me agarrou pela cintura e me pôs no chão.

— Quer se sentar no meu carro?

Fiz que sim com a cabeça. Enquanto andávamos em direção ao carro
dele, um casal de Enders estacionou seu automóvel e desembarcou para
apreciar o panorama. Blake colocou seu braço ao redor do meu ombro para
me firmar. A sensação era muito boa.

Quando me sentei no carro de Blake, já me sentia melhor. Segura. O
mundo parou de girar.

Eu não sabia se devia lhe contar sobre seu avô. Como isso poderia
ajudar? Para explicar minha teoria sobre como o senador poderia estar em
perigo, eu teria que explicar sobre o banco de corpos, já que pouca gente
sabia a respeito daquele assunto. E, para explicar isso, teria que admitir
quem eu realmente era. Era possível que Blake não acreditasse em mim e
simplesmente pensasse que eu era louca. Tudo começara com uma
mentira, e agora era quase impossível reverter a situação sem que algo se
quebrasse.

Blake olhava para a cidade, ao longe.

— Acho que você está escondendo alguma coisa, Callie. — Ele se
virou para mim. — Algo importante.

Senti minha boca se abrir, mas não consegui dizer nada.

— É verdade, não é? — Os olhos dele me estudavam. — Posso ver no
seu rosto.

Parecia que meu coração era

— Você está doente, não é?

Eu pisquei os olhos.

— O quê?


— Está tudo bem, você não precisa me contar os detalhes. É óbvio
que há algo errado com você. Essas tonturas que você sente e, às vezes,
perde a consciência. Em seguida, você parece ser uma pessoa totalmente
diferente.

Ele ficou em silêncio por um momento.

— Mas não se preocupe. Não quero pressioná-la. Pode, pelo menos,
me fazer um favor?

— O que você quer?

— Me prometa que vai dizer alguma coisa da próxima vez que
começar a se sentir mal. Podemos evitar que você despenque de algum
precipício ou algo parecido.

Ele afastou os cabelos que caíam por cima de meu rosto e passou a
mão pela parte de trás de minha cabeça. Instintivamente eu me esquivei.

— O que houve?

— Nada, está tudo bem. —Eu tinha que impedir que ele percebesse a
cicatriz da incisão de meu chip. Peguei na mão dele e a segurei. Era
quente, forte e lisa. Ali estava ele, tão preocupado comigo e feliz por eu
estar segurando sua mão. E ali estava eu, mentindo descaradamente para
ele.

Respirei fundo.

— Blake?

— O que foi?

— Você disse que não era muito próximo de sua avó.

—É verdade.

— E seu avô?

Ele apertou os olhos e voltou a olhar para o nada.

— Ele é um cara legal. Ocupado. Passa bastante tempo fora. — Ele
olhou para mim. — Mas acho que ele está se esforçando. Nunca
conseguiu superar a perda de meu pai, então ele tenta ficar perto de mim.
Nem sempre facilito as coisas para ele.

Baixei os olhos para olhar para nossas mãos. Ainda estavam junta uma
sobre a outra. Nenhum de nós fez qualquer movimento para se afastar.

— Como é ser um senador? Ele tem muitos inimigos?


— Ah, sim. Recebe cartas com insultos. Pacotes com surpresa
desagradáveis. Qualquer coisa que não encomendamos vai direto para os
inspetores. Há alguns velhos por aí com ideias muito esquisitas.

— Aposto que sim — eu disse, revirando os olhos. Em seguida virei
para ele. — Eu gostaria muito de conhecê-lo.

— Você gostaria? — ele disse, afastando a cabeça.

Eu assenti.

— Não sei se vai ser possível encontrar uma brecha na agenda dela
Ele tem vários compromissos agendados antes de viajar para Washington
para conversar com o presidente.

— O presidente?

— Sim, e ele quer que eu o acompanhe — disse Blake. — Diz que é
uma oportunidade para fortalecer meu caráter.

Afastei meu cabelo com a outra mão.

— Seu avô vai fazer alguma coisa especial no dia 19? Blake inclinou a
cabeça.

— Como você sabe? É a última aparição pública que ele tem
agendada antes de viajar. A cerimônia de premiação da Liga da Juventude
vai acontecer nesse dia, no pavilhão Dorothy Chandler, no Music Center.

— Na área central de Los Angeles. — A última data que Helena havia
marcado em sua agenda. Tudo indicava que o senador seria o alvo. —
Deixe-me adivinhar, o evento começa às 20 horas?

— Sim. Tenho que estar lá para entregar um dos prêmios. Como você
soube do evento?

Eu precisava descobrir o que poderia fazer para impedir aquilo.

— Desculpe, tenho que ir embora.

— Espere. — Ele usou a mão que estava segurando a minha e me
puxou para ele até que nossos rostos ficassem bem próximos, e eu pude
sentir sua respiração em minha pele. — Faz algum tempo que quero lhe
dizer uma coisa.

Àquela distância, os olhos dele faziam o mundo desaparecer. O cheiro
dele era suave. Como os verões antes da guerra. Como um lugar e eu
sempre poderia ficar protegida. Um santuário.


— O que é? — eu perguntei.

— Callie. — Os olhos dele me examinaram, passando pelas maçãs de
meu rosto, meus olhos, meus lábios. —Não sei qual é o motivo, mas eu
sinto que existe uma ligação entre nós.

— Eu sei. Também sinto isso.

— Mas você sabe por quê? — ele perguntou.

Eu não sabia. Simplesmente sentia.

— Acho que, às vezes, nem tudo tem uma razão de ser.

— As coisas simplesmente acontecem.

— As coisas simplesmente acontecem.

Meu coração estava batendo tão forte que Blake provavelmente
conseguiria ouvi-lo.

Ele tocou meu rosto com a mão. Era quente e macia.

— Você realmente é especial — disse ele. Em seguida, se inclinou
para frente e beijou meus lábios.

Hesitante.

Gentil.

Ele se afastou com um sorriso infantil no rosto, como uma criança de
5 anos em um parque de diversões que acabou de ganhar um peixe -robô
dourado.




























12



















V
oltei para casa e entrei discretamente no quarto de Helena. Eu sabia que
pensar em Blake era uma frivolidade e uma distração, mas não podia negar
que me sentia atraída. Ele tinha os maneirismos e o jeito tranquilo de agir
de uma pessoa que nunca tivera que procurar por comida ou roupa nas
ruas. Talvez fosse essa a razão pela qual eu gostava dele: ele me trazia de
volta para a vida civilizada que eu costumava ter. Não que minha família
fosse rica, mas tínhamos uma estrutura sólida. Estabilidade.

Mesmo assim, eu me recusava a aceitar uma imagem tão fútil de mim
mesma. Eu gostava de Blake porque ele era gentil e carinhoso, bom para
mim e para sua bisavó Nani. Minha mãe sempre dissera para ficar atenta a
como um rapaz tratava sua própria mãe para saber como ele me ataria no
futuro. Acho que a maneira como Blake tratava sua bisavó serviria, nesse
caso.

Eu desejava realmente que o avô de Blake não estivesse metido nessa
situação, mas, pelo menos, isso não era culpa minha. Helena devia ter ido
falar com ele em seu próprio corpo, a princípio, para pedir ajuda quando
Emma desaparecera vários meses atrás.

Fui até a escrivaninha de Helena para tentar descobrir alguma
evidência de que ela sabia que o Senador Harrison estaria na cerimônia de
premiação no Music Center. Não havia nada em seu computador que
mencionasse o evento, mas encontrei uma pasta na gaveta. Dentro, havia


um envelope. Ele continha dois ingressos para a Cerimônia de Premiação
da Liga da Juventude, às 20 horas, no pavilhão Dorothy Chandler no
Music Center.

Era a confirmação de que eu precisava. Segurei os ingressos com as
duas mãos. Se eu ainda estivesse no comando de meu corpo, não haveria
problema. Mas, se eu perdesse a consciência, Helena tentaria seguir seu
plano para matar o senador.

O avô de Blake.

Rasguei os ingressos em dois pedaços, depois em quatro. Corri até o
banheiro, picotando-os com as mãos, e os joguei no vaso sanitário.

Com um único toque, mandei a oportunidade que Helena teria de
matar o senador por água abaixo.

Eu não queria ficar sentada em casa durante os próximos dois dias,
esperando pela cerimônia de premiação. Isso deixaria as coisas fáceis
demais para Helena, se ela conseguisse assumir o controle de meu corpo.
Precisava de um plano.

Fui até o armário e peguei a bolsa chique que eu usara na dance-
teria. Dentro dela, encontrei o cartão de Madison — ou melhor,
Rhiannon. A garota linda e divertida que, na realidade, era uma Ender
antiquada e divertida.







Fiquei feliz por Rhiannon ainda estar usando Madison, seu corpo de
aluguel, pois isso fez com que fosse mais fácil encontrá-la na manhã
seguinte. Cheguei até o lugar combinado para nosso encontro, um rinque
de superpatinação no gelo.

O lugar estava muito frio, com todo o gelo que havia ali. Apenas os
adolescentes mais ricos e alguns Enders corajosos estavam patinando,
todos usando trajes de alta tecnologia, projetados para alcançar as maiores
velocidades e manter a segurança do corpo. Não que eles precisassem de
qualquer ajuda. Os patina do tipo superblade, como a placa explicava,
tinham pequenos lasers instalados logo acima do gelo, controlados por


botões nas luvas do patinador. Os lasers derreiam uma pequena porção do
gelo para que o patinador pudesse alcançar velocidades mais altas. Mas a
parte mais divertida era acionar os jatos dos patins, emitindo uma rajada
de ar que fazia com que patinador pairasse no ar. Os jatos só podiam ser
usados por alguns segundos e só elevavam o usuário a alguns centímetros
do chão, mas a sensação era comparável a voar.

Essa era uma das várias coisas que as pessoas endinheiradas podiam
se dar o luxo de fazer. O custo de um dia naquele lugar poderia alimentar
dez camaradas durante uma semana.

Vi que Madison estava girando no centro do rinque de patinação.
Parou e eu acenei para ela. Ela acenou de volta e deslizou até a lateral do
rinque.

— Callie, isso é muito divertido. Faz com que eu me sinta muito mais
ágil. Calce os patins e venha experimentar.

— Talvez outro dia, Madison. Preciso lhe pedir um favor.

— Tudo que você quiser. — Ela se inclinou para a frente. — Nós,
inquilinos, precisamos cuidar uns dos outros — disse ela, antes de se
afastar e rir. — O que posso fazer por você?

— Você mora sozinha, não é?

— Querida, quem iria querer morar comigo? — Ela riu novamente.

— Minha governanta tem sua própria casa.

— Posso ir até sua casa amanhã? E passar a noite com você?

— Em minha casa?

Eu confirmei com um movimento de cabeça.

Ela bateu palmas.

—Uma noite só para meninas!

— Que ótimo. Obrigada.

Ela sorriu para mim.

— Quer dizer, então, que somos as melhores amigas uma da outra? —
Ela estendeu o dedo mínimo.

Eu me sentia como uma criança, mas estendi o meu também e o
enlacei em torno do dedo dela.








Estava sentada em meu carro em um drive-thru, atrás de três outros carros
que esperavam na fila, para pegar meu almoço na lanchonete. Madison era
a escolha perfeita para manter meu corpo longe de problemas se, por
acaso, Helena conseguisse recuperar o controle sobre mim na noite da
premiação. Madison não era esperta o bastante para perceber que havia
algo de errado com meu aluguel. Eu gostava dela, mas fazer amizade com
uma mulher de 150 anos não estava no topo de minha lista de prioridades.
Queria apenas chegar ao fim das duas semanas que ainda faltavam para
encerrar o contrato sem qualquer tipo de inconveniência. Especialmente
um assassinato.

O motorista do carro à minha frente pegou seu lanche pela janela do
drive-thru e seguiu adiante, e eu avancei lentamente. Abri minha bolsa
para pegar o dinheiro. Foi quando senti aquilo novamente.

A tontura. A sensação de desmaio.

Estava acontecendo novamente.







Quando despertei, eu estava com um rifle de assalto nas mãos, a coronha
tocando meu rosto, e olhando através da mira. Meu dedo começou a
pressionar o gatilho, puxando-o com um movimento lento. Eu estava
apoiada contra uma parede, mirando em direção a um grupo de pessoas
que estavam abaixo.

Não. Não, não, não!

Minha respiração parou. Tirei o dedo do gatilho com cuidado,
deixando que ele se movesse lentamente para uma posição neutra. O
mundo — e todos os seus sons — ficaram congelados no tempo por um
momento. Em seguida, percebi um ruído, como fossem martelada
demoníacas. Eram as batidas do meu coração.

Uma única gota de suor escapou da minha testa e escorreu até a
sobrancelha.


Meu cérebro estava funcionando de maneira frenética, imaginando a
que acontecera. Seria tarde demais?

Eu estava dentro de um quarto de hotel. Do lado de fora, dez andares
abaixo, uma multidão estava reunida em uma praça, observando um palco
vazio.

Meu coração começou a bater ainda mais rápido.

Por favor, alguém diga que eu não atirei.

Examinei o rifle. Estava carregado. Totalmente, O cano da arma
estava frio ao toque. Na rua, a multidão agia calmamente.

Soltei a respiração. Eu não havia atirado em ninguém,

Que lugar seria aquele? Os prédios altos se pareciam com os que
havia no centro de Los Angeles. O lugar abaixo era a Pershing Square.

Sobre a mesa, havia uma pasta de couro com o nome Millenium
Biltmore Hotel, gravado em letras douradas. Helena escolhera um belo
lugar para malar alguém. Levantei o rifle para remover o cartucho com as
balas.

Callie. Por favor, não faça isso.

A voz dela surgiu em minha cabeça, mais clara do que nunca.

Não descarregue o rifle.

— Helena?

Sim.

— Pode me ouvir? — eu perguntei.

Agora eu posso. Estamos com uma conexão melhor.

—Como isso é possível? — Estremeci, como se quisesse tirá-la de
mim. — No que você está me envolvendo?

Tirei o cartucho do rifle e coloquei-o sobre a mesa.

Pode recarregar o rifle, por favor? Não temos muito tempo.

— Não, não vou recarregar nada! — gritei. — Você não deveria nem
mesmo ter uma arma. — Joguei o rifle na cama. — Onde você a
conseguiu?

Se você destruir o rifle, assim como fez com minha arma, eu
simplesmente arranjarei outro.

— Eu não destruí sua arma. Eu a joguei fora.


Fui até a janela e olhei para baixo.

O senador Harrison estava chegando. Ele subiu até o palanque
começou a falar com a plateia.

— Não vou atirar em ninguém para atender a um desejo seu e não vou
deixar que você use meu corpo para matar. — Fechei a janela
bruscamente, com um estrondo.

Callie, escute. Quero impedir um crime. Algo que vai afetar dezenas
de milhares de pessoas da sua idade.

Eu balancei a cabeça.

— Você não tem um histórico muito bom em relação a me dizer a
verdade.

Decidi que seria melhor me afastar do rifle e daquele lugar propício
para usá-lo. Fui até a porta, pisando no chão com raiva.

Callie, pare.

Bati a porta atrás de mim e andei rapidamente pelo corredor.

— Que tipo de pessoa planeja algo assim?

Não corra. Você acabou de passar por uma cirurgia.

Diminuí o passo até chegar a um ritmo de caminhada. Seria outra
mentira? Para conseguir me controlar?

Seu chip.

Toquei a parte de trás de minha cabeça. Estava dolorida. Mais
dolorida do que quando Blake a tocara.

— O que você fez comigo? — eu gritei.

Um casal de Enders abriu a porta do quarto e me olhou fixamente. Eu
era uma garota louca no corredor, gritando com ninguém. Corri em
direção aos elevadores e entrei em um deles, que estava aberto. Quando as
portas de metal se fecharam, vi meu reflexo nelas. Eu estava usando uru
macacão preto de mangas longas e meu cabelo estava preso em um rabo-
de-cavalo. Que tipo de visual Helena pretendia usar essa noite? Um look
ninja chique

Nós alteramos o chip.

Agarrei o corrimão que havia dentro do elevador.

— Você deixou que alguém me operasse?


Ele é um especialista em biochips. E também é um cirurgião. Tivemos
que alterar o bloqueio que a impede de matar.

— O quê? — O elevador parou e um Ender entrou. Eu não tinha
escolha, a não ser calar a boca e escutar o que Helena tinha a dizer.

O projeto do chip impede que inquilinos cometam assassinatos. Meu
amigo desabilitou essa proteção quando meu aluguel começou. Mas houve
alguns problemas, como as perdas esporádicas de consciência, as ocasiões
em que eu era arrancada de seu corpo e a alternância das consciências.
Então, eu pedi a ele que o consertasse. O melhor que ele conseguiu fazer
foi alterá-la de modo que nós duas pudéssemos nos comunicar.

Olhei para o Ender que estava comigo no elevador. Ele parecia gostar
da maneira como eu estava vestida. Que maravilha. Quando o elevador
chegou ao saguão, deixei que ele saísse antes de mim e esperei até que se
afastasse, de modo que não pudesse me ouvir.

— Bem, não quero que vocês mexam com minha cabeça. E não
quero que você esteja em minha cabeça — eu disse a Helena. — Isso não
fazia parte do acordo.

Sentia meu rosto ardendo.

O saguão estava cheio de pessoas que se amontoavam em frente às
vidraças para conseguir um vislumbre do senador que falava na praça, do
outro lado da rua.

— Onde está o carro? — perguntei a Helena.

Por favor, não vá embora.

Enfiei a mão no bolso e encontrei um ticket de estacionamento.
Quando saí do hotel, entreguei-o ao porteiro.

Um microfone amplificava a voz do senador e assim eu pude ouvi-lo
do lugar onde estava. Eu o observei enquanto ele se dirigia à multidão,
falando sobre o palanque.

— A juventude poderia desempenhar funções produtivas em nossa
sociedade — disse ele.

Que mentiroso.

— Todos os políticos mentem — eu disse. — É um pré-requisito para
o emprego.


As mentiras que ele conta são enormes. Do tipo que mata crianças.







No decorrer do percurso, Helena insistiu em me contar suas opiniões a
respeito do senador. No princípio, ela tinha pensado que a plataforma de
governo que ele propunha estava focada em melhorar o padrão de vida dos
jovens, promover melhores condições de moradia e saúde, especialmente
para aqueles que estavam presos em instituições. Mas, nos últimos seis
meses, ela descobrira que o senador tinha um plano secreto.

Ele está envolvido com a Prime Destinations.

— Como? — eu dirigia pela estrada, passando por outros motoristas
que também conversavam com vozes dentro de suas cabeças. Mas, pelo
menos, as que eles ouviam vinham de fones de ouvido.

Ele tem interesses financeiros na empresa. Vai viajar para Washington
para tentar convencer o presidente a usar a Prime antes da próximo
eleição. Para fazer com que o governo feche um contrato com a empresa.

— E o que eles fariam, exatamente? — Não estava com a menor
paciência para ouvir as teorias birutas de Helena.

Não tenho certeza. A questão principal é que esses adolescentes não
serão voluntários. Minhas fontes me dizem que, na melhor das hipóteses
eles serão recrutados à força. Na pior das hipóteses, serão sequestrados.

Tudo aquilo parecia estar acontecendo rápido demais. Eu não sabia do
que ela estava falando. A raiva que Helena sentia pela perda de Emma
parecia deixá-la cega. E se não houvesse uma grande conspiração por trás
de tudo? E se Emma simplesmente tivesse fugido de casa? E se Kevin, o
filho de Lauren, decidira fugir com Emma?

Mas eu tinha que perguntar.

— E o que você acha que eles vão fazer?

Qualquer coisa na qual a experiência e o conhecimento de mais de
cem anos que existem na mente de um Ender possam ser combinadas com
o corpo jovem e forte de um adolescente. Ações de espionagem. Mas,
provavelmente, isso será apenas o começo.


— E você descobriu tudo isso quando sua neta desapareceu?

Eles a mataram. O banco de corpos a matou.

O ódio na voz de Helena fez meu sangue gelar.

— Tem alguma prova? Você nunca chegou a ver o corpo.

Tenho provas mais do que suficientes. Você acha que tomei essa
decisão sem pensar? Passei os últimos seis meses trabalhando nisso. E há
também outras vítimas, outros avós.

— Nem todos concordam com suas conclusões.

Helena ficou em silêncio por um momento.

Ah, então você andou conversando com Lauren. Ela é ingênua. Não
acredita que uma empresa poderia matar pessoas jovens.

— Do mesmo jeito que você faria com que eu morresse? Baleada por
inspetores depois de matar o senador Harrison?

O longo silêncio de Helena dizia muito. Ela finalmente o quebrou.

Você é rápida. Forte. Seria capaz de escapar, sem dúvida.

— Não sou mais rápida do que uma bala.

Senti que o tom de sua voz ficou diferente, quase infantil.

Para onde estamos indo?

— Não ‚nós‛. Eu! Este corpo é meu. Você está apenas pegando
carona.

Visualizei Helena na Prime, presa a uma cadeira reclinável.

Não pode estar indo para a Prime Destinations. Você não pode fazer
isso.

— É exatamente para onde estou indo.

Por que você quer ir até lá? Não receberá seu dinheiro se não cumprir
o contrato.

— Acho que as chances de receber meu dinheiro estão diminuindo a
cada minuto que passa. Seu plano acabaria me matando — eu disse,
saindo da rodovia. — Talvez eu consiga receber metade do valor original.

O que você acha que pode dizer à Prime Destinations? Acha que eles
compreenderão a situação? Você estará quebrando seu contrato, e essa é a
única coisa que importa para eles.

— Vou contar sobre o que você fez comigo. Sobre a alteração em meu


chip. Eles vão consertá-lo.

Se você disser que conhece os detalhes do plano — os doadores que
foram mortos ou o plano do senador Harrison —, eles a matarão.

— Você está se esquecendo de um detalhe, Helena. Eu não acredito
em você. Não acredito em nada do que está me dizendo.

Você precisa acreditar. O chip alterado. Os momentos em que você
perdeu a consciência. O fato de que consigo falar com você. Tudo isso
prova o que estou dizendo.

Agarrei o volante. O que ela dizia sobre o chip provavelmente era
verdade. Mas isso significava que todo o resto também era? Minhas
têmporas começaram a latejar. Diminuí a velocidade e parei o carro.

Estávamos a quatro quarteirões do prédio da Prime Destinations.

— Quero você fora de minha cabeça. Agora.

Não volte lá. Por favor. Estou lhe implorando.

Eu estava tensa. Ela parecia estar muito assustada.

— Me dê um bom motivo.

Se você voltar, nós duas morreremos.


































13



















E
u estava dentro do carro, perto de uma cafeteria, com o motor ligado,
atenta à presença de renegados.

—Helena, eu preciso de mais provas.

Ela acreditava que o banco de corpos nos mataria se eu retornasse.

Para impedir que eu voltasse à Prime Destinations, ela fizera uma
oferta: falaria sobre um lugar onde meu chip poderia ser removido.
Provavelmente, envolveria o amigo nerd que alterara o chip pela primeira
vez. Como eu poderia confiar nele? Fora ele quem anulara o dispositivo
que impedia assassinatos, transformando-me na máquina de matar
particular de Helena.

Ela estava em silêncio.

— Helena?

Ela já tivera seus momentos de silêncio antes, mas, dessa vez, a
situação era diferente. Uma sensação de vazio. Como nos casos em que
unia pessoa não está mais do outro lado de uma linha telefônica. Apertei o
chip sob os pontos na parte de trás da cabeça em uma tentativa inútil de
recuperar o ‚sinal‛ de Helena. Mas tudo que consegui sentir foi uma dor
forte.

—Ai.

Ela não respondeu nem mesmo quando pressionei a incisão. Fias
claro que ela havia me deixado, intencionalmente ou não.


Antes que a voz de Helena surgisse em minha cabeça, eu pensara que
a tentativa de assassinato aconteceria no Music Center. Mas Helena me
surpreendera, tentando executar seu plano na Pershing Square. Ela
antecipara o evento, sabendo que eu estava começando a lhe causar
problemas, como a ocasião em que lhe tirei sua arma. Assassinos odeiam
quando isso acontece.

Decidi seguir com o plano original, porque provavelmente era isso que
Helena faria, de qualquer maneira.







No dia seguinte, fui até a casa de Madison, desejando muito poder confiar
nela. Eu queria lhe contar tudo que descobrira, como a voz de Helena
podia surgir em minha cabeça enquanto eu tinha meu corpo sob controle.

Mas isso faria Madison entrar em pânico. Se ela soubesse que a
pessoa que habitava meu corpo não era uma Ender como ela, como eu
estava fingindo ser, ela não confiaria mais em mim. Poderia me entrega à
Prime. Ela não era o tipo de pessoa que poderia simpatizar comigo nesse
tipo de assunto.

A casa de Madison era decorada em um estilo que provavelmente
estava na moda havia vinte anos: alienígena chique. Cadeiras verdes
brilhantes que flutuavam no ar, hologramas com candelabros estranhos e
paisagens alienígenas em 3-D nas paredes.

Enquanto me conduzia pelo corredor, ela explicou como gostava à
usar certos quartos quando estava ‚interpretando o personagem‛, maneira
de se referir ao aluguel de corpos. A casa era enorme e, portanto, ela
poderia escolher entre vários quartos.

Fomos até a sala de jogos, um ambiente saído de um sonho, que me
fez esquecer de meus problemas. Ela me mostrou uma mesa de bufê perto
da parede e me entregou uma vasilha. Fileiras enormes com os melhores
petiscos em plexitubos pareciam nos chamar, e enchemos nossos pratos
com doces, chocolates e pretzels. A última parada foi ao lado de uma
máquina de refrigerantes incrível que ela podia programas para que o


xarope fizesse desenhos coloridos no interior dos copos.

Levamos as guloseimas para um sofá enorme de veludo em forma L,
onde nos deitamos. No centro da sala havia uma Invisascreen flutuante, de
9 por 5 metros, capaz de projetar holos. Eu nunca havia visto na dessas na
casa de alguém. Além de holos e shows, também podia jogas jogos como
superfutebol, aerotênis ou golfe, ao lado das maiores estrelas do esporte.

Podíamos ser membros do elenco em programas transmitidos apenas
para assinantes que ela havia adicionado à sua rede social. Aquilo

estava muito além das possibilidades de minha família. Mas, para
pessoas ricas como Madison, não havia limite para as possibilidades dos
desejos de consumo.

— Eu trabalhava como gerente de produção, então consegui um
desconto especial com o fabricante — ela explicou, piscando o olho.

Imaginei que até mesmo os ricos gostassem de descontos.

Madison pediu o episódio mais recente de um dos holos mais
populares. Os personagens foram projetados no espaço, em tamanho real.
Vê-los tão de perto e naquela escala era diferente de assistir a um
Xperience. Depois de alguns minutos, Madison se levantou e entrou no
espaço da projeção. Havia dois atores em cena e o mais alto se virou para
ela.

— Olá, Madison — disse ele. — Que bom que você se juntou a nós.

— Uau. Como você fez isso? — eu perguntei, fascinada.

— Você tem que ficar aqui — Madison apontou para o retângulo que
ficava no centro da área de projeção — ou não vai funcionar.

Assim que entrei naquele espaço, o outro ator, mais baixo e com olhos
ferozes, se virou na minha direção.

— Olá, Callie — ele disse. E eu achei que fosse derreter.

Ele se aproximou. Eu podia sentir o cheiro dele, uma fragrância
amadeirada como o cedro. Ele não parecia exatamente uma pessoa real.

Era mais próximo de um bom holograma que enganava as pessoas
primeira vista, mas, ao olhar mais atentamente, era possível perceber o
indício revelador, um leve contorno tremeluzente.

— Como isso funciona? — eu não queria tirar meus olhos dele, mas


me virei na direção de Madison. Ela estava entretida em um diálogo
envolvente com o outro ator.

Meu ator tocou meu braço, voltando a focar minha atenção nele.

—Não se preocupe como ‚como‛. Preocupe-se apenas com ‚quem.‛—
disse ele, sorrindo.

Pude sentir aquele toque. Não era como um toque verdadeiro; mais
sutil, como uma brisa sobre minha pele. Fez com que os pelos meu braço
se arrepiassem.

Um telefone tocou.

Todos pararam e cruzaram os braços, esperando que eu fosse até o
aparelho para silenciá-lo.

— Callie — Madison colocou uma das mãos na testa — isso acaba
com toda a ilusão.

— Desculpe.

Eu saí da área de projeção e fui até o sofá. O identificador de
chamadas mostrava o último nome que eu queria ver naquele momento.

— Blake? — eu disse ao telefone.

— Callie. Como você está?

Me virei para ver Madison sorrindo para seu ator enquanto ele
brincava com seus cabelos. Meu ator estava no mesmo lugar, com as mãos
nos bolsos.

— Escute, Callie. Sei que está em cima da hora, mas acabei de
conversar com meu avô e ele disse que você poderia vir à cerimônia da
Liga da Juventude. Gostaria de me acompanhar?

— Hoje? — eu perguntei.

— Sim.

— Eu... eu... não posso.

— É importante. Gostaria que você estivesse lá. E você disse que
gostaria de conhecer meu avô.

— Ele provavelmente vai estar muito ocupado — eu disse.

— Vai haver uma recepção após o evento. Todas as pessoas
importantes estarão lá, até mesmo o prefeito. Será divertido.

Era o último lugar no mundo em que eu gostaria de estar. Mordi meu


lábio para não aceitar. Eu queria estar ao lado de Blake, mas isso era
exatamente o que eu estava tentando evitar — estar no mesmo lugar em
que o senador estaria. O que aconteceria se eu perdesse a consciência e
Helena tomasse o controle?

— Eu gostaria muito, Blake. De verdade. Mas prometi a Madison que
passaria a noite com ela. Não seria certo.

Nós nos despedimos e desliguei o telefone. Pude sentir a decepção de
Blake. Era igual à que eu sentia.

Madison olhou em minha direção enquanto eu guardava o telefone
em minha bolsa.

— Está tudo bem?

— Sim, está tudo bem — eu disse, deitando-me novamente no sofá.

— Venha conosco — ela acenou, me chamando. Os dois atores
estavam conversando com ela agora.

Balancei a cabeça negativamente.

— Prefiro ficar aqui e assistir.

Madison deu de ombros e ficou de mãos dadas com os dois atores. Ela
se virou e os três entraram em uma selva. Comecei a pensar sobre Helena
e o fato de que ela não havia assumido o controle de meu corpo ré agora.
E, também, o fato de que ela não voltara a conversar comigo desde a noite
no hotel.

Engoli em seco. E se ela houvesse saído do banco de corpos? Será que
ela decidira interromper o aluguel porque nossa conexão estava
comprometida? Se ela tivesse percebido que eu não ia cooperar com ela,
talvez já houvesse saído do banco de corpos e estivesse prestes a ratar o
senador. Na cerimônia de premiação, como havia planejado. Fazer o
trabalho sujo não estava no plano original, mas ela poderia ter decidido por
esse curso de ação desesperado porque eu deixara bem claro que não
atiraria nele.

Se eu fosse à cerimônia, poderia conversar com o avô de Blake.
Poderia tentar explicar a situação, alertá-lo. E eu não tinha mais uma
arma. Helena teria que usar um tempo precioso para conseguir outra
mesmo se conseguisse tomar o controle de meu corpo novamente.


Fora uma estupidez recusar o convite de Blake. Pedi licença e levei
meu telefone até o banheiro da casa de Madison para ligar para ele.







Blake me levou em seu carro até o estacionamento subterrâneo de um
prédio no centro de Los Angeles. Ele estava muito feliz por eu ter mudado
de ideia. Fiz questão de lembrá-lo do quanto eu queria conhecer seu avô.
Talvez até mesmo ter a oportunidade de conversar em particular com ele
por alguns momentos. Blake disse que tentaria fazer com que isso
acontecesse. Ele nem mesmo perguntou qual era o motivo. Se ao menos
todos os rapazes fossem gentis como ele.

Blake levantou uma chave especial e o porteiro do estacionamento nos
levou até um elevador particular, decorado com um carpete preto e
dourado. O porteiro colocou sua própria chave em uma ranhura e nos
cumprimentou com um toque em seu quepe quando as portas se fecharam
atrás de nós.

— Este lugar não é o Music Center — eu disse.

— Não é? Ah, acho que devo ter virado em uma rua errada — disse
Blake.

Eu lhe fiz uma careta e ele reagiu com um sorriso malandro, O
elevador parou no último andar, assinalado com a palavra ‚cobertura‛.

As portas se abriram para um corredor pequeno, que levava em
direção a outra porta. Blake inseriu sua chave e a abriu. Dentro do
apartamento havia móveis de madeira escura e poucas luzes. À direita.
havia um bar com balcão recurvo, completo com um bartender Ender que
enxugava um copo.

— Seja bem-vindo, Blake.

— Oi, Henry.

Blake não parou e continuou andando pela sala, passando por
poltronas de couro até chegar a uma porta deslizante de vidro. Ele colocou
a mão no sensor de proximidade e a porta se abriu. Passamos por ela e
chegamos a um terraço amplo.


Uma fonte borbulhante em estilo moderno dominava o centro do
lugar, com um som relaxante que cobria o burburinho da área central da
cidade, abaixo. Fui até a borda do terraço e olhei por entre as palmeiras
plantadas em vasos colocados ao longo da grade de proteção. Não demorou
até que eu percebesse a razão pela qual as palmeiras haviam sido
colocadas ali. Prédios abandonados com tapumes cobrindo as portas e
janelas cercavam este oásis. Alguns deles foram completamente
demolidos, como se algum monstro gigante os houvesse esmagado.

Dei as costas para aquela paisagem.

— Então, este lugar pertence à sua família.

— Sim. Nós o usamos antes de apresentações de ópera ou recepções
no salão de concertos. Mesmo assim, os funcionários não gostam de me
servir quando meu avô não está aqui. Para eles, sou só um garoto.

— Eu ficaria feliz por estar aqui, não importa como me tratassem.

Ele me levou até um sofá com armação de madeira e se sentou a

— Achei que fôssemos à cerimônia no Music Hall — eu disse.

— Ainda é cedo.

O bartender nos trouxe dois refrigerantes. Ele os deixou em uma
mesinha lateral e voltou para o bar.

— Então, Callie, como se sente?

Olhei para as nuvens brancas no azul do céu. Sentia vontade de
revelar tudo o que sabia.

— Estou bem.

Ele estendeu o braço e passou-o por cima do encosto do sofá.
Acariciou o alto de minha cabeça. Ele começou a deslizar os dedos pela
parte de trás de minha cabeça, mas eu o impedi de continuar.

— O que houve? — ele perguntou.

— Nada — eu disse, soltando sua mão.

— Vamos lá, Callie. Diga, o que foi? — Ele se aproximou, olhando
para minha cabeça.

— Não olhe aí — eu disse.

— Por quê? — Ele parecia estar se divertindo. Estava com a mão
pairando sobre minha cabeça como se fosse alguma brincadeira, e eu a


agarrei.

O que eu poderia dizer? Decidi pela verdade.

— Passei por uma cirurgia.

O sorriso que ele tinha no rosto se desfez.

— De que tipo?

Tentei pensar em alguma mentira plausível. Não tive qualquer ideia.

— Não quero falar sobre isso.

Olhei para ele. Parecia estar muito preocupado comigo.

—É uma coisa... pessoal — eu disse.

Ele segurou minha mão.

— Sei que não nos conhecemos há muito tempo, mas pensei que você
confiasse em mim.

— Não é isso. É que... tudo que está acontecendo entre nós é muito
bom.

— E você tem medo de que, se me contar o tipo de cirurgia pela qual
passou, eu não vá mais gostar de você? Acha que sou fútil a esse ponto?

Meu lábio tremia.

— Não, claro que não.

Ele segurou minha mão com mais força.

— Não há nada que você possa me dizer que vá mudar o que sinto por
você. Quero conhecê-la. Saber tudo a seu respeito.

Ele não fazia ideia do tamanho daquela mentira.

— Por favor, não me peça para falar sobre isso. Está bem? — estava
implorando com os olhos. — Às vezes, as pessoas fazem coisa que
desejariam nunca ter feito.

— Não acho que exista alguém que não possa dizer isso. Você não
está sozinha. — Ele deslizava seu polegar por minha mão.

Ele estava tentando ser gentil, recuando depois de me pressionar para
explicar. Talvez fosse possível, se as coisas fossem simples como ele
imaginava. Ou se eu nunca tivesse ido ao banco de corpos. Mas, se não
fosse, eu nunca viria a conhecê-lo.

Atrás da paisagem urbana, o sol estava se despedindo.

— Não é melhor irmos para a cerimônia? — eu perguntei.


Blake segurou minhas mãos e me puxou para ficar em pé.

— Venha comigo.

Ele me levou para dentro, passando por um corredor, e abriu uma
porta. O quarto era uma área exclusiva para garotas, decorada em tons
suaves de cor-de-rosa.

— Considere este lugar como sua butique particular. — Ele abriu as
portas dos armários, revelando uma coleção enorme de vestidos de noite
em tons brilhantes, desde os longos e formais até os mais curtos.

— De quem são essas roupas? — perguntei.

— Da minha irmã. Ela gosta de fazer compras. — Ele revirou os
olhos.

Muitos daqueles vestidos eram fabricados com as tecnologias mais ;
recentes da indústria da moda, com materiais incrivelmente leves e alguns
milagres da física, como fazer algumas peças mudarem de cor, Outros
eram vestidos longos em estilo retrô, inspirados por velhos filmes do século
passado. Na prateleira acima, bolsas e sapatos de salto purpurinados
estavam guardados em caixas de plástico transparente.

Blake aproximou a mão de um sensor e as caixas giraram ao redor de
um eixo, revelando mais pares de sapatos dentro do armário.

— Eu não sabia que você tinha uma irmã.

— Ela mora mais ao norte, com minha tia-avó.

Eu deslizei a mão pelos vestidos para sentir o toque dos tecidos.

— E o que ela faz lá?

— Compras.

Ele se encostou na parede, perto de meu ombro. Olhou diretamente
em meus olhos. Percebi que ele estava prestes a continuar do ponto em
que havia parado há alguns momentos.

O rosto dele estava a poucos centímetros do meu.

— Não se preocupe. — Ele levantou uma das mãos e agitou os dedos
antes de colocá-la atrás das costas. — Nada de mãos desta vez.

Não consegui evitar um sorriso. Ele baixou o rosto, lentamente, e me
beijou. E beijou. Eu não queria que aquilo acabasse. E, quando eu achava
que a sensação não podia melhorar, descobri que estava enganada. Enlacei


minhas mãos ao redor do pescoço de Blake e não deixei que ele se
afastasse.

Ele me abraçou, com os braços ao redor de minha cintura. Apertei
minhas costas contra a parede, puxando-o para mais perto, sentindo-me
ficar sem fôlego e atordoada. Encostei minha testa contra a dele.

— É melhor irmos — eu sussurrei. — Não podemos nos atrasar.

Ele assentiu. Nós nos afastamos e ele saiu lentamente do quarto.

— Me chame quando estiver pronta.

Toquei meus lábios quando ele fechou a porta. Estavam quentes e
levemente inchados.

Passei a outra mão por aquelas roupas fabulosas. Como eu poderia
escolher? Era como ter que escolher apenas um sabor de sorvete. Mas não
havia tempo a perder. Escolhi um vestido azul longo e sem mangas. com
um xale que completava o conjunto. O vestido brilhava por inteiro. mas
pesava menos do que um lenço. Era bonito e adequadamente discreto. Eu
queria que o senador acreditasse em mim. Eu me lembrava de ler em
algum lugar, certa vez, que o azul era a cor certa para usar se fosse preciso
fazer com que alguém confiasse em você.

Depois de alguns minutos, Blake bateu na porta.

— Pode entrar.

Blake usava um smoking preto. Estava maravilhoso. Seus olhos se
arregalaram quando ele me viu, mas logo assumiu uma postura mais
relaxada. Ele pegou uma varinha de metal que estava pendurada no
guarda-roupa e a agitou em frente ao meu vestido.

— Não temos tempo para ficar brincando.

— Observe.

Uma aerotela dentro do armário se ligou. Uma imagem do vestido
apareceu em 3-D, girando. Imagens de sapatos, uma bolsa, brincos e um
bracelete também apareceram.

As caixas transparentes com sapatos começaram a girar até que os
calçados que a aerotela mostrava estivessem à minha frente. Eu os tirei da
caixa. Os sapatos eram decorados com uma pequena presilha em forma de
baleia.


— Baleias. Seu animal favorito — disse ele.

— Uau! — Eu os calcei. — Usamos o mesmo número. Eles estão
perfeitos.

Ele me entregou a bolsa e pegou um belo bracelete em estilo antigo,
decorado com filigrana e pedras azuis, e brincos com os mesmos detalhes
e cores.

— Tem certeza de que ela não vai se importar se eu usar as roupas
dela?

— Olhe para todas essas roupas. Poderíamos tirar metade de tudo que
tem nesse armário e ela nem iria perceber.

Ele tocou meu pulso e percebeu o bracelete com os pingentes
esportivos. É bonito.

Ergui meu outro pulso e ele prendeu o bracelete nele.

Virei-me para o espelho para colocar os brincos. Quando percebi o
olhar de Blake, a expressão em seu rosto era digna de ser memorizada.
Primeiro, o lado esquerdo dos seus lábios se curvou lentamente. Em
seguida, seus olhos se abriram e brilharam enquanto a boca se entreabriu
em um sorriso.

— Você está tão linda que vai roubar toda a atenção que as pessoas
deveriam dar a meu avô.




























14



















Q
uando chegamos à praça do Music Center naquela noite, eu me senti
como uma princesa fazendo sua entrada triunfal em um baile no palácio.
O lugar era como um sonho, com luzes minúsculas brilhando nas árvores,
lâmpadas maiores banhando os prédios e holofotes iluminando a queda-
d’água escultural que dançava no centro da praça.

Entramos no Pavilhão Dorothy Chandler, onde candelabros do
tamanho de carros brilhavam sobre nossas cabeças. Subimos a escadaria
até o segundo pavimento. A festa que antecedia a cerimônia de premiação
já estava bem animada. Garçons Enders circulavam por entre a multidão
elegante, levando bandejas cheias de champanhe e ponche. Em sua
maioria, os convidados eram Enders ricos, mas havia um ou outro
adolescente endinheirado como Blake.

E eu também estava ali.

— Onde está seu avô?

Blake me entregou um copo de ponche.

—Vou procurá-lo. Pode me esperar aqui?

—Claro que sim — eu disse, olhando para a mesa do bufê.

Ele esticou o pescoço para olhar por cima do mar de cabeças prateada
e desapareceu no meio da multidão. Fui até a mesa, que estava abarrotada
de camarões, lagostas e caranguejos. Provavelmente os olhos de Tyler
saltariam de seu rosto se ele visse isso.


Estava tentada a experimentar alguma coisa quando uma voz me
surpreendeu.

Callie. Você decidiu vir.

Vinha de dentro de minha cabeça. Helena. Quer dizer que ela não
havia saído do banco de corpos.

— Você voltou — eu disse, em voz baixa. — Preciso de um
exorcismo.

Todas as pessoas à minha volta estavam ocupadas demais conversando
umas com as outras ou comendo para perceber que eu estava falando
sozinha. Não sabia se deveria me sentir furiosa ou aliviada.

Estou feliz por você ter decidido fazer a coisa certa.

— Não me agradeça. Não vim até aqui para matar alguém.

O senador é um monstro. Se você deixar que ele escape, ele
embarcará naquele avião para Washington amanhã e o destino de milhares
de adolescentes estará selado.

Todo aquele drama não estava funcionando comigo.

— Você não sabe se isso é verdade.

Dizem que você pode julgar um homem de acordo com as pessoas que
o acompanham. Bem, o senador conversa bastante com o homem que
dirige a Prime Destinations. O Velho. Ele é o pior tipo de ser humano no
universo.

— Então, talvez eu devesse matar o Velho em vez do senador. — Eu
esperava que o sarcasmo que eu estava usando a irritasse.

É uma boa ideia, mas ele tem muita proteção à sua volta. Devemos
nos preocupar com o senador neste momento.

A lista de pessoas que Helena queria matar parecia estar crescendo.

Se impedirmos o senador de entrar naquele avião hoje, podemos
impedir que tudo isso exploda. Eu lhe darei cinco vezes o valor que a
Prime lhe ofereceu. Eu lhe darei uma casa.

Fiz questão de não demonstrar reação e fui até a grande sacada do
salão. Passei em frente ao brilho vermelho das pontas dos charutos que os
Enders fumavam, agora que não precisavam mais temer uma morte
precoce. Quando cheguei ao lado mais distante da estrutura, olhei para os


contornos da cidade contra o céu noturno. Os prédios cobertos de
pichações, além dos limites do centro de convenções luxuoso onde nos
encontrávamos, faziam um contraste marcante.

Helena estava fazendo uma ótima oferta. Parei para pensar naquilo,
detestando-me por chegar a cogitar algo assim.

— Mesmo se eu quisesse fazer o que você está pedindo, não tenho
nenhuma arma.

Tem, sim. Eu a escondi antes. Era meu plano original, não se lembra?

Comecei a sentir enjoo. Ela estava falando do avô de Blake. Vou lhe
dizer onde ela está.

— Não me diga. Não quero saber. — Eu queria enfiar os dedos nos
meus ouvidos e cantarolar qualquer bobagem, mas isso não me impediria
de escutá-la.

Ouvi passos se aproximando atrás de mim. Virei para ver Blake.

— Aqui está ela — disse ele. — Vovô, esta é Callie.

O senador Harrison.

Era a minha chance. Eu poderia alertá-lo. Mas não poderia
simplesmente mencionar o plano. Ele pensaria que eu era louca.

—Procuramos você por toda parte, minha jovem — disse o senador,
estendendo sua mão.

Ser caçada pelo centro de convenções não era a melhor das
apresentações. Quando eu o cumprimentei, percebi que ele tinha uma
expressão muito estranha no rosto. Era quase uma expressão de dor, como
se ele sentisse pena de mim.

— E então, onde você conheceu meu neto?

— Em uma danceteria — respondi.

Ele se virou para Blake, encarando-o.

— Uma danceteria? Qual danceteria?

— Vovô, eu... — disse Blake.

— No Club Rune — eu disse, provavelmente mais rápido do que
deveria.

— Club Rune. — O senador se enrijeceu.

Imaginei que não fosse algo que ele aprovava. Eu deveria ter deixado


que Blake respondesse. Olhei para ele, mas sua expressão era neutra e
tranquila, típica de um jogador de pôquer.

Blake se virou para mim.

— Você deve estar congelando neste frio.

Balancei a cabeça negativamente. Em seguida, olhei-o nos olhos. Será
que havia ignorado uma deixa para voltar ao salão?

O senador limpou a garganta.

— O vestido que você está usando é lindo.

— Obrigada. — Eu baixei os olhos e alisei o tecido.

— Os brincos também. E seu bracelete. São antiguidades? São muito
familiares.

— Seu neto os escolheu para mim.

O senador olhou para Blake, irritado.

— Realmente. Cuide bem dessas joias. Elas estão em nossa família há
várias gerações.

Um assessor se aproximou e sussurrou algo no ouvido do senador.

— Precisamos ir para os bastidores. A cerimônia começa em trinta
minutos — disse o senador Harrison a Blake.

— Estarei lá em alguns minutos.

O senador respirou fundo, exalando o ar em seguida.

— As aparências, Blake. As aparências.

—Estarei lá.

O senador nos deu as costas sem se despedir.

— Acho que ele não gostou de mim — eu disse a Blake.

— Que nada. Essa é a maneira que ele tem de dizer ‘estou muito feliz
por conhecê-la‛. Não percebeu?

Ele segurou minha mão. Não consegui evitar um sorriso.

— Bem, você já está aqui. Vejo você após a cerimônia. Vai haver um
coquetel no salão de baile. — Blake lambeu os lábios e esfregou a barriga
antes de se afastar.

Bem, agora você sabe quem é o senador. Não deixe que o charme dele
a engane. Ele é um político e os políticos enganam as pessoas até mesmo
quando dormem.


— Você estava aqui esse tempo todo? — eu perguntei a Helena.
Aquilo me dava arrepios. Eu não tinha nenhuma privacidade.

Preste atenção agora. A arma está na última cabine à direita, no
banheiro feminino do segundo andar.

E é lá que ela vai ficar, pensei, mas não disse a Helena. Ela sabia que
eu não colaboraria.

Você tem que pegar a arma, Callie.

— Não vou usá-la.

Você não pode deixá-la no banheiro.

— Por que não?

Porque suas impressões digitais estão nela.







Eu estava na fila do banheiro feminino no segundo andar. Enders vestidas
de maneira elegante se admiravam e ajustavam detalhes nas roupas e
acessórios em frente aos espelhos que cobriam a parede inteira, enquanto
fingiam que não estavam encolhendo as barrigas. Mais à frente, à
esquerda, havia duas fileiras de cabines reservadas, cada uma com sua
própria fila.

Entre na fila à direita.

Fui em direção à direita e esperei. Contei quatro portas. A última
delas indicava um sanitário para deficientes.

A cabine do meio se abriu.

Não. É a última cabine.

Deixei que a Ender atrás de mim a usasse. Finalmente, a última
cabine se abriu e eu entrei. Tranquei a porta e olhei ao redor.

— Não consigo ver nada — sussurrei para Helena.

Olhe embaixo da lixeira.

Lá estava, perto do lugar onde a parede se juntava ao piso. Eu me
agachei, tentando evitar que meu vestido encostasse no vaso sanitário.

Tateei sob a lixeira e senti que havia um volume que não deveria estar
ali.


Ela prendera uma pequena arma ao fundo da lixeira.

Pronto.

Eu tive que me esforçar para conseguir romper a fita. Campainhas
começaram a soar, alertando-nos de que a cerimônia estava prestes a
começar. Finalmente, consegui soltar a arma e a coloquei dentro da bolsa.

Quando saí do banheiro, percebi que não havia tirado as balas da
pistola. Os funcionários do salão estavam fechando as portas. Coloquei a
mão dentro da bolsa e a trava de segurança na posição correta logo que
entrei no auditório.

Isso não é necessário.

— Segurança em primeiro lugar — eu sussurrei.







Fiquei sozinha durante os discursos da cerimônia de premiação. O senador
foi apresentado como um estadista respeitável. Ele falava sobre a missão
de sua vida, promovendo atividades para manter os jovens longe de
problemas. Helena acrescentava seus comentários pessoais conforme o
senador desenvolvia seu discurso, revelando o significado verdadeiro e
malicioso daquelas palavras.

Ela não desistiria.

Você está com a arma. Atire nele.

Se pudesse responder, eu lhe diria para calar a boca. Durante todo
aquele discurso, que deve ter sido o mais longo do mundo, parecia que a
arma pesava uma tonelada dentro da bolsa que eu tinha sobre o colo

Quando a cerimônia terminou, saí do teatro em meio à multidão.

— Uma pergunta, Helena — eu disse, sussurrando. — Por que você
escolheu este lugar?

Quanto maior for a plateia, melhor será a oportunidade para expor o
banco de corpos.

Andei pelas dependências do salão de baile, esperando por Blake.
Helena ficou em silêncio e isso me tranquilizou. Admirei as montanhas
sobremesas na mesa do bufê. Mesmo assim, eu não tinha qualquer


apetite, e parecia que eu estava atrapalhando o caminho de todas as
pessoas. Assim, decidi ficar ao lado de uma das janelas.

Eu estava ali havia alguns minutos quando alguém tocou minhas
costas. Eu me virei para ver o senador. Sozinho.

— Callie, não é mesmo? Está se divertindo?

Era minha chance. Eu poderia avisá-lo.

— Bem, não exatamente. Eu... eu queria conversar com o senhor.

Ele estreitou os olhos.

— Você é muito bonita.

De algum modo, aquela frase tinha um tom de insulto. Além de estar
sendo direto demais, seu tom de voz me colocou em estado de alerta, Ele
chegou mais perto, mais próximo do que seria confortável, e examinou
meu rosto como um médico faria. Senti-me como se fosse um inseto sob
um microscópio.

— Algum problema? — eu perguntei.

— Não, você é incrivelmente perfeita. — Ele segurou meu rosto com
as mãos e o virou para o outro lado.

Meu coração estava batendo rapidamente. Eu queria ir para o centro
do salão, onde haveria mais pessoas.

— Você é perfeita. — Ele pegou minhas mãos e examinou os dorsos.

— Nenhuma cicatriz, verruga ou corte.

Ele voltou a examinar meu rosto.

— Nem mesmo a lembrança de uma espinha. — Seu lábio se
retorceu. Ele se aproximou ainda mais, com o rosto tão perto do meu que
eu era capaz de sentir o cheiro do resíduo da fumaça de charuto em seu
hálito.

— Eu sei o que você é. — Ele agarrou meu braço.

Tentei me afastar, mas ele me segurava com força.

— Por que você está aqui? Foi Tinnenbaum que a enviou?

— Não. — Eu tentava me desvencilhar.

— Quem mais está aqui?

— Ninguém. Só eu.

— Eu quero que você saia daqui, agora. E fique longe de meu neto.


— Ele me sacudiu com um movimento brusco, — Que tipo de
mulher é você?

— O senhor não entende. Preciso lhe dizer algo importante.

— Nada que você me diga vai mudar qualquer coisa. — As veias que
ele tinha nas têmporas estavam inchadas como vermes sob sua pele.

No lugar em que estávamos, perto do canto do salão, apenas poucas
pessoas estavam perto o bastante para perceber nossa presença. Uma
Ender atravessava a multidão, resoluta. Conhecia aquele rosto de algum
lugar.

— Senador Harrison, essa é a garota que foi ao seu escritório — disse
ela.

Então, fora lá que eu a vira. Que maravilha.

Uma Ender elegante a acompanhava. A avó de Blake, imaginei. A avó
de quem ele não gostava.

— Clifford — disse a avó, com olhos severos. — Não faça isso disse a
Ender, agarrando o braço do senador.

Quando ela o puxou, ele me soltou. Em seguida, enlaçou o braço ao
redor da mulher do escritório e a levou para longe.

—Com licença — disse a avó de Blake.

Quando eles se afastaram, eu sentia que o salão estava se fechando
sobre mim.

 Você viu? Percebeu o temperamento dele? Confiar nele é uma
idiotice.

Eu vi. E senti. Mas fui novamente arrancada de meus pensamentos
quando outras mãos me agarraram, puxando meus braços. Tive a certeza
de que eram os seguranças.

— Me soltem. — Eu lutava para me desvencilhar.

— Acalme-se, Callie. Sou eu, Briona.

Era o trio de inquilinos que eu conhecera no Club Rune, com quem
havia ido até a ponte naquela noite. Briona, com Lee e Raj, ambos trajando
black-tie. Os três estavam tentando me levar até a saída.

Mas eu não podia ir embora. Ainda não.

— Parem — eu disse.


Havia Enders nos encarando. Briona e os rapazes me soltaram, mas
ficaram ao meu redor, encurralando-me como se eu fosse um bezerro
solitário.

— Você não pode ficar aqui, querida — disse Raj, em voz baixa.

— O senador Harrison mandou você ir embora — disse Lee.

Briona falou a meu ouvido.

— Ele sabe que você é uma inquilina.

— Nós todos precisamos sair daqui. Ele está chamando os seguranças
— disse Raj.

—Mas Blake vai procurar por mim — eu disse, desafivelando o
bracelete que ele escolhera para mim.

— O que você está fazendo? — sibilou Briona. — Temos que sair
daqui.

— Preciso devolvê-los a Blake — eu disse, removendo os brincos.

— Deixe comigo — disse Lee, pegando as joias.

— Não temos tempo para isso — disse Briona.

—Não podemos deixar que o senador a veja com o neto dele. Ele vai
virar uma bomba de nêutrons. Eu não demoro — Lee guardou as joias no
bolso.

— Tenha cuidado. São heranças de família.

—Para idosos como nós, tudo o que temos se torna uma herança de
família — comentou Raj.

— Não se preocupe — disse Lee. — Quarenta anos atrás, eu era
banqueiro. Sei cuidar de objetos valiosos.

Ele se virou e serpenteou por entre as pessoas. Briona enlaçou seu
braço ao redor do meu.

— Vamos lá, querida. É hora de correr.

Raj pegou meu outro braço. Os guardas do lugar nos olhavam,
murmurando uns com os outros.

— Rápido — disse Briona.

Saímos por uma das várias portas e viramos à esquerda, correndo em
direção à escadaria, que ficava de frente para uma parede coberta por
espelhos. Outras pessoas estavam saindo também, e nós nos misturamos à


multidão que descia os degraus. O salto do sapato que calçava fez com que
eu torcesse o pé esquerdo nas escadas durante a correria, e tive que deixá-
lo para trás.

— Meu sapato — eu me virei para vê-lo na escada.

Raj me segurou para impedir que eu caísse.

— Não pare.

Segui o olhar de Briona e olhei para cima. Guardas de segurança
estavam apoiados no corrimão do mezanino, olhando para nós.

— Vamos! — disse ela.

Atravessamos o saguão de mármore correndo, e eu andava
recalcitrante, com apenas um sapato. Na última porta de saída, tivemos
que nos soltar uns dos outros para conseguir atravessar. Briona passou à
minha frente e Raj veio por trás, empurrando-me durante todo o caminho.
Quando estávamos na esplanada, tirei o outro sapato. Briona agarrou
minha mão e nós passamos correndo pela fonte até chegarmos à rua.

— Para onde vamos? — eu gritei.

— Ali — Briona apontou um SUV prateado que estava estacionado ao
lado da calçada, esperando por nós. — Continue correndo!

Olhei por cima do ombro e vi pessoas, guardas, correndo em nossa
direção. Briona e eu pulamos para dentro do veículo e sentamos no banco
traseiro; Raj sentou no banco do passageiro. Lee já estava dentro do SUV,
sentado ao volante.

— Como conseguiu chegar aqui antes de nós?

— Conhecia uma saída lateral.

Enquanto meu cinto de segurança se afivelava automaticamente, eu
olhei pelas janelas escurecidas e vi vários guardas de segurança
uniformizados e até mesmo alguns à paisana diminuindo o passo,
percebendo que chegaram tarde demais. E, logo atrás deles, eu o vi —
Blake — correndo atrás deles, sozinho.

Comecei a baixar o vidro da janela para chamá-lo, mas Briona me
impediu.

—Não.

As portas e janelas se fecharam com um ruído alto quando Lee ativou


a trava-mestra.

Eu queria dizer alguma coisa, ou pelo menos me despedir com um
aceno. Blake não podia me ver através das janelas de vidro fumê. Tudo que
pude fazer foi observá-lo olhando para as janelas, procurando e não
encontrando nada. Uma decepção profunda marcou seu rosto enquanto
nosso carro se afastava.

Foi somente quando já estávamos a alguma distância da praça que
percebi que ele trazia algo nas mãos.

Meu sapato.


















































14



















E
ncostei as mãos contra o vidro e observei Blake até ele se tornar um
pequeno borrão ao longe. Raj e Briona insistiam para que Lee dirigisse
mais rápido — mas os seguranças do senador não estavam nos
perseguindo, então por que deveríamos nos apressar? Por cansa dos
inspetores? Os inquilinos temiam os inspetores da mesma forma que os
adolescentes órfãos? Eu imaginava que, tecnicamente, alugar corpos não
era algo que estivesse dentro da lei, mas sempre pensei que quantidades
suficientes de dinheiro nas mãos certas poderiam resolver qualquer coisa.

Aparentemente, não era assim, ou Briona, Lee e Raj não teriam me
tirado tão rapidamente do Music Center.

Briona estava sentada a meu lado, segurando minha mão com firmeza.
Imaginei que devia ser algo característico entre os Enders.

— Como se sente Callie? — Os olhos castanhos de Briona
examinavam meu rosto.

— Estou bem. — Soltei minha mão gentilmente.

Raj apoiou o braço no encosto do assento de Lee e se virou para trás.

— Tem certeza? Parece que você está um pouco pálida— falou ele.

— Sim, parece que ela está pálida, comparada conosco. — falou Lee,
sorrindo para mim pelo retrovisor.

Não consegui retribuir o sorriso. Virei-me para olhar pela janela, com
a mente ainda fixa em Blake.


Quando estávamos na rodovia, sem que houvesse qualquer sirene nos
perseguindo, todos respiraram fundo e relaxaram em seus assentos.

— Para onde vamos agora? — perguntou Raj.

Pergunte a eles sobre Emma.

Era Helena. Eu sabia que ela estava furiosa porque eu não havia
matado Harrison. Talvez eu pudesse ajudá-la a descobrir algo sobre sua
neta.

— Raj, você chegou a conhecer uma inquilina que dizia se chamar
Emma?

— Esse era o nome da doadora dela?

— Sim.

— Acho que não a conheci.

Briona se virou para mim, mas falou com a voz alta o bastante para os
rapazes ouvirem.

— Da última vez que você me perguntou isso, eu lhe disse que eles
não saberiam.

— Tem certeza? — eu perguntei a Raj. — Loira e alta. Veja aqui,
tenho uma foto dela.

Peguei meu telefone e mostrei a imagem a eles.

— Seria ótimo conhecê-la — disse ele. — Mas ela não é familiar.

— E você, Lee? — eu ergui o telefone.

Ele olhou pelo retrovisor e balançou a cabeça negativamente.

— Bem, eu tentei — eu disse, dirigindo-me especialmente a Helena.

Obrigada.

A voz era sincera, mas eu podia sentir sua decepção.

Dirigimos pela cidade por algum tempo. Pensei que o fato de não
perguntarem o motivo pelo qual eu queria saber a respeito de Emma um
pouco estranho.

Briona tocou as têmporas com os dedos e gemeu.

— O que foi? — perguntei.

— Estou começando a ter dores de cabeça horríveis. Nunca senti
nada assim antes. Acho que são do implante no corpo da doadora.

Ela parou de massagear a cabeça e apoiou a cabeça no encosto do


assento. — Você tem essas dores de cabeça também?

— Não — menti. — Não tenho nenhum problema.

Quando chegou a hora de me despedir, pedi para me deixarem na da
casa de Madison.

—Boa noite. — Eu desci do cano e eles foram embora.

Olhei para a casa de Madison. Estava exausta demais para voltar para
lá e encará-la, Quando deixara o lugar, no fim da tarde, eu saíra
discretamente por uma porta lateral. Não fora a coisa mais gentil a fazer,
mas eu estava com pressa.

Entrei no carro e dei a partida.







Mais tarde, eu estava deitada na cama de Helena, olhando para o dossel
de seda, pensando na situação complicada em que eu estava metida. Blake
estava no avião a caminho de Washington e seu avô estava a seu lado,
dizendo-lhe que, na realidade, eu era uma mulher velha que alugara o
corpo de uma garota.

Ele nunca mais quereria me ver. E quem poderia culpá-lo? Mesmo se
conhecesse a verdadeira história, se realmente soubesse que a pessoa que
estava dentro do corpo era eu, será que ele poderia me perdoar por mentir
e fingir ser rica, quando, na verdade, eu não passava de uma garota de rua?

Fechei os pulsos, agarrando os lençóis. A única razão pela qual eu
estava com tantos problemas era por tentar dar uma vida melhor a Tyler.

Tyler.

O que eu faria por ele se Helena estivesse certa em relação ao banco
de corpos? Provavelmente eles não me dariam dinheiro nenhum.

Helena me oferecera um pagamento maior, que incluiria uma casa.

Se eu matasse Harrison.

Eu amava meu irmão e queria que ele estivesse a salvo, em uma casa
confortável e com saúde. Mas assassinato era uma palavra que não fazia
parte do meu vocabulário, especialmente porque a vítima questão era o
avô de Blake, um senador. Eu era uma Starter, assassina. Não sabia o que


fazer com Helena. Quantas das coisas que ela me dissera seriam
verdadeiras? Eu entendia que ela estava transtornada por perder Emma,
mas muitos garotos e garotas desapareciam nos dias de hoje. Alguns
acabavam morrendo. Seria realmente culpa do banco de corpos?

Além de tudo, mencionara o nome de Tinnenbaum...

 Eu me sentei na cama. O senador estava irritado ao perguntar se
Tinnenbaum me enviara ao Music Center. Se Helena estivesse certa e o
senador fosse conversar com o presidente a respeito de algum acordo entre
o banco de corpos e o governo, por que ficaria tão irritado, pensando que
eu estava no centro de convenções a mando de Tinnenbaum? Para fazer o
quê? Cancelar o acordo?

Callie?

Eu senti meu corpo ficar tenso. A voz de Helena dentro de minha
cabeça me assustou. Ela não falava comigo desde que voltáramos para
casa.

— O que foi?

Por que você assinou o contrato com a Prime?

— Meu irmão está doente.

Eu lamento.

Ela ficou em silêncio por um momento.

E vocês não têm avós.

—Não.

Então, era a ele que você queria entregar aquele dinheiro. Por meio de
seu amigo.

— Sim, exatamente.

Eu gostaria de poder trazê-lo para cá, mas isso não seria uma boa
ideia. Mas farei algo por vocês.

Senti uma forte expectativa. Estava ansiosa para ouvir.

Vá até minha cômoda e abra a gaveta de baixo.

Levantei-me da cama e fui até a cômoda antiga. Tirei a última gaveta.

Está sob o fundo da gaveta.

Senti que havia um embrulho colado com fita adesiva. Puxei o pacote
e vi que era um envelope.


Abra.

Estava cheio de dinheiro. Senti meus braços formigarem.

Encontre um lugar para seu irmão ficar, por ora. Um hotel.

— Menores não podem fazer isso.

Eu lhe direi onde você deve ir e com quem deve conversar.

— Não posso ir até ele. O banco de corpos conhece o endereço. Se
eles me rastrearem e descobrirem que fui até lá, dirão que quebrei o
contrato.

Há uma maneira de impedir que isso aconteça. Abra a gaveta de cima
e procure uma caixa azul.

Tirei uma pequena caixa azul e a abri. Do lado de dentro, havia um
pingente: um círculo com uma pedra azul e verde.

— É bonito.

É um bloqueador de sinal. Ele gera interferências. Não é consistente o
tempo todo.

Fiz menção de colocá-lo ao redor do pescoço.

Ainda não. Precisamos limitar o tempo de uso. Se não agirmos com
cuidado, a Prime pode perceber que a transmissão está sendo bloqueada.

— Quem inventou isso?

Meu técnico. Quando eu estiver fora da Prime, eu a apresentarei o
ele. Eu sabia que haveria um preço.

— Por que você está fazendo isso?

Ainda preciso de sua ajuda. Quero saber o que aconteceu com Emma.
Se eu conseguir descobrir isso, posso ter as provas de que preciso para
fechar os portas daquele lugar horrível. E nosso acordo ainda está de pé.

— Como poderemos fazer isso? Mesmo se descobrirmos o que
aconteceu com Emma?

Temos uma vantagem agora. Ninguém sabe que eu posso falar com
você. Somos dois cérebros em um só corpo.

Ela falava de uma forma muito diferente, calma e analítica. O tom
frenético havia desaparecido e ela não cogitava mais o piano de
assassinato.

É melhor você descansar. Vamos começar logo cedo.


Deixei o colar sobre a cômoda e voltei a me deitar na cama enorme e
macia. Mas não sentia vontade de dormir. Minha mente estava preenchida
com imagens de Tyler em um quarto de hotel, com uma cama de verdade,
um sistema de calefação para mantê-lo aquecido e o serviço de quarto.

Desliguei a luminária ao lado da cama e a luz do luar tingiu o quarto
com tons azuis e prateados.

— Helena, o que você vê quando eu sonho?

Nada.

Pelo menos, meus sonhos e pensamentos ainda eram meus. Fiquei
deitada, em silêncio, por alguns momentos.

Callie? Como era sua mãe?

Minha mãe. Lembrei-me do rosto sorridente. Eu não sabia o que
deveria dizer a Helena. Havia muitas coisas.

Ela era como você?

— Não. Era uma daquelas pessoas de quem todos gostam
instantaneamente.

Aposto que as pessoas gostam de você.

Não da mesma maneira que gostavam dela. As pessoas a tratavam
como se fosse uma irmã que não viam há muito tempo. Ela se adaptava a
qualquer situação. Chegou até mesmo a participar da equipe olímpica de
arco e flecha.

Uma breve memória de minha infância surgiu em minha mente.

— E ela preparava macarrão instantâneo com queijo para mim,
quando eu ficava doente.

Era engraçado lembrar essas coisas.

— Como era Emma?

Emma era determinada, tinha personalidade forte. Talvez todos os
jovens de 16 anos seriam assim, mas ela não era o tipo de garota que
baixava a cabeça. Sabia o que queria. Foi difícil para mim tentar educa-la
depois que a guerra acabou. Eu não podia ser a mãe ou o pai dela. Tudo
isso fazia com que ela sentisse muita raiva. Quem poderia culpá-la? De
certa forma, você me faz lembrar dela.

Helena não parecia tão louca quanto antes.


Senti meus olhos se fecharem. Eu estava exausta.

Boa noite, Callie.




























































16



















E
stacionei na rua lateral, perto do prédio de Michael, e verifiquei se havia
algum renegado por perto. O lugar parecia estar vazio, ruas qualquer
pessoa poderia estar escondida nos cantos escuros. Peguei o pacote com
comida, garrafas de água e medicamentos que trouxera comigo e saí
rapidamente do carro. Eu tinha esperança de que o colar de Helena
funcionasse como deveria, impedindo que a Prime rastreasse a minha
localização.

Entrei no saguão. Será que Michael e Tyler ainda moravam aqui?
Vivendo nas ruas, às vezes era preciso correr. Atravessei o saguão na
pontados pés para ter certeza de que não havia ninguém escondido, pronto
para atacar.

Não havia ninguém. A área estava limpa. Fui em direção às escadas
que ficavam no meio do salão.

Ao subir peio poço da escadaria, que não tinha nenhuma janela,
percebi que não trazia mais minha lanterna de pulso. Estava escuro demais
para enxergar. Como eu pudera esquecer nossa maneira de viver tão
rapidamente? Tentei encontrar o caminho pelo corredor tateando na na
escuridão. Foi então que eu me lembrei — eu estava com o telefone
celular de Helena na bolsa. Peguei o aparelho e o usei para iluminar meu
caminho. Quando cheguei ao topo da escada, pensei em minhas
alternativas. A sala deles ficava à esquerda? Eu me virei e andei pelo


corredor.

Um garoto cabeludo apareceu no vão de uma porta, empunhando uma
barra de metal. Meu coração parou por um instante, até que percebi que
ele estava tão surpreso com minha aparência limpa quanto eu estava com a
imagem dele, desgrenhado e sujo. Ninguém vê pessoas limpas e bem
vestidas em prédios abandonados e invadidos.

— Sou camarada — eu disse. — Vim falar com Tyler e Michael.

Ele apontou para o fim do corredor.

— Obrigada.

A última vez que estivera aqui fora duas semanas atrás, quando
Tinnenbaum mandara Rodney me escoltar. Mas aquilo parecia ter
acontecido em outra vida. Quando entrei, vi que eles haviam feito
mudanças. Reorganizaram os móveis e conseguiram trazer muitas outras
coisas, O lugar estava mais parecido com um lar. Havia um pedaço de
tecido amarelo cobrindo a mesa e um pote com flores de acrílico. Outros
pedaços de tecido estavam grampeados sobre as janelas, iluminando o
lugar com um brilho suave e dourado.

— Tyler? — eu chamei.

Dei a volta ao redor da fortaleza. Ele estava sentado, com uma garota
curvada sobre ele. Deixei a mochila cair.

— O que você está fazendo? — eu disse. Meu tom era acusador. E
intencional.

A garota virou o rosto em minha direção.

— Estou dando um pouco de água a ele. Há algum problema com
isso?

Eu a reconheci. Florina. A garota que Michael me apresentara quando
eu estava prestes a voltar para o banco de corpos. Ela parecia estar ponto
de atirar o copo em mim, mas Tyler me chamou pelo nome. Corri e me
ajoelhei a seu lado, enlaçando meus braços ao redor dele e abraçando-o
com força.

— Senti tanta saudade. — Acariciei seus cabelos macios.

— Você voltou — disse ele. — Finalmente.

Eu me afastei para olhar seu rosto.


— Ainda não.

— Não vá embora de novo. Você disse isso da última vez.

— Eu sei, Ty, mas desta vez estamos quase terminando.

Florina olhou para ele.

— Você pode ter um pouco de paciência, não é mesmo, garoto?

O que ela estava fazendo, intrometendo-se na conversa daquele jeito?

— Essa é Florina. — Tyler inclinou sua cabeça na direção dela.

Olhei para ela.

— Já nos conhecemos. Onde está Michael?

— Não sei. — Ela olhou para o chão.

Uma inquietação surgiu em meu estômago. Mesmo assim, ignorei
aquela sensação porque Tyler estava ali, brincando com minha mão.

— Ah, e eu trouxe uma surpresa para você.

— O que é? — perguntou ele.

— Se eu lhe disser, não vai mais ser uma surpresa.

Ele resmungou.

— Como está se sentindo? — Afastei os cabelos de Tyler para poder
enxergar seus olhos castanhos. Ele parecia estar um pouco pálido, mas era
difícil ter certeza com aquela luz amarelada.

— Tivemos alguns dias difíceis — disse Florina.

Quer dizer, então, que Florina esteve cuidando dele nos últimos dias.

— Você está bem agora? — eu perguntei.

Ele assentiu e beliscou meu braço.

— Você engordou — disse ele, e puxou o colar de Helena que estava
ao redor de meu pescoço.

— Não, não toque nisso. Veja, eu trouxe a comida de que você mais
gosta.

Ergui as sobrancelhas e olhei para Florina.

— Há quanto tempo Michael está fora?

— Ele não voltou para casa ontem — disse Tyler.

Aquilo não combinava com Michael. Não queria perguntar o óbvio na
frente de Tyler, mas eu e Florina trocamos olhares. Será que os inspetores
pegaram Michael?


— Tivemos uma pequena discussão — disse ela. — Ele ficou bravo e
saiu.

— Talvez ele esteja esfriando a cabeça em algum lugar.

Havia inúmeras possibilidades. Talvez tivesse encontrado alguém que
conhecia, ou fora espancado e estava inconsciente em algum beco.
Talvez...

— Sobre o que vocês discutiram?

— Nada de importante.

— Então, por que você não foi atrás dele? — eu perguntei. — Você
tentou procurá-lo?

Ela balançou a cabeça e depois indicou Tyler com um olhar. Percebi
que ela não poderia sair atrás de Michael porque Tyler ficaria sozinho. Eu
me senti uma calhorda por tratá-la de maneira tão fria anteriormente.

— Obrigada por cuidar de meu irmão — eu disse. — Isso é muito
importante para mim.

Ela acariciou os cabelos de Tyler.

— Não há de quê. Já somos velhos amigos agora, não é mesmo, Tyler?

— Nós gostamos de jogar — disse ele

— Aposto que ela ganha de você — eu disse.

— Nada disso. Quem ganha sou eu.

Depois que Tyler e Florina se empanturraram com o pequeno
banquete de queijo, frutas e sanduíches que eu lhes trouxera, sentei -me
ao lado dela na escadaria para conversar em particular. Naquela posição,
conseguiríamos perceber se alguém entrasse no prédio, então imaginamos
que seria seguro deixar Tyler sozinho na sala. E, com aquele camarada
cabeludo em nosso andar, Tyler teria alguma proteção.

— Tyler teve febre na semana passada — disse Florina. —
Conseguimos alguns analgésicos infantis. Michael tinha um pouco de
dinheiro escondido.

Provavelmente, era o dinheiro que eu pedira para Blake lhe entregar.

— Mesmo assim, a coisa foi séria. Passei a noite toda trocando os
panos umedecidos sobre a testa dele, porque eles esquentavam na mesma
hora.


Levei as mãos à cabeça.

— Vou tirá-lo daqui hoje.

Florina se endireitou.

— É mesmo? E para onde vão?

— Para um hotel. Você vem também.

— Mas você disse que seu contrato ainda não terminou. Como
arranjou o dinheiro?

— Recebi um adiantamento — eu disse. Era verdade, tecnicamente.
— Quando Michael voltar, ele pode ficar lá com vocês.

Aquilo colocou um sorriso no rosto dela.

— Vou deixar um recado para ele.

Parecia que eles eram mais do que simplesmente amigos. Eu estava
sumida havia quase três semanas. Muitas coisas poderiam acontecer nesse
meio-tempo, bastava olhar para o que houvera entre Blake e eu. Senti uma
pontada de dor. Estava com um pouco de ciúmes, mas sabia que não tinha
nenhum direito de me sentir assim.

Voltamos para a sala e empacotamos o que era mais importante.

Tyler estava se sentindo energizado pela comida e por minha presença
e estava ajudando. Ele escolheu as coisas que mais queria levar consigo e
as guardou em uma bolsa de viagem.

— Para onde vamos? — perguntou Tyler.

— Para um lugar bonito, onde você terá uma cama grande e macia,
uma aerotela e um monte de chocolates.

— Está falando sério? — Ele arregalou os olhos . — É mesmo?
Quanto tempo vamos ficar lá?

— Não sei ao certo. Depende.

— Depende de quê?

— Da maneira como você se comportar.

Eu me aproximei e fiz cócegas nele, até que ele se curvou, rindo e me
implorando para parar.

— Vamos precisar levar as garrafas d’água? — perguntou Florina.

Balancei a cabeça. Ela levantou as sobrancelhas.

— Tem certeza?


— Tudo bem, vamos levá-las caso aconteça alguma emergência.

Guardamos nossas coisas em silêncio, olhando para o pouco que
tínhamos. Florina estava em pé com as mãos nos quadris, sem dúvida
imaginando se suas memórias valeriam o peso que tinham. Em seguida ela
pegou algo que chamou minha atenção. Um retrato desenhado à mão,
preso um papelão com fita adesiva.

Eu sabia quem desenhara aquilo.

Desviei o olhar antes que ela percebesse. Houve um momento, um
instante congelado no tempo, mas consegui evitar cair no abismo chamado
piedade. Era um lugar ao qual eu me recusava terminantemente a ir.

Nós três descemos a escada com nossas bolsas. Dois Starters mais
novos estavam encostados no carro. Fiz um sinal para que eles se
afastassem e olhei em volta para ter certeza de que não havia ninguém de
tocaia. Em seguida, abri o porta-malas.

— Um carro? — gritou Tyler.

Coloquei um dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. Queria sair dali
sem ter que enfrentar renegados. Estava usando o carro de Emma o menos
chamativo.

— Onde você conseguiu esse carro? — perguntou Florina.

— Você sabe mesmo dirigir? — perguntou Tyler.

Fechei o porta-malas e fiz com que os dois entrassem.

— A empresa onde eu trabalho me emprestou — eu disse, depois de
trancar as portas.

— Uau, deve ser um lugar muito legal — disse Tyler.

Quando os cintos de segurança se fecharam automaticamente ao
redor deles, os dois ficaram um bom tempo examinando o interior do
carro, maravilhados. Embora este fosse o carro menos espalhafatoso de
Helena, ainda tinha todos os equipamentos e acessórios mais modernos.
No banco de trás, Tyler apertou todos os botões que conseguiu alcançar.

— O que isso faz? — ele perguntou, apertando um botão na porta.
Esse botão faria a porta abrir, se eu não tivesse uma trava de segurança —
eu disse, olhando para ele pelo espelho retrovisor. — Afinal, nós
claramente temos uma criança no carro. — Eu mostrei a língua para ele e


ele respondeu mostrando a sua.

— Só sabe imitar os outros — eu disse.

— Cara de Macaco — respondeu ele.

Dei a partida no motor e saímos dali.

— Olhe, a macaca está dirigindo! — disse Tyler.







No hotel, Tyler e Florina olhavam espantados para o saguão luxuoso e o
imenso arranjo floral. Helena estava cumprindo sua parte da promessa: ela
nos mandara para um hotel bem luxuoso. O recepcionista nos olhava de
maneira estranha: três menores, sendo que uma era aparentemente rica,
acompanhada por dois pivetes de rua com bagagens sujas e esfarrapadas.
Pedi para falar com a gerente, uma mulher que Helena conhecia, e tudo
aconteceu sem maiores problemas. Mostrei meu cartão de identidade com
o nome ‚Callie Winterhill‛, explicando que era a sobrinha-neta de Helena.
Ela ficou feliz em receber meu dinheiro e nos deu um quarto no 15°
andar.

Quando abri a porta, o queixo de Tyler caiu. Fazia muito tempo desde
a última vez que ele estivera em um quarto tão elegante. Era imenso, com
duas camas queen-size e um sofá que podia ser aberto para virar uma
terceira cama.

— Michael pode ficar com o sofá — disse Tyler. — Afinal, ele não
está aqui para escolher uma cama.

Florina e eu trocamos um olhar.

— Se ele aparecer — disse ela, em voz baixa.

Tyler correu em direção a um pote de castanhas que estava sobre uma
mesa.

— Castanhas!

— Temos mais do que isso. Olhe — eu abri o frigobar.

— Uau! — disse ele, pegando uma supertrufa.

Florina se aproximou e eu lhe dei um saco de salgadinhos e um
refrigerante. Ela engoliu o refrigerante e enfiou os salgadinhos na boca.


— Quero a cama perto da janela — disse Tyler, mastigando o
chocolate.

Eu o segurei.

— Espere um pouco, garotão. Você vai tomar um banho antes de
deitar.

— Com bastante espuma! — disse ele.

Depois que Tyler se divertiu na banheira, Florina tomou uma longa
ducha. Tyler parecia estar tão magro usando apenas a roupa de baixo que
chegou a me assustar. Eu o cobri com o edredom branco e limpo.

— É tão macio... parece que vou sair flutuando por aí.

— Fique bem aí — eu disse, beliscando-lhe o nariz.

Ver a cabeça de Tyler recostada nos travesseiros macios me trouxe
memórias de nossa infância novamente, em nossos quartos, em nossa
próprias camas, com luminárias decoradas com figuras de cowboys
animais de pelúcia e pais que vinham nos desejar boa-noite com beijos e
abraços.

Eu havia saído daquele mundo há muito tempo, mas talvez Tyler
ainda tivesse uma oportunidade de retornar a ele. Senti que havia um
buraco em meu coração. Não consegui conter as lágrimas que vieram a
seguir.

— Ei, Callie. Estamos bem agora.

Ele pegou minha mão. Estava tão magro que eu podia sentir seus
ossos.

— Muito bem — eu disse.







Ir embora foi mais difícil do que eu esperava. Desejei poder rever Tyler em
breve. E, depois, não sairia mais de perto dele. Se Helena mantivesse sua
promessa de me pagar e me dar uma casa, meu irmão e eu voltaríamos a
ser uma família. Eu encontraria um bom médico para ele e a saúde de
Tyler melhoraria, dia após dia. Sempre imaginara que Michael viria morar
conosco, mas talvez isso não fosse mais acontecer, agora que ele e Florina


haviam se aproximado. Não parecia justo. Eu me afastara para conseguir
dinheiro. Michael e eu não tivemos qualquer chance de ver até onde nosso
relacionamento poderia chegar.

Já que eu provavelmente perdera Blake para sempre, a ideia de perder
Michael também era impossível de aceitar.

Entreguei dinheiro suficiente a Florina para passar três noites no hotel
e um pouco mais para cobrir as despesas com o serviço de quarto. Escondi
algum dinheiro na mochila de Tyler também. Ele queria que eu ficasse
mais tempo a seu lado, mas eu sabia que o relógio estava correndo e
Helena precisava de minha ajuda. Consegui sair do quarto quando Tyler
caiu no sono, após comer tudo o que havia no frigobar.

Enquanto eu esperava pelo manobrista do hotel, Helena surgiu em
minha cabeça e planejou nossa próxima ação.

Preciso que você vá conversar com uma garota que pode ter
informações a respeito de Emma.

— Onde posso encontrá-la?

Em um lugar aonde você não desejará ir.

Minha mente fez uma lista de lugares ruins. Um bairro violento?
Todos os bairros eram violentos hoje em dia. Ela certamente não me
mandaria ao banco de corpos; havia implorado para que eu não voltasse lá.

— Desisto. Onde?

A Instituição 37.

Senti que minha respiração parou por um instante. Apoiei as costas na
parede.

— Será que posso escolher algum outro lugar? Como o inferno, por
Exemplo?

Eu sei. As instituições são horríveis, são prisões, na realidade. Visitei
muitas delas procurando por Emma. Descobri algumas coisas a respeita
dessa garota, Sara, que sabe de alguma coisa. Mas, no dia em que fui
conversar com ela, Sara havia sido mandada para o campo de trabalho.

— Não posso. Não posso ir até lá. Eu poderia conversar com ela fora
da instituição, ou em qualquer outro lugar. Mas não lá dentro.

Não. Se fizéssemos isso, ela seria acompanhada por guardas. Não teria


liberdade para conversar.

Minhas palmas estavam úmidas de suor. Esfreguei-as nas calças.

Você ficará bem. Vamos à minha casa antes para pegar algumas
roupas para doar. Você chegará à instituição em um belo carro, bem-
vestida e maquiada. Eles a tratarão como se fosse uma garota adotada por
uma família rica.

Não era simplesmente um lugar aonde eu não queria ir. Era meu pior
pesadelo. Suspirei.

Tudo ficará bem, Callie. Basta se lembrar de quem você é: Callie
Winterhill.
















































17



















E
u estava do outro lado da rua, olhando para os portões da Instituição 37.
Gostaria de poder estar em qualquer outro lugar do planeta. Qualquer
lugar. Era agonizante pensar que eu poderia estar naquele hotel elegante
com meu irmão e Florina.

Callie, por que está parada aqui?

— Tem certeza de que isso é seguro?

Encare os fatos. Neste momento, você não está segura em lugar
nenhum. Mas, provavelmente, este é o lugar mais seguro onde você pode
estar, porque ninguém conseguirá encontrá-la.

— Isso é muito reconfortante — eu ironizei.

Eu deixara o colar na casa de Helena. Ela não queria usá-lo por tanto
tempo, pois temia que o banco de corpos pudesse perceber que meu chip
não estava registrando minha localização. Atravessei a rua, carregando
duas sacolas de compras cheias de roupas de grife, muitas delas ainda com
as etiquetas da loja. Estavam no closet de Helena, peças compradas para
Emma, que nunca foram usadas. Helena não conseguia suportar a ideia de
se desfazer de roupas que sua neta vestira, mesmo que Emma nunca mais
retornasse.

Um muro alto e cinzento de concreto cercava o complexo. Cheguei
até o portão e falei com o guarda através de uma tela de metal suja.

— Meu nome é Callie Winterhill — eu disse. — Liguei para avisar


que viria fazer uma doação.

O guarda Ender examinou uma lista até que encontrou meu nome.
Ele apertou um botão e o portão fez um ruído alto e seco antes de se abrir.
Fiquei paralisada. Meus pés não se moviam.

Ande!

Eu precisava daquele estímulo. Respirei fundo e entrei. O portão se
fechou por trás de mim com um estrondo, metal batendo em metal, tão
alto que meus dentes chegaram a doer. O caminho levava direto ao prédio
da administração à minha frente, com suas paredes cinzentas e escuras.
Antes da guerra, quando havia escolas públicas com prédios
administrativos, nenhuma delas era tão assustadora.

— Lugar lindo — eu disse, em voz baixa.

Segui o caminho que ficava ao lado de uma via asfaltada. Andei mais
lentamente, sem qualquer pressa.

Não vá até aquele prédio. Vire aqui.

Aliviada, segui as instruções de Helena, dirigindo-me para os
dormitórios. Havia barras de metal em todas as janelas.

— Mas eles não estão esperando que eu vá até o prédio da
administração?

 Sim, mas precisamos encontrar Sara antes. Fui informada de que ela
está no primeiro dormitório. Rápido, antes que alguém vejo você.

Subi alguns degraus e abri as portas pesadas. Dentro do prédio havia
dois salões unidos por um pequeno corredor. Um cheiro horrível me
deixou atordoada. A tinta das paredes estava descascando, fragmentos
sujando o piso de concreto.

— E agora? — eu sussurrei.

Vá para o primeiro salão.

Virei à direita e olhei pelo vão da primeira porta. Dezesseis beliches de
metal enchiam uma sala cinzenta. Havia uma caixa de madeira aberta ao
lado de cada cama, com alguns poucos pertences: uma escova de cabelos
carcomida, um livro desgastado. Aquilo me lembrava de fotos de quartéis
do exército, com cobertores tristes de cor verde-oliva enrolados nos pés de
cada uma das camas. Mas aquele lugar era pior, porque as crianças não


tinham qualquer família ou lar para onde pudessem voltar algum dia.

Tudo que elas tinham estava naquelas caixas.

— Não há ninguém aqui.

Continue andando.

Passei por vários quartos, todos vazios. Cheguei até o final do corredor
e estava pronta para desistir quando vi pés que saíam debaixo de uma
cama.

Eu me agachei. Uma garota estava deitada no chão, tentando se
esconder.

— Olá — eu disse.

Ela se arrastou para longe, tentando se afastar de mim.

— Está tudo bem. — Cheguei mais perto. — Eu trouxe algumas
roupas.

Voltei a me endireitar e esperei.

— Roupas? — a voz dela vinha debaixo da cama.

— Roupas bonitas. Calças, saias e blusões.

Coloquei a sacola no chão e tirei um suéter de dentro dela.

— Aqui está um blusão cor-de-rosa de casimira.

— Casimira?

Ela se arrastou para fora do esconderijo sob a cama e se levantou.
Parecia ter 12 anos, com um rosto bonito e um pequeno espaço entre os
dentes. Seu uniforme, uma camisa branca puída e calças pretas, parecia
ser largo demais ao redor do corpo magro. Aquela magreza era típica dos
menores sem família, mas ela não estava mais vivendo nas ruas. Ficou
claro que eles não estavam alimentando as crianças muito bem.

Pergunte qual é o nome dela.

Eu lhe entreguei o blusão. Ela o acariciou como se tivesse um gato
mãos.

— É macia — disse ela, encostando a blusa no rosto.

— Pode ficar com ela.

— Mesmo? De verdade? Está falando sério? — disse ela.

Fiz que sim com a cabeça.

— Ah, obrigada... muito obrigada — ela o vestiu.


— O que achou? — eu perguntei.

Ela respondeu levando o punho direito sobre o coração e cobrindo-o
com a outra mão. Ela bateu com uma mão na outra, imitando a batidinha
de um coração.

— Isso quer dizer que eu adorei — ela disse — Ouviu? Parece o som
de um coração. Faça também.

Ela pegou minhas mãos e fez com que eu a imitasse. Eu me ser um
pouco tola.

—Faça com que soe como a batida do coração, assim É melhor se
você bater com a mão fechada na palma da Ela forçou minhas mãos a
marcar o ritmo do tum-tum.

— Certo, acho que já entendi. — Eu parei e afastei as mãos dela.
Qual é seu nome?

—Sara.

Minha pulsação acelerou, Helena soltou um suspiro de espanto que
somente eu fui capaz de ouvir.

— Há quanto tempo você mora aqui? — eu perguntei. Quase um ano.

— Onde estão os outros?

— Saíram para cortar o capim alto em algum lugar — disse ela,
sentando-se na beirada da cama.

— E você não foi?

Ela apontou para o coração.

— Tenho uma válvula ruim.

Eu não sabia o que dizer, além de uma expressão de simpatia.

— Não se preocupe. Não dói e me deixa longe dos piores trabalhos.
— ela abraçou a si mesma no suéter.

— Essa blusa era sua?

Balancei a cabeça.

—Era de uma amiga. Ficou boa em você. Tenho certeza de que ela
ficaria feliz se soubesse que a blusa agora é sua.

Ela sorriu e acariciou as mangas.

— É tão macia — disse ela, tocando no colchão. A cama se curvou
sob meu peso quando me sentei ao lado dela. O cobertor era áspero e


cheirava a mofo.

— Quando eu cheguei, você estava escondida. Por quê? — perguntei.

Ela deu de ombros.

— Nunca se sabe o que pode acontecer aqui — ela baixou os olhos.

Abri minha bolsa e peguei uma supertrufa, que ofereci a ela. Ela
levantou as sobrancelhas

—Pode pegar.

Ela pegou o doce com as duas mãos e o mordeu. Perguntei-me
quando ela teria feito sua última refeição.

— Sara, alguém me disse que você conhecia uma garota chamada
Emma. Ela era assim — eu disse, mostrando a foto em meu telefone. —
Você se lembra dela?

Ela colocou seus dedos miúdos ao redor do telefone e pegou o
aparelho, examinando a imagem.

— Ela veio aqui uma vez, como voluntária, há uns seis meses. Ela
lavou e cortou meu cabelo. Era uma clínica de beleza.

Ela me devolveu o telefone.

— Eu a vi outra vez, umas semanas depois. Eu havia quebrado o
pulso... não me pergunte o que aconteceu. Precisei fazer exames. Vi
Emma na rua, mas foi estranho.

—Porquê?

— Ela não me reconheceu. Eu a chamei pelo nome, ‚Emm!‛. Ela
olhou para mim, mas não se lembrou. Parecia estar um pouco diferente,
mais bonita, mas eu sabia que era ela. Ela estava usando as mesmas joias.
Acho que ficou envergonhada. Não queria que as pessoas a vissem
comigo.— Ela tocava o tecido do blusão. —Depois de termos passado um
dia tão bom juntas.

Eu queria muito poder contar a Sara que ela estava errada. Que
Aquela não era a verdadeira Emma, e sim uma inquilina Ender.

— Onde você estava quando a viu? — perguntei.

Ela negou com a cabeça.

— Não sei. Não muito longe daqui, em Beverly Hills mesmo.

Guardei o telefone.


— Sinto muito.

Disse aquilo para que Helena ouvisse. Gostaria de ter conseguido
mais informações.

— Não faz mal — disse Sara. Ela se aproximou de mim na cama.

— Posso lhe perguntar uma coisa?

—É claro.

— Você acha que eu sou bonita?

— É claro que acho. Você tem um rosto bonito. Por quê?

— Descobrimos na semana passada que vão fazer um programa
especial. Vão levar alguns de nós para outro lugar, fazer um tratamento de
beleza e nos dar empregos importantes. Vamos poder ganhar dinheiro.
Espero que eles me escolham. Quero muito, muito sair deste lugar. Faz
muito tempo que estou aqui.

— Quando? Quando isso vai acontecer?

— Não sei. Disseram que vão nos dar banho amanhã. Geralmente nós
só tomamos banho aos domingos.

Uma expressão de medo cobriu seu rosto. Os olhos dela estavam,
focados em algo atrás de mim enquanto ela se levantava. Eu me virei e vi
uma Ender de aparência severa na porta. Talvez já houvesse sido elegante,
mas agora estava usando um terno cinza bastante formal e trazia um Zip
Taser no coldre que tinha preso ao quadril.

— O que está fazendo aqui? — Ela entrou no quarto.

Eu me levantei e apontei para as sacolas.

— Eu trouxe doações.

O crachá que ela usava indicava: ‚Sra. Beatty, chefe da segurança.

— Todas as doações são feitas por meio da diretora. Você não pode
simplesmente andar pelas instalações, dando presentes como se fosse o
Papai Noel — disse ela, pegando as duas sacolas. — Isso apenas causaria
inveja e brigas, e nós certamente não precisamos de mais que já temos.

Foi tolice esperar que ela não percebesse. Mesmo assim, o suéter que
Sara tinha não era cinza ou preto conforme os regulamentos; a cor rosa se
destacava. Naturalmente, a peça chamou a atenção de Beatty.

Sara cruzou os braços sobre a blusa, numa tentativa inútil de escondê-


la.

— Tire isso — disse Beatty. — Agora.

— É meu. Ela deu para mim.

— É verdade — eu disse, interpondo-me entre as duas. — Eu
realmente dei o blusão a ela.

Não se envolva nisso, Callie, Helena me implorou.

— Entregue esse blusão agora mesmo. — Beatty largou as sacolas de
compras e passou por mim. Ela puxou o blusão por sobre a cabeça de

Sara e o arrancou.

— Você não pode levar a blusa, ela é minha! Lágrimas lhe escorriam
pelos olhos. — É a primeira coisa que alguém me dá desde que vim para
cá.

Não fique aqui, Callie. Vá embora.

— A diretora é que se encarrega de todas as distribuições — disse
Beatty, olhando para mim. — Você e eu vamos falar com ela.

Não! Seja lá o que você fizer, não vá com ela.

A voz de Helena fez meu corpo se enrijecer. Beatty gesticulou com a
cabeça, indicando que eu deveria sair primeiro. Em seguida, lançou um
olhar duro para Sara, indicando que voltaria para conversar com ela mais
tarde, quando eu não estivesse ali para testemunhar. Fui até a porta e
parei. Virei-me para dar uma última olhada em direção ao corpo frágil e
franzino de Sara. Tudo que restara em sua camisa foram alguns fiapos de
lã cor-de-rosa, indicando um futuro que não se tornaria mais realidade.

Não havia nada que eu pudesse fazer por ela.

Beatty e eu caminhamos pelo corredor. Beatty calçava sapatos de salto
— não eram saltos finos; tinham um formato mais rombudo e faziam um
som característico no chão conforme ela andava. Uma ideia estranha
passou por minha cabeça; senti vontade de correr de volta e dar um soco
no rosto de Sara. Se ela tivesse um olho roxo ou se seu nariz estivesse
quebrado, talvez as pessoas do banco de corpos não t escolhessem.

Era doentio pensar que as coisas haviam chegado a esse ponta.
Quando deixamos o prédio e descemos pelos degraus, eu não conseguia
tirar o rosto de Sara da cabeça. Ela era uma versão mais jovem de rua


mesma, a pessoa que eu fora durante o último ano. Uma órfã desesperada
e faminta, ansiosa para conseguir restos de qualquer coisa, à mercê de um
sistema que se importava menos com menores sem família do que com
cães abandonados.

Quando chegamos à entrada do prédio principal, Helena falou
comigo.

Vá para a esquerda. Saia por ali como se você fosse a dona do lugar.

 Fiz o que ela disse. Os saltos de Beatty pararam de bater contra o
piso.

— Senhorita. O escritório da diretora fica para este lado — disse ela,
apontando para a direita. Sua voz era tão aguda que agredia meus ouvidos.

— Eu sei. Mas não estou me sentindo muito bem. Vou embora.

—Temos um médico aqui. Um excelente profissional. Vou chamá-lo.

— Não, obrigada.

Beatty bufou e seus lábios se contorceram em uma expressão
desprezo. Mesmo assim, continuei andando em direção ao portão
principal, com a cabeça erguida, sem olhar para trás. Eu estava
aprendendo a usar a postura dos endinheirados.

Quando cheguei ao portão, o guarda me observou de dentro de sua
grade de metal. Olhei para o portão, esperando que ele se abrisse.

O telefone tocou e ele atendeu. A tecnologia desse lugar era antiga.
Ele olhou para mim através da grade e desligou o telefone, fazendo um
sinal para que eu me aproximasse. Dei um passo na direção grade de
metal.

— Tenha um bom dia — disse ele. . — Até a próxima vez.

O portão se abriu e precisei usar todo o meu autocontrole para n
correr para fora. Quando o portão se fechou atrás de mim, fui capaz de
voltar a respirar e atravessei a rua. Virei-me e olhei para o complexo. Era
possível ver uma parte do dormitório acima do muro e alguma coisa atraiu
minha atenção.

Sara estava em uma das janelas, parecendo muito pequena. Ela
acenava para mim. Engoli o que quer que houvesse se formado na minha
garganta.


Agora você percebe a maldade que existe nesse lugar. Agora você
sabe.

— É ainda pior. Não ouviu o que ela disse? — eu perguntei a Helena.
— O banco de corpos vai escolher as crianças mais bonitas e começar a
usá-las. Precisamos impedi-los.

Finalmente. Você entendeu tudo.
























































18



















F
iquei muito feliz em sair daquele lugar horrível. Imaginei se Helena
realmente esperava que Sara tivesse pistas sobre a morte de Emma ou se
tinha sido apenas uma mentira para meu forçar a entrar na instituição.

Antes que eu pudesse pensar mais a respeito, meu celular tocou.
Entrei em meu carro e travei as portas. Era Madison. Havia deixado unia
mensagem para mim, pedindo que eu voltasse à sua casa para pegar as
coisas que deixara lá ontem. Helena me autorizou a ir até lá, desde que eu
não me demorasse. Não ficava longe. Cheguei até a casa de Madison após
dez minutos.

Assim que entrei na varanda de Madison, a porta se abriu. Ela me
olhou sem qualquer expressão no rosto.

— Eu a conheço?

Ah, não. Será que havia uma Ender diferente dentro daquele corpo?

— É claro que conhece. Somos grandes amigas. Não se lembra do
dedinho? — agitei o dedo mínimo.

Ela cruzou os braços.

— Bem, você poderia estar me enganando. Pensei que você fosse a
amiga que desapareceu do nada ontem à noite.

— Desculpe. Eu lamento muito.

Fiquei imaginando as piores coisas possíveis, desde acidentes cheios
de sangue até as multas gigantescas que eles cobram quando danificamos


um corpo de aluguel.

— Foi uma emergência.

— Eu imaginei. Uma emergência do tipo Blake. Entre.

Eu a segui para dentro da casa.

— Precisei acompanhá-lo a uma cerimônia de premiação na qual seu
avô faria um discurso. Tudo aconteceu muito rápido. — Olhei ao redor da
sala, mas não vi a bolsa que trouxera para passar a noite.

— Aposto que foi, realmente. Eles estão em Washington agora, sabia?
Os olhos dela brilhavam. — Ele está na televisão agora, com o senador.

— Agora?

— No noticiário das 6 horas — disse Madison.

O senador? A voz de Helena soou severa dentro de minha cabeça
Quero ver isso.

Passei por Madison e fui em direção à sala de jogos. Ela me seguia

— Sua boba, você acha que telefonei apenas para que você viesse
pegar suas coisas? Eu sabia que você ia querer assistir.

No meio da sala de jogos de Madison, o senador Harrison preenchia a
aerotela. Um grupo de repórteres estava no primeiro plano, abaixo de seu
palanque, e a Casa Branca estava ao fundo.

—Hoje, o presidente tomou uma decisão histórica— disse Harris a
uma fileira de microfones. — Como todos sabem, a Lei para a Proteção do
Emprego do Idoso impediu o acesso de menores a empregos e ao mercado
de trabalho em geral. Como nossa população idosa estava vivendo mais,
eles precisavam que o governo garantisse que não seriam forçados a deixar
seus empregos. Na época, o Congresso tomou a decisão de proibir que
pessoas com menos de 19 anos tivessem empregos. Depois, veio a guerra.
O conflito terminou há mais de um ano, e muitos de nós acham que é
hora de promover uma mudança. É com orgulho que anuncio a Lei de
Empregos para Jovens em Circunstâncias Especiais, que permitirá que
certos adolescentes trabalhem para um grupo de empresas selecionadas. A
fase um se concentrará em menores sem família que estão
institucionalizados. A primeira empresa será a Prime Destinations, na
região da costa oeste. Agindo dessa maneira, traremos objetivos e


significado para as vidas sem rumo de inúmeros menores.

Então, Helena tinha razão. Estávamos todos bastante encrencados.

Quando o senador concluiu sua declaração e começou a responder às
perguntas dos repórteres, a câmara mudou de posição e percebi que Blake
estava a seu lado. O que ele sabia sobre mim? Seu avô lhe contara

que eu não era quem fingia ser? E, se o senador Harrison estava
fazendo — negócios com a Prime, ele saberia que eu não era uma cliente
comum, mas uma doadora que dividia o corpo com sua inquilina?

Será que Blake me odiava? Examinei seu rosto, tentando encontrar a
resposta.

Foi quando percebi um detalhe. Seu prendedor de gravata.

Era a presilha em forma de baleia que estava em meu sapato. Ele a
retirara do sapato que eu deixara para trás no Music Center e decidira usá-
lo como um prendedor de gravata. Isso significava que, independente do
que soubesse, ou não soubesse, ele não sentia raiva de mim.

Provavelmente ele gostava de mim para fazer algo assim. Entrei no
espaço holográfico onde ele estava, mas Blake não estava mais lá. Fora
substituído por um repórter que estava fazendo um resumo dos
acontecimentos, falando diretamente para a câmera. Não importava. Eu
ainda estava extasiada, lembrando-me de seu rosto e daquele gesto
simbólico.

— Não é incrível? — disse Madison. — A Prime será a primeira
empresa a oferecer contratos a menores. É algo a celebrar. Pelo menos, foi
oficializado. Talvez não precisemos mais guardar tantos segredos.

— Você acha? — Percebi uma luz azul piscando no canto da aerotela.
Logo abaixo, havia o número 67. — O que é essa luz azul?

— Uma TEP, Transmissão Especial Privada. Vem de um dos vários
canais que eu assino. Posso assistir a ela mais tarde.

Ela se levantou e olhou para a aerotela.

— 67. É o canal da Prime Destinations. Logo depois que Harrison
mencionou a empresa — disse ela torcendo o nariz. — Que estranho.

— Não é coincidência. Ative a mensagem.

Madison aproximou a mão do ícone holográfico. Um boletim especial


surgiu na tela: ‚Dentro de instantes, a Prime Destinations fará um
comunicado especial‛.

A tela mostrava um estúdio vazio, com colunas de mármore ao fundo.

— Quem mais está assistindo a essa transmissão?

— Somente os assinantes dos planos Titânio Premium da Prime.

— Quantas pessoas têm esse plano?

Ela deu de ombros e se sentou no sofá.

— Não sei. A maioria dos assinantes é como você. Você tem o plano
Prata, não é?

— Sim — eu assenti. — Prata.

— Shhh. — Ela cruzou as pernas e agitou a mão. — Está começando.
Tinnenbaum entrou no cenário vindo da esquerda, com sua postura típica
de apresentador de TV. Dons entrou pela direita, com um grande sorriso.

— Olá, amigos — disse Tinnenbaum, olhando para a câmera. —
Obrigado por nos deixarem entrar em sua casa.

— É emocionante poder estar aqui — disse Doris.

— Este é um anúncio especial, exclusivo para os assinantes de nossos
planos Titânio Premium, enviado em caráter privado e confidencial —
disse Tinnenbaum.

— Portanto, se houver outras pessoas na sala, você pode preferir ver
esta mensagem mais tarde — disse Doris.

Madison e eu trocamos um olhar. Aquilo parecia importante.

Tinnenbaum e Dons sorriam um para o outro, esperando até que as
pessoas pudessem desligar o programa se fosse necessário. Em seguida,
Tinnenbaum fez um sinal com a cabeça para alguém que estava fora do
campo de visão das câmeras, como se houvesse recebido um sinal para
prosseguir.

— Temos uma surpresa especial para vocês — disse ele. — O diretor
da Prime Destinations está aqui para fazer um comunicado importante.

Madison se endireitou no sofá.

— Nós nunca o vimos antes.

É ele, Callie. Os pensamentos de Helena ribombavam em minha
cabeça. O Velho, em pessoa.


Fixei os olhos na aerotela. A imagem foi cortada para uma câmera
diferente. Em outro cenário, provavelmente em um lugar totalmente
diferente, a câmera se aproximou de uma cabine escurecida, com janelas,
instalada em uma plataforma elevada. Dentro da cabine havia a silhueta de
um homem.

— Parece que ainda não conseguiremos vê-lo — eu disse.

A câmera se aproximou, enquadrando-o dos ombros para cima. As :es
na cabine se acenderam, mas o rosto que vimos não era o de um Ender de
150 anos. Em vez disso, havia um estranho contorno eletrônico e reluzente
a seu redor, como se milhares de pixels corressem por suas feições. Partes
daquele rosto pareciam compostas de feições femininas, enquanto outras
pareciam ser de um rosto masculino; algumas eram jovens e outras eram
velhas. Todas estavam constantemente se movendo, correndo e
perseguindo umas às outras.

O efeito era inquietante e perturbador, mas eu não conseguia desviar
os olhos. Nunca vira aquela técnica antes.

— Obrigado, Chad e Doris. — A voz do Velho também fora alterada
eletronicamente e tinha uma qualidade que só conseguiria descrever como
metal líquido.

Tons fluidos, com uma moldura metálica.

— Meus fiéis assinantes Titânio Premium, vocês são as pessoas
especiais que nos apoiaram desde o início. Queremos que vocês sejam os
primeiros a saber sobre nosso mais novo serviço. Em primeiro lugar, vamos
estender nossa linha de produtos para que nossa lista de tipos corporais
inclua mais nacionalidades para atender às suas fantasias juvenis
específicas.

— Oh, isso é ótimo! — disse Madison. — Eu adoraria experimentar
uma chinesa.

Parecia que eu ia engasgar. Madison fazia com que uma nacionalidade
fosse algo tão trivial quanto escolher um item em um cardápio.

O rosto do Velho continuou a se transformar e brilhar, como se
estivesse usando uma máscara 3-D. Era possível identificar algumas
características de seu semblante, mas não conseguia ter qualquer noção


real de seu verdadeiro rosto. A câmera se aproximou, indicando que algo
relevante seria dito.

— Entretanto, o avanço mais importante, o mais revolucionário, será
disponibilizado muito mais cedo do que esperávamos. — Ele fez uma
pausa dramática para conseguir nossa atenção total. — Permanência.

Madison teve um sobressalto e cobriu a boca com a mão.

— Em vez de serem inquilinos, vocês poderão se tornar proprietários
— disse o Velho.

Não!

Era Helena. Gritando dentro de minha cabeça.

O Velho continuou.

— Vocês poderão escolher um corpo, com um conjunto completo de
aptidões e habilidades, e manter esse corpo para o resto de suas vidas. Em
termos práticos, vocês se tornarão essa pessoa vibrante. Poderão construir
relacionamentos duradouros. Viver a fantasia para sempre.

Meu coração batia com tanta força que eu conseguia ouvi-lo em meus
tímpanos.

— Conforme progredimos com os avanços para o prolongamento da
vida, sua experiência se expandirá. Já somos capazes de manter o corpo no
qual vocês nasceram naquela cadeira, até que ele complete 200 anos. Em
breve, chegaremos aos 250. Um de meus funcionários gosta de dizer: ‚250,
com corpo de 100‛.

Um corte rápido para Tinnenbaum e Dons, que olhavam para baixo.

como se estivessem assistindo ao Velho em um monitor. Eles riram
educadamente antes que a imagem voltasse a focar no Velho.

— Vocês poderão desfrutar dos melhores anos de suas vidas enquanto
o corpo que ocupam envelhece de maneira bela, passando pelos 20 anos,
os 30, e idades posteriores. Na Prime Destinations, nossa visão não tem
limites.

As luzes escureceram lentamente dentro da cabine e a câmera voltou
a focar Tinnenbaum e Doris.

— Como sempre, manteremos os regulamentos mais rígidos em
relação à privacidade — declarou Tinnenbaum. — E pedimos que vocês


façam o mesmo. Apesar dos planos de expandir nosso inventário, também
temos nossa lista interna de assinantes do plano Titânio que estão ansiosos
para participar do programa e testar a nova proposta.

Doris sorriu.

— Você pode fazer parte de nossa equipe de testes, então, não hesite.
Faça-nos uma nova visita para discutir as possibilidades de um futuro
permanentemente jovem.

As imagens se apagaram e a tela ficou negra, com um letreiro
interminável que corria pela tela com advertências e declarações de
isenção, incluindo a voz de uma mulher que lia os textos de maneira tão
rápida que chegava até mesmo a ser cômico.

Madison apertou o botão ‚mudo‛ no controle remoto.

— Consegue acreditar nisso?

— Não — eu disse, sentindo um aperto no peito, como se uma mão
enorme estivesse me esmagando.

— Mal posso esperar — disse ela, com os olhos brilhando. — Esse
homem é um visionário.

Eu me levantei do sofá com um salto.

— O que está querendo dizer? Você vai participar disso?

— E por quê não deveria? Claro que é divertido experimentar novos
corpos, mas, em vez de ter que ir e voltar, entrar e sair várias vezes, seria
ótimo poder escolher um corpo e ficar com ele para o resto da vida.

— Madison, escute o que você está dizendo. Não é como escolher um
vestido, um carro ou uma casa nova. São pessoas. Adolescentes que vivem
e respiram e que têm uma vida inteira pela frente. A menos que você
roube isso deles.

Ela franziu o cenho, com uma expressão petulante e infantil.

— Você realmente sente vontade de passar o resto de sua vida no
corpo de outra pessoa?

Ela ficou em silêncio por um momento.

—Quando aluguei pela primeira vez e entrei naquele corpo de
aluguel, parecia que eu estava em casa novamente. Como se eu voltasse a
ser eu mesma, da maneira que costumava ser, saudável, em forma e ágil.


Você não teve a mesma sensação?

— Não. Não me sinto assim, Isso é só uma brincadeira. É temporário.
Mas se você ou eu estivermos permanentemente no corpo de alguém,
significa que essa garota nunca vai ter qualquer descanso. Não é como
agora, que ela fica sedada por um mês e depois volta a viver sua vida. Ela
nunca saberá o que é ir para a faculdade, nunca se apaixonará por alguém,
se casará ou terá filhos. Você pode passar por essas experiências outra vez,
mas ela nunca conseguirá fazer isso. O cérebro dela ficará adormecido.
Para sempre.

— Oh, Deus. — Madison desabou no sofá. — Isso parece totalmente
desumano.

— Você roubará a coisa mais preciosa que essas pessoas têm: sua
vida.

Olhei ao redor da sala e vi que a bolsa que trouxera para passar a noite
estava encostada na parede.

— Quando você fala dessa forma... parece um sequestro.

—É pior do que isso — eu disse, pegando minha bolsa. — É
assassinato.
































19



















E
u estava tão furiosa que nem conseguia pensar direito. Joguei minha
sacola de roupas no carro, saí rapidamente da frente da casa de Madison e
estacionei mais à frente, em um lugar onde ela não poderia me ver. Estava
escuro agora, o relógio mostrava 20h30. Fiquei sentada no carro com as
portas trancadas, o automóvel estacionado perto das cercas vivas que
separavam a propriedade dela da casa do vizinho.

Encostei minha cabeça contra o apoio do assento de couro.

— Você tinha razão, Helena. Sobre Harrison. Não acreditei em você
antes, mas, agora, tudo faz sentido.

É ainda pior do que eu pensava.

—Ele nos trata como se fôssemos objetos. Escravos. Não é nossa
culpa. Tudo aconteceu por causa de uma guerra imbecil que nunca
quisemos.

Você está certa.

— Eu vi o que eles fazem com corpos alugados. Chamam de ‚brincar
com a propriedade de alguém‛. Eles se jogam de pontes e fazem outras
coisas arriscadas. Tratam seus carros melhor do que tratam os corpos. E
sua pobre Emma..

Eu respirei fundo, cobrindo a boca com minha mão quando uma nova
possibilidade me ocorreu.

— Helena... talvez Emma não esteja morta.


O que... você está dizendo?

Olhei pelo retrovisor do carro. As luzes dos postes criavam sombras
escuras, fazendo com que os arbustos e as árvores parecessem mais
ameaçadores.

— Talvez... — eu disse, lentamente — ...talvez ela tenha sido
capturada e transformada em uma permanente.

Meu Deus.

— Eles devem ter feito outros testes antes de anunciarem isso aos
clientes. Ela pode estar viva. Talvez esteja junto com as outras crianças
desaparecidas.

Ah, Collie.. se ao menos...

— Você tinha razão, Helena. Harrison é uma pessoa maligna se tiver
feito isso com todos os menores sem família. E o Velho que está por trás
de tudo é dez vezes pior. Vê-lo na aerotela, com o rosto escondido, aquela
voz mecânica. . foi como se tarântulas estivessem subindo por minhas
costas. —Esfreguei os braços e senti um arrepio.

Vamos traçar um piano para...

Ela interrompeu a frase no meio. Eu esperei por alguns momentos.

— O que você disse?

Silêncio. Em seguida, pela primeira vez, a voz de Helena parecia estar
aterrorizada.

Não. Não. Parem.

Eu me endireitei no assento.

— Helena? Helena, o que está acontecendo?

Por favor... não...

A voz ficou cada vez mais baixa e estrangulada.

Senti que a força dela se esvaía. Eu queria alcançá-la com minha
mente, dar-lhe um pouco de minha força.

Esperei uma eternidade por uma resposta. Quando ela chegou, estava
tão fraca quanto um sussurro.

Callie, fuja!

Aquelas foram suas últimas palavras. Depois, nada. O som em minha
cabeça se transformou em um silêncio total.


Nossa conexão fora cortada. Eu sabia. Pude sentir.

Um medo tomou conta do meu corpo, causando calafrios. Eu não
conseguia parar de tremer.

Ela desaparecera. Helena estava morta. Eu senti em meus ossos.

Eu estava sozinha.

De repente, ouvi um zunido agudo, seguido por um ruído de algo se
espatifando. Olhei para a direita, mas não vi nenhum relegado por perto.
Virei para a esquerda e vi um SUV de linhas quadradas afastando-se na
escuridão.

O foco da minha visão mudou quando percebi um pequeno buraco na
janela lateral de meu carro. Ao redor, uma teia de rachaduras crescia e se
espalhava enquanto eu observava.

Os cabelos da minha nuca se arrepiaram. Levantei os olhos e vi que
luzes de freio do SUV se acenderam, O veículo parou.

Eles deram meia-volta. Estavam vindo em minha direção.

Dei a partida em meu carro e fui para o meio da rua. O SUV estava
vindo rapidamente em minha direção. Parei o carro e apertei o botão que
acionava a marcha a ré. Pisei no acelerador com força, afastando -m do
SUV que se aproximava. Conforme ele diminuiu a distância, faróis altos
brilharam, cegando-me com uma rajada de luz branca de modo que eu não
consegui ver quem estava ao volante.

Apenas alguns metros separavam os capôs de nossos carros. Dei uma
olhada no retrovisor, esperando não bater em nada. Minhas mãos estavam
tão úmidas pelo suor que o volante deslizava. Segurei com mais força
enquanto corria de ré. Casas, gramados e cercas vivas passavam por mim
dos dois lados. Por sorte, não havia outros carros na rua nessa área
residencial.

O SUV chegou perto o bastante para tocar no capô do meu carro.
Girei o volante para os dois lados e pisei no acelerador até sentir que ele
tocava o piso do carro. Consegui me afastar um pouco, mas o SUV se
aproximou e bateu novamente.

Um pequeno cruzamento se aproximava rapidamente pelo espelho
retrovisor. Tomei uma decisão rápida e puxei o volante com força,


fazendo o carro girar sobre o asfalto e entrar em uma rua lateral. O
peso e a velocidade do SUV fizeram com que ele atravessasse o
cruzamento. Engatei a marcha automática e atravessei o cruzamento no
outro sentido, continuando na rua lateral e sabendo que o SUV demoraria
para conseguir parar e fazer o retorno.

Acelerei com força e entrei em uma rua à direita, depois em outra à
esquerda, fugindo. Desliguei os faróis e procurei um lugar para me
esconder. Uma das casas estava com os portões abertos e eu entrei com o
carro na via que levava até a frente da casa, escondendo o carro atrás das
cercas vivas. Desliguei o motor e apurei os ouvidos. Momentos depois,
ouvi o rangido dos pneus do SUV enquanto ele corria pelas ruas, O som
desapareceu aos poucos, sendo substituído pelo silêncio típico das noites
de bairros com mansões.

As luzes se acenderam no jardim da casa onde eu estacionara. Dei a
partida no carro e fui embora dali. Enquanto dirigia, comecei a imaginar
para onde poderia ir. Meu irmão estava no hotel, Blake estava em
Washington, e quem saberia onde Michael estava? Eu não podia dizer a
Madison.

Queria correr para encontrar meu irmão e Florina e me refugiar junto
deles. Mas alguém estava atirando em mim. A última coisa que eu queria
era levar o perigo até a porta do lugar onde meu irmão estava.

‚Fuja‛, dissera Helena. Mas para onde? Antes que eu pudesse ir a
qualquer lugar, eu tinha que ir à casa de Helena.

Para buscar a arma.







Cheguei a casa e fui direto para o quarto. Abri as gavetas da cômoda,
revirando os lenços e cachecóis, procurando pela arma que Helena deixara
para mim no Music Center. Havia desaparecido.

Será que Eugênia a tirara do lugar?

Fui até o corredor e a chamei.

— Eugênia!


O barulho dos sapatos pesados que ela usava ecoou pelas escadas
enquanto ela subia.

— Estou indo.

Sua voz parecia carregada de tédio. Eu não esperei e gritei enquanto
ela ainda estava na entrada do corredor, andando vagarosamente.

— Você tirou alguma coisa das minhas gavetas? — perguntei.

Ela esperou até estar frente a frente comigo antes de responder. Tinha
no rosto uma expressão que eu só conseguiria descrever como atordoada.

— Você sabe que eu nunca mexo em suas gavetas. Nunca.

— Você pegou a arma, não foi? Eu sei que pegou.

Ela cobriu a boca com a mão.

— Uma arma? Não. Eu nunca tocaria em uma arma.

— As pessoas farão qualquer coisa se estiverem acuadas.

— A arma estava aqui, em seu quarto?

Eu me virei e olhei ao redor do quarto. Em seguida, gemi.

Lembrei onde havia deixado a arma. Fui até o closet, abri a porta e vi a
bolsa com a qual fora ao Music Center. Eugênia estava sob o vão da porta.
De costas para ela, eu tateei a bolsa.

A pistola estava guardada ali. Virei-me na direção de Eugênia.

— Desculpe. Não tenho sido eu mesma ultimamente. Tive algumas
dores de cabeça fortes. Preciso conversar com meu técnico e pedir para
que ele dê uma olhada no chip.

Eu estava usando uma indireta, torcendo para que ela soubesse quem
era o técnico que trabalhava para Helena.

— Por que não volta para o lugar onde instalaram isso em você?
Afinal, você já deixou um bom dinheiro lá.

Ela ainda estava irritada. Mas aquilo não era nada comparado ao que
sentiria se soubesse que poderia estar em perigo. Helena lhe falara apenas
sobre o aluguel, nada, além disso.

— Eugênia, preste atenção. Não atenda a porta para ninguém. Se
alguém ligar, diga que não sabe onde eu estou.

Eugênia me encarou, com uma expressão grave e séria.

— Então, devo agir da maneira habitual?


Helena fora cuidadosa, então. Mas a situação nunca fora tão perigosa
quanto era agora. Minha vida estava em risco a cada minuto que eu ficava
ali. Eugênia não sabia de nada, e isso a protegeria.

— Preciso ir — eu disse. — Por favor, tenha cuidado.







Entrei no carro esportivo de Helena e liguei o motor. Abri o navegador
GPS e ativei a listagem dos últimos locais que ela visitara. A lista imensa
quase me fez desistir, mas consegui reconhecer um dos nomes. Redmond.
Aquele fora o nome que Eugênia mencionara em minha primeira noite na
casa. Ele telefonara para Helena.

— Redmond — eu disse ao GPS.

— Redmond. Agora mesmo — respondeu o aparelho.







O GPS me levou para um depósito em uma área industrial no Vale de San
Fernando. Não era exatamente o tipo de bairro que eu escolheria para
fazer um passeio noturno. Passei por cercas de alambrado em torno de
terrenos com cães de guarda, indicando que eu devia continuar a dirigir, O
endereço surgiu no navegador. Era um complexo de armazéns com áreas
iluminadas por holofotes instalados em telhados. Estacionei dentro do
complexo, de modo que meu carro não ficasse visível aos renegados que
poderiam estar na rua.

De acordo com o navegador, o endereço de Redmond era o último
armazém daquela rua. A porta estava trancada. Pressionei uma campainha
antiga de metal. Acima dela, havia um buraco pequeno com alguma coisa
brilhante no centro, provavelmente uma câmera. Redmond era engenhoso,
deixando a fachada com uma aparência velha e malcuidada. Alguns
momentos depois, a porta se abriu com um barulho alto.

O interior do lugar era bastante industrial, o tipo de lugar onde um
artista poderia viver e trabalhar. Piso de concreto e um corredor criado


partir de uma parede branca sem muitas características marcantes. Vi
brilho frio de uma luz fluorescente no final do corredor. Saquei minha
arma.

Meu coração estava pulando dentro do peito. Seria uma armadilha?
Desejei que Helena ainda estivesse dentro de minha cabeça. Ela saberia,
ela me diria. Eu deveria tê-la pressionado para dar mais informações sobre
Redmond enquanto eu ainda a tinha comigo.

Virei à esquerda e entrei em um espaço amplo, mobiliado com várias
filas de mesas e balcões cheios de peças eletrônicas, computadores e
monitores — alguns funcionando, alguns com suas entranhas expostas.
Havia tantas máquinas e peças que algumas estavam atadas a barras que
pendiam do teto alto. Um odor de produtos químicos pairava no ar.

Uma aerotela acima de um balcão abarrotado de peças e
equipamentos mostrava a porta que dava para o exterior, onde eu havia
tocado a campainha. Abaixo dela, um homem de cabelos prateados estava
debruçado em frente a um banco de monitores de computador. Um
Ender.

Não consegui perceber se ele estava vivo ou morto. Permaneceu
imóvel enquanto eu me aproximava, empunhando a arma com as duas
mãos à minha frente.

— Redmond? — eu disse.

— Helena — resmungou ele, com um sotaque britânico. — Você
demorou tanto que eu quase caí no sono.

Ele levantou a cabeça. Vi seu rosto refletido em dois monitores que
estavam desligados. Ele olhou para meu reflexo naquelas telas, falando
sem se virar.

— Helena, por que está com essa arma?

— Tenho um pedido.

— Geralmente, você pede sem apontar uma arma para a minha
cabeça.

Ele começou a girar a cadeira. Pisei com força no anel de metal ao
redor do eixo, impedindo o movimento.

— Coloque as mãos atrás da cabeça — eu disse.


Tudo que eu fazia, aprendera com meu pai ou com os filmes.
Funcionou, e ele me obedeceu.

Um dos monitores começou a emitir bips em sincronia com um ponto
vermelho que piscava em um determinado lugar do mapa da cidade.
Aparentemente, o ponto estava exatamente no lugar onde estávamos.

— O que é isso? — perguntei.

—É você. Seu dispositivo de localização. Mas você sabe disso — olhos
dele se estreitaram.

Ele era magro e desajeitado, com cabelos desgrenhados de cientista
maluco. Sua estrutura óssea não era feia; era possível perceber que ele
tivera seus encantos quando jovem.

— Todo mundo sabe mais sobre meu corpo do que eu — eu disse —
Bem, quero que você remova o chip. Está tudo acabado.

— Como foram as coisas?

— O quê?

— Seu grande plano.

— Com todos esses monitores, duvido que você não receba as not cias
aqui.

Ele olhou para mim e empurrou a cadeira para a frente, ainda com a
mãos na cabeça. Ele estava me examinando, me observando atentamente
tentando identificar quem estava realmente dentro de meu corpo.

—Meu Deus! — Ele baixou as mãos e chegou tão perto que eu
consegui sentir o aroma de hortelã de seu hálito. — Não é Helena que
está aí ou é?

Minha mão que empunhava a arma balançou.

— Não. Ela morreu.

— Como? — Ele franziu a testa.

— Não sei. Mas ouvi quando aconteceu. Ela estava dentro da minha
cabeça naquele momento. Acho que alguém a matou.

Seus olhos se arregalavam cada vez mais enquanto ele ouvia minha
narrativa.

— Estávamos ficando mais próximas — eu disse. - — Achei até que
fosse conhecê-la pessoalmente.


— Helena era uma bola de fogo. A tristeza no rosto de Redmond era
marcante. — Nós nos conhecemos na faculdade, há mais de 100 anos.

— O que você sabe sobre o banco de corpos?

— Sei o que preciso saber.

— Então, vou explicar a versão para leigos. O banco de corpos a
matou. Ela disse que tentariam me matar, também. — Voltei a apontar a
arma para a cabeça dele. —Preciso que você remova este chip.

— Estou percebendo o motivo de você não querer que eles rastreiem
sua presença. Você é uma testemunha ocular da morte de Helena.

— Uma testemunha auditiva, por assim dizer. Portanto, remova o
chip. Por favor.

— Não posso.

— Eu poderia matá-lo. — Estendi o braço que segurava a arma. —
Você, melhor do que ninguém, sabe que estou dizendo a verdade. Foi você
quem removeu a trava contra assassinatos.

— Existe uma questão sobre o plano de Helena que continua sem
resposta — disse ele. — Você seria capaz de ir até o fim? Não ficou claro
se eu tive sucesso ou se falhei nessa parte também.

— Você quer realmente ser a cobaia para esse teste? Pela última vez,
estou implorando para que você remova o chip.

— Eu quero fazer isso. Realmente quero. Estou preocupado com a
possibilidade de que tenham instalado um comando de morte súbita.

— E o que seria isso?

— Eles enviam um sinal ao chip para fazer com que ele exploda.

Apertei meus olhos por um segundo. Não havia pensado naquilo.

— Não se preocupe. Provavelmente eles continuarão a usar o chip,
com outra inquilina idosa, outra pessoa no banco de corpos, conectada a
seu corpo como Helena estava.

Eu não sabia o que era mais assustador: outra pessoa controlando meu
corpo ou minha cabeça explodindo.

— Mas desde que você alterou o chip, eu não perdi mais a
consciência. Helena não conseguia mais tomar o controle.

— Tem razão. Mas outra pessoa poderia alcançar o mesmo nível que


Helena tinha com você no final. Uma espécie de conexão entre suas
mentes.

— Então remova o chip!

— Eu o removeria, se pudesse. Mas é impossível. Ele foi inserido
dentro de seu cérebro.

— Mas você o acessou e conseguiu alterá-lo. Duas vezes.

— E não foi nada fácil. Mas não posso removê-lo. Eles o implantaram
dentro de uma blindagem complexa. Assim, se alguém tentar removê-lo, o
chip vai se autodestruir. Na melhor das hipóteses, você provavelmente
sofreria uma hemorragia; na pior, acabaria cabeça estraçalhada. É como se
houvesse uma pequena bomba dentro da sua cabeça.

— Uma bomba? Em minha cabeça? Você só pode estar brincando.

— Eu lamento.

Hemorragia. Cabeça estraçalhada. Estava me sentindo tonta.

— É horrível. — Eu baixei a arma. — Por que fizeram isso comigo?

— Provavelmente, fazem isso com todos os doadores. É um
dispositivo de segurança. Dessa forma, ninguém pode matar um doador e
roubar essa tecnologia valiosa.

— Quer dizer que terei esse pedaço de metal que me conecta a eles
na cabeça pelo resto de minha vida?

— Receio que sim.

As coisas nunca voltariam a ser como antes. Nunca conseguiria me
sentir segura. A garota que fora até o banco de corpos estava perdida para
sempre.

Redmond pigarreou.

— Ainda assim, há algumas notícias boas.

— Quais?

— Você é a única pessoa com um implante alterado. Isso a torna um
caso único.

Eu ri, motivada pelo nervosismo.

— E o que há de bom nisso?

— O banco de corpos pode ter interesse em mantê-la viva. — Ele
olhou fixamente para mim.






Redmond construiu uma placa magnética que cobria a área de minha
cabeça e a afixou ao redor do lugar onde o chip fora implantado. Não senti
nenhuma dor, graças a uma anestesia local. Deitada em uma mesa em sua
sala esterilizada nos fundos do armazém, eu admirei a precisão com que
ele trabalhava. Redmond me dava a impressão de ser unia alma jovem em
um corpo envelhecido. Eu confiava nele. Na verdade, eu não queria sair
daquele laboratório. Havia uma forte sensação de segurança. Eu estava
com alguém que conhecia profundamente o funcionamento do meu corpo.

Ele explicou que tivera uma boa carreira como neurocirurgião.
Entretanto, ao se aposentar, ele se concentrara em sua primeira paixão, os
computadores. Disse que trabalhar com hardware era como operar um
paciente que nunca reclamava. E, se algo desse errado, ele sempre poderia
recomeçar do zero.

Eu me sentia confortável com o toque dele. Mas eu também
representava perigo para Redmond. Ele não era um revolucionário
trabalhando em prol de uma causa. Ele estava fazendo o serviço pelo
dinheiro, pelo encanto da ciência e do desconhecido, e talvez porque
Helena fosse uma velha amiga. Mas eu era uma estranha e sabia que ele
queria que eu saísse dali o mais rápido possível.

— Bem, preciso avisá-la de que esta solução não é permanente. É
simplesmente o que eu tive condições de fazer com tão pouco tempo para
me preparar. O adesivo que estou usando começará a se decompor por
causa do contato com a placa. Se eu usar qualquer coisa mais forte,
queimarei seu couro cabeludo.

— Quanto tempo o adesivo aguentará? — eu perguntei.

— Não sei. Talvez uma semana.

Ele continuou a trabalhar, aplicando um gel às bordas de metal da
placa.

— O que você sabe sobre o Velho? — perguntei.

— A única coisa que todos sabem é que ele mantém sua identidade
em segredo. Ninguém nunca viu seu rosto. Há uma infinidade de


rumores... Dizem que ele era um gênio da área de programação de
computadores. ou que estava encarregado de operações sigilosas de
espionagem durante a guerra e recebeu ferimentos sérios... Quem pode
saber se qualquer um desses boatos é verdadeiro?

Engoli em seco, pensando em Helena e Emma.

— Eu quero encontrá-lo.

— Várias pessoas também querem. E é por isso que ele tem uma vida
tão reclusa.

— Eu sei que ele vai ao banco de corpos, às vezes. Eu o vi lá, certa
vez. Redmond parou o que estava fazendo e se inclinou para surgir em
meu campo de visão.

—Não tente ir atrás dele. Você é jovem e bonita. Se ficar fora do
caminho do Velho e da Prime Destinations, terá sua vida inteira pela
frente como recompensa. Ele é um homem muito, muito mau.

Ele me ajudou a sentar sobre a mesa de cirurgia. Em seguida, me
entregou um espelho e, como um cabeleireiro, deixou que eu admirasse
seu trabalho em um segundo espelho que estava afixado à parede.

— Não consigo nem perceber a placa — eu disse.

Ele pegou minha mão e a levou até a parte de trás de minha cabeça

— Devagar — disse ele.

Sob meu cabelo, senti uma placa de metal duro, moldada de acordo
com a curvatura do meu crânio.

— Tive que raspar um pouco de seu cabelo na área mais próxima de
couro cabeludo, mas a camada superior está cobrindo a placa. É
impossível notar qualquer coisa estranha, a menos que o vento esteja forte
— ele disse.

— E isso vai impedir que eles me localizem? Por uma semana?

— Sim. E eu também não conseguirei segui-la. Você está sozinha
agora.

— Tudo bem.—Deixei o espelho sobre a mesa e me levantei. — É
assim que tenho vivido há um bom tempo.

A expressão dele ficou ainda mais séria.

— Venha comigo.


Eu o segui de volta ao laboratório. Ele encostou os dedos em um
sensor instalado em uma gaveta que havia em sua mesa. A gaveta se abriu
com um estalido. Redmond pegou uma pequena caixa de metal do
tamanho da palma de sua mão. Na tampa, havia uma etiqueta: ‚Helena‛.

— Bem, se alguma coisa acontecer comigo, venha até aqui e pegue
esta caixa.

— Como conseguirei abri-la?

— Ela já está codificada de acordo com suas impressões digitais.
Helena pediu que eu o fizesse.

Olhei para as pontas dos meus dedos. Haveria alguma coisa no mundo
que ainda fosse verdadeiramente minha? A caixa não tinha qualquer
marca. Um disco rígido para computadores?

— O que há aí dentro? — eu perguntei.

— A chave com as informações sobre como alterei seu chip — disse
ele. A expressão em seus olhos ficou mais suave e seus lábios quase
formaram um sorriso. — Imagino que você possa dizer que essa é sua
certidão de nascimento.


































20



















A
gora que o banco de corpos não poderia mais me rastrear, eles
perceberiam que, de algum modo, eu ludibriara o chip. Já que não
podíamos removê-lo, Redmond não teria condições de ativar um falso
localizador para despistá-los. Até aquele ponto, a Prime poderia pensar
que eu estava seguindo o plano de Helena de acordo com as ordens que
ela me dava. Mas não era mais assim.

Entrei no carro em frente ao laboratório de Redmond e peguei um
novo telefone celular que ele havia me dado. Ele dissera estar preocupado
com a possibilidade de que o aparelho anterior pudesse ser rastreado.
Liguei o outro aparelho por tempo suficiente para identificar o telefone de
Lauren, depois o desliguei. Quando liguei para ela, ouvi uma gravação.
Deixei uma mensagem pedindo que ela me ligasse — bem, não eu, pois
ela não me conhecia; deveria ligar para Helena — e lhe dei o novo
número.

Estava digitando o número de Madison, mas uma ligação surgiu no
telefone de Helena. O identificador de chamadas mostrava o nome de
Blake.

Blake

Meu coração começou a acelerar, junto com minha respiração.
Quando o vira pela última vez, seu rosto estava na aerotela e ele usava
minha presilha em forma de baleia como prendedor de gravata. Será que


seu avô tinha tentado colocá-lo contra mim e Blake discordava das ideias
dele? Ou o senador nunca chegara a dizer nada a Blake?

Respirei fundo. Depois, usei o outro celular para retornar a ligação
dele.

— Blake?

— Callie.

O simples fato de ouvir a voz dele me deu vontade de chorar.

— Você voltou.

— Finalmente — ele ficou em silêncio por um segundo. Ouvi quando
respirou fundo.

— Escute, Blake. Sobre aquela noite, eu...

— Eu sei. Senti sua falta.

— Também senti sua falta — eia disse.

— É bom ouvir isso. Seria muito ruim se eu fosse o único a sentir
saudades.

Ele me fez rir um pouco.

— Está com fome? — perguntou ele.

— Faminta.

Ele me enviou um Zing com o endereço de um restaurante com
decoração antiga, que ficava aberto a noite inteira, chamado Drive-In.
Quando cheguei, fiquei feliz ao ver que havia seguranças Enders armados.
Eles não eram mais o inimigo. Eu os via como uma forma de proteção.

Carros elegantes preenchiam cada um dos espaços ao redor do centro
de alimentação. Não pouparam despesas quando construíam aquele lugar,
e os anúncios em neon na parede traziam dizeres como ‚Uma volta ao
passado‛. Enders graciosos e esguios sobre patins seguravam bandejas
sobre a cabeça, levando hambúrgueres, milk-shakes e banana-split até os
carros, enquanto canções antigas de rock n’rolI tocavam nos alto-falantes.
Aerotelas instaladas ao ar livre exibiam filmes da década de 1950,
compondo a atmosfera verdadeira da experiência retrô para todos os
sentidos.

Parei o carro em uma vaga que ficava na parte mais distante do
estacionamento, longe da área de alimentação. Caminhei até o banheiro.


Quando saí, não vi o carro de Blake, então decidi andar até o meu para
esperar. Alguns minutos depois, ele chegou, passando perto do meu carro
com um sorriso. Nada poderia ser melhor para mim. A porta do lado do
passageiro do carro de Blake se abriu com um dique e eu entrei.

Assim que eu estava no meu assento, ele se inclinou e me beijou no
rosto.

— Oi.

Estar no carro, ao lado dele, me causava uma sensação boa.

— Você está linda — ele disse.

Blake estacionou em uma vaga perto do restaurante, entre dois outros
canos. Uma Ender magra com cabelos longos e prateados amarrados em
um rabo-de-cavalo patinou até onde estávamos e saiu com nossos pedidos.

Quando ela se afastou, Blake pegou minhas mãos.

— Desculpe — eu disse.

— Não diga nada.

Senti o cheiro dele e, por um momento, encontrei conforto nas feições
familiares do seu rosto. Mas eu sabia que, se me deixasse relaxar em seus
braços, não conseguiria conter as lágrimas. Eu tinha que ser forte para
dizer o que precisava dizer.

Ele começou a me trazer para perto de seu peito!

— Preciso lhe contar algumas coisas — eu disse.

— Eu sei — disse ele, recostando-se em seu assento. — Eu também.
Queria ligar para você de Washington, mas meu avô tirou meu celular. Só
me devolveu o aparelho hoje!

— Tenho a impressão de que você ficou fora por muito tempo. Muitas
coisas aconteceram.

— Pensei em você o tempo todo — disse ele. — Os momentos mais
difíceis foram durante a noite, logo antes de eu ir dormir. Durante o dia,
havia várias distrações. Mas, à noite, havia somente você.

Alguma coisa brilhava em sua jaqueta de couro. A presilha em forma
de baleia do meu sapato. Eu a toquei.

—Eu deveria usar a minha — eu disse. — Para combinar com a sua.

— Nós já combinamos muito bem.


Ele me encarava com tanta intensidade que pensei que seus olhos
fossem começar a ferver. Ele se aproximou e colocou as mãos ao redor do
meu pescoço, trazendo-me para mais perto. Senti a respiração dele em
meu rosto — e senti um arrepio — antes de nos beijarmos.

Fechei os olhos e deixei o beijo reverberar por todo meu corpo. O
cheiro dele, uma fragrância amadeirada e herbal me acalmava e agitava ao
mesmo tempo. Seu cabelo era muito macio, quase suave demais para um
rapaz. As mãos dele tocavam meu rosto, meu pescoço e meus cabelos
como se ele estivesse me descobrindo, como se eu fosse a primeira garota
que ele beijava. Aquilo fez com que eu me sentisse especial. Ele acariciou
meu cabelo, até que sua mão se deteve...

... no lugar onde a placa de metal fora instalada, na parte de trás da
minha cabeça.

Ele interrompeu seus movimentos.

— O que é isso?

Eu me afastei, com um gemido escapando dos meus lábios.

— Desculpe — ele disse. — Eu esqueci. Você me disse. A cirurgia.
não é?

A garçonete veio patinando com nossa comida, interrompendo-nos.
Ficamos em silêncio enquanto ela prendia a bandeja à borda da janela do
carro. Depois que saiu, a comida simplesmente ficou ali.

— O que você tocou... é sobre isso que eu preciso lhe falar — eu
disse.

Ele me olhava, esperando.

Senti um frio na barriga, como se estivesse em um elevador de a’
velocidade. Por que era tão difícil?

Porque a situação era complicada demais.

Ele pegou minha mão.

— Está tudo bem.

— Eu não sou quem você pensa que eu sou.

Um sorriso nervoso se formou em seu rosto.

— Quem é você, então?

— Não me odeie.


— Nunca.

Eu queria fazer o tempo parar. Ele ainda gostava de mim, ainda
editava em mim. E tudo isso poderia acabar.

Ele tocou meu rosto.

— Está tudo bem, Calhe. O que você quer me contar tem a ver com
cirurgia que você mencionou antes, não é? Não há nada que você possa
me contar que fará com que eu a odeie.

— Bem, vamos ver o que você dirá depois que eu lhe contar tudo.
Meu nome não é Callie Winterhill. É Callie Woodlond. Não sou rica,
estas roupas não são minhas, aquele carro não é meu e a casa não é minha.

Ele me olhou fixamente por um segundo e balançou a cabeça.

— Eu não ligo se você é rica ou pobre.

— Não sou só pobre. Sou uma menor sem família. Moro nas ruas, em
salas e escritórios de prédios abandonados. Minhas refeições são sobras e
restos.

Eu não olhava no rosto dele; não precisava fazer isso. Senti a tensão
encher o carro como um gás venenoso. Continuei a falar, antes que o
medo me fizesse fechar a boca.

— Eu precisava de dinheiro para cuidar do meu irmão doente. Ele
tem só 7 anos. Então, assinei um contrato com aquela empresa, Prime
Destinations. Chamamos o lugar de ‚banco de corpos‛. Eu era uma
doadora, alugando meu corpo a uma idosa chamada Helena Winterhill. A
casa, o carro, a vida, tudo pertence a ela. Ela queria impedir que seu avô
concluísse a negociação com a Prime Destinations. Pensei que Helena
fosse louca, mas descobri que ela tinha razão. O plano é muito pior do que
ela imaginava.

Continuei a falar, contando-lhe tudo, provavelmente rápido demais.
Ele me deixou falar, sem nunca me interromper. Deixei de mencionar
apenas uma coisa. Não falei sobre o plano que Helena elaborara para
assassinar seu avô. Agora que ela estava morta, eu não queria sobrecarregá-
lo com aquilo. Já era muita informação para absorver. Por que preocupá-lo
com algo que não era mais um problema?

Quando terminei, eu me virei para ele. Ele ainda estava olhando para


mim, e a expressão que tinha no rosto não demonstrava repulsa como eu
imaginava que aconteceria. Ele tinha um ar solene, entretanto, e
continuou em silêncio. Aquela espera era torturante. Minha garganta ficou
seca, esperando que ele dissesse alguma coisa. Finalmente, ele falou.

— Isso é tão... Eu não sei nem o que dizer.

— Você acredita em mim? — perguntei.

— Eu quero acreditar.

— Mas não acredita.

— O choque foi grande, entende?

Afastei o cabelo que cobria a parte de trás da minha cabeça e mostrei-
lhe a placa que Redmond havia instalado. Sentia que estava expondo a
parte mais íntima do meu corpo, mais do que qualquer outra. Esta sou eu,
era o que eu dizia a ele. Foi nisso que me transformei.

— Meu chip está debaixo dessa placa.

Ele não disse nada. Levantei a cabeça e ajeitei os cabelos.

— Se você puder convencer seu avô a cancelar a parceria entre o
governo e a Prime... se você puder mostrar a ele o quanto isso será ruim,
que será como mandar menores sem família para a morte... Acha que ele
poderia voltar atrás? — eu disse, atropelando as palavras, ousando ter
esperança de poder ter tudo, a verdade e Blake.

Havia uma pequena chance de que o senador não compreendesse
realmente os planos da Prime. Talvez ele não conhecesse os aspectos da
permanência.

Blake não disse nada. Ele parecia estar perdido em pensamento
Incomodado.

— Blake?

Ele esfregou o rosto com as mãos.

— Conversarei com ele. Não... espere. Você falará com ele. Você
pode explicar isso melhor do que eu.

— Você acha mesmo?

— Amanhã. É sábado, ele estará no rancho. Venha antes do almoço.
Ele é muito mais agradável naquele lugar. É seu lugar preferido.

— Ele não me escutará. Ele me odeia.


— Faremos isso juntos. Ele me escutará. Sou o neto dele — disse
Lake, acariciando minha mão. — Só nos resta tentar.

Blake parecia estar imerso em pensamentos. Percebi que ele ainda
estava processando aquela nova maneira de me enxergar.

Comemos em silêncio e, em seguida, Blake me levou até o lugar onde
meu carro estava estacionado, do outro lado do terreno.

— Até amanhã — disse ele.

—Até.

Ele se despediu com um beijo. Não foi como antes; o beijo carregava o
fardo das minhas mentiras, que separava nossos lábios como uma camada
de cera. Eu sentia como se um peso de uma tonelada ancorasse meus pés
ao chão.

Entrei em meu carro e tranquei as portas. Quando fora ao banheiro,
anteriormente, eu havia conversado com um dos guardas Enders. Dissera a
ele que queria dormir por algumas horas e agradeceria se ele pudesse me
vigiar. Quando lhe entreguei várias notas de alto valor, ele disse que ficaria
feliz em fazê-lo.

Acordei por volta das 6 da manhã, com o sol em meus olhos. Levantei
o encosto do assento de volta à posição normal, antes de passar a língua
por meus dentes. Toquei a parte de trás da cabeça, onde a placa estava.
Ela latejava, forçando-me a lembrar de como ela havia traído meus
segredos a Blake. Engoli dois analgésicos que Redmond me dera.

O novo telefone estava piscando. Lauren me enviara um Zing.







Lauren ainda estava no corpo fabuloso de Reece, com seus cabelos longos
e ruivos reluzindo ao sol da manhã.

— Diga que você tem boas notícias, Helena. Eu não consegui
descobrir nada a respeito de Kevin.

Ela inseriu um cartão em um portão, entrando em um parque privado
perto de sua casa em Beverly Hills. Fiquei apreensiva com aquele
encontro em um lugar tão próximo do banco de corpos, mas, além de estar


protegido com cercas e portões, o parque também tinha seus próprios
seguranças.

— Algumas pessoas já o viram, falaram com ele. Mas ninguém o viu
no último mês — ela disse.

Eu sabia que precisava esclarecer minha identidade imediatamente.
Eu não passaria pela tortura da indecisão novamente.

Lauren continuou a andar, sem registrar minhas palavras. Eu teria que
interrompê-la.

— Escute. Eu não sou Helena.

O queixo de Lauren caiu. Ela cruzou os braços.

— O que você está dizendo?

—Sou a doadora. O corpo que Helena alugou. Tenho realmente 16
anos.

— Espere um pouco. Quando falei com Helena, ela estava nesse
corpo. — Ela apontou para mim.

— Você estava falando comigo. Quando estávamos no CIub Rune e
no restaurante tailandês.

— Era você? — Ela piscou os olhos, sem acreditar. — O que
aconteceu com Helena?

Senti meu coração afundar quando fui forçada a recordar os últimos
momentos de Helena.

— Ela se foi.

— Ela está morta? Helena está morta? — Ela me segurou pelos
ombros e me sacudiu. — O que você fez com ela?

— Calma. Não fiz nada. — O guarda armado olhou em nossa dire Foi
alguém do banco de corpos, da Prime.

— Quem?

— Não sei.

— Então, como você sabe que ela está morta?

— Ouvi os gritos dela em minha cabeça.

—Você... o quê?

— Helena pediu a alguém que alterasse meu chip. Ao final do
processo, eu conseguia ouvir os pensamentos dela na minha cabeça.


Conseguíamos nos comunicar.

Lauren me soltou com um empurrão.

— Não acredito. Eu a conhecia há 85 anos — disse ela, pegando um
lenço e enxugando lágrimas de raiva. — E agora ela morreu.

— Eu sinto muito. Estava começando a conhecê-la melhor.

— Como se atreve a dizer isso?

—Aprendi muito com ela — eu disse.

— Sobre o quê?

— Sobre o senador. E sobre o Velho.

Ela me deu as costas.

— Não posso fazer isso. Não consigo olhar para você. Você mentiu.
Me fez pensar que você era Helena. E agora eu descubro que ela estava
morta o tempo inteiro

— Não, não foi assim. As coisas simplesmente aconteceram.

— Por que ninguém mais é quem parece ser? — ela disse, por entre
os dentes.

Eu olhei para ela, escondida naquele corpo adolescente.

— Pelo menos, eu creio que Kevin esteja vivo.—Pensei que aquela
boa notícia a respeito de seu neto poderia acalmá-la.

— Como você sabe disso?

— Porque o Velho permitirá que os clientes da Prime façam mais do
que simplesmente alugar. Eles poderão comprar os corpos. Eu acho eles já
vinham fazendo testes. Isso explicaria o desaparecimento dos
adolescentes, sem sinais de luta e sem que seus corpos fossem encon
trados.

Um lampejo de esperança iluminou seus olhos. Em seguida, ela
fechou o rosto em uma careta.

— Você não sabe de nada. Como posso confiar em você? Você está
usando as joias de Helena, dirigindo seu carro. Não tem vergonha?

— Quero ajudá-la.

— Você não pode ajudar uma mulher morta. Você não pode ajudar
ninguém.

Ela me virou as costas e começou a se afastar.


— Lauren. — Ela não voltou a olhar para mim. — Ou será Reece? —
eu gritei.

Ela continuou andando.

Fiquei ali, tremendo. Pensei que ela me ajudaria; Lauren era amiga de
Helena. Ela era a única pessoa com quem eu podia conversar sobre os
adolescentes desaparecidos.

O guarda me olhava. Ele colocou a mão sobre o revólver que tinha no
quadril e começou a andar em minha direção. Eu era uma convidada de
Lauren naquele parque privado, e, agora que ela fora embora, e tinha
motivo — ou permissão — para continuar ali.

Fui em direção ao portão. Abri-o e corri para fora, deixando que ele
batesse atrás de mim. Assim que ia entrar em meu carro, olhei para outro
lado da rua e vi alguém que conhecia.

Michael.








































21



















A
travessei a rua correndo, desviando de carros e motos, acenando com as
duas mãos, mas ele não me notou.

— Michael! — eu gritei, perseguindo-o enquanto ele se afastava.

— Michael, espere!

Consegui alcançá-lo e o toquei com força nas costas.

— Sou eu.

Ele se virou. Ver o rosto dele me deu alegria. Eu não tinha noção do
quanto aqueles cabelos longos e loiros e os olhos gentis faziam falta. Ele
sorriu e eu senti que meus ombros se derretiam.

— Uau, você está lindo — eu disse, tocando a jaqueta elegante que
ele usava.

— Você também — disse ele, olhando-me da cabeça aos pés,
despindo-me com seu olhar. — Qual é o seu nome?

Era a voz de Michael, mas as palavras não eram. Examinei
atentamente aquele rosto perfeito, sua boca, olhos e nariz. Nada de
manchas de sol ou verrugas, nenhum corte adquirido em brigas de rua.
Apenas uma pele impecável e roupas caras.

Senti um arrepio correr por minhas veias.

Aquela pessoa não era Michael. Era um inquilino.

Um Ender alugara o corpo de Michael. Ele não esperara como me
prometera. Assinara um contato antes que o meu estivesse finalizado.


— Quem é você? — eu perguntei, tremendo.

— Ei, sou um garotão de 16 anos. Gosta do que está vendo? — Ele
estendeu os braços e deu um giro de 360 graus sobre os calcanhares. —
Lindo, não é mesmo?

Minha respiração começou a acelerar. Não conseguia me controlar.
Agarrei aquela jaqueta cara com força.

— Ei, vá com calma. Isso é couro legítimo de alpaca russa.

— Eu não ligaria, nem se viesse de Marte. Há quanto tempo você está
com esse corpo?

— Não sei do que você está falando.

Eu o puxei para mais perto de mim, com força, fazendo com que ele
tivesse dificuldade para respirar.

— Se você vai mentir, minta com sua própria boca enrugada. Há
quanto tempo?

— Acabei de escolhê-lo - disse ele, com a voz estrangulada. Acabei de
sair da Prime.

Eu o soltei. Não podia me arriscar a chamar tanta atenção. Já havia
outros Enders que olhavam para nós.

Ele alisou o material da jaqueta.

— E paguei uma nota preta por este corpo. Ou seja, agora ele
pertence a mim — disse ele, com a voz baixa.

O guarda do parque nos olhava por entre as barras do portão.

—É melhor você cuidar bem dele — eu disse.

— O que foi? Você conhece esse rapaz ou algo assim? — Ele apontou
para o próprio corpo. — Querida, eu pretendo me divertir muito com este
corpo. Por que você acha que fiz isso? Quero-mais é aproveitar a vida. Não
vou deixar que nada me impeça — disse ele, com uma forte gargalhada.

Minha respiração estava tão pesada que eu sentia que ia soltar fogo
pelas narinas.

Tudo que consegui foi fazer aquele patife rir. Quem quer que fosse.

— Você é um doce. Por acaso é a namorada dele? — perguntou o
Ender que estava no corpo de Michael. — Talvez isso signifique que eu
ganhei um bônus com este corpo, hein?


Ele colocou um braço ao redor de meu ombro. Eu me desvencilhei.

— Não toque em mim. Não quero deixar hematomas nesse corpo.

Enders que andavam pela rua olhavam para nós. Foi então que o
Ender que usava o corpo de Michael fez algo que eu nunca imaginei que
aconteceria. Ele se aproximou, colocou a língua para fora e lambeu meu
rosto, esfregando a língua desde meu queixo até meus olhos. Eu o
empurrei com força e enxuguei aquela saliva pegajosa com as costas de
minha mão.

— Pare com isso! — eu disse, rangendo os dentes. Sentia vontade de
socá-lo com todas as minhas forças. Mas aquele era o copo de Michael.

— Bem, esta pequena reunião foi muito divertida, mas eu preciso ir
embora — disse ele. — Há muita alegria, muita vida aqui neste mundo,
esperando... por mim.

Ele piscou, afastou-se e depois me deu as costas, andando
rapidamente. O guarda do outro lado da rua ainda estava olhando para
mim.

Encontrei Michael, mas não o havia encontrado realmente. O garoto
com quem eu sempre pudera contar, sensível e prestativo, não estava ali.
Um Ender velho, ignorante e pegajoso, talvez com 200 anos de idade, cujo
corpo verdadeiro provavelmente cheirava a queijo embolorado, estava
ocupando a pele de Michael.

Alugando Michael. Mas ele não dissera ‚aluguei‛. Dissera: ‚ele agora
pertence a mim‛. Seria um dos primeiros contratos permanentes oficiais?

Não. Por favor, não.

Procurei-o pela rua, mas não consegui vê-lo novamente. Comecei a
correr, agitando os braços. Quando cheguei à esquina, olhei para os dois
lados da rua. Avistei uma jaqueta marrom à esquerda, seria a que ele
usava? Abri minha bolsa e serpenteei em meio à multidão de Enders que
passeavam por ali. Enfiei a mão direita na bolsa e peguei a arma com força.

Quando me aproximei dele, pressionei a anua contra suas costas,
cobrindo-a com meu corpo para que ninguém mais conseguisse ver.

— Pare — sussurrei no ouvido dele.

Agarrei seu braço para ter certeza de que ele obedeceria. Ele falou por


cima do ombro:

— Por favor, não me machuque. Eu lhe darei minha carteira. voz era
aguda demais.

Fiz com que ele se virasse e vi um rosto, marcado por cicatrizes de
acne, a ponto de esvair em lágrimas. Era apenas um Starter comum.

— Desculpe — eu disse, soltando-o.

Ele continuou parado na calçada, em estado de choque.

— Corra — mandei e ele obedeceu.

Virei-me, examinando o rosto das pessoas na calçada, mas n havia
qualquer esperança. Eu tinha perdido Michael de vista. Tive uma chance
preciosa de protegê-lo quando seu corpo safra do banco & corpos, mas
deixei que ele se afastasse.

Eu queria chorar, mas tudo que saiu de mim foram arfadas de pânico.

Isso era pior do que se eu nunca o tivesse encontrado.

Fiquei parada na calçada, atordoada, enquanto o mar de Enders de
cabelos prateados passava a meu redor.

Qual era o caminho que levava de volta a meu carro? Eu estava
desorientada. A última coisa que eu desejava era me aproximar do banco
de corpos. Após alguns momentos, consegui me lembrar do caminho que
havia feito e segui em direção ao norte. Logo adiante em meio à multidão
de Enders, três semblantes familiares vinham em minha direção.

Briona, Lee e Raj, com os braços carregados de sacolas de compras
reluzentes.

— Callie! — Briona gritou para mim.

Eles vestiam as peças mais recentes da moda, desde os óculos de sol
ultramodernos até botas de grife com bicos finos.

— Briona — eu disse, tentando fazer com que minha voz parecesse
normal. — Que coincidência.

— Não é coincidência. Todos sabem que as melhores lojas ficam em
Beverly Hills — disse Raj.

Briona abriu um pequeno sorriso enquanto olhava para Raj.

— Fomos até a Prime para dar um passeio — disse ela. — Perguntar a
respeito dos novos serviços.


— O número de seu telefone apareceu nos nossos. — Lee empurrou
seu celular.

— Meu telefone não está ligado — eu disse.

— Está, sim — disse Lee.

Abri minha bolsa, virando-me um pouco de lado para que eles não
pudessem ver o que havia dentro. Meu antigo telefone estava realmente
ligado.

— Como isso aconteceu? Eu o desliguei.

— Provavelmente ele se ligou ao esbarrar em alguma coisa dentro da
bolsa. Acontece o tempo todo.

Desliguei o telefone.

— Por acaso há dois celulares em sua bolsa? — perguntou Ra].

—Sim. Um é meu. — Fechei a bolsa. — O outro é da doadora.

— Vamos nos sentar aqui — disse Briona.

Antes que eu pudesse protestar, ela me puxou pelo cotovelo até uma
mesa na calçada, em frente a uma pequena cafeteria. Éramos os micos
clientes ali.

— Raj, entre e traga uns cappuccinos para nós — disse ela, e Raj
obedeceu.

— Não posso ficar aqui — eu disse.

— Apenas por um minuto.

Lee sentou-se a meu lado, próximo demais para que eu me sentisse
confortável.

Olhares nervosos se entrecruzaram sobre a mesa. O que estava
acontecendo? Briona tamborilava as unhas sobre a superfície. Lee olhou
fixamente para ela, até que parasse.

— Ficou sabendo das notícias? — disse Briona, inclinando-se para a
frente.— Sobre a Prime?

— Sim. O que você achou?

— Mal posso esperar para conseguir um permanente — disse Lee.

— Quero parar de brincar por aí, me acomodar e me concentrar em
construir uma nova vida.

— Tem alguma coisa especial em mente? — perguntou Briona.


— Não — eu respondi. — E você?

— Estou de olho em uma linda garota loira de 16 anos — disse
Briona. — Eu poderia usar o corpo dela muito melhor do que ela própria.
E sou muito mais inteligente do que ela — disse Briona, apoiando o
queixo sobre a palma da mão.

As pernas de Lee se agitavam nervosamente. Aquilo me fazia lembrar
alguém. Esforcei-me para conseguir recordar.

— É como diz aquele velho ditado: Os jovens desperdiçam a
juventude‛ — disse Lee. — E o que você me diz, Callie? Está pensando
em um permanente? Este corpo ou outro?

— Há algo errado com este corpo? — eu perguntei.

— Nada que eu possa ver — disse ele. As pernas continuavam se
agitando.

— A ideia de um corpo permanente é um pouco assustadora — eu
disse.

— Acho que, se você não gostar do corpo, eles deixarão que você o
troque por outro — disse ele.

— Mas o que acontece com o corpo do doador? —perguntou Briona.

— Afinal, você não pode simplesmente deixar que aquela garota loira
volte à vida três meses depois. Ela vai passar o tempo inteiro perguntando:
‚O que aconteceu‛?

— Talvez ela não perceba — eu disse.

— Assim que ela olhar para seu calendário e perceber que perdeu
meses em vez de dias, ela saberá o que houve — disse Lee.

— A vantagem de alugar é poder experimentar coisas novas— disse
Briona. — Se tivesse um permanente, eu não ousaria fazer nada perigoso,
como lutar boxe, por exemplo. Mas, com um corpo de aluguel, não há
qualquer problema.

— Exceto pela multa astronômica — disse Lee.

— É para isso que serve o seguro do aluguel — disse Briona,
piscando.

— Mas a permanência compensa mais, no sentido financeiro — disse
ele. — É possível poupar bastante dinheiro, comparado com o aluguel.


Aqueles Enders estavam me enlouquecendo. Como podiam falar
sobre nós daquela maneira? Éramos apenas veículos para seu
entretenimento, para suas fantasias idiotas. Se morrêssemos, não haveria
qualquer problema ou ressentimento. Tudo estava coberto pelo seguro.

Eles ficaram em silêncio. As pernas de Lee se agitavam para cima e
para baixo e Briona tamborilava suas longas unhas sobre o tampo da mesa.
Onde é que eu vira esses trejeitos antes?

Lee percebeu que eu estava olhando para as mãos de Briona. Olhares
nervosos foram trocados como se fossem lasers. Eu trouxe a bolsa para
mais perto de meu corpo.

Senti um arrepio. Eu sabia quem eles eram. Não eram simplesmente
Enders.

Um SUV estacionou na calçada à nossa frente, com Raj ao volante.

Aquela era a razão de toda a conversa. Eles estavam esperando pelo
carro.

— Acho que Raj pediu café para tomarmos na viagem — Briona se
levantou.

Lee também se levantou. Ele enlaçou seu braço ao meu.

— Está pronta, Callie?

Eu puxei o braço e abri a minha bolsa.

— Não.

— Venha conosco. — Briona se aproximou.

Eu saquei a arma e a apertei contra as costelas da garota.

— Nem pensar. Doris.

— Tenha cuidado, Callie — disse Lee, em voz baixa. — Não tome
nenhuma atitude precipitada.

— Por que você está tão preocupado? Não é para seu corpo que eu
estou apontando a arma, Tinnenbaum — eu disse.

Raj, dentro do SUV, nos observava. Ele não podia ver a arma e ainda
fingia que tudo estava bem. Tinha um copo de café nas mãos, em um
gesto convidativo,

— Vocês estavam escondidos nesses corpos o tempo inteiro, me
espionando — eu disse a eles.


Lee se moveu para bloquear minha saída. Ele estava em um lado;
Briona estava do outro.

— Apenas entre no carro, Callie — disse ela.

— Não preciso de café — eu retruquei. —Já estou bem ligada.
Empurrei Briona e ela perdeu o equilíbrio, caindo nos braços de Lee. Corri
para dentro da cafeteria e saí pela porta dos fundos.
























































22



















N
ão me virei para ver se Lee ou Briona estavam me perseguindo. Não, era
melhor chamá-los de Tinnenbaum e Dons, agora que eu descobrira quem
eles realmente eram. Quem tinham sido o tempo inteiro. Raj, ao volante
do SUV, provavelmente era Rodney, o Ender que me levara para ver
Michael e Tyler. Por que o banco de corpos mandara que me espionassem
assim, fingindo que eram simples inquilinos? Será que sabiam do plano de
Helena desde o início? Ou as coisas começaram depois de ela alterar o
chip?

Cheguei à rua onde meu carro estava estacionado e entrei nele.
Quando dei a partida, vi que um SUV preto deu meia-volta e começou a
me seguir. Seriam eles? Eu não conseguia ver porque um caminhão se
interpôs entre nós.

Peguei o novo telefone e liguei para o hotel de Tyler. Queria contar a
Florina o que havia acontecido com Michael.

— Quarto 1.509, por favor.

— O grupo que estava hospedado nesse quarto foi embora hoje pela
manhã — disse a atendente.

— O quê? É impossível. Eles não fariam isso.

— Lamento, mas eles saíram ainda cedo.

Meu estômago se revirou como se eu estivesse em um elevador e os
cabos de sustentação fossem cortados.


Exigi falar com a gerente que nos registrara. Ela atendeu ao telefone e
confirmou o que a atendente dissera. Meu irmão e Florina não deixaram
qualquer mensagem sobre onde eu poderia encontrá-los. A gerente
também disse que os vira entrar em um carro com um homem, um senhor
idoso que dissera ser o avô de Florina.

Senti uma onda de entorpecimento tomar conta de mim. Florina não
tinha avós. Se tivesse, não estaria vivendo nas ruas. E não desapareceria
sem deixar um bilhete.

Alguém os havia capturado. Quem? Uma bola de fogo me cegou. Ouvi
falar de crianças que eram sequestradas em troca de resgates. Por acaso o
carro e o hotel elegante deram ideias estranhas a Florina? Todo aquele
comportamento gentil e os cuidados com meu irmão não passavam de
fingimento? Um Starter desesperado seria capaz de fazer qualquer coisa
nos dias de hoje. Talvez fosse uma inspetora disfarçada? Algum Ender no
hotel, um cliente, ou mesmo algum funcionário querendo ganhar algum
dinheiro extra poderia ter visto os pobre menores sem família e os
denunciado.

Se fosse assim, eles estariam trancafiados em uma das instituições. Eu
me recusava a acreditar que isso pudesse estar acontecendo.

E se fosse o banco de corpos?

Eles não alugariam o corpo de Tyler, é claro. Ele era jovem e frágil
demais. Mas poderiam usá-lo como isca para me atrair de volta. Fechei os
punhos com força.

Senti um desejo de ir até lá, com a arma em punho, e exigir que
devolvessem meu irmão. Contudo, mesmo com essa fúria que chegava a
queimar, eu sabia que era impossível resgatar alguém de dentro da Prime.
Eles tinham guardas. E grossas portas internas com fechaduras. E era
exatamente isso que eles queriam. Além de tudo, seria uma aposta
arriscada, porque, na verdade, eu não sabia onde ele estava. Eu
simplesmente tinha uma sensação de que, onde quer que ele estivesse,
não seria um bom lugar.

Ainda assim, eu precisava fazer alguma coisa.








Eu estava dirigindo na estrada de cascalhos que ladeava a cerca ao redor
do rancho da família de Blake e manobrei o carro para que ele estivesse
com a frente voltada para a direção certa quando eu saísse dali. Era melhor
ter uma rota de fuga rápida planejada de antemão. Quando toquei na
maçaneta para sair, minha mão tremia.

Corri pela via de cascalhos até a porta da frente, com a bolsa jogada
sobre o ombro e a alça ao redor do corpo. Precisava ter acesso fácil à
minha arma.

A governanta deixou que eu entrasse e me levou até a sala de estar. O
lugar era decorado no estilo colonial mexicano, com um pé-direito alto e as
vigas de sustentação do teto expostas. O aroma de café e tabaco, algo que
normalmente seria acolhedor, fazia com que meus nervos ficassem à flor
da pele nas circunstâncias atuais. O senador Harrison tinha tudo,
especialmente dinheiro e poder.

Blake e seu avô estavam sentados em grandes poltronas de couro
siena, até perceberem que eu havia chegado.

— O que ela está fazendo aqui? — disse o senador, levantando-se e
apontando o dedo para mim.

— Está tudo bem, vovô. Eu a convidei — disse Blake, levantando-se.

— Por que diabos você faria isso?

— Porque ela quer lhe contar algumas coisas.

Blake se aproximou de mim e pegou minha mão. Perguntei a mim
mesma se ele chegara a dizer alguma coisa a seu avô.

— Tire-a daqui agora! — gritou o senador.

Meu coração batia tão rápido que parecia que eu conseguia ouvi-lo,
latejando em minhas orelhas.

— Vá em frente, Callie — Blake soltou minha mão. — Diga a ele.

— Dizer o quê? — perguntou o senador.

— Você tem noção de que suas ações são o mesmo que assassinatos?
— eu disse

O rosto do senador ficou vermelho de raiva.


— Não fale comigo assim, sua bruxa velha.

Saquei a arma da bolsa e apontei para ele.

— Não sou velha. Tenho 16 anos. Sou a doadora do corpo.

Pelo canto do olho eu vi que Blake estava boquiaberto, mas voltei a
me concentrar na arma. Precisava manter a mão firme. Fiquei atrás de um
dos sofás para que pudesse me apoiar em alguma coisa. Calculei a
distância que havia entre a arma e o senador. Pouco mais de 3,5 metros.

O rosto dele demonstrava surpresa.

— Então, por que você quer me matar?

— Seu acordo envolvendo o governo e a Prime Destinations significa
que menores sem família, inocentes, serão vendidos ao banco de corpos,
que permitirá que idosos os comprem para ocupar seus corpos pelo resto
de suas vidas.

Era difícil interpretar as expressões do senador. Havia uma expressão
de horror em seu rosto, mas não consegui identificar informação era nova
para ele.

— O culpado disso tudo é você. —Ele apontou para Blake. — Faça
alguma coisa.

— O que ela diz faz sentido, vovô. É verdade? — perguntou Blake.

— É verdade? — o senador repetiu as palavras de Blake em um tom
de zombaria.

— Você me levará até o homem que comanda a Prime — eu disse ao
senador — O Velho.

O queixo de Harrison caiu.

— Não. Não posso fazer isso.

A palma das minhas mãos estava suando. Eu estava muito nervosa. O
suor tirava a firmeza da minha mão ao redor da empunhadura da arma,
deixando-a escorregadia.

— Você não quer me causar problemas, senador Harrison. Não agora.
Meu melhor amigo acabou de ser comprado e meu irmão mais novo está
logo atrás dele. Provavelmente, está prestes a ser levado à sala de cirurgia,
como um cachorro qualquer em uma clínica veterinária. Minha única
esperança é poder conversar com o Velho e, se você não puder me levar


até ele, eu não terei nada a perder.

— Não posso — disse ele. — Não posso fazer isso.

— Você não tem escolha.

— Leve-a, vovô — disse Blake. — Você sabe onde ele trabalha.

— Deixe-me explicar de outra maneira — disse o senador. — Se eu
levá-la até o Velho, ele me matará.

— E, se você não me levar, eu é que o matarei. — Eu lutava para
manter a mão firme. — Estou lhe avisando. Meus braços estão ficando
cansados, então vou contar até três. Não é assim que fazem nos holos?
Você começa a andar na direção daquela porta ou eu atiro quando a
contagem chegar a três. Um.

Ele umedeceu os lábios com a língua.

— Dois.

Ele engoliu em seco com tanta força que eu vi seu pomo-de-adão
vibrar.

— Três.

Ele não se moveria.

Eu tinha que atirar, mas não queria. Imaginei a bala perfurando a
carne, dilacerando-a, a pele se retorcendo em formas parecidas com
pétalas de flores conforme o sangue se esvaía em jatos fortes, como um
chafariz. Meu dedo tremeu e pressionou o gatilho. Era como se eu
estivesse tentando soltar o gatilho, deixar que ele voltasse à posição de
descanso, mas é claro que isso não funcionou. Assim, atirei nele. Acho
que era isso que eu realmente queria fazer.

A arma disparou com um estrondo agudo.

Ao mesmo tempo, ou talvez antes do disparo, não tenho certeza,

Blake voou para cima do avô, empurrando-o com força.

— Blake! — eu gritei.

Os dois caíram ao chão e o sangue começou a manchar os tons creme
e preto do tapete Navajo. Havia uma perfuração no braço do senador.

Olhei na direção deles. O senador gemia. Blake rasgou a jaqueta de
seu avô e aplicou pressão sobre o ferimento.

Ele olhou para mim por um segundo, com uma expressão de puro


choque e descrença.

— Você atirou nele! Poderia tê-lo matado!

Eu não sabia o que dizer. Ele estava certo. Eu teria matado o senador
se Blake não interviesse.

— Ele devia ter feito o que eu mandei.

— Eu não achei que você... faria isso — disse o senador, com a voz
entrecortada pela dor.

Eu também não achei que faria aquilo. Meu coração estava acelerado.
Apontei a arma para o senador.

— Levante-o.

— O quê? — perguntou Blake.

— Foi só um ferimento no braço. Coloque-o de pé.

Blake ajudou seu avô a se sentar em uma cadeira. O senador se
recostou no assento, gemendo de dor.

— Eu não queria fazer isso. Você me obrigou — eu disse,
gesticulando com a arma. — Não vamos fazer com que tudo isso seja em
vão. Quero que você me leve até o Velho.







O rosto do senador estava pálido enquanto dirigia seu carro com uma só
mão. Eu estava a seu lado, no banco do passageiro, com a arma apontada
para ele enquanto Blake vinha conosco, no banco de trás.

— Para qual parte da cidade estamos indo? — eu perguntei.

— O centro — disse o senador, sofrendo com a dor.

Tínhamos coberto sua camisa com a jaqueta para que o ferimento não
ficasse aparente.

— Não sou a vilã aqui — eu disse. — Meu irmão mais novo está
doente. Tenho que descobrir quem o pegou.

— Ele pode estar em qualquer lugar. — O senador tinha que fazer um
esforço enorme para falar.

— Você tem razão. Não sei onde ele está. Por isso, tenho que
procurar. Minha melhor pista é o Velho.


— Você parece ser uma garota esperta. Cheia de recursos. Deixe-me
fazer uma proposta. Eu paro o carro e deixo você ir embora. Em troca,
garanto que não a denunciarei por atirar em mim.

— Você acha que eu tenho cara de idiota? — eu perguntei.

Ele olhava para Blake pelo espelho retrovisor. Então, percebi que
Blake estava incrivelmente quieto. Ele não dissera nenhuma palavra. O
que estava se passando em sua cabeça? Acho que eu o colocara em um
dilema. Eu me virei para olhar para ele. Naquele instante, o carro fez uma
curva acentuada. O senador pisou com força no acelerador e virou o
volante bruscamente, atravessando as faixas de trânsito até chegarmos ao
outro lado da avenida. Batemos de frente com o banco vazio de um ponto
de ônibus.

Os airbags se inflaram, empurrando a arma em direção à minha
cabeça, abruptamente. Fiquei desorientada com o choque e minha visão
estava embaçada. O senador abriu a porta de trás e puxou Blake para fora
do carro com o outro braço. Não consegui ver se ele estava ferido.

Eu me movia em câmera lenta. A lateral da minha cabeça estava
úmida. Eu a toquei — sangue. Percebi que o senador ajudava Blake
enquanto eles se afastavam do carro. Blake tentou se virar, estendendo o
braço em minha direção, mas seu avô o forçava a continuar.

Eu tinha que sair do carro. Onde estava a maçaneta da porta?

Minha mão a encontrou e a abriu. Eu caí para fora do carro, sobre o
asfalto. Tudo estava fora de foco. Formas, pessoas, tudo vinha em direção
ao carro. A última que vi, antes que tudo escurecesse, foi um homem de
uniforme.

Um inspetor.
















23



















A
cordei e percebi que estava deitada sob um aparelho com fortes luzes.
Não consegui abrir os olhos direito, a luz estava intensa demais, O tubo de
uma sonda intravenosa serpenteava até meu braço.

— Ela acordou — disse a voz envelhecida de uma Ender.

— Olá? Consegue me ouvir? — A voz de um homem, outro Ender, se
aproximou.

— Consigo ouvi-lo — balbuciei as palavras. — Mas não consigo vê-lo.

— Está tudo bem —disse ele. — Isso é normal. Pode manter os olhos
fechados se isso a deixar mais confortável. Faremos apenas algumas
perguntas, certo?

Eu assenti. Meu cérebro parecia estar pesado. Enevoado. Comecei a
imaginar quais drogas eles estavam injetando através daquele tubo
intravenoso.

— Qual é seu nome? — perguntou a mulher.

— Callie.

— E o sobrenome?

— Woodland.

— Quantos anos você tem?

— Dezesseis.

— Seus pais estão vivos?

A voz da mulher parecia familiar.


— Não.

— Tem avós ou pais adotivos?

— Não.

— Você é uma menor sem família?

Minha cabeça doía.

— Por quanto tempo eu fiquei desacordada?

— Não muito. Responda à pergunta — disse ela. — Você é menor
sem família?

Eu não tinha forças para mentir.

— Sim.

As perguntas pararam. Ouvi a mulher se endireitar.

Abri meus olhos devagar. Ainda não conseguia enxergar direito.
Percebi que o homem vestia um avental cirúrgico verde, como um médico.
Imaginei que a mulher fosse uma enfermeira, mas ela usava roupas de cor
cinza, não branca. Ela tinha um pequeno aparelho metálico em uma das
mãos. Um gravador.

— Quer um pouco de água? — perguntou o médico. Eu confirmei
com a cabeça. Ele me estendeu um copo o líquido pelo canudinho.

— Tive que dar alguns pontos no corte na lateral de sua cabeça. Não
vai deixar uma cicatriz. Estava no couro cabeludo.

— A placa — disse a mulher.

— Sim. Qual é a função daquela placa em sua cabeça?

Olhei ao redor do quarto. As coisas pareciam estar entrando em foco.
O lugar onde eu estava não era um hospital equipado com tecnologias de
última geração; era sujo, e eu não vi as máquinas e aparelhos típicos de um
centro cirúrgico.

— Que hospital é este? — eu perguntei.

— Não estamos em um hospital — disse ele. — Você está na
enfermaria

— Na instituição disse a mulher. — Agora, fale sobre a placa.

Eu me lembrava dela. Sra. Beatty, a chefe da segurança. Tentei me
levantar, mas havia algo que impedia meus movimentos. Foi quando vi que
meus braços e pernas estavam amarrados à mesa.


— Deixem-me sair daqui. — Minha cabeça estava rapidamente
voltando a funcionar direito. — É um engano. Eu tenho identificação.
Está em minha bolsa. Meu nome é Callie Winterhull. Você se lembra de
mim.

Eles trocaram olhares.

—Nenhuma bolsa foi encontrada no carro —. disse Beatty. —
Entretanto, nós encontramos uma arma. — Ela franziu seus lábios
enrugados.

— Os testes mostraram que a arma continha seu DNA e impressões
digitais.

Uma pulsação rítmica mais alta a cada segundo.

— E o relatório de balística disse que era a mesma arma usada para
balear o senador Harrison — disse ela.

Ele me denunciara. Blake provavelmente não conseguira impedi-lo.
Ou talvez Blake me odiasse, agora que eu havia quase matado seu avô.

Beatty guardou o gravador no bolso. Ela fez um sinal com a cabeça
para o médico e ele acrescentou alguma coisa ao soro que eu estava
recebendo. Vi um olhar triste em seu rosto antes qne ele deixasse o quarto.
Ela acompanhou o médico com os olhos até que ele fechou a porta atrás
de si, então inclinou-se em minha direção para que pudesse sibilar a meu
ouvido.

— Eu odeio gente mentirosa. — Ela olhava para mim, com um círculo
de verrugas ao redor dos olhos.

Eu sentia o cheiro antigo que ela exalava, uma mistura de naftalina e
mofo. A sensação que eu tinha era a de que uma nuvem pesada estava
descendo sobre mim. O pânico borbulhou em algum ponto, mas não
conseguiu subir à superfície.

— O... que... você... aplicou... em... mim? — tive que empurrar as
palavras para fora da boca, uma a uma.

Ela se ergueu novamente e me olhou com um sorriso insidioso.

— Bem-vinda ao clube privado especial na instituição 37— disse — A
ala de detenção.




24



















N
a manhã seguinte, acordei no piso frio de concreto de uma cela que
cheirava a bolor e urina. Consegui erguer o corpo e me sentar, O lado
direito da minha cabeça latejava com a dor. Toquei-a e senti que havia um
curativo. Lembrei-me do médico, dos pontos e do acidente de carro.

Eu estava usando um macacão largo e cinza. Um uniforme de prisão.

Estava escuro. A única luz no ambiente vinha de uma pequena janela
logo abaixo do teto. Não havia nenhum lugar onde eu pudesse me sentar.
A cela minúscula estava vazia. Levantei-me e apoiei o corpo contra a
parede. Um buraco no piso, no canto da cela, fazia um som constante de
aspiração. Um painel de metal entrelaçado na porta aparentemente serviria
para que a comida fosse entregue.

Essa não pode ser minha vida. Não pode ser meu futuro.

Olhei para as paredes sujas e imaginei se aquele lugar seria parecido
com o campo de quarentena para o qual meu pai fora enviado para morrer.
Até onde eu sabia, eles usavam os pacientes em experimentos. Era horrível
pensar que os enviavam para longe de suas famílias apenas para morrerem
longe das vistas dos outros e, posteriormente, serem incinerados ou
enterrados em covas coletivas. Todos nós ouvíramos aqueles boatos.

Embora o fato de minha mãe ter morrido em casa fosse angustiante,
morrer em uma instituição como aquela certamente seria pior.

Comparar lugares para morrer. A que ponto as coisas chegaram?


Eu estava ao lado dela naquele dia. Estávamos saindo de nosso carro
no estacionamento do supermercado quando vimos a explosão no céu.
Parecia um dente-de-leão gigante se desfazendo, fogos de artifício em
plena luz do dia que se espalhavam e depois caíam. Em nossa direção.

— Volte para o carro! — minha mãe gritou.

Nós demos meia-volta e corremos, O carro parecia estar a quilômetros
de distância, do outro lado do estacionamento. Deveríamos ter entrado no
supermercado, mas era tarde demais para mudar de ideia.

Alguém atrás de nós gritou. Eu me virei e vi que uma Ender corria em
nossa direção. Ela cobriu o nariz e a boca com as mãos para não inalar
nenhum esporo. Não consegui perceber se algum esporo a havia tocado ou
se ela já havia aspirado algum. Ou se estava simplesmente em pânico.

Eu estava vacinada, mas, mesmo assim, havia rumores de que alguns
Starters não sobreviveriam a um ataque em massa.

— Continue correndo! — gritou minha mãe. Ela estava logo atrás de

Ela empunhou o controle remoto do alarme como se fosse uma
espada e eu ouvi o som doce das portas de nosso carro se destrancando.

Nosso carro, nosso santuário, esperando. Abri a porta que estava mais
perto e entrei no banco traseiro. Estendi a mão para que ela entrasse.

— Mãe!

Um sorriso de alívio cruzou seu rosto quando ela agarrou minha mão.
O rosto dela brilhava, seus olhos pareciam estar iluminados.

Conseguimos.

— Está tudo bem, querida. Estamos seguras agora.

Ela colocou um pé no carro, mas, antes que pudesse entrar, esporo
branco solitário pairou entre nós.

O esporo pousou no antebraço de minha mãe. Ela olhou fixamente
para o ponto branco. Nós duas olhamos.

Ela morreu uma semana depois.

Os hospitais recusavam-se a receber mais pacientes contaminados por
esporos e todos estavam superlotados.

Alguns dias depois que ela morreu, os inspetores levaram meu pai
embora, mesmo que ele não demonstrasse qualquer sintoma ou problemas


de respiração. Eles conheciam as chances de contaminação. Mas, mesmo
na zona de quarentena, ele nos enviava Zings todos os dias para dizer que
estava bem.

Até que, certo dia, eu recebi uma mensagem: ‚ Quando os gaviões
gritam, é hora de voar‛

Era uma mensagem em código que ele criara antes de sair. O
significado era simples: eu e Tyler teríamos que sair correndo. Os
inspetores viriam nos buscar. Eu queria saber mais. Enviei um Zing: ‚Pai,
você está doente? Eles sabem disso?‛.

Ele simplesmente repetiu o código.

Pensei que fosse vê-lo novamente. Pensei que ele fosse voltar para
casa. Olhei fixamente para o teto de minha cela. Ouvi uma voz abafada no
corredor. Alguns minutos depois, ouvi o barulho de passos que se
aproximavam de minha porta. Ela se abriu com um zumbido mecânico.
Beatty entrou em minha cela, deixando a porta aberta. Consegui ver os
sapatos de um guarda que estava logo na entrada.

— Está se sentindo melhor? — O ódio exalava como óleo pelos poros
de Beatty.

Olhei para o rosto cheio de verrugas. Era pior do que eu me lembrava.
Ela parecia ter um milhão de anos.

— Vai me tirar daqui?

Aquela pergunta a fez rir.

— Você poderia dormir nos alojamentos com os outros. Mas, caso não
se lembre, você tentou matar um senador.

— Terei um julgamento? — Já vira aquilo acontecer em holos.

Ela sorriu.

— Tenho certeza de que você sabe que menores sem família não têm
direitos.

— Temos alguns direitos. Somos seres humanos, sabia?

— Não, vocês são criminosos, invadindo e morando em propriedades
que não lhes pertencem. O Estado acolhe generosamente os menores sem
família e lhes dá casa e comida. Mas você é uma criminosa agora e ficará
trancada aqui, na barriga do monstro. E sairá somente quando chegar à


maioridade.

— Aos 19?— Seria uma eternidade, em um lugar como esse. Ela
assentiu e seus olhos se iluminaram.

— Quando fizer 19 anos, o Estado lhe dará um advogado. Mesmo
assim, advogados públicos são profissionais sobrecarregados e não têm
tempo para defender criminosos como você. É quase certo que você irá
para uma prisão de adultos.

— Uma prisão, para sempre? — Ela estava mentindo. Esforcei-me
para respirar, mas tudo que consegui foi inalar aquele ar sujo.

— Presumindo que você sobreviva aos próximos três anos aqui na área
de detenção. —Ela cruzou os braços e sorriu. — Poucos conseguem.

Fiz o melhor que pude para disfarçar minhas emoções. Não queria lhe
dar o prazer de saber o efeito que aquelas palavras estavam causando em
minhas entranhas. Eu não perguntaria sobre meu irmão, embora estivesse
desesperada para saber a qual instituição ele fora levado.

Em seguida, como se fosse capaz de ler minha mente, Beatty
perguntou:

— Onde está seu irmão?

— Não sei.

Como ela sabia que eu tinha um irmão?

— Talvez eu possa descobrir algo. Se já não foi recolhido a instituição,
talvez tenha que ser apreendido.

Tentei manter uma expressão neutra e desinteressada, um jogador de
pôquer.

— Descobrirei para que serve essa placa de metal em sua cabe
também. Não há segredos aqui.

Ela saiu e a porta se fechou. Será que eu estava sozinha ali? E a outras
celas? Haveria garotas como eu presas nelas? Ou estariam vazias? Não
conseguia ouvir ninguém. Talvez elas soubessem que o melhor a fazer era
ficar em silêncio.

Fechei os punhos. Como era possível que isso fosse legal? Eu não
tinha uma cama. Não tinha um cobertor. Virei-me e examinei as quatro
paredes. Percebi que havia um botão metálico instalado em uma delas.


Apertei-o e um cano curto de metal saiu pela parede. Água. Pelo menos eu
teria o que beber. Respirei fundo, virei a cabeça, coloquei-a sob o cano e
bebi. A água tinha um gosto metálico, que lembrava algum produto
químico, mas era molhada.

Após três segundos, o fluxo de água foi cortado. Apertei novamente o
botão, mas nada aconteceu.

Minha casa pelos próximos três anos. Se eu sobrevivesse. Bati nas
paredes com a palma da mão, várias e várias vezes.







Na manhã seguinte, meu corpo estava dolorido após dormir sobre o piso
de concreto. Minha cabeça doía por causa do acidente de carro e ninguém
falara nada sobre me dar analgésicos. Eles me deixaram ir a um lugar que
chamavam de pátio: uma área cercada por um alambrado, com piso de
terra, nos fundos do complexo. Às 15 horas, eu teria 20 minutos para fazer
exercícios. As outras garotas tinham direito a uma hora, a menos que os
trabalhos para os quais eram designadas ficassem em algum lugar além das
instalações.

O pátio tinha cerca de cem garotas que iam de um lado Algumas delas
brincavam com uma bola ou com bastões, andava em grupos de duas ou
três, falando em voz baixa. Eu estava procurando por algum rosto
conhecido naquela multidão quando alguém tocou minhas costas.

Pensei que fosse a sra. Beatty, mas era Sara, a garota para quem eu
tentara dar aquele blusão cor-de-rosa.

— Callie? O que você está fazendo aqui? — O rosto dela tinha uma
expressão de dor.

— Fui presa.

— Ah, não. O que você fez?

— Nada. — Agora eu era uma criminosa comum, negando meu
crime. Era mais fácil do que explicar tudo a uma criança de 12 anos.

— Está aqui por engano, então?

— Sim. Um engano enorme.


Ela olhou para os guardas armados que cercavam o perímetro e
enlaçou seu braço ao meu.

— É melhor andarmos. As coisas são mesmo horríveis na área de
detenção? É possível haver uma comida pior do que aquela que nós
recebemos?

—A comida que vocês recebem é preta e pegajosa? — eu perguntou
Meu estômago roncou.

Ela balançou a cabeça negativamente.

— Escute, Sara. Estou procurando por meu irmão. Ele se chama Tyler
e tem 7 anos. As meninas e os meninos costumam se encontrar?

— Às vezes, eles juntam todas as crianças para alguma apresentação.
Ou para gritar conosco. Ele está aqui na 37?

— Não sei. Acho que poderia estar.

— Vou perguntar para as outras. Mas não posso prometer nada.
Algumas garotas esbarraram em nós, fingindo que fora um acidente.

Parei de andar e olhei para elas. A garota que estava mais perto de era
a mesma valentona que me emboscara perto do prédio onde morava e
roubara minha supertrufa. Sua mão direita ainda tinha a cicatrizes daquela
noite, quando ela socara o asfalto em vez do rosto. Na noite em que eu
voltara ao prédio após minha primeira visita à Prime. Muitas coisas haviam
mudado desde então, mas a petulância daquela garota continuava a
mesma.

Ela olhou longamente para meu rosto novo e melhorado e me
reconheceu.

— É você — disse ela. — É melhor cuidar bem desse rosto bonito

— Deixe isso para lá, Callie — Sara me puxou para longe.

— Tchau, Callie. — A valentona cantarolou meu nome em tom
zombaria, agora que o conhecia.

Trocamos olhares ameaçadores enquanto amigas nos puxavam em
direções opostas. Sara me levou até o muro, onde nos encostamos.

— Esqueça aquela menina. Vamos falar sobre coisas felizes — disse
Sara.

Houve um momento de silêncio.


— Você tem namorado? — perguntou Sara.

Senti meu rosto esquentar, desde o queixo até a testa.

— Eu tinha. Mais ou menos.

— Mais ou menos? Tem ou não tem?

— Eu gostaria de saber a resposta.

— Qual é o nome dele? — Os olhos de Sara brilhavam agora.

— Blake.

— Blake. Parece ser bonito — disse ela, sorrindo. — Aposto que ele
está com saudades. — Ela beliscou meu braço. — Aposto que ele dorme
com sua foto debaixo do travesseiro.

Olhei ao redor. A última coisa que eu precisava era dar às outras
garotas outro motivo para me provocar.

— Acho que ele não tem uma foto minha — eu disse, em voz baixa.

— Nem mesmo no celular?

Levantei os olhos. Ela estava certa. Ele tirara uma foto nossa com o
celular, em nosso primeiro encontro, no rancho.

—Sim, no celular tem. — Eu sorri.

— Viu? — Ela se ergueu e apertou meu nariz. — Eu lhe disse.

Em seguida, uma expressão surgiu em seu rosto, como se ela tivesse
se lembrado de algo.

— Como está minha aparência?

—Porquê?

— Ah, por nada.

Eu balancei a cabeça.

— Sara, isso tem algo a ver com aquilo que você me disse antes?
Sobre um homem que viria até aqui?

— Talvez.

— Chegou a ouvir o nome ‚Prime Destinations‛?

— Não vou falar nada — disse ela, mas o sorriso em seu rosto a
denunciou.

— Sara... — Eu cobri o rosto com as mãos

— Eu realmente espero que me escolham — ela sussurrou.

Senti um nó se formar ao redor da minha garganta.


— Quando ele virá?

— Não vai demorar. É verdade que ninguém nunca viu o rosto dele?
Nunca mesmo?

Eu confirmei com a cabeça.

— O que ele vai fazer? Cobrir a cabeça com um saco?

— Talvez use uma máscara.

— Como no Halloween?

Eu a segurei pelos ombros.

— Qual é o melhor lugar para se esconder aqui?

— Na instituição? Fácil, é a lavanderia. Ela fica em um canto
escondido do porão, depois da saída de emergência. Eu me escondi lá uma
vez para escapar da reciclagem de lixo.

— O que você diria se eu lhe dissesse que conheço a Prime
Destinations, que já estive lá antes, e que o lugar é muito ruim? Você
poderia perder seu corpo para sempre.

Ela apertou os olhos, como se estivesse sentindo dores de cabeça

— Do que você está falando?

— Confie em mim. Você vai ter que se esconder quando eles vier
escolher as meninas.

— Esconder? Por quê? É minha melhor chance de sair daqui.

Eu estava a ponto de contar a ela sobre a cirurgia que fizeram em meu
cérebro quando uma campainha soou. A sra. Beatty estava ao lado do
portão do pátio, praticamente me fuzilando com os olhos.

— Por favor. Pense no que eu lhe disse. Preciso ir.

— Agora?

— Só tenho 20 minutos. Sou a menina má, não se lembra?

— Espere. — Ela enfiou a mão no bolso e tirou um papel-toalha.
Dentro dele havia algo escuro.

— O que é isso?

— O que sobrou da supertrufa que você me deu. — Ela sorriu e me
ofereceu o doce.

Aquilo acontecera há dias. A trufa estava ressecada e endurecida. Eu
me lembrava de vê-la cair no chão. Ela devia ter pegado e guardado a trufa


para aproveitá-la mais tarde, pedaço por pedaço. E agora ela a entregava
para mim.

— Vamos lá, não seja tímida — disse ela.

— Você não quer...? — Eu apontei para o doce.

— Não, não. Pode ficar com ela.

Mordi cuidadosamente a supertrufa ressecada, esperando não quebrar
um dente.

— Humm, está crocante.

Ela abriu um largo sorriso. Em seguida, jogou os braços ao redor do
meu pescoço e me abraçou com força.

— Acha que é egoísmo eu dizer que estou feliz por você estar aqui? —
disse ela. — Eu realmente estou. Pensei que nunca fosse vê-la de novo, e
agora você está aqui. Minha amiga.

Sorri da melhor maneira que consegui, com minha boca cheia de
migalhas escuras.







Estar com Sara foi o único momento agradável do meu dia; o resto foi
agonizante. Eu deitei no chão frio pensando em Tyler, imaginando onde
ele poderia estar e se sua saúde estava piorando. Eu poderia aguentar o
que estava acontecendo comigo, sem cobertor ou qualquer outro conforto,
mas ele não conseguiria. Será que ele estaria preso em uma instituição
como aquela? Ou estaria com o Velho?

Pensei também em Blake e nos momentos que compartilhamos, e se
ele seria capaz de me perdoar. Mas a princesa perdera suas roupas bonitas
e sua carruagem e agora estava presa na masmorra, onde ficaria pelo resto
da vida. O conto de fadas chegara ao fim. Nenhum príncipe quereria
salvar a princesa que tentara matar seu avô.

No dia seguinte, contei as horas até o horário dos exercícios. Quando
um guarda veio para me escoltar até o pátio, eu percebi maneira como seu
Zip Taser estava enfiado no coldre e imaginei como eu poderia roubá-lo.
Entretanto, mesmo que conseguisse, logo haveria uma manada de guardas


sobre mim, com muitos outros Zip Tasers. E a distância até a saída era
longa, onde o portão era controlado por outro guarda. Minhas chances de
fugir eram tão pequenas que provavelmente não existia uma fração que
pudesse descrevê-las.

Além disso, eu não queria realmente sair da 37. Pelo menos, não até
ter certeza de que Tyler não estava aqui.

Quando cheguei ao pátio, examinei os semblantes, procurando por
Sara. Algumas garotas esbarravam em mim e uma delas até me deu um
forte tapa nas costas. Eu me afastei. Fiquei no canto onde conversa com
Sara no dia anterior, e ela não demorou a aparecer.

— Descobriu alguma coisa sobre meu irmão? — eu perguntei.

Ela balançou a cabeça.

— Nada. Me desculpe. Mas talvez ele esteja aqui. Talvez tenham
trocado o nome dele.

Pensar naquilo me causou um sentimento de fúria. Trocaram seu
nome? Será que ainda havia algo que pudessem tirar dele? Onde estaria? E
com quem?

— Sorria, Callie. Venha, vou lhe mostrar uma coisa.

Ela pegou minha mão e me levou até uma abertura na parede, que
estava coberta por grades. Depois de olhar ao redor para ter certeza de que
ninguém estava nos observando, ela se agachou e me puxou para baixo.

— Olhe aqui — sussurrou ela.

Espiamos pela abertura e observamos um helicóptero de sobre o
gramado que havia do lado de fora. Por um segundo, um precioso segundo,
eu imaginei que aquilo poderia ser uma maneira escapar. Exceto pelo fato
de que havia um Ender sobre a muralha espessa, consertando o arame
farpado que a recobria.

Sara olhou na direção de um guarda do outro lado do pátio que estava
olhando para nós e me puxou para cima.

— Aquele é o helicóptero do Velho — disse ela.

O Velho. Ali. Meu coração bateu mais rápido. Será que ele estava
com meu irmão?

— Tem certeza?


— Ouvi os guardas falando — afirmou ela. — Eles dizem que
ninguém pode ver o rosto dele. Ele estava usando um chapéu que lhe
cobria o rosto. Assim — disse ela, agitando os dedos e imitando a aba de
um chapéu ao redor da cabeça.

Ela estava sorrindo. Pensar naquilo me causava enjoo.

— Você vai embora com ele, não é? Não conseguirei convencê-la a
não fazer isso?

— Você está brincando. Eu faria qualquer coisa para sair daqui. E
você pode vir também. Você é muito bonita. — Ela tocou meu rosto.

— Sara, seria perigoso se alguém batesse em você? Por exemplo, em
seu queixo ou em seu nariz? Estou perguntando por causa de seu
problema no coração.

Ela apertou os olhos.

— Não. — Seus olhos procuravam algo em meu rosto. — Por quê?

Eu respirei fundo.

— Eu gosto muito de você. Por favor, lembre-se disso. Entenda que,
seja lá o que eu fizer, é porque estou tentando protegê-la.

Ela inclinou a cabeça enquanto me olhava, curiosa. Sua inocência fez
com que aquilo que eu sabia que teria que fazer fosse ainda mais difícil.
Eu retesei o braço, fechei os dedos ao redor do punho e lhe dei um soco
direto no rosto.

— Ai! — ela gritou, enquanto caía para trás, batendo no chão. — Por
que me bateu?

Ela se levantou levou a mão ao nariz. O sangue lhe escorria por entre
seus dedos.

— Eu realmente não queria fazer isso. Desculpe — eu sussurrei.

E voltei a socá-la, para ter certeza.

Desta vez, ela não caiu. Lágrimas lhe escorreram pelo rosto. Ela
parecia tão magoada, sentindo-se tão traída, que meu coração ficou
dilacerado. As garotas a nosso redor pararam de andar e começaram a
olhar em nossa direção. Perguntaram o que havia acontecido.

— Eu bati nela — eu disse, o mais alto que consegui sem que
precisasse gritar.


Algumas começaram a pedir uma briga. A valentona com a mão cheia
de cicatrizes atravessou o grupo de garotas, empurrando-as para que
saíssem de seu caminho. Eu me virei para encará-la e me preparei para o
que estava por vir.

Vá em frente e não demore com isso, pensei.

Não tentei impedi-la. Ela enfiou a mão no bolso e depois agitou o
punho fechado. Alguma coisa que ela trazia na mão refletiu o brilho do sol.
Ela me socou com força no lado direito do rosto.

O golpe ardeu. Cambaleei para trás, mas firmei a postura. Dei uma
rápida olhada para ter certeza de que ninguém me atacaria pelas costas —
não queria que ninguém acertasse a parte de trás de minha cabeça — e
voltei para levar outra. Uma desconfiança se formou no rosto dela, mas a
garota me atingiu outra vez, desta vez no queixo, arrancando um dente da
minha boca.

Uma dor lancinante se irradiou por todo o meu rosto, desde o queixo
até as órbitas dos olhos.

Percebi que ela tinha alguns anéis de metal amarrados ao redor dos
dedos. Ótimo, isso faria um estrago enorme. Algumas garotas gritavam.
avisando que os guardas estavam chegando. Minha adversária enfiou o
objeto de metal de volta no bolso.

Sara estava a alguns metros de mim, chorando, com o sangue
escorrendo pelo rosto. Fiquei feliz ao perceber que seus olhos já estavam
inchando. Meu próprio rosto ardia como se eu houvesse sido agredida com
uma frigideira de ferro. A valentona voltou a avançar sobre mim, puxando
meu cabelo e me arrastando para o chão. Os guardas chegaram correndo,
agitando seus cassetetes contra qualquer menina que estivesse em seu
caminho. Eles golpearam a garota nas costas e a arrancaram de cima de
mim. Outro guarda me acertou bem na barriga.

Eu não conseguia respirar. Caí de joelhos com a força do golpe.

Senti um gosto metálico tomar conta da minha boca.

A sra. Beatty abriu caminho em meio às garotas. Pensei que o rosto
dela não poderia ficar mais feio do que já era, mas, quando ela viu o
sangue, suas feições se encheram ainda mais de rugas e linhas de


expressão.

— Garotas, não façam isso agora — disse ela. — Logo quando temos
um visitante.






























































25



















U
m guarda me acompanhou, juntamente com Sara, até a enfermaria. Seria
um ótimo momento se eu quisesse escapar, com apenas um guarda e duas
garotas, mas Sara provavelmente não estaria disposta a me ajudar com
mais nada.

Ela segurava um pano molhado contra o rosto. Estava chorando.

— Achei que você gostasse de mim. O que foi que eu lhe fiz? Eu não
podia dizer nada para o guarda. O médico não demonstrou qualquer
emoção quando me viu novamente; percebi apenas que ele me
reconheceu.

O médico apontou para uma mesa de exames e o guarda ergueu Sara
para colocá-la sobre a superfície. Eu me sentei sobre a mesa ao lado. O
guarda explicou a situação e disse que ficaria na enfermaria para que não
houvesse nenhum outro problema.

—Isso não será necessário — disse o médico.

O guarda insistiu, dizendo que a sra. Beatty o instruíra a ficar, médico
deu de ombros, como se aquilo não tivesse importância. Mas eu tive a
impressão de que a presença do guarda tinha importância, sim.

— Bem, vamos dar uma olhada em você — disse o médico a Sara.

— Ela me bateu. Com força.

— Estou vendo. E ela é maior que você — disse o médico, tocando o
nariz da garota delicadamente com o polegar e o indicador.


— Pode consertar o que ela fez? — perguntou Sara.

— Vou fazer o melhor que puder.

Ele veio até onde eu estava, virando meu rosto.

— Esse corte em sua boca vai precisar de alguns pontos. Seu queixo
levou umas boas pancadas. Mas a parte de trás de sua cabeça não foi
atingida.

Tentei não sorrir. Era exatamente o que eu queria ouvir.

— Doutor — disse Sara —, pode cuidar de mim antes? Há um
homem aqui na instituição e eu tenho que estar bonita.

Ela me olhou com uma expressão carregada de ódio.







O médico não podia fazer muito devido aos recursos limitados da
enfermaria. Uma hora mais tarde, ele terminou de dar os pontos no corte
que havia em minha boca e o nariz de Sara estava recebendo ataduras.
Recebemos uma dose de spray anestésico. Sara estava inquieta
reclamando que tinha que sair dali para falar com o homem da Prime Não
havia nenhum espelho à vista; portanto, ela não sabia que, além de seu
nariz estar sangrando e arroxeado com um hematoma, a pele inchada ao
redor de seus olhos estava decorada com uma mancha escura em tons de
roxo e preto.

Eu esperava que o Velho houvesse chegado e saído dali. Beatty entrou
na sala e sua expressão refletia o quanto nossa aparência devia estar ruim.

— Olhem só para o rosto de vocês. Que estado lastimável — disse
Beatty.

O médico limpava o rosto de Sara com um algodão.

— Não se incomode com essa aí por enquanto — disse Beatty. —
Termine logo o que precisa fazer com esta aqui — ela apontou para mim.

O médico encarou Beatty com uma expressão confusa.

— Preciso levá-la ao ginásio.

— E eu? — Sara perguntou. — Também quero ir.

Beatty segurou um dos ombros de Sara enquanto o médico se virava


para começar a cuidar de mim.

— Você fará o que eu mandar.

Sara se desvencilhou das mãos de Beatty e pulou para o chão.

— Você não pode me obrigar!

Beatty a agarrou pelo braço e a empurrou para uma cadeira.

— Você sabe que eu posso, sim, Sara.







Beatty me levou até o ginásio amplo que havia na instituição. Um Ender
prendeu um pedaço de papel com um número com fita adesiva a meu
peito. As garotas estavam alinhadas em um dos lados, em fileiras,
começando na parede e indo até o centro da quadra. Os meninos estavam
do outro lado. Corri os olho pelo rosto deles enquanto era levada até meu
lugar. Era minha chance de encontrar Tyler. Os garotos olhavam para meu
rosto com olhos assustados. Fui levada até o final da primeira fila.

Não vi Tyler, mas muitos dos meninos estavam fora do meu campo de
visão. O Velho caminhava pela última fila de meninos, com as mãos atrás
das costas. O ambiente estava tenso; imaginei que seria a animação
daqueles menores, pensando que seriam resgatados. Mas o foco da tensão
vinha da presença do próprio Velho. Ele simplesmente causava esse efeito.
Eu podia sentir.

Ele ainda estava usando o casaco longo e o chapéu. Tudo o que eu
podia ver eram suas costas: Como ele seria?, eu pensava. Foi quando ele
se virou para o lado das meninas e sua face ficou à mostra.

Ele modificara sua face, é claro. Usava uma máscara, feita com uma
espécie de malha metálica que se moldava a seu rosto. A máscara não
tinha apenas o objetivo de esconder sua identidade, mas também
funcionava como algum tipo de tela ou monitor, mostrando imagens —
outros semblantes — em sua superfície. Em um dado momento, ele tinha
o rosto de um astro popular da virada do século; no momento seguinte, era
o de um poeta que vivera havia várias décadas, ou o de um homem
desconhecido. Por ser tridimensional, seu efeito era inquietante, em vez


de passar uma impressão de coisa barata e malfeita como uma máscara
comprada em uma loja qualquer. Era difícil definir; artificial, mas
cativante. E, como ela se movia e se alterava continuamente, tinha um
resultado assustador, quase orgânico. Era como a técnica de camuflagem
facial que ele havia usado na transmissão privada que eu vira na casa de
Madison, mas transformada em realidade.

Eu me sentia como se estivesse sendo hipnotizada, de uma maneira
desconfortável, a mesma sensação que alguém tem quando observa um
acidente de trânsito.

Ele examinava alguns garotos cuidadosamente e eliminava outros após
poucos segundos. Uma Ender o acompanhava, marcando os números das
crianças pelas quais ele se interessava em um bloco eletrônico. Ele veio
em direção à fileira de garotas onde eu estava e eu o ouvi fazendo
perguntas sobre suas habilidades.

Quando ele se aproximou, o efeito hipnótico que a máscara de
camuflagem facial causava em mim ficou mais forte. Sua voz era o mesmo
som eletrônico que eu ouvira na transmissão privada. Imaginei que haveria
algum aparelho sob o cachecol de lã que ele usava, para produzir aquele
tom metálico.

Chegou minha vez. Ele me olhava fixamente. Será que realmente
havia me visto na Prime? Não. Apenas meu reflexo. E agora, rosto inchado
e coberto de hematomas, tinha certeza de que nem eu conseguiria
reconhecer a mim mesma.

Vi que o dispositivo de camuflagem facial também podia demonstrar
diferentes expressões. O rosto de um jogador de futebol famoso tomou
conta da face do Velho, com um olhar confuso.

— O que aconteceu com você, número 205? — perguntou ele.

Baixei os olhos, encarando meus pés.

— Uma briga, senhor.

— O que aconteceu com a pessoa com quem você brigou?

— Não teve nenhum arranhão. Acho que não sou muito boa de briga.

O rosto se transformou no de um velho astro do cinema mudo e me
encarou com um sorriso torto.


— Duvido.

Ele foi até a próxima fileira de garotas. Eu respirei aliviada. Ele
sempre planejara vir até essa instituição para procurar por novos menores.
Não viera simplesmente à minha procura.

Quando terminou de examinar as últimas garotas, ele deixou o salão
com sua assistente. Mandaram que continuássemos em nossos lugares. A
assistente voltou e sussurrou para a diretora da instituição. Ele assentiu, e
ela leu os números da lista em voz alta.

Toda vez que um número era chamado, a pessoa que o usava gritava
como se tivesse vencido um concurso. Algumas garotas explodiram em
lágrimas, sentindo-se transbordar de alegria. Estiquei meu pescoço para
enxergar cada um dos ‚vencedores‛, certificando-me de que Tyler não
estava entre eles. Finalmente, o último número foi chamado, ninguém
respondeu. As pessoas olhavam ao redor, até que a garota a meu lado me
cutucou com o cotovelo.

Estavam chamando meu número.

Olhei para o número 205 colado em meu peito com fita adesiva.
Tanto esforço e meu plano não dera em nada. Eu só conseguira me
machucar, desfigurar meu rosto, e, mesmo assim, por algum motivo, fui
escolhida pelo banco de corpos.

A diretora anunciou que todos os que não foram escolhidos estavam
dispensados para voltarem a seus dormitórios. Os ‚vencedores‛ deveriam
ficar onde estavam e esperar que seus poucos pertences, guardados
naquelas caixas de madeira, fossem trazidos até o ginásio. Fiquei ali e
observei o lugar enquanto os outros se afastavam em filas, seguidos pelos
guardas e pela diretora. Examinei o rosto dos Starters que saíam,
procurando por Tyler, mas ele não estava lá.

Deixaram os escolhidos — 10 garotos e 17 meninas — em pé como
estátuas, distantes uns dos outros no espaço cavernoso do ginásio. Um
guarda permaneceu ao lado da porta, vigiando o lugar.

Olhamos ao redor, avaliando uns aos outros. A garota que estava em
minha fileira provavelmente fora escolhida por causa dos seus cabelos
loiros; aquele garoto do outro lado do ginásio, pelos músculos que tinha.


Eles estavam sorrindo, orgulhosos por serem considerados os mais
atraentes ou talentosos entre os internos da instituição. Quando o olhar de
um garoto na fileira logo em frente cruzou com o meu, percebi que ele
tinha uma expressão confusa. Por que eu, a garota com olhos roxos e um
ferimento no queixo fechado com pontos cirúrgicos, fora escolhida? Em
seguida, ele assentiu levemente com a cabeça, como se compreendesse e
desviou o olhar. Talvez a notícia sobre minha briga houvesse se espalhado
e ele presumisse que eu fora escolhida por causa de meu instinto
assassino.

Talvez essa fosse a verdade.

Eu queria gritar para esses garotos, mandar que corressem o mais
rápido que pudessem ou que se escondessem em algum armário, debaixo
de suas camas ou qualquer outro lugar. Eles não sabiam o que isso
realmente significava: a vida deles estava chegando ao fim. Eles nunca
teriam a possibilidade de desfrutar da vida adulta.

Foi então que percebi: por que eu não seguia meu próprio conselho?
Por que motivo eu estava ali, parada, esperando para ser levada embora?

Eu me virei e caminhei em direção aos fundos do ginásio, para uma
das saídas de incêndio. Ouvi o guarda que estava em frente à porta
principal gritar.

— Ei, menina. Pare!

— Estou só indo ao banheiro — eu gritei por sobre o ombro.

Ouvi os passos dele correndo pelo piso do ginásio.

— Não use essa porta! — ele gritou.

— É uma emergência! — Eu corri para a saída, acelerando até igualar
a velocidade do Ender.

— Pare ou atiro em você! — Ele parou de correr.

Eu sabia que ele estava apontando seu Zip Taser. Parei onde estava,
mas não me virei.

— Vai estragar esta mercadoria preciosa? — Abri os braços. — Você
estará bem encrencado se fizer isso

Pisei com força no chão e disparei em direção à porta, empurrando-a
com tanta força que ela bateu contra a parede do outro lado. Enquanto


corria pelo corredor vazio, eu podia ouvi-lo pedir reforços em seu
comunicador, aos gritos, pois não podia abandonar seu posto.

Ao final do corredor, abri a porta que levava à escadaria. Conforme
descia as escadas, ouvi passos que se aproximavam, vindo do segundo
andar. Talvez fosse a equipe de reforço chamada pelo guarda do ginásio.
Quando cheguei até a última escada, eu estava no porão.

Canos expostos corriam ao longo das paredes de tijolos. Uma única
lâmpada iluminava o final do corredor e eu corri até ela. Quando a
alcancei, virei para a passagem à direita e vi três opções: três passarelas
escuras. Escolhi a que ficava mais próxima da parede exterior e corri até o
final. Olhei para a direita e lá estava a porta de emergência que Sara
mencionara. Esperava que fosse a porta certa, não aquela que faria um
alarme disparar.

Abri a porta e a atravessei. Nada de alarmes. O corredor continuava à
minha frente. No final, havia uma porta com uma janela. Consegui
perceber o que sobrara das letras pintadas havia muito tempo e
identifiquei um ‚L‛.

Espiei pela janela cortada no corpo da porta. Era a lavanderia, e
parecia não haver ninguém lá dentro. Entrei cuidadosamente.

A sala estava cheia de uniformes em vários estágios de processamento.
À esquerda, baús de plástico sobre rodas estavam carregados com pilhas
de roupas sujas. À direita, os baús estavam cheios de roupas limpas. Pilhas
de roupas cobriam as mesas de dobra e camisas estavam penduradas em
um varal com um sistema de roldanas, preso ao teto por cabos.

A sala com as máquinas de lavar ficava à esquerda e a porta ficava
fechada para abafar o ruído. Virei para a direita, onde uma sala continha
vários baús com roupas recém-lavadas. Entretanto, antes que eu pudesse
entrar, ouvi alguém tossir.

Virei à esquerda e vi que havia uma garota de costas para mim,
levando as roupas limpas até uma mesa. Ela era corpulenta e pesada, e
imaginei que esse fosse o motivo pelo qual ninguém se incomodara em
chamá-la para passar pela seleção do banco de corpos.



— Você veio me substituir? — gritou ela.

— Sim — eu disse, mantendo a cabeça baixa.

— Já estava na hora. — Ela enxugou a testa com a manga e foi
embora.

Espiei pela janela da porta que dava à sala lateral, mas o lugar estava
escuro. Entrei pela porta e acendi a lâmpada apenas por tempo suficiente
para escolher em qual baú eu me esconderia. Tateei pela sala até
encontrar o baú que estava no canto mais distante da porta e entrei nele,
enfiando-me entre as peças de roupa limpa. Não tinha um plano;
simplesmente esperava conseguir me esconder por tempo suficiente para
que o Velho desistisse de esperar que me encontrassem e fosse embora.

Enrodilhei-me ao redor de mim mesma na posição fetal. Se meu
coração não estivesse batendo com tanta força, eu poderia até mesmo cair
no sono. Tentei me lembrar dos Starters que estavam esperando para
serem levados ao banco de corpos. Será que já estavam no helicóptero
enquanto os guardas me procuravam pelo complexo? Quanto tempo
levaria até que chegassem a salas de serviço como essa?

Não demorou muito até que eu ouvi uma porta se abrir. Alguém
estava entrando na lavanderia. Pegadas. Talvez fosse a pessoa que viera
para substituir a garota corpulenta. Ouvi a porta da sala onde eu estava se
abrindo. A luz se acendeu. Através do tecido do baú onde eu estava,
consegui ver a silhueta de uma garota.

Prendi a respiração. Ela se aproximou. Mais. Estava em frente a meu
baú. Parou de andar.

Suas mãos reviraram as roupas, procurando por mim, agarrando meus
pulsos e puxando-me para cima.

Mãos pequenas.

Eu poderia me desvencilhar facilmente, mas me levantei, deixando as
roupas caírem a meu redor.

Eu conhecia a garota.

— Sara — sussurrei.

Ela segurava meus braços com força, com o rosto a poucos
centímetros do meu. Era difícil dizer qual era a expressão em seu rosto,


porque a face esquerda havia inchado a tal ponto que forçava o olho
esquerdo a permanecer fechado.

Mas, para mim, ela parecia estar ótima.

— Callie. — Ela abriu um sorriso distorcido. — Que belo esconderijo
você escolheu. Consegui vê-la aí dentro, toda encolhida.

— Shhhh — eu disse.

— Não me mande calar a boca. — Ela me agarrou com mais força.

— Pensei que você fosse minha amiga.

— Eu sou sua amiga.

— Mentirosa. Você estragou a melhor chance de minha vida. Nunca
vou perdoá-la.

— Por favor. — Ergui as mãos. — Alguém vai acabar ouvindo.

— Eu sei que eles vão me ouvir. Porque vou contar a eles onde você
está. — A voz aguda dela assumiu um tom desafiador.

Eu poderia me livrar facilmente de Sara. Eu era mais velha, mais alta
e mais forte. Mas tinha medo de que ela começasse a gritar.

— Fiquei sabendo que você foi escolhida, Callie. Eles anunciaram
pelos alto-falantes. Quem conseguir encontrá-la vai ganhar uma
recompensa. — O olho de Sara se arregalou. — Talvez eles até mesmo me
deem seu lugar na Prime Destinations.

— Você é muito nova. Ninguém com menos de 15 anos foi escolhido.

Ela fez uma careta.

— Você está mentindo.

— Você ouviu os nomes que eles escolheram. Algum daqueles
Starters tinha sua idade?

— Não. — O lábio dela começou a tremer.

— Por favor, Sara, não diga a eles onde eu estou. Sei que você está
furiosa comigo, mas tudo o que fiz foi para seu próprio bem. Bati em você
para que eles não a levassem daqui.

— Então, por que eles escolheram você? Olhe só para sua cara. — Ela
fez uma careta, como se estivesse sentindo o cheiro de ovos podres.

— Não sei. Talvez porque eles saibam que eu já sou uma das doadoras
contratadas pela empresa? Não interessa, o que interessa é que, se eu


voltar, eles me matarão como fizeram com minha inquilina. E, se isso
acontecer, meu irmão não vai ter qualquer chance de sobreviver.

— O quê? — A confusão distorceu o rosto dela.

Ela mal conseguia superar a ideia de que não seria escolhida para
tomar meu lugar, e eu estava ali dizendo que ela seria responsável por
minha morte se chegasse a me denunciar.

— Não consigo entender direito o que você está dizendo, mas sei que
você não tem medo de nada — disse ela. — E você tem medo da Prime?

— Sim. Descobri que eles estão matando pessoas. Starters. É difícil
explicar, mas eles conseguem separar o cérebro de uma pessoa de seu
corpo. Depois, desligam seu cérebro para sempre.

Ela ficou paralisada, tentando compreender o que eu dizia. Senti que
eu estava prendendo a respiração, olhando na direção da porta, estimando
a distância até ela, quanto tempo eu demoraria para sair do baú de roupas
lavadas e quanto tempo levaria até que os gritos de Sara atraíssem outras
pessoas.

— Bem, isso não é nada bom — ela disse.

Ela lentamente afrouxou as mãos ao redor de meus braços. Eu expirei.

Sara me ajudou a montar um disfarce para substituir meu uniforme da
prisão. Ela explicou que os únicos funcionários que trabalhavam na
instituição, além dos próprios menores, eram os supervisores de
jardinagem. Esses Enders cuidavam do paisagismo ao redor da entrada e
do prédio da administração para impressionar os visitantes. Para se
diferenciarem dos menores, especialmente a distância, eles usavam
camisas e calças pretas, junto com um chapéu de abas largas para se
protegerem do sol. Aquele foi o traje que Sara escolheu para mim em meio
às roupas da lavanderia. Ela conseguiu até mesmo encontrar um conjunto
limpo.

Amarramos meu cabelo em um coque para que ele não aparecesse por
baixo do chapéu.

— Talvez fosse bom desenhar algumas rugas — disse ela, enquanto

— Acho que seria melhor simplesmente irmos embora daqui.

— Você não pode sair sem sapatos. — Ela apontou para meus pés


descalços.

Os tênis de cor cinza que eu recebera acabariam com meu disfarce
rapidamente. Chutei-os para baixo de uma pilha de roupas enquanto Sara
procurava por um par de chinelos de tecido preto que foram lavados.

Ela voltou com dois chinelos nas mãos.

— É o único par que sobrou.

Calcei um e depois o outro. Eram, pelo menos, dois números maiores
do que os sapatos que eu geralmente usava.

— Estão perfeitos. Vamos embora — completei.







Encontrei alguns pedaços de elástico e os usei para prender os chinelos a
meus pés. Pensamos em um plano para que eu conseguisse escapar da
instituição. Estávamos preocupadas com a possibilidade de o Velho
mandar revistar cada milímetro do complexo, até que eu fosse encontrada.
Por isso, ficar escondida não era uma opção. Ele viria atrás de mim para
preservar sua reputação, para mostrar que uma Starter não poderia se
atrever a desafiar suas ordens.

Sara disse que ouvira falar que um Starter escapara no ano anterior
pendurando-se na parte inferior de um caminhão de entregas. Por causa
disso, o procedimento padrão adotado pelos guardas era verificar
rapidamente os caminhões antes que eles saíssem pelo portão. Mas eles
nunca revistavam os veículos de visitantes importantes. Imaginávamos que
o Velho, com seu enorme helicóptero, fosse tão poderoso que a instituição
não se arriscaria a insultá-lo com qualquer procedimento rotineiro que o
atrasasse. A cooperação da instituição com aquele homem sugeria que
uma boa quantidade de dinheiro trocara de mãos.

Mesmo assim, ainda era arriscado.

— Tem certeza de que o Starter conseguiu escapar? — eu perguntei.

— E que ele não se machucou?

— Eu não disse isso — respondeu Sara. — Só ouvi dizer que ele
conseguiu sair.


— Você não tem certeza porque nunca mais ouviu falar dele.

— Escute, há outra coisa. Um dos guardas do portão é bem gordo e os
outros o chamam de Caixote. Ele não consegue se curvar para olhar
debaixo dos caminhões.

— E daí?

— É ele que está no portão hoje — disse Sara.

Aquilo me convenceu. Os guardas provavelmente não se atreveriam a
atrasar a remessa importante que iria para a Prime, mas eu também
poderia me beneficiar da falta de flexibilidade de Caixote.

Eu era forte e leve. Precisaria apenas me segurar com firmeza para
atravessar os portões. Depois, eu poderia me soltar e o veículo de
transporte me deixaria para trás. Ninguém nunca perceberia que eu estava
grudada a ele como uma sanguessuga. Aquele era nosso plano. Seria muito
mais difícil do que quando eu simplesmente entrara pelo portão principal,
fingindo trazer doações, mas era uma oportunidade. E eu iria aproveitá-la.
Afinal, depois que o veículo da Prime saísse da instituição, os guardas
voltariam a fazer suas verificações de rotina.

Saímos do interior do prédio, eu com meu disfarce de jardineira e Sara
como minha aprendiz. Ela também usava um chapéu para esconder seu
rosto escoriado, levando nas mãos um saco de lixo e um balde com
ferramentas. Enquanto caminhávamos pelas vielas que levavam ao prédio
da administração, eu me curvei um pouco e andei com movimentos mais
rígidos para me parecer mais com uma Ender, embora, na realidade,
sentisse vontade de correr feito louca. Não que fosse fácil fazer isso com
aqueles chinelos enormes nos pés.

Vimos dois Starters que vinham em nossa direção. Sara me fez um
sinal com a mão. Nós duas curvamos nossas cabeças para que os chapéus
cobrissem nossos rostos até que eles passassem por nós. Quando
chegamos à área em frente ao prédio da administração, vimos que o
helicóptero do Velho estava do lado mais distante do gramado. O piloto
estava do lado de fora, esticando as pernas, mas não havia ninguém dentro,
O veículo que levaria os menores escolhidos estava mais perto de nós,
estacionado na estrada curta que ligava o prédio da administração ao


portão que levava à liberdade.

—Lá está sua carona — sussurrou Sara.

— Você pode vir também. — Eu olhei para ela.

Sara balançou a cabeça negativamente.

—Você precisa encontrar seu irmão. Eu ainda tenho um bom tempo
pela frente.

— Você quer que eu seja sua cobaia, não é?

Aquilo fez com que ela sorrisse.

— Vou sentir saudades — disse ela.

Eu também sentiria saudades dela.

— Nós nos veremos novamente, algum dia. Em um lugar mais feliz.

— Eu não acreditava naquelas palavras, mas sabia que fariam Sara se
sentir melhor.

— É claro que iremos. Somos amigas.

O rosto sincero dela sorriu para mim. Parecia que estava prestes a se
despedir com um abraço, algo pouco seguro a fazer, quando vimos que
havia movimento dentro do prédio.

Um guarda conduzia os 10 garotos e as 16 garotas ao veículo de
transporte.

— Eles já estão embarcando — disse Sara. — Chegamos tarde.

Esperávamos conseguir chegar lá antes dos outros.

— Segure meu cotovelo. Me leve para cruzar o caminho deles.

Tivemos que atravessar a fila para chegar ao outro lado do veículo, de
modo que os guardas do portão não nos vissem. Se alguém percebesse
nossos rostos feridos e os hematomas que os cobriam, nosso disfarce
estaria arruinado.

Continuamos com a cabeça abaixada.

Os Starters na fila estavam tão animados por terem sido escolhidos,
com o passeio em um veículo e a oportunidade de sair da instituição que
mal chegaram a olhar para nós enquanto passávamos.

Chegamos ao lado direito do veículo, onde não seríamos mais vistas
pelos guardas do portão do outro lado do gramado. O piloto do helicóptero
estava de costas para nós. Eu me joguei ao chão e rastejei para baixo do


veículo. Sara se curvou e pegou meu chapéu.

— Boa sorte — sussurrou ela.

Eu disse ‚obrigada‛. Rastejei pelo cascalho para ficar diretamente na
parte central do veículo. Percebi uma barra onde eu poderia enfiar os pés
para uma sustentação melhor. Mas, antes que eu pudesse me mover, ela
se ajoelhou.

— Callie — sussurrou ela, com o medo estampado no rosto. — Ele
não está lá.

— Quem?

— Caixote. O guarda do portão.

Senti meu coração afundar. Estávamos contando com aquilo.

— Volte. — Ela estendeu a mão.

Fiz um gesto para que ela se afastasse. Sara franziu a testa. Olhei para
o fundo do veículo e ela se afastou.

Segurei na barra acima do meu peito e testei sua resistência. Estava
quente e cheia de graxa. Peguei as luvas de jardinagem que estavam em
meu bolso e as calcei. Agarrei a barra e, agindo lentamente, enfiei meus
braços por ela até sentir que eu podia entrelaçar os dedos para prender
meu corpo, suspendendo-o. Senti o calor da barra através do tecido da
minha camisa. Eu estava pendurada, com o rosto próximo à superfície
inferior do piso do veículo.

Olhei para o lado e vi que os pés de Sara estavam a quase dez metros
de distância. Do outro lado, o número de pés estava diminuindo. Quase
todos os Starters haviam embarcado.

— Esperem! — Eu reconheci a voz de Beatty, junto com o som forte
de seus passos sobre o cascalho. — Ainda falta uma garota.

Prendi a respiração. O motorista insistiu, dizendo que tinha um
horário a cumprir. Os últimos menores embarcaram.

O motorista deu a partida. A vibração fez com que fosse mais difícil
me segurar às barras. O calor irradiava através do metal e o suor gotejava
pelas laterais de meu rosto. Pensei que fosse forte, mas isso era mais difícil
do que eu imaginava.

O veículo começou a rodar. O ruído do motor, as engrenagens do


câmbio se encaixando, as rodas girando. Mesmo naquela velocidade baixa,
parecia que minha cabeça estava enfiada em um moedor de carne. Meus
dentes batiam uns contra os outros; meus ossos estavam tremendo. Tive a
certeza de que os pontos que o médico aplicara em minha boca
arrebentariam.

Estava preocupada com a possibilidade de não conseguir atravessar o
portão principal. No que estávamos pensando? Quem tivera essa ideia
maluca? E Caixote não estaria lá. Tudo o que me restava era a esperança
de que eles deixariam o elegante veículo de transporte da Prime passar
desimpedido.

Chegamos ao portão. Do meu esconderijo, eu conseguia ver a base da
guarita. Nosso veículo diminuiu a velocidade. Tentei fazer com que minha
força de vontade o mantivesse em movimento. Meus braços doíam, mas eu
disse a mim mesma que tudo que teria que fazer seria aguentar um pouco
mais. Por Tyler.

O veículo freou e parou. Agarrei a barra com mais força e prendi a
respiração.

Passos se aproximaram. Alguém correu na direção contrária.
Murmúrios se transformaram em gritos.

— Parem aquela garota! — Era a voz de uma mulher. Beatty.

Ela estava falando de mim? Ergui meu corpo o máximo que podia,
deixando-o junto da superfície inferior do veículo.

— Atire nela! — gritou a voz de um homem.

Um estalido eletrônico e agudo sibilou pelo ar como um relâmpago.

Um Zip Taser.

Mas o grito de dor que sempre seguia aquele som não ecoou dessa
vez. Só havia o silêncio.

— Você errou! — gritou um homem.

Eles não estavam se referindo a mim; eu nem cheguei a ver o arco de
luz. Em seguida, todos começaram a gritar, e eu ouvia o som de pés
correndo. O veículo começou a rodar outra vez, O motorista fez uma curva
fechada ao sair da área da instituição, entrando em uma rua lateral. Aquela
curva exigiu muito dos meus braços cansados. Meus músculos cederam.


Eu caí. Minhas costas bateram no asfalto com força, embora a queda
não chegasse a um metro. Rapidamente, juntei os braços e as pernas ao
corpo, tentando ficar reta como uma vareta enquanto o veículo rugia por
cima de mim, as rodas enormes passando tão perto de minha cabeça que o
deslocamento do ar fez meu cabelo voar. Quando o veículo se afastou,
expondo-me sob a luz brilhante do sol, rolei até a sarjeta, me escondi atrás
de uma árvore e olhei para trás, em direção aos portões do complexo.

No alto do muro de concreto, com o céu azul e as nuvens de algodão
atrás de si, uma garota estava pendurada no arame farpado, com os braços
pendendo sobre a proteção.

Um guarda se ergueu por trás da parede, subindo pelo que devia ser a
escada que ela usara para chegar até ali. Ele subiu até o topo do muro e
andou em direção a ela.

Sara olhou para mim e viu que eu conseguira escapar do complexo.
Ela levou a mão direita até o peito, colocando o punho fechado sobre o
coração.

Ela não estava tentando escapar. Fizera tudo aquilo para criar uma
distração. Para me proteger.

Eu repeti o gesto dela, fechando o punho sobre meu coração.

Aguente firme, Sara.

Seu rosto, marcado pelos hematomas, demonstrava dor e cansaço,
mas um sorriso inacreditável iluminou suas feições. Era contagioso, e
meus lábios se recurvaram um pouco para cima também. Ela me
transmitia segurança.

Ela colocou o pé no arame de proteção e ergueu o corpo. Ela
pretendia pular para o outro lado do muro. Não! Para onde ela iria? Ela
poderia correr pelo alto do muro, mas eles a pegariam.

O guarda ficou paralisado, a poucos metros dela. Gritou para que ela
parasse. Ela continuou a escalar.

Ele sacou seu Zip Taser e apontou para ela. Estava perto demais.

Vi a luz azul se projetar do cano da arma e perfarar aquele corpo
franzino. Ela retorceu o rosto em agonia e o corpo se curvou com a doL O
grito excruciante de Sara sobrepujou o estalido metálico do Zip Taser.


Meu estômago se revirou dentro de mim e eu cobri a boca com as mãos
para não gritar.

O guarda não me viu, ainda escondida atrás da árvore. Ele se
aproximou de Sara.

O pescoço e um lado do rosto da menina estavam enegrecidos pelo
Zip Taser. Ela abriu os olhos e olhou em minha direção. Uma expressão de
surpresa lhe cruzou o rosto, como se alguém houvesse feito uma
brincadeira de mau gosto com ela. Seus olhos ficaram vidrados e depois
ela os fechou.

Ela tombou para a frente, com a cabeça pendendo em direção ao
chão. A única coisa que prendia seu corpo ao muro era o arame farpado.

Sara, não! Não caia!

Mas seu corpo, repentinamente, parecia vazio. Sem forças.

O guarda pressionou os dedos contra o pescoço de Sara. Em seguida,
olhou para outro guarda que estava no topo da escada e balançou a cabeça
negativamente. O primeiro guarda se moveu devagar, envolvendo os braços
ao redor dela com cuidado, afastando-a do arame farpado. Ele levou o
corpo até o segundo guarda, que a carregou para baixo.

Continuei escondida atrás da árvore, observando-a pelo tempo que
pude, até que ela desapareceu de vista.




























26



















U
ma sensação de entorpecimento se irradiava dentro de mim,
preenchendo meus braços, minhas pernas, meu peito e meu rosto. Sara
estava morta. A pequena Sara. Morta. Eu me sentia colada àquele lugar,
com a sensação de que nunca mais voltaria a me mover. Foi quando um
som forte repercutiu por meu corpo, como um mau pressentimento — o
motor de um helicóptero que alçava voo, subindo sobre o gramado da
instituição. Meu cabelo se desgrenhou com a subida da aeronave, que
apareceu por cima da cerca, ascendendo lentamente. Acompanhei a
subida com os olhos fixos na parte de baixo daquele enorme inseto preto.

Meus instintos de sobrevivência entraram em ação e disparei pela rua.
Passei por uma casa coberta por tapumes e entrei em um beco lateral.
Pressionei meu corpo contra uma porta de garagem desgastada, com o
peito arfando, O helicóptero do Velho reapareceu, pairando no espaço

Ele me vira? Seria melhor correr? Ou continuar onde eu estava? Eu
sabia que o piloto não conseguiria pousar entre as casas daquela área.
Mesmo assim, eles poderiam acionar os guardas pelo rádio. Decidi que
continuaria a andar. Corri por entre os becos e ruas transversais. Os
residentes me viram, mas eu ainda estava disfarçada com o uniforme de
jardineira, graças a Sara. Pobre Sara. Corri mais rápido, para longe da
instituição. Enquanto meus pés pudessem se mover, eu continuaria viva.

O helicóptero retornou, como um inseto faminto. Continuei andando,


esgueirando-me contra paredes ou árvores, qualquer cobertura que eu
conseguisse encontrar. Olhei para cima. Ele não desistiria.

Vi cabos elétricos cruzando o céu alguns quarteirões à minha frente.
Corri naquela direção, esforçando-me ao máximo para permanecer
escondida. O inseto preto me seguia. Quando cheguei à origem dos cabos,
uma subestação elétrica, mergulhei debaixo de uma caminhonete. O
asfalto arranhou a palma da minha mão. Eu sabia que o helicóptero não
conseguiria sobrevoar a área, com os cabos perigosos cruzando o céu acima
de mim.

Ele desistiu da perseguição, uma vespa que não conseguiu encontrar
ninguém para picar. Observei o helicóptero se afastar

Eu caminhei, caminhei, caminhei, até que os chinelos se
despedaçaram. Arranquei-os dos pés e caminhei um pouco mais,
pensando em Sara a cada passo.

Enxuguei os olhos com as costas da mão. O que acontecera enquanto
eu estava debaixo do veículo? Senti um aperto no estômago ao tentar
compreender. Sara provavelmente percebera que o guarda do portão
verificaria a parte de baixo do veículo. Assim, ela usara sua coragem para
distrair todos os que estavam ali e correra em direção à escada, à vista dos
guardas e da própria Beatty. Fizera aquilo por mim. Sacrificara-se por
mim, porque sabia que eu tinha que encontrar meu irmão.

E os guardas atiraram nela.







Quando cheguei à casa de Madison, apertei várias vezes a campainha, mas
ela não estava lá. Eu chegara tão longe e ela não estava lá. O efeito do
spray analgésico já havia passado e meu rosto, marcado pelos pontos
cirúrgicos, latejava. Encostei-me contra a porta e deslizei até o chão,
enrodilhando-me ao redor de mim mesma na varanda, onde acabei
adormecendo. Estava começando a escurecer quando ela chegou e me
acordou.

— Callie. O que você está fazendo aqui? — Madison se curvou sobre


mim, com os cabelos loiros caídos por cima do rosto. — Não vi seu carro.

Ela me ajudou a levantar e olhou para o disfarce de jardineira que eu
usava.

— Que roupas são essas? Algum novo estilo adolescente?

Madison abriu a porta e eu entrei no hall, ficando sob as luzes. Ela
finalmente viu meu rosto maltratado, os pontos e os outros ferimentos.

— Meu Deus! O que aconteceu com você?

— Madison, preciso lhe contar a verdade. Não sou uma inquilina. Sou
uma adolescente de verdade. Uma doadora. E tenho muitas coisas a lhe
contar sobre a Prime.

— Você é... uma adolescente?

— Sou.

— Não é velha por dentro, como eu?

Balancei a cabeça. Ela me olhou fixamente por alguns momentos, sem
qualquer expressão.

— Quer dizer que, durante todo esse tempo...

— Desde que nos conhecemos, naquela noite em que fomos ao Club
Rune — eu disse, com a voz fraca.

— Não é de admirar o fato de que você falava como se fosse uma
jovem. Você é jovem. Mas por que diabos fez isso?

Eu estava me sentindo esgotada. Cada parte do meu rosto doía.

Meus pés doíam. Tudo que eu queria fazer era cair no sono
novamente e dormir por um milhão de anos.

— Porque eu precisava fazer.

Ela enlaçou seu braço ao meu, ajudando-me a continuar em pé.

— Eu lhe darei alguns analgésicos e um bom banho quente. Depois, é
melhor você se sentar e me contar tudo.







Uma hora mais tarde, depois que consegui contar tudo que havia
acontecido a Madison, nós concordamos que eu deveria entrar em contato
com Lauren. Tomei banho e vesti roupas limpas que Madison me deu. Eu


ainda tinha hematomas, meu rosto estava inchado e eu perdera um dente
na briga, mas estava me sentindo quase humana. Não muito tempo depois,
a campainha tocou e Madison voltou acompanhada de uma mulher
elegante e esbelta usando um terno escuro e um colar de pérolas.

— Olá, Callie. — A mulher estendeu a mão para me cumprimentar.

— Você me conheceu como Reece, mas é assim que eu sou na
realidade.

— Lauren — eu a cumprimentei. Ela devia ter uns 150 anos e era tão
graciosa quanto eu imaginei que fosse.

Um homem idoso que vestia paletó e gravata a acompanhava.

— Este é meu advogado, o sr. Crais. Ele também era o advogado de
Helena.

Madison o cumprimentou com um breve aceno de cabeça, já que era
a primeira vez que conversava com eles. Em seguida, pediu licença.

— Vou trazer bebidas.

Estávamos sentados na sala de estar. Lauren gemeu quando seus
olhos examinaram o meu rosto.

— Quem fez isso com você?

— Foi só uma briga.

— A vida na instituição é tão dura assim? — perguntou Lauren.

— Não — eu disse. — É bem pior.

Olhei para eles. Não havia como explicar tudo agora.

— É mais ou menos assim: prefiro morrer a ter que voltar para lá.

— Não se preocupe, isso não acontecerá. Fiquei feliz quando você me
ligou. Estávamos tentando encontrá-la.

— Estavam?

— Desculpe-me pelo que aconteceu na última vez que conversamos.
Você precisa entender que fiquei chocada com a notícia sobre a morte de
Helena.

—Eu sei.

— Ainda não posso explicar tudo — disse ela, trocando um olhar com
o advogado —, mas Helena era minha melhor amiga. E eu queria entrar
em contato com você porque, agora, sei que ela acreditava em você.


Perguntei a mim mesma o que aquilo poderia significar. Helena
enviara alguma mensagem a ela durante um dos momentos em que eu não
tivera o controle de meu corpo?

— Assim, nós traçamos um plano — disse ela.

— Nosso argumento é que Lauren estava no processo de adotá-la
quando você foi levada à instituição — disse o advogado. — Portanto, você
não é propriedade da instituição. E, por conseguinte, eles não podem
transferi-la para a Prime Destinations.

— Embora você esteja envolvida em um ato criminoso...

— Supostamente — interrompeu o advogado.

— Supostamente — repetiu Lauren. — Se você já estivesse adotada
naquele momento, meus auxiliares jurídicos teriam lhe dado assistência.
Esse benefício lhe foi negado.

— Essa manobra a manterá legalmente longe das garras da instituição
e do banco de corpos— disse o advogado.

— Quer dizer que estarei sob sua guarda? — perguntei a Lauren.

— Você terá a liberdade que quiser. Sou apenas um nome no papel.

Senti uma pontada de decepção. Aquilo era uma estupidez. Por que
Lauren deveria carregar o fardo da minha adoção? Ela mal me conhecia.

Ter minha guarda no papel era o bastante para ela.

— O objetivo é mantê-la fora da instituição para que você tenha a
liberdade de fazer o que quiser — disse o advogado.

— O que eu quero é salvar meu irmão mais novo — eu disse. — Acho
que a única maneira de fazer isso é levar o banco de corpos à justiça.

— Era isso que queríamos ouvir — disse Lauren.







Começamos a trabalhar, Lauren e seu advogado, Madison e eu. Tive a
ideia de criar um comunicado nos mesmos moldes do anúncio da Prime
Destinations ao qual assistira. Não tentaríamos duplicar o Velho, mas era
possível copiar digitalmente os rostos de Tinnenbaum e Doris a partir do
comunicado original. Em seguida, colocaríamos as palavras que


gostaríamos de dizer em suas bocas.

Madison se ofereceu para criar o anúncio usando as habilidades de
gerente de produção que desenvolvera havia algumas décadas. Ela fez
alguns telefonemas e reuniu uma equipe de Enders especialistas em
tecnologia audiovisual, que transformou sua garagem para cinco carros em
um estúdio. Contratou também dois especialistas em computação para
invadirem o sistema, de modo que pudessem fazer uma transmissão para
os assinantes do canal privado da Prime. Tudo aquilo seria uma proeza de
grandes proporções, mas a polpuda conta bancária de Madison poderia
financiar os especialistas e o equipamento. De alguma forma, ela queria
compensar todos os aluguéis que fizera no banco de corpos.

Eu descobri uma faceta de Madison que realmente não conhecia, que
não era tão fútil quanto parecia.

Enquanto isso, Lauren e seu advogado usavam seus telefones
celulares para alcançar todos os seus contatos. O advogado tinha um bom
relacionamento com o senador Bohn e esperava que ele pudesse se
envolver no caso. Ele era o adversário político de Harrison.

Naquela noite, a sala de estar ficou cheia de avós cujos netos,
doadores do banco de corpos, haviam desaparecido. Mas fazer com que
todos concordassem com o mesmo plano foi uma tarefa tão árdua quanto
produzir o anúncio.

— Temos uma enorme quantidade de recursos nesta sala — disse
Lauren. — Temos milhares de anos de experiência: médicos, advogados,
um fisiculturista, até mesmo um ex-inspetor. E temos reservas financeiras
enormes. Agora que Callie conseguiu reunir todas as informações, nós
finalmente temos uma chance de recuperar nossos familiares.

Um dos idosos se levantou.

— Não queremos criar tumulto. Nosso neto ainda está em algum
lugar. Está vulnerável.

Uma mulher magra que estava ao lado daquele senhor falou:

— Se eu tiver que esperar mais um mês para conseguir recuperá-lo,
esperarei. Precisamos da cooperação da Prime para encontrar nossos
netos.


Eu me coloquei à frente de Lauren.

— Vocês não entendem. Eu vi o anúncio da Prime. Eles estão dando
início a um programa de permanência. Seus netos serão comprados, não
alugados. Vocês nunca mais conseguirão vê-los se não conseguirmos parar
com isso.

O advogado tomou a palavra.

— Temos alguns clientes da empresa a nosso lado, como Lauren, e
isso permitiu que assistíssemos à transmissão privada. Esse anúncio
admitiu a intenção da Prime de dar início ao programa de permanência.
Lauren o gravou e nós enviamos uma cópia ao senador Bohn. Se ele puder
usar o vídeo e conseguir que um juiz aprove um mandado de segurança,
isso pode anular o contrato do presidente com a Prime. Se o juiz
determinar que há vidas em perigo iminente e imediato, podemos fechar
aquela empresa.

— E se ele não puder? ---perguntou a mulher magra. — E se eles
disserem que o anúncio original foi adulterado, assim como esse que vocês
estão produzindo?

Naquele momento, Madison entrou na sala de estar. Os idosos
resmungaram ao ver seu corpo perfeito de adolescente.

— Ela é uma inquilina! — gritou um deles, apontando para Madison.

— Tem razão, querido — disse Madison com um movimento de
cabeça, agitando os cabelos loiros em um corte chanel. — Inquilina, não
proprietária.

Fui até Madison e coloquei meu braço ao redor de seu ombro.

— Ela está do nosso lado. E está gastando uma fortuna para impedir
que a Prime continue a agir.

As pessoas continuaram a vociferar. Lauren ergueu as mãos.

— Por favor. Não queremos brigar com inquilinos. Se quisermos ter
uma chance de forçar a Prime a fechar as portas, teremos que cooperar.
Temos que trabalhar rapidamente para conseguir seus netos de volta,
aproveitando o elemento-surpresa.

— Tenho uma ideia — eu disse, olhando para a mulher magra. — O
especialista que alterou meu chip pode testemunhar. Ele examinou meu


chip e disse que seria impossível removê-lo, que o implante seria
permanente. Isso prova que eles sempre tiveram a intenção de transformar
o programa em algo permanente.

O advogado cruzou os braços e concordou com um gesto de cabeça.

— Isso certamente ajudará.

O telefone de Lauren tocou. Ela olhou para a tela.

— É o senador Bohn.

Lauren posicionou o telefone perto de uma pequena aerotela em uma
mesa de centro. A imagem do senador Bohn apareceu para que todos
pudessem vê-lo. Bohn tinha um rosto gentil e um sorriso amistoso.

— Senador Bohn, o senhor está aparecendo em nossa aerotela —
disse Lauren. — Como pode ver, temos um grupo de avós preocupados
aqui.

— Obrigado por me notificar sobre seu progresso, Lauren. E eu quero
agradecer à sua corajosa doadora, Callie Woodland, por expor a Prime.

Eu sorri educadamente, mas ainda teríamos um longo caminho pela
frente.

— A todos os avós que estão reunidos, obrigado por sua presença.
Trabalhando juntos, nós conseguiremos forçar a empresa a encerrar suas
atividades e recuperar seus netos, cada um deles. Todos eles.

Olhei para o rosto dos avós. A presença do senador, mesmo que
apenas em uma aerotela, estava ajudando a unir a tropa. Era o poder de
um político carismático.

— Estarei com vocês em cada passo do caminho. Podemos conseguir
— disse o senador. — Vamos trazê-los de volta.

Um avô, que estava quieto até o momento, repetiu as palavras do
senador.

— Vamos trazê-los de volta — disse ele, solenemente.

No outro lado da sala, uma mulher se levantou.

— Trazê-los de volta.

Murmúrios de concordância ecoaram pela sala.

Madison, Lauren e eu nos entreolhamos de maneira significativa.
Talvez conseguíssemos fazer com que o plano funcionasse.






Os avós saíram com suas instruções. O senador Bohn disse que, na manhã
seguinte, já saberia se o juiz concederia o mandado de segurança.
Acompanhei a equipe de produção tentando alterar os movimentos dos
lábios de Tinnenbaum para que sua boca combinasse com as novas
palavras que estavam tentando fazer com que ele dissesse. Não estava
funcionando.

— É diferente quando o personagem que fala é um bebê ou um
cachorro. Com um adulto, é preciso fazer com que a animação pareça
autêntica — dizia Madison à sua equipe. — Não funcionará se as pessoas
não acreditarem que o anúncio é autêntico.

A equipe de hackers que tentava quebrar a proteção do canal privado
de transmissão estava tendo ainda mais dificuldades. Eu não compreendia
os pormenores, mas, aparentemente, eles tiveram um problema técnico
quando chegaram a um firewall inesperado, com tecnologia Vulcan, que
fritou alguns de seus equipamentos. Madison fez questão de lembrá-los de
que todo o trabalho da equipe não serviria para nada se não conseguissem
descobrir como levar aquela mensagem aos assinantes.

Saímos do estúdio e deixamos que eles trabalhassem enquanto eu
levava Lauren e seu advogado ao laboratório de Redmond. Não
conseguimos descobrir seu número de telefone e, assim, tivemos que
chegar sem aviso. Já era quase meia-noite.

Enquanto percorríamos o trajeto na limusine de Lauren, abri a bolsa
que Madison me dera para ver se havia um espelho, mas não encontrei
nenhum. Pedi que Lauren me emprestasse um. Ela hesitou e, em seguida,
pegou um espelho compacto de maquiagem.

Acendi uma luz por cima do ombro. Assim que olhei para o espelho
eu entendi o motivo daquela hesitação. Minha aparência estava estranha.
Partes do meu rosto ainda eram o trabalho impecável da equipe de estética
do banco de corpos. Entretanto, eu tinha um olho roxo, vários hematomas,
um corte imenso que ia do queixo até a bochecha e, se eu puxasse o canto
da boca com um dedo, veria o dente que estava faltando.


— Quer um pente? — perguntou ela.

— Por que eu deveria me incomodar? — Eu fechei o estojo com o
espelho e o devolvi a Lauren.

— Podemos consertar tudo isso — disse ela.

— Vamos consertar as coisas mais importantes antes.

Tudo estava funcionando porque todos os envolvidos queriam alguma
coisa. Lauren queria encontrar seu neto desaparecido. Eu queria encontrar
Tyler e colocar Michael de volta em seu próprio corpo. O senador Bohn
queria prejudicar a imagem do senador Harrison, expondo a verdade sobre
a negociação entre o banco de corpos e o governo, e o advogado estava ali
pelo dinheiro.

Eu não sabia se aquilo daria certo. Se um componente estivesse
errado, se as pessoas não acreditassem no anúncio ou se os especialistas
em computação não conseguissem quebrar a proteção do canal para
transmissões privadas, tudo desmoronaria. Mas o que Lauren, aqueles
avós e eu estávamos buscando era importante demais para nós. Não havia
outra escolha.

Quando chegamos ao armazém de Redmond, percebemos
imediatamente que havia algo errado. Luzes fortes iluminavam a estrutura
e duas viaturas dos inspetores bloqueavam a entrada. Um grupo de pessoas
que morava nos arredores estava por perto, assistindo a tudo, boquiabertos.
Corri para fora da limusine, com Lauren e o advogado no meu pé.

Havia fumaça no ar, mas eu não conseguia ver o armazém de
Redmond de onde eu estava. Um inspetor Ender com cabelos brancos e
curtos nos impediu de prosseguir.

— Acesso proibido, pessoal — disse ele.

— O que aconteceu? — perguntou Lauren.

— É o que estamos tentando descobrir — disse o inspetor. — Por
favor, afastem-se.

Um Ender que vestia um macacão e segurava um cão por uma coleira
se aproximou.

— Algum moleque jogou uma bomba no lugar. Eles não têm nada
melhor para fazer do que destruir aquilo que nós construímos.


Enquanto o inspetor estava distraído pela conversa com o Ender, corri
em direção ao prédio de Redmond.

— Ei, você! Pare! — gritou o inspetor.

Eu dei a volta ao redor do complexo e fiquei atordoada com o que vi.
O prédio estava em pedaços, bastante enegrecido. Um dos cantos do
telhado desaparecera completamente, como se algum monstro gigante
houvesse arrancado aquele pedaço da estrutura com os dentes. Bombeiros
Enders estavam examinando os destroços chamuscados.

Ouvi a voz dos bombeiros dentro do armazém, conversando sobre os
estragos. Entrei correndo.

— Ei, saia daqui. O lugar não é seguro — gritou um deles.

Dentro do armazém tudo estava carbonizado: todos os monitores e
máquinas, até mesmo aqueles que ficavam pendurados no teto. O cheiro
de peças de computador derretidas era insuportável. Eu cobri o nariz com
a manga da camisa. Ainda era possível ver água escorrendo pela cadeira de
Redmond, queimada e despedaçada. Parecia algum tipo de obra de arte
conceitual. O cenário era aterrorizante, um amontoado de coisas
enegrecidas e úmidas.

— Onde está Redmond? — eu perguntei. — O homem que mora
aqui?

— Não encontramos nenhum corpo — um dos bombeiros olhou em
volta, levantando as mãos. — Ainda.

Redmond era valioso demais para morrer. E inteligente demais para se
deixar capturar. Eu estava apostando que ele havia escapado e se
escondido em algum lugar. Não conseguiríamos que ele testemunhasse.

Foi quando eu me lembrei da caixa.

Os bombeiros estavam ocupados fazendo medições de calor no outro
lado da sala. Eu me abaixei e pressionei os dedos contra o sensor na
gaveta. Tossi para encobrir o pequeno ruído que a trava produziu. Olhei
para dentro e usei a barra da minha jaqueta para puxar a pequena caixa
metálica. Era leve e estava fria ao toque. Eu vi que ele havia trocado a
etiqueta de ‚Helena‛ para ‚Callie‛.

Enfiei discretamente a caixa em meu bolso.


Antes que algum dos bombeiros me acompanhasse até a saída, eu fui
até a porta. Parei ali e dei uma última olhada no laboratório. Eu não
conhecia Redmond realmente, já que só conversáramos uma vez, mas
sentia que ele era um dos responsáveis por minha existência, se é que isso
era possível. Ele era importante para mim. Doía-me ver todo o seu trabalho
destruído daquela maneira.

Voltei para junto de Lauren e do advogado, que esperavam fora do
prédio, no reflexo da luz vermelha das viaturas.

— Disseram que viram um garoto fazer isso — falou o advogado.

— Sim, algum garoto com um idoso assassino dentro de si — eu
disse. — Duvido que o banco de corpos não esteja envolvido.

O medo tomou conta da expressão de Lauren. Eu esperava que isso
não a fizesse hesitar em relação a nosso plano.

— Roubaram alguma coisa? — perguntou o advogado.

— Não sei. Mas tenho uma coisa que nos ajudará — eu disse,
tocando o tecido de meu bolso.

— O que é?

— Uma chave de computador. Tem as anotações de Redmond sobre
meu chip e sobre como ele descobriu que a instalação era permanente e
irreversível.

— Excelente — disse o advogado. — Bom trabalho.

Ele estava feliz. Mas eu me sentia horrível pelo que acontecera a
Redmond. Será que eu havia atraído a Prime até ele? Seria minha culpa?
Primeiro Sara, agora Redmond. Quem mais teria que sofrer por minha
causa antes que tudo estivesse acabado?


















27



















N
o dia seguinte eu fui até o banco de corpos, como se estivesse revivendo
um pesadelo. Pensara várias vezes naquele lugar, com muita ansiedade e
medo, imaginando se Helena estaria lá dentro, ou meu irmão, ou o Velho.
Quando pensava naquilo, eu sentia medo. Helena dissera que eles me
matariam; portanto, eu fizera o possível para permanecer longe daquele
lugar.

Dessa vez, era diferente. Dessa vez, eu estava preparada. Dessa vez,
eu tinha reforços.

Mas eles estavam a distância, como planejado. Dentro do meu bolso,
havia um pequeno dispositivo de alerta costurado ao tecido, com a metade
do tamanho de um grão de arroz. Havíamos planejado uma aproximação
em três estágios. E o primeiro estágio envolvia apenas uma pessoa: eu.

Quando me aproximei das portas duplas, o sorriso do porteiro se
desfez. Sua boca se curvou ainda mais para baixo, transformando-se em
uma expressão sisuda conforme eu me aproximava. Ele parecia estar
assustado. Provavelmente por causa do meu rosto escoriado e pelos pontos
cirúrgicos, ou porque me reconhecia.

Talvez eu estivesse ficando famosa. Quase ri.

Eu mesma tive que abrir a porta, já que a única coisa que o porteiro
fazia era olhar fixamente para mim. Continuei a encará-lo, olhando em
seus olhos, mesmo enquanto passava pelo portal.


Assim que entrei no saguão, outro guarda se aproximou e passou um
detector de armas a meu redor. Meu dispositivo de alerta fora planejado
para não ser detectado.

— Não trouxe nenhuma arma. Só minha boca grande — eu disse.

O guarda se deu por satisfeito.

O ar. Tinnenbaum saiu correndo de seu escritório e apontou para
mim.

— Peguem-na!

O guarda agarrou meus braços e torceu-os para trás de minhas costas,
imobilizando-me.

— Estou vendo que já voltou a seu corpo original — eu disse a
Tinnenbaum. — Qual é o problema? Ficou entediado com o corpo de
Lee?

Ele fez uma careta. Eu arregalei os olhos, fingindo inocência.

— Sabe, na primeira vez em que estive aqui, as pessoas eram bem
mais sorridentes.

Doris saiu de seu escritório.

— O que você está fazendo aqui?

— Ah, Dons. Esse rosto fica muito melhor em você do que o de
Briona — eu disse.

—Por falar em rostos... — Ela apertou os dois lados de meu rosto com
as mãos — Veja o que você fez com a cara que lhe demos. Jogou todo o
nosso trabalho na lata do lixo.

Afastei a cabeça das mãos dela.

— Só falta Rodney aparecer para o trio ficar completo.

Tinnenbaum se aproximou de mim.

— Você está horrível. O que quer aqui?

— Quero ver o chefão — eu disse. — O Velho.

Doris e Tinnenbaum se entreolharam. Ela balançou a cabeça. Sua
reação, com a leve demora, apenas confirmou o fato de que ele estava ali.

Eu sabia o que eles não sabiam: o Velho estava louco para falar
comigo.

— Eu aguardo — eu disse a eles.






Quinze minutos depois, o guarda e Tinnenbaum me escoltaram até um
elevador e por entre um corredor longo e sinuoso. Não parecia o caminho
que levaria ao escritório do diretor de uma empresa. Eu parei.

— Para onde vocês estão me levando? — perguntei.

— Você disse que queria vê-lo — respondeu Tinnenbaum.

— O escritório dele fica aqui?

— Ele gosta de fazer as coisas à sua própria maneira.

Eu não estava gostando nada daquilo. Após algum tempo, chegamos
até uma porta de metal. Tinnenbaum se dirigiu a um painel invisível na
parede.

— Estamos com ela, senhor.

A porta se abriu, desaparecendo para dentro da parede. O lugar estava
escuro, quase completamente enegrecido, mas uma pequena luz instalada
no teto brilhava sobre nós enquanto estávamos sob o batente da porta.

— Entrem — disse a voz. Reconheci a voz metálica e sintetizada do
Velho.

— Senhor? — disse Tinnenbaum.

— Soltem-na.

O guarda tirou as mãos de cima de mim.

— Estaremos aqui fora — disse Tinnenbaum.

A porta se fechou atrás de mim, deixando o ambiente ainda mais
escuro. Ouvi o som de passos. Pareciam estar muito longe. A sala
provavelmente era enorme, maior do que qualquer escritório ou sala de
conferências. Antes de mais nada, eu vi um ponto de luz, como um farol
luminoso e inquietante, do outro lado da sala. Conforme a luz se
aproximava, percebi que era a máscara eletrônica que o Velho usava. O
rosto mostrado ali não era humano.

Era a cabeça de uma cobra. Com escamas reluzentes e imensos olhos
escuros. Uma língua bifurcada preta e vermelha fazia movimentos rápidos.

Meu coração batia com tanta força que quase chegava a doer. Enfiei a
mão no bolso e apertei o alarme silencioso para informar os outros de que


eu havia tirado o Velho de sua toca. Agora, tudo o que eu precisava fazer
era ganhar tempo.

— Por que decidiu vir agora? — perguntou ele. — Você poderia ter
vindo no outro dia, junto com os outros meninos e meninas.

— Vim oferecer uma troca.

— Troca? Que tipo de troca? — A cobra abriu a boca, exibindo suas
presas.

As imagens do Velho foram escolhidas para me assustar. Lutei para
que minha voz continuasse firme.

— Minha vida pela vida do meu irmão.

— Tyler?

— Sim. — Esperei pela reação do Velho para confirmar minha
suspeita de que Tyler estaria por perto.

— Não sei se essa é uma boa ideia. Como terei a garantia de que você
não fugirá?

— Tenho certeza de que você descobrirá uma maneira de me prender.

O rosto na máscara repentinamente se transformou, mostrando uma
mulher em extrema agonia. Aquilo me tirou o fôlego. Ele riu.

— Quem é essa pessoa? — eu perguntei. A mulher estava aos
prantos, desesperada.

— Apenas uma senhora muito triste. Acho que alguém matou seus
filhos — disse ele. — Talvez até mesmo seu marido.

— Isso é horrível — sussurrei.

— Mas nós não estávamos falando a respeito dela. Estávamos falando
sobre Tyler.

Eu estremeci ao ouvir aquela voz metálica mencionar o nome de Tyler
outra vez.

— Se você me disser onde ele está e eu puder vê-lo, troco minha vida
pela vida dele.

— Seu corpo pelo dele?

— Isso mesmo.

— Não me parece muito justo. Tyler é mais jovem.

— Mas ele não é um garoto saudável.


— Sim, é verdade.

O rosto se transformou no de uma mulher que fora mandada para a
prisão por envenenar sua família.

— Pode parar com isso? — eu pedi.

— Eu gosto do seu atrevimento, Callie. Aceito sua oferta.

— Aceita?

— Sim. Mas não trarei Tyler até aqui. Você terá que confiar em
minha palavra.

Agora era minha vez.

— Isso não me parece muito justo.

— Não acho que ‚ser justo‛ chegou a entrar na conversa.

— Entrou, sim — eu disse. — Você foi o primeiro a mencionar isso.

— Você é inteligente. Eu admiro isso.

— Você terá que me dar alguma coisa.

— O quê? — perguntou ele. — O que você considera justo?

— Tire essa máscara — eu disse, tranquilamente.

Ele ficou em silêncio por um momento. O rosto da mulher pareceu
congelar.

— Tirar a máscara?

— Sim — respondi, pressionando-o. — Deixe-me ver seu rosto
verdadeiro.

Ele mudou o rosto para o de um mímico famoso, com a maquiagem
característica.

— Aqui está.

— Duvido que seja assim.

— É o melhor que você conseguirá.

— Então, não tem acordo.

Ele ficou em silêncio por alguns momentos. Quando voltou a falar,
sua voz parecia mais firme.

— Não preciso fazer um acordo com você.

— Mas existe uma diferença: eu mantenho a minha palavra. Assim, se
chegarmos a um acordo, ficarei aqui por minha própria vontade. Para
sempre. Eu, em troca de um irmão que não posso ver e uma única olhada


em seu rosto. Isso será tudo.

— Você ainda não percebeu que está em desvantagem aqui, em
minha empresa, com funcionários leais a mim a seu redor — disse ele,
olhando para o chão. — Está fazendo isso porque realmente o ama tanto
assim? — perguntou ele.

— Sou tudo o que ele tem.

Todos os rostos que eu vira antes correram pela superfície da máscara,
em uma rápida sucessão, da direita para a esquerda. Em seguida, de cima
para baixo, deslizando pela máscara. Em seguida, todos os fragmentos se
misturaram, e outros rostos surgiram por frações de segundo: um
criminoso de guerra, um assassino em massa, uma vítima de queimaduras
e uma mulher que chorava por causa de uma dor indescritível.

Ela se dividiu em quadrantes e finalmente se agitou e girou, até se
tornar uma mescla horrível de agonia, ainda mais horripilante devido ao
silêncio esmagador daquela sala. Minha respiração entrecortada era a
única coisa que eu conseguia ouvir.

— É isso que você quer, Callie? Quer ver quem eu sou realmente?

— Quem você realmente é, não uma montagem eletrônica.

— Quem eu realmente sou. — A voz dele parecia tranquila.
Resignada.

— Sim — eu expeli a palavra.

— Tudo bem.

A luz daquele rosto eletrônico se apagou lentamente até se
transformar na escuridão que me cercava, com um estalido metálico.

Eu esperei no escuro.


















28



















O
uvi as pegadas do Velho se aproximando, mas ele não falou nada. Estaria
a meu lado? Não havia qualquer som de respiração. Foi quando eu
percebi. O som das pegadas não era real. Eram sons eletrônicos,
sintetizados, como sua voz. Aquele era um homem que brincava com
ilusões; ele não estava realmente vindo em minha direção.

Havia se afastado.

Só havia eu e o silêncio sepulcral na escuridão. Recuei em direção a
um sensor de luz que avistei ao entrar na sala e o pressionei com a palma
da mão. As luzes se acenderam em lugares específicos, iluminando áreas
vazias, provando que, sim, eu estava sozinha em uma sala enorme e vazia.

Eu me virei e vi um monitor instalado no alto de uma parede. As
imagens mostravam o caos no saguão. Uma equipe de inspetores estava
ocupando o lugar, efetuando prisões e algemando os funcionários do banco
de corpos.

Era hora do segundo estágio. Apertei o dispositivo de alarme em meu
bolso outra vez.

— Ele foi embora! — gritei.

Os dois inspetores que estavam me acompanhando a distância
entraram correndo na sala.

— Para onde ele foi? — perguntou o mais alto.

— Não sei. Não consegui ver.


A sala tinha três saídas além daquela atrás de mim. O Velho poderia
ter fugido por qualquer uma delas. O inspetor mais alto escolheu a
primeira porta, o outro homem foi para a segunda e eu abri a terceira. Vi
um pequeno corredor que levava a dois elevadores, O ruído baixo
significava que ambos estavam se movendo, mas não havia qualquer luz
para indicar se eles estavam subindo ou descendo. Pressionei o painel e
entrei no primeiro que surgiu. Fui até o piso da garagem subterrânea.

Corri para dentro da garagem escura, procurando pelo Velho. Vários
carros luxuosos estavam estacionados perto do elevador, e os carros menos
elegantes dos funcionários estavam parados nas vagas mais distantes.
Abaixei-me até o chão para procurar pelos pés do Velho atrás dos carros,
mas não consegui ver ninguém. Eu queria encontrá-lo e arrancar aquela
máscara de seu rosto, deixá-lo completamente exposto.

Parei e ouvi. Talvez ele estivesse escondido. Tive que segurar minha
própria respiração por um momento. Um som. Passos. Eu me virei e vi
alguém nas sombras, contra a parede, escondido atrás do capô de um
SUV.

Corri até lá. O lugar estava escuro. A figura correu para longe,
tentando se afastar, mas estava encurralada. Quando chegou até a parede
dos fundos, ele se agachou e se encostou.

Era Terry, o enfermeiro que usava delineador nos olhos.

— Querida, não deixe que me prendam — disse ele. — Eu não
conseguiria suportar a cadeia.

— Me ajude e verei o que posso fazer.

Coloquei a mão sob o cotovelo de Terry e ajudei-o a se levantar.

— Onde o Velho se esconderia?

— Ele não se esconderia. Simplesmente iria embora.

— Qual é o carro dele?

— Ele não usaria o carro — disse ele, dirigindo aqueles belos olhos
para cima. — Ele tem um helicóptero.








Terry e eu corremos pelas escadarias até o telhado. Eu estava furiosa
comigo mesma por não pensar no helicóptero antes.

— Eu sabia que esse dia chegaria. — A maquiagem preta escorria por
seu rosto.

— Por que não pediu demissão, então?

Passamos pela última porta, que levava até o telhado, e encaramos o
ar frio. O som estrondoso das hélices e o deslocamento de ar nos atingiram
no rosto como um tapa. Vimos o helicóptero com as formas arredondadas
de um inseto negro, a pouco mais de seis metros da superfície de pouso.
Ainda não havia decolado.

Vi o Velho através da janela de vidro recurvo, sentado atrás do piloto e
olhando para o outro lado. Corri até o helicóptero, abaixando-me para não
ser pega pelo movimento das hélices. O piloto fez um gesto para o Velho e
ele se virou em minha direção.

Seu semblante era como o de uma múmia de um holo de terror.

Subi em um dos esquis que sustentavam o peso da aeronave, agarrei a
maçaneta e abri a porta com força. O Velho estendeu a mão para fechá-la
e eu agarrei seu braço.

Com a outra mão, eu me prendi ao batente da porta enquanto puxava
a manga de seu casaco. Ao lado dele, jogado sobre o assento, havia alguém
enfiado em um saco. Não consegui identificar o tamanho da pessoa, nem
se era um homem ou uma mulher, nem mesmo se ainda estava vivo. Terry
estava atrás de mim, mas não conseguia se aproximar. Apenas eu estava
ali, lutando contra o Velho.

Eu puxei, tentando forçá-lo para fora do helicóptero. Consegui tirar
metade de seu corpo dali. Agarrei a borda da máscara que ele usava.

— O que você está escondendo? —eu gritei, suplantando o barulho
das hélices.

Ele se apoiava contra o batente da porta e tentava me empurrar com a
outra mão.

— Onde está meu irmão? — gritei, enfiando os dedos entre aquela
máscara e o rosto que havia abaixo.

Ele colocou o pé em minha barriga e empurrou. Eu aguentei firme.


O piloto sacou uma arma e a apontou para mim. Eu não podia fazer
nada. Estava morta.

Mas o Velho conseguiu desvencilhar o braço de mim. Não consegui
entender. Quando senti que ele se soltou, meu corpo ficou paralisado. O
Velho gritou alguma coisa para o piloto. Ele se concentrou nos controles
para erguer o helicóptero, e eu ainda estava em pé no esqui da aeronave.
Pelo canto dos olhos, vi que Terry acenava, mandando que eu pulasse.

Estávamos nos afastando do chão. Se eu ficasse ali por mais tempo,
teria que entrar no helicóptero. Dei um último puxão na máscara antes de
saltar. Consegui rasgá-la na lateral, mas ela continuou onde estava.
Enquanto eu caía, vi o Velho segurando a máscara contra o rosto e
fechando a porta.

Bati as costas contra o chão. Terry correu para me ajudar. Eu o afastei.
Não estava ferida, apenas furiosa e frustrada com aquele homem que
sempre conseguia fugir.

Lauren, o advogado e os dois inspetores que estavam comigo
chegaram ao terraço, mas era tarde demais. Enquanto eu observava o
helicóptero do Velho escapar, uma pergunta ainda me atormentava.

Seria Tyler quem estava naquele saco?







Voltamos para o caos que estava acontecendo no andar térreo do prédio.
Os outros inspetores haviam apreendido os funcionários e os colocado
contra a parede. Tinnenbaum, Dons e Rodney tentavam se defender,
protestando e exigindo que seus telefones fossem devolvidos para que
pudessem ligar para seus advogados, Os guardas, a recepcionista e alguns
outros empregados estavam sentados no chão, resignados Alguns
choravam. Trax, o especialista em computadores, estava sentado com a
cabeça entre as mãos. Uma enfermeira, aos berros, encarava um dos
inspetores. No meio de tudo aquilo, o senador Bohn conversava
diretamente com uma câmera, enquanto uma equipe de dois jornalistas
gravava suas declarações.


Fui até Tinnenbaum.

— Onde está meu irmão?

Ele balançou a cabeça. Avancei contra ele, mas o advogado me
conteve.

— Você sabe que o Velho gosta de guardar segredos — disse Doris. —
Nós lhe contaríamos se soubéssemos.

Um dos inspetores interveio. Antes que eu pudesse continuar a
pressioná-lo, os olhos de todas as pessoas se viraram para a porta principal.
Vários adolescentes com corpos esculturais entraram no prédio.
Expressões de confusão distorciam aquelas feições perfeitas.

Era o início do terceiro estágio.

— O que está acontecendo? — disse uma loira alta. — Recebemos
instruções para vir até aqui.

— Quem disse isso? — O senador apontou o microfone para o rosto
da loira.

— Ele — disse um garoto moreno, apontando. — Tinnenbaum.

— Não fiz nada disso — disse Tinnenbaum.

O idoso que alugava o corpo do garoto deu um passo à frente.

— Ah, sim, você disse. Uma transmissão privada chegou pelo canal da
Prime e vocês disseram que nós precisávamos voltar ao banco de corpos,
pois havia algo errado com nossos chips.

— Eu não paguei todo esse dinheiro para que minha aventura juvenil
fosse interrompida tão cedo — disse a loira. — Mas, se for algum tipo de
recall, é melhor resolvermos logo toda essa situação.

Olhei para Lauren. Ela sorria. Nossa transmissão falsificada havia
funcionado. Outros inquilinos chegavam ao saguão, enchendo o lugar. O
nível de ruído estava ficando insuportável enquanto os Enders ricos dentro
de corpos adolescentes exigiam respostas.

Um rosto familiar abria caminho por entre as pessoas. Madison.

Seus brincos de pingentes longos balançavam sob o cabelo loiro em
seu corte chanel enquanto ela se dirigia ao centro do saguão. Coloquei
meu braço ao redor dos ombros dela e olhei para o senador Bohn.

— Esta é Madison — eu disse ao Senador. — Foi ela que produziu o


anúncio.

O senador a cumprimentou.

— Onde está Trax? — perguntou Madison.

O especialista em computadores, um Ender alto com cabelos
desgrenhados se levantou, com as mãos algemadas.

— Vamos lá, gatão. Me leve de volta a meu corpo — disse ela.







Um inspetor soltou as algemas de Trax, mas continuou segurando seu
braço. Ele seguiu o especialista em computadores como se fosse uma
sombra enquanto conduzia alguns de nós pelos corredores até as entranhas
do banco de corpos. O grupo era formado por Madison, Lauren e seu
advogado, o senador Bohn e eu, e a equipe de reportagem estava logo atrás
de nós, gravando tudo que acontecia. Após a equipe, vinha a maioria dos
avós e um grupo grande e barulhento de inquilinos em seus corpos
adolescentes

Finalmente, chegamos a uma sala que eu nunca vira antes. Trax a
chamou de sala de espera. Era um grande espaço que lembrava uma UTI,
com uma central de enfermagem ao centro. A partir daquele ponto, várias
espreguiçadeiras se estendiam como as pétalas de uma flor gigante, com
um inquilino idoso deitado em cada uma delas. Provavelmente havia mais
de cem inquilinos naquele lugar, todos com os olhos fechados e tubos
inseridos na parte de trás de suas cabeças, conectando-os a um
computador.

Os enfermeiros ficaram chocados ao perceber nossa presença, mas
cooperaram, talvez motivados pela presença do senador e das câmeras.
Alguns dos inquilinos pareciam estar ali havia pelo menos dois meses, a
julgar pelo tamanho de suas barbas e cabelos. A faixa etária parecia ir dos
80 aos 150 anos.

Madison, com suas longas pernas, caminhou até uma mulher
corpulenta com cerca de 125 anos, que estava deitada de olhos fechados.
Como os outros inquilinos, ela usava uma camisola cirúrgica e um


cobertor colocado por cima das pernas, até a cintura.

Madison apontou para a idosa obesa e falou com Trax:

— Agora, seja um bom garoto e me coloque de volta em meu corpo
velho e gordo. Pode não ser grande coisa, mas, pelo menos, é meu.

Ele trouxe urna cadeira para que Madison se sentasse. Em seguida, foi
até o balcão central dos enfermeiros e pôs as mãos em um teclado vertical.
Ele apertou uma série de teclas, emitindo tons suaves. Olhei na mesma
direção em que ele olhava e vi um módulo circular de computador
pendurado diretamente acima dele, perto do teto. As luzes piscaram em
sequência por alguns momentos. E, em seguida, as luzes e os sons
desapareceram.

Todos pareciam estar prendendo a respiração, colocando a sala em um
silêncio quase absoluto. A mulher corpulenta na espreguiçadeira abriu os
olhos, Trax foi até onde ela estava e lhe tocou o ombro.

— Está tudo bem? — perguntou o técnico.

Ela balançou a cabeça para espantar o sono

—Nunca estive melhor — disse ela, aguardando até que ele
desconectasse seus tubos e cabos, e, logo depois, levantou-se.

— Olá, CalLIe, minha menina. Esta aqui é quem eu realmente sou.
Rhiannon.

Sorri para ela.

A verdadeira Madison, a doadora adolescente, estava deitada na
cadeira com os olhos fechados. Alguns espasmos lhe percorriam o corpo,
como se ela fosse um gato no meio de um pesadelo. Logo depois, ela abriu
os olhos. Estava desorientada, os cabelos loiros caídos por cima do rosto.
Ela ergueu o corpo até conseguir se sentar.

— Onde estou? — disse ela, com uma voz suave, olhando ao redor.

— Quem são essas pessoas?

Sua voz era reconhecível, mas diferente.

Rhiannon se inclinou para a frente e colocou a mão no ombro de
Madison.

— Está tudo bem, querida. Você está na Prime. Seu aluguel acabou.
Alguns dos inquilinos não gostavam da ideia de ver seus aluguéis


interrompidos antes do prazo contratado e estavam começando a se
manifestar. O senador, o advogado e Trax fizeram uma rápida conferência
e decidiram que a melhor e mais rápida solução seria desligar os aparelhos.

— Certo. Todos vocês, sentem-se no chão. Agora — disse o senador.
Apenas poucos Enders nos corpos adolescentes de aluguel obedeceram.
Trax executou a mesma sequência que usara um momento antes para
desligar Madison. Os adolescentes que não estavam no chão não
demoraram a desabar. Os corpos dos idosos começaram a se mover nas
espreguiçadeiras. O restante de nós foi ajudar os pobres doadores
adolescentes, que não faziam ideia do motivo pelo qual estavam
despertando no chão.

Examinei a multidão. Havia alguém que eu conhecia ali, perto da
saída.

Michael.

Ele estava a salvo. Eu me ajoelhei a seu lado.

— Michael?

Ele me olhou com uma expressão atordoada.

— Callie? — perguntou, apoiando-se em um dos braços. — O que
aconteceu com seu rosto?

Toquei meu queixo com os dedos.

— Encontrei alguns renegados bem malvados.

— Dói muito?

— Vou ficar bem.

— Onde estou? — Ele se sentou e esfregou a cabeça.

— No banco de corpos.

Ele finalmente percebeu onde estava.

— O banco de corpos... Meu aluguel acabou?

— Acabou. Totalmente. — Coloquei meus braços ao seu redor e o
abracei.

Ele me envolveu com seus braços, fazendo com que eu me lembrasse
da segurança que sentia quando estava a seu lado. Encostei meu nariz na
camisa que ele usava por alguns momentos. Eu poderia ficar assim para
sempre, mas estava preocupada com meu irmão. Se ele estivesse ali, eu o


encontraria.

Ajudei Michael a se levantar. Todos os doadores estavam de pé agora,
recebendo orientações.

Lauren se aproximou de mim com o senador Bohn. Ambos tinham
uma postura tensa.

— Não temos certeza de nada ainda, então não adianta ficar muito
animada. Mas acho que temos uma pista sobre o paradeiro de seu irmão
— disse o senador.







O senador e eu acompanhamos Trax e um inspetor que andavam a passos
rápidos por um corredor extenso.

— Eu não sabia que ele era seu irmão — disse Trax, balançando a
cabeça.

— E Florina? — eu perguntei. — Havia uma garota com ele?

— Não, só o menino — disse Trax.

Enquanto avançávamos, ele explicou a conversa que tivera com o
Velho naquela manhã. Ele queria saber se o procedimento funcionaria no
cérebro de uma criança. A discussão levara à pergunta sobre o tamanho do
cérebro em questão, e Trax examinara Tyler.

— Mas eu não sei se se ainda está lá — disse Trax, com uma
expressão séria. — A última vez que eu o vi foi às 7h30 de hoje. O Velho o
levava para vários lugares.

— Quem estava cuidando dele? — eu perguntei.

Trax deu de ombros.

— Vamos logo com isso. — Agarrei o braço de Trax e o puxei,
acelerando o passo.

Passamos por uma porta com os dizeres ‚entrada proibida‛ e
contornamos outras duas curvas, até chegarmos a um corredor curto, que
terminava em uma porta trancada sem quaisquer dizeres.

Trax agitou a palma da mão em frente a um sensor e a porta se abriu.
Eu quase o derrubei para entrar ali.


O lugar era um escritório sem janelas, com pouca mobília além de um
armário de arquivos e algumas mesas. Havia uma pequena cama dobrável
encostada à parede, com uma pilha de cobertores jogada por cima. Eu os
joguei no chão.

Não havia ninguém.

Caí de joelhos e cheirei os lençóis. Tyler estivera ali. O contorno de
seu corpo ainda era visível contra o lençol que cobria a armação de
madeira.

—Ele não está aqui — eu disse. — O Velho o levou. Aquele maldito
levou Tyler.

O inspetor examinou o lugar, verificando os armários e o banheiro,
abrindo gavetas. Era inútil e todos sabiam disso.

Comecei a chorar. Era impossível evitar. As lágrimas rolavam por meu
rosto. Fiz tudo que podia, tudo por ele. E ele havia desaparecido. Eu sabia
onde ele estava. Estava naquele helicóptero com o Velho. Eu estivera
muito perto e o deixara escapar.

— Ele estava aqui mais cedo. Estou falando a verdade — disse Trax.
Ele e o senador Bohn estavam em pé, olhando em direções diferentes.
Sentei-me na beirada daquela cama dobrável. Não importava o que as
pessoas pensassem ou se eu parecesse uma idiota com meu nariz
escorrendo. Não havia esperança. Eu me arrastara pelo chão, fizera tudo
que podia, e mesmo assim não fora capaz de encontrar meu irmão.

Pai, eu sei que prometi a você. Eu tentei. Juro que tentei.

Alguma coisa foi arrancada de dentro de mim à força. Ele estava
sozinho e assustado, enfiado dentro de uni saco. Com o Velho. Meu corpo
começou a tremer enquanto meus soluços ficavam mais fortes.

Trax estendeu a mão para me confortar.

— Eu lamento muito.

— Saia de perto de mim! — eu reagi, gritando com ele. Levantei-me e
tentei inspirar o ar. — Não há nada que você possa dizer que vá ajudar.

Todos vocês, que trabalham aqui nesse banco de corpos, todos vocês
são responsáveis. Como puderam fazer isso com ele? Ele é só uma criança.
Uma criança que nunca teve qualquer chance de ser criança.


Eu me virei, olhando para o senador Bohn.

— A culpa é de todos vocês, de todos os Enders. Por que não
vacinaram todos? Não estaríamos no meio dessa situação horrível se vocês
usassem seu dinheiro com o que realmente importa.

O senador parecia estar acometido pela dor. Ele colocou as duas mãos
ao redor da nuca.

O inspetor chegou, após examinar todas as salas, e fez um sinal
negativo para o senador Bohn.

— Ele não está aqui.

Havia algo naquelas palavras que vinham da boca de um inspetor...

Eu havia me escondido dos inspetores muitas vezes, observando,
esperando que não me encontrassem, ou a meus amigos, ou a qualquer
outro Starter. Entretanto, dessa vez, eu realmente tinha esperanças de que
eles pudessem encontrar meu irmão.

O problema, percebi, era que, se meu irmão o visse, ele não sairia de
seu esconderijo. Estaria morrendo de medo. E continuaria a se esconder.

Nós sempre nos escondíamos em lugares que os inspetores nunca se
preocuparam em revistar. Como no interior das paredes. Como em lugares
tão óbvios que ficavam em plena vista. Como acima do nível do chão.

Eu examinei a sala.

Os Enders me observavam com olhos desconfiados, como se tivessem
medo do que eu pudesse fazer. Olhei para o teto. Se meu irmão vira o
inspetor, mas não a mim, e não me ouvisse...

Fui até o banheiro e olhei para cima. Os Enders me seguiram,
aglomerando-se na entrada. A tampa do vaso sanitário estava fechada. Era
a primeira pista.

Pisei nela.

Os homens tombaram para a frente, como se fossem segurar meu
corpo para que eu não caísse. Subi sobre a pia. Vi marcas de dedos em um
dos painéis do teto e o afastei.

— Está tudo bem, Tyler — gritei para o forro do telhado. — Sou eu.

Levantei o painel e deslizei-o para o lado. Tyler espiou pela fresta,
como uma raposa assustada.


— Callie?

Meu coração quase pulou para a garganta.

— Tyler. Venha já aqui, seu..

Dei um abraço de urso em meu irmão, arrancando-o de seu
esconderijo e o entreguei para o policial. Desci de cima da pia e agarrei
meu irmão com toda a força que tinha em meus braços. Beijei sua cabeça,
inalando o aroma suave daqueles cabelos finos e macios. Meu peito
parecia estar muito leve, como se alguém tivesse retirado um caminhão de
cima dele.

Ele estava chorando. Eu estava chorando. Os homens estavam
chorando.

E eu não o soltaria.

Depois de muitos abraços e beijos, e após determinar que Tyler estava
em boas condições, os Enders nos levaram de volta ao saguão, onde o
barulho já havia começado a diminuir. Apresentamos Tyler a Lauren. O
senador Bohn pegou um cobertor e o colocou ao redor de meu irmão.

— Ele está bem? — perguntou Lauren,

— Ele me deu comida, o Velho, e remédios, também — disse Tyler.

Duvidei que o Velho tivesse feito isso por propósitos altruístas, mas
não disse nada.

Então, lembrei-me de Florina.

Ela estava com Tyler quando eles foram tirados do hotel.

— Tyler, o que aconteceu com Florina? — perguntei.

— Eles a jogaram para fora do carro.

— O quê?

— Quando vieram nos pegar no hotel, eles rodaram por alguns
quarteirões. Depois, forçaram Florina a sair do carro.

—Espero que ela esteja bem.

Tyler concordou com um movimento de cabeça.

— Eu vi quando ela se levantou — disse ele, pensando por um
momento. — Sabia que ela tem uma tia-avó? Que mora em Santa Rosa?

Eu fiz que não com a cabeça.

— Ela falava sobre essa tia-avó às vezes, Talvez tenha ido encontra-la


— disse Tyler.

O senador acariciou a cabeça de Tyler. Um inspetor mostrou ao
senador uma lista com os nomes dos inquilinos e seus respectivos
doadores, que começaram a entrar na sala. Ele indicou um dos lados com
um gesto e cada inquilino ficou ao lado de seu doador. Madison estava ao
lado de Rhiannon. Tinnenbaum estava ao lado de Lee, Rodney estava
acompanhado por Raj e Dons, por Briona. Michael estava ao lado de um
Ender idoso, com um nariz enorme e uma barriga protuberante, que devia
ter uns 200 anos. Aquele era o homem que tinha lambido meu rosto
quando estava no corpo de Michael? Senti vontade de vomitar.

A fila de doadores Starters e inquilinos Euders serpenteava pelo
corredor. Lauren, Tyler e eu percorremos a fila, examinando cada rosto,
mas não vi ninguém que se parecesse com Emma, e Lauren também não
encontrou seu neto, Kevin.

— Eu sabia que seria um tiro no escuro — disse Lauren. — Mas não
se deve desistir nunca.

— Vamos continuar procurando — eu disse, tocando-a no ombro. —
Isso não terminará até que os encontremos.







A noite se estendeu até a manhã seguinte, conforme tudo se resolvia. Avós
chegavam para buscar seus netos. Alguns ficavam surpresos ao perceber
que os doadores menores sem família haviam desaparecido durante a
madrugada, mas eu entendia o que estava acontecendo. Eles não
confiavam nos Enders.

Tyler estava dormindo em um sofá no escritório de Doris. Michael e
eu estávamos esparramados em cadeiras ao redor de sua escrivaninha.
Estávamos exaustos e sentíamos que o sono nos vencia. Eu dizia a mim
mesma que esse era o motivo pelo qual Michael parecia distante.

— Quer dizer que Florina tem uma tia-avó em Santa Rosa — eu
disse.

— Sim. Ela disse que adotaria Florina.


— Garota de sorte.

— Florina disse que eu poderia ir com ela. Mas isso não quer dizer
que a tia-avó me adotaria, claro.

— E por que você não foi?

Ele deu de ombros.

— Faz muito frio lá.

Eu assenti.

— Bem, acho que não vamos receber nosso dinheiro — disse ele.

—Eu não contaria com ele.

— Depois de tudo que aconteceu— disse ele, balançando a cabeça.

— Arriscamos nossa vida. Por nada.

— Ei, não fizemos tudo isso por nada. Ainda temos esses chips
ultramodernos em nossas cabeças e eles não podem ser removidos — eu
disse, rindo.

O que mais poderíamos fazer? Eu estava feliz em ter minha pequena
tribo de volta, mesmo que não tivéssemos qualquer lugar para onde ir.
Adeus, colchões e chuveiros; olá, pisos duros de concreto e baldes d’água.

Lauren apareceu sob o batente da porta.

— Callie, posso falar com você por um momento?

Olhei para Tyler, que estava dormindo. Michael fez um sinal
afirmativo com a cabeça e disse que cuidaria dele.

—Acho que você gostará de ouvir isso — ela disse com um sorriso.

Ela me levou para o velho escritório de Tinnenbaum, onde seu
advogado estava sentado atrás da escrivaninha. A fonte de água limpa que
me impressionara tanto durante minha primeira visita agora me causava
arrepios.

— A senhora Winterhill deixou um testamento. E seu nome consta
nele.

Olhei para Lauren. Ela fez um gesto para que eu me sentasse em uma
das cadeiras ao redor da mesa e sentou-se na outra.

— Quando foi que ela...? — eu perguntei.

— Ela fez isso antes do início do contrato de aluguel. De acordo com
a sra. Winterhill, ela sentia que era seu dever compensar a garota cujo


corpo ela estava colocando em risco — disse o advogado.

— Ela lhe deixou metade de seu patrimônio — disse Lauren. —
Incluindo a casa principal e uma casa de veraneio.

Uma casa.

Eu estava sem palavras.

O advogado leu o que o documento dizia:

— Ela diz aqui: ‚Eu não a conheço, mas lamento por ter que usá-la
dessa maneira. E lamento pelo mundo que deixamos para você‛.

Uma casa? Eu estava exausta. Só podia estar sonhando. Toquei meu
rosto e senti os pontos que cobriam o corte. Eram muito reais.

Eles perceberam que eu não acreditava naquilo, então fizeram o favor
de repetir. E explicaram os detalhes. Mas eu só conseguia ouvir uma
palavra: ‚casa‛.

Helena cumprira sua promessa.

Olhei para Lauren. Ela assentiu; sim, era verdade. Seus olhos
brilharam com as lágrimas que se formavam. Eu fechei os meus e, mesmo
assim, de alguma forma, as lágrimas rolaram.

Um lar.
































29



















N
aquela manhã eu levei Tyler para morar em sua nova casa. Eu sabia que
nunca esqueceria a expressão em seus olhos quando entramos na mansão,
acompanhados por Lauren e seu advogado. Enquanto conversavam
reservadamente com Eugênia para explicar as condições do testamento,
Tyler olhava para cada pedaço da mobília e da decoração com olhos
arregalados.

Ele parou em frente a uma estatueta de bronze de um cachorro que
estava sobre uma mesa lateral.

— Posso tocar nela?

Eu assenti.

— Você pode fazer o que quiser, agora. É toda sua.

Ele pegou a estatueta e a aninhou nos braços. Embora provavelmente
pesasse mais de um quilo, ele insistiu em carregá-la consigo para onde
quer que fosse. Quando eu o coloquei na enorme cama que havia no
quarto de Helena, ele ainda tinha a estatueta nas mãos, determinado a
dormir com ela. Eu a deixei na mesa do cabeceira, bem perto do seu rosto.

— Onde está Michael? — Tyler, com as pálpebras pesadas, acariciava
a cabeça do cachorro.

— Voltou ao prédio para pegar suas coisas.

— Ele vai voltar para morar conosco, não é?

Eu sorri.


— Sim. Ele vai transformar a casa de hóspedes em um estúdio de
arte.

— Fico imaginando o que ele vai desenhar agora. Agora que não
moramos mais na rua — a voz de Tyler ficou mais arrastada.

Logo depois, ele fechou os olhos e caiu em um sono profundo.







Nos dias que se seguiram, nossas vidas foram reconstruídas.

Lauren conseguiu minha guarda e isso me protegia de qualquer
pessoa que decidisse contestar o testamento, alegando que eu não tinha
família. Metade do patrimônio de Helena e suas duas casas seriam minhas
para sempre. A outra metade estaria reservada para ser entregue a Emma,
quando eu a encontrasse. E eu a encontraria. Eu devia isso a Helena.

O dinheiro era muito mais do que eu esperava ganhar quando assinei
o contrato com o banco de corpos, e fiquei imensamente grata. Tyler
estava recebendo a melhor assistência médica que o dinheiro podia
comprar e sua saúde melhorava a cada dia. Fui a um dentista e ele
reimplantou o dente que eu perdera na briga, e meus cortes e hematomas
seriam curados com o tempo.

Michael se mudou para a casa de hóspedes que ficava atrás da
mansão, mas logo voltou a sair. Ele não explicou o motivo, então fui até a
casa para verificar se ele havia tirado suas coisas dali. Eu soube que ele
voltaria quando vi as paredes cobertas com os desenhos que ele criara
durante o ano em que moramos nas ruas. Starters e renegados, tristes,
malvados, famintos — estavam todos lá, em seu estilo especial. Havia
muita emoção em seus traços e ele capturava todos os detalhes. Espalhada
por todas as paredes, ali estava minha vida após a Guerra dos Esporos.
Minha vida passada.

Imaginei que ele partira para visitar Florina. Fiquei decepcionada, mas
eu não tinha o direito de me sentir assim. Perder Blake deixara um imenso
vazio em meu coração. E eu só percebi o tamanho desse vazio depois que
as coisas se acalmaram.


Uma semana depois de nos mudarmos para a casa de Helena, fiquei
sabendo pelos noticiários que o senador Harrison estava se recuperando de
um ‚acidente sofrido durante uma caçada‛. As repercussões do escândalo
do banco de corpos da Prime Destinations se desenrolariam no decorrer
dos próximos meses. Após as eleições, nós saberíamos se os Enders
estariam dispostos a reeleger um homem que planejava condenar
adolescentes à morte em vida.

O senador mantinha Blake em uma rédea curta. Tentei mandar
mensagens, tentei ligar para ele, mas Blake não voltou a entrar em contato
comigo. Decidi que, antes de desistir para sempre, eu tentaria vê-lo
pessoalmente. Se pudesse explicar o que havia acontecido, talvez eu o
convencesse a me dar uma segunda chance. Caso contrário, tentaria
esquecê-lo e seguiria em frente com minha vida.

Não foi difícil encontrar a casa do senador. Tive que ir lá várias vezes
até ver o carro esportivo de Blake estacionado em frente. Quando
finalmente o vi, senti meu coração acelerar e tive que me acalmar antes de
sair do foguete amarelo.

Olhei para a enorme mansão em estilo Tudor e percorri o longo
caminho ladeado por roseiras entre a calçada e a porta. Pisei na varanda e
o sensor de presença tocou antes que eu decidisse voltar atrás. A porta se
abriu.

Um guarda-costas Ender com uma expressão gelada no rosto, vestindo
um uniforme, sacou sua arma e apontou-a para minha cabeça.

— Ligue para os inspetores — ele gritou para alguém que estava
dentro da casa.

— Não vim aqui para criar problemas — eu disse, levantando as
mãos. — Só quero falar com Blake.

Blake veio até a porta. O guarda se interpôs entre nós.

— Não se aproxime.

— Está tudo bem, falarei com ela — disse Blake.

O guarda pressionou o fone auricular. Estava escutando o que alguém
lhe dizia pelo fone e respondia com um ‚Sim, senhor‛. Blake e eu
trocamos um olhar. Ele deu de ombros.


A atitude do guarda mudou.

— Parece que hoje é seu dia de sorte — disse ele. — Farei apenas
uma revista, se não se importar.

Ele guardou a alma no coldre e apalpou meu corpo. Em seguida,
retirou um detector de armamentos de um coldre preso à sua coxa e o
manipulou ao redor do meu corpo. Sem encontrar nada, o guarda voltou
para dentro da casa, deixando Blake sob o batente.

— Oi — disse ele, sorrindo.

— Blake. — Eu retribui o sorriso. Era ótimo poder ver o rosto dele
novamente. E ele estava sorrindo para mim. Isso me dava esperança.

— O que você quer?

— Achei que poderíamos conversar.

—Sobre o quê?

— Sobre tudo que aconteceu. Há muitas coisas a explicar. Isso é uma
brincadeira?

Meu coração parou durante um segundo.

—Blake?

Ele inclinou a cabeça, com um olhar curioso.

— Qual é o seu nome?

— Não finja que não me conhece.

Ele esfregou a nuca.

— Por acaso algum de meus amigos a convenceu a vir até aqui falar
comigo?

— Ah, eu já entendi — eu disse, cruzando os braços. — Você não me
perdoou.

Ele simplesmente olhava para mim. Não cederia um milímetro.

— Achei que talvez você pudesse entender — eu disse. — Depois de
tudo que aconteceu.

A expressão no rosto dele ficou mais séria.

— Desculpe-me — disse ele, dando de ombros. — Eu... não conheço
você.

Minhas mãos ficaram geladas. Ver o rosto que eu conhecia tão bem,
olhando para mim com aquela expressão vazia... era algo que cortava


minha carne até os ossos. O que tinha acontecido?

— Blake? Você realmente não se lembra? Não se lembra de nada?

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Cavalgar no rancho? O parque... o Music Center?

Ele continuou a negar. Parecia sentir pena de mim.

— Não estou louca. Procure em seu celular. Você tirou uma foto a
meu lado.

Blake apertou os olhos, como se estivesse tentando alcançar alguma
coisa em seu passado, mas sempre voltava de mãos vazias. Ele não se
lembrava de mim.

Não sei se havia alguma coisa no mundo que poderia doer mais.

Eu era invisível.

O senador Harrison veio até a porta, com um braço suspenso por uma
tipoia.

— Callie.

Eu recuei um passo.

— Você a conhece? — perguntou Blake.

O senador veio em minha direção. Eu continuei a recuar. Ele tocou
meu ombro.

— Está tudo bem, Callie. Entre.

Ele colocou o braço saudável ao redor do meu ombro e me conduziu
para o enorme saguão. O guarda-costas mantinha a postura firme no canto
da sala. Eu vi a sala de estar através de um passadiço em forma de arco, e
havia lenha queimando na lareira.

O senador se dirigiu a Blake.

— Preciso falar com minha convidada a sós.

Blake assentiu. Antes de nos deixar, ele deu uma última olhada em
mim por cima do ombro. Eu esperava, com todas as minhas forças, que ele
conseguisse mostrar qualquer sombra de uma lembrança. Qualquer coisa.
Mas seu rosto dizia que eu era apenas uma curiosidade.

O senador Harrison tocou meu braço e me levou até seu estúdio. Lá,
indicou uma cadeira forrada de couro e fechou a porta. Eu preferi
continuar em pé, atrás da cadeira. Não tinha certeza de que podia confiar


nele.

— Então, agora você conheceu meu neto — ele disse.

— O que aconteceu com ele? — Sentia meu lábio inferior tremendo.

Ele apontou para a porta.

— Aquele é meu verdadeiro neto. O verdadeiro Blake Harrison. —
Ele gemeu enquanto se sentava à sua escrivaninha e ajustava sua tipoia.

Eu ouvi aquelas palavras, mas elas não faziam sentido.

— O verdadeiro Blake?

Em seguida, como se alguém houvesse diminuído o volume, tudo
ficou em silêncio.

Apenas o relógio antigo em um invólucro de vidro que estava sobre a
mesa do senador se atrevia a emitir um som, O tique-taque era incessante,
sincronizado com o movimento das três bolas douradas que havia dentro
do aparelho e giravam para a frente e para trás. Para a frente e para trás. A
velocidade com a qual as peças se moviam era estonteante, vertiginosa.
Como se elas estivessem confusas sobre a direção em que deveriam seguir.

Alguém gemeu. Fui eu.

Os olhos do senador se estreitaram. Ele confirmou com um
movimento de cabeça.

— Eu nunca estive com o verdadeiro Blake antes? — perguntei.

O senador balançou a cabeça negativamente.

— Apenas com seu corpo.

Minha mão subiu até cobrir minha boca.

Ele assentiu outra vez.

Eu me apoiei no encosto da cadeira.

— Então... havia alguém dentro de Blake... usando seu corpo.

— Correto. — O senador estava esperando que eu absorvesse o
choque.

Quem? Quem queria usar o corpo de Blake por todo aquele tempo?

Então, eu entendi. Não. Um arrepio percorreu meu corpo. O
pensamento era horrível demais para dizer.

— O Velho — disse o senador.

Segurei a cabeça com as mãos. Não. Não ele. Blake? Minha mente


estava girando mais rápido do que as bolas douradas dentro do relógio.

— Mas eu vi o Velho quando ele foi até a instituição — eu disse. —
Como ele poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo?

Aquilo aconteceu depois que o contrato com o governo foi fechado.
Ele saiu do corpo de Blake.

— E o anúncio na aerotela? Foi ao ar antes da visita à instituição.

— Estava pré-gravado.

Precisei respirar fundo.

— Por que você permitiu que isso acontecesse?

— Ele estava usando meu neto como refém, mas Blake nunca soube
de nada. Apenas sua avó e eu sabíamos. Ele fez isso para me forçar a
apresentar o acordo entre o governo e a Prime Destinations.

— Blake nunca foi até a Prime para assinar um contrato?

O senador balançou a cabeça.

— O Velho sequestrou Blake e implantou um chip em meu neto.
Blake não tem qualquer consciência do que houve. Ele pensa que esteve
doente durante esse período.

Eu passei as mãos pelos cabelos. Durante todo aquele tempo, pensei
que eu fosse a fraude, a camponesa fingindo ser uma princesa. Mas, na
verdade, quem estava disfarçado era o príncipe. Durante todo aquele
tempo, havia um ogro disfarçado de príncipe. Em meu mundo, nada era o
que parecia. E eu não sabia se conseguiria voltar a confiar em alguém.

O senador colocou a mão em meu ombro.

— Callie, quero que você saiba que estou pressionando a promotoria
para retirar as acusações contra você.

Eu havia me esquecido completamente dos assuntos relativos a mim.

— E preciso pedir um favor.

— O quê? — Eu não conseguia sequer imaginar o que poderia fazer
por ele.

Ele aproximou seu rosto do meu, com aqueles olhos grandes e aflitos
me encarando, o hálito com o cheiro amargo do tabaco.

— Não diga nada sobre o que aconteceu para meu neto. Jamais.








Saí da casa de Harrison sem voltar a ver Blake. Andei pelo caminho
ladeado pelas roseiras de cores vivas que zombavam de cada passo que eu
dava. Garota idiota. Como pôde não perceber?

Meus joelhos fraquejavam. Eu caí no chão, sentindo que havia um
buraco horrível e vazio se formando dentro de mim. Apertei meu estômago
com as mãos para fazer a dor parar. Nunca mais haveria qualquer
reencontro com Blake. Ele não era real. Nada do que fizéramos fora real.

As lágrimas que saíam do meu rosto ardiam.

Ele nunca fora real. Estava perdido para sempre. Como minha mãe e
meu pai.

Meu pai.

Ah, papai. Sinto tanto sua falta.







Passei a noite inteira relembrando cada coisa que Blake fizera e dissera,
mas imaginando-as como se fossem obra do Velho, O Club Rune, o
rancho, a cerimônia de gala. Depois de reviver todos aqueles momentos
várias e várias vezes, eu queria ficar o mais distante possível daqueles
lugares. Assim, na manhã seguinte, levei Tyler para nossa nova casa de
férias nas montanhas de São Bernardino. Vestimos nossas blusas de lã e
casacos e fomos para o norte.

A segunda casa de Helena era um chalé amplo de dois andares,
construído em uma área grande e com uma vista panorâmica do lago ao
fundo. Diferente da mansão, havia poucas coisas ali que lembrassem
Helena ou Emma; nenhum retrato ou holoálbum. Eu não estava tentando
esquecê-las, mas o fato de não ter que ver os rostos delas fazia com que
sentíssemos que a casa era realmente nossa.

Tyler praticava pescaria no lago enquanto eu ficava sentada em uma
pedra, pensando sobre o quanto havia ganhado e o quanto havia perdido.
Tudo começara com o Velho usando o senador Harrison para forçar o


acordo entre o banco de corpos e o governo. Para obrigar o senador a
cooperar, ele tivera que sequestrar Blake e usar seu corpo como refém.
Helena não sabia de nada daquilo, mas descobrira que o senador tinha
planos para fechar aquela negociação. Assim, ela alugou meu corpo para
poder matá-lo. Ela queria impedir o acordo e expor a Prime publicamente
pela primeira vez, na pior de todas as situações possíveis, mostrando que o
corpo de uma doadora poderia ser usado para matar. Quando ela e
Redmond alteraram nosso chip, desativando a proteção que impedia
assassinatos, o Velho percebera a diferença no sinal e descobrira o plano
de Helena. Como o Velho já estava dentro de Blake, ele usaria o corpo de
Blake para descobrir mais sobre o plano de Helena.

Foi quando ele a seguiu ao Club Rune, falou com ela no bar e marcou
o encontro no rancho. Mas, quando Redmond alterou a programação do
chip, ele também fez com que o aparelho apresentasse um comportamento
instável. Aquilo fez com que Helena perdesse o controle sobre meu corpo
no Club Rune, e o Velho, dentro do corpo de Blake, percebeu quando
tudo aconteceu.

Foi quando eu o encontrei. Ele iniciou um relacionamento comigo
para manter Helena sob vigilância, para ter certeza de que não mataríamos
o senador antes que ele conversasse com o presidente.

E para ver como eu me adaptava à mudança no dispositivo de
proteção contra assassinatos do chip. Quando conseguimos estabelecer
uma comunicação e Helena surgiu em minha cabeça, ele percebeu que
aquilo seria um recurso extremamente valioso, particularmente para o
governo.

Tudo que ele fez foi uma farsa. Fingindo ser um adolescente
verdadeiro visitando sua bisavó, fingindo gostar de mim para que eu
confiasse nele. Os momentos que passamos em seu rancho, em seu carro
— somente mentiras. Ele interpretou seu personagem melhor do que
qualquer astro dos holos. Fingindo que queria tocar meu rosto, segurar
minha mão, me beijar.

Cobri a boca com a mão. Mas não havia qualquer maneira de apagar
aquela lembrança.


Eu estava enjoada. Adorei o tempo que passei com Blake, mas achava
que seria melhor sentir ódio, ainda mais agora, que sabia que todos
aqueles momentos não passavam de um joguete do Velho, que queria
apenas me usar como se eu fosse um brinquedo. Eu me sentia dividida.
Por um lado, queria guardar aquelas memórias em uma caixa de
preciosidades. Por outro, queria queimar tudo até sobrarem apenas cinzas.

Procurei concentrar minha atenção em Tyler, que lançava sua linha na
água. Suas habilidades de pescador estavam melhorando. Pelo menos em
relação a Tyler eu conseguia me sentir em paz. Era ótimo saber que ele
nunca mais sentiria fome, nunca mais teria que dormir em um chão sujo e
frio e que ele não morreria. Inspirei a fragrância de pinheiros do ar frio.
Aquilo me dava uma sensação incrível de pureza. Eu tinha sorte por estar
ali, grata por ter as duas casas. Decidi parar de pensar sobre tudo, exceto a
beleza que havia naquele lugar.

— Tyler! — eu gritei. — Vou preparar um chocolate quente. Fique
por perto, entendeu? Não saia andando por aí.

Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça.

Eu subi os degraus de madeira que levavam ao quintal do chalé e
entrei na cozinha quente. Conseguia ver Tyler pela janela que ficava acima
da pia. Tirei minha jaqueta e a coloquei sobre o encosto de uma cadeira.
Abri o armário e peguei o pó para o chocolate quente e duas canecas.
Coloquei algumas colheres do pó em cada uma das canecas e abri a
torneira com a água quente e filtrada. Água infinita. Para sempre.

Enchi as canecas e coloquei-as no balcão. Foi quando percebi algo
estranho. Algo que não se encaixava com o restante do cenário, sobre o
balcão, à direita da pia.

Um ramalhete de orquídeas amarelas. Com manchas roxas, como a
pele de um leopardo.

Senti um aperto no peito. Era a mesma espécie de orquídea que Blake
— o Velho — me dera durante o piquenique no rancho.

Como aquelas flores tinham ido parar ali? Há quanto tempo estavam
ali?

Olhei pela janela. Tyler havia desaparecido. Sua vara de pescar estava


jogada no chão. Senti o pânico subir pela garganta. Eu estava quase
gritando quando fui até o parapeito da janela e o vi. Ele estava curvado,
pegando iscas dentro de um balde.

Soltei um suspiro de alívio.

Naquele momento, ouvi uma voz em minha cabeça.

Olá, Callie

Da mesma maneira que Helena costumava falar comigo. Mas era a
voz de um homem: o Velho. Aquela voz eletrônica assustadora que fazia
meus dentes rangerem.

Senti um arrepio percorrer minha coluna.

Você é um sucesso enorme, Callie. A Prime agora está fechada e o
prédio será demolido nos próximos dias.

— Onde você está? — Meus olhos examinaram o lago onde Tyler
estava pescando. — Como pode estar dentro de minha cabeça?

Eu tinha um plano B, é claro.

— Um plano B?

Em outro lugar

Eu imaginei se poderia haver uma unidade de armazenamento
portátil. Será que ele estaria por perto?

— Onde?

Gostaria de conhecer o lugar? Posso mostrá-lo a você.

— Então, por que você está dentro de minha cabeça?

Eu não conseguia vê-lo em qualquer lugar nas proximidades. Comecei
a abrir as gavetas da cozinha em silêncio.

Venha me encontrar, Callie.

— Encontrá-lo? O que você quer comigo? Sou apenas uma garota.

Não mais. O chip em sua cabeça é único, alterado por um dos
melhores cientistas do mundo. Eu lhe oferecerei um salário enorme para
que você se junte à minha equipe.

— Eu tenho tudo de que preciso agora. — Tentei parecer forte, mas o
nervosismo que marcava minha voz me traía.

Você não sabe do que precisa.

Retirei uma enorme faca de açougueiro de dentro da gaveta. Minha


mão tremia.

Espere até sentir o gosto do poder.

— Não estou interessada em sentir o gosto de nada que venha de
você. Não desistirei tão facilmente. Como eu já disse antes, você é muito
especial para mim.

Expirei o ar, conseguindo até mesmo rir daquela situação, mas as
palavras ardiam como ácido.

— Tudo que você quer é abrir minha cabeça para descobrir como ele
alterou o chip.

Tyler ainda estava pescando. Saí da cozinha e fui para o corredor,
procurando pelo lugar onde o Velho poderia estar escondido.

Quero que você faça parte de minha equipe. E você precisa de uma
causa. Terá bons companheiros a seu lado.

— Você acha que eu conseguiria me encaixar em sua equipe?

Seu amigo Redmond faz parte de nosso grupo.

Foi quando eu me dei conta.

— Era Redmond que estava no helicóptero.

Você gosta dele.

— Sim, gosto dele. Ele usa seu cérebro para ajudar as pessoas, não
para machucá-las. — Queria mantê-lo falando enquanto me esgueirava
pelo corredor. — Quer dizer que, durante todo aquele tempo, todas as
coisas que você disse para mim, tudo foi sincero?

Muito do que eu lhe disse era verdade. Mas não tudo. Se quiser
descobrir quais partes eram verdadeiras, venha até onde eu estou.

— Você mentiu para mim. O tempo inteiro, fingindo ser outra pessoa.

Examinei a sala de estar; ele não estava lá. Pela janela da sala, percebi
que Tyler ainda estava bem, pescando do lado de fora.

Não foi exatamente a mesma coisa que você fez?

Eu vacilei. Ele tinha razão.

— Eu não tive outra escolha.

Não é verdade. Você poderia ter recusado tudo que lhe foi oferecido.
Mas significaria abrir mão do dinheiro.

— Eu precisava usar o dinheiro para cuidar de meu irmão. — Agarrei


a faca com força, atravessando a sala de estar em direção a um armário de
casacos. Abri a porta. Ele não estava lá.

Se realmente quiser protegê-lo, você se juntará a mim. Prometo a você
que, nos próximos meses, nenhum menor estará a salvo sem minha
proteção. Você nunca saberá quando sua vida se dissolverá. Um terremoto
pode destruir sua casa. Ou um incêndio. A mulher que a adotou pode
morrer em um acidente de trânsito e o governo confiscará sua casa. Tudo
que você tem pode ser tirado em um único instante. Não se pode confiar
em nada, apenas no poder. E eu posso lhe dar isso.

Corri pelo corredor e subi as escadas. Queria gritar com ele, manda-lo
calar a boca, O que ele queria dizer com ‚nenhum menor estará a salvo‛?
Passei pelo quarto de Tyler. O Velho não estava lá.

Você acha que fez tudo aquilo pelo dinheiro. Mas eu a conheço
melhor do que você conhece a si mesma. Você também fez isso para que
pudesse viver como se fosse outra pessoa.

— Não me diga — eu ironizei.

Dê uma máscara a um homem e ele lhe dirá a verdade. Quem disse
isso?

— Você disse. — Cheguei ao topo da escada e andei pelo corredor,
examinando os quartos.

Você não voltou à Prime quando a conexão apresentou problemas.
Você queria ser Helena.

— Alguém me ameaçou. Disse que, se eu voltasse, seria morta.

E você quis acreditar nisso, de modo que pudesse viver como se fosse
uma pessoa rica, mesmo que por pouco tempo.

Novamente, eu hesitei. Havia alguma verdade naquelas palavras, e
admitir aquilo era constrangedor.

Eu posso lhe dar essa experiência de novo, Callie. Uma vida muito
mais interessante do que a de Helena.

Eu queria uma nova vida? Sim. Em outro lugar, em outra época. Não
com ele.

— Não — eu disse. — Não quero ser outra pessoa. Quero
simplesmente ser eu mesma. Seja lá o que for que você queira comigo, eu


nunca aceitarei. Nunca.

Sua curiosidade a vencerá. Eu sou paciente. Fosso esperar.

— Terá que esperar para sempre.

Olhei em outro quarto, segurando a faca na altura da minha coxa.

Ah, Callie, se você soubesse. Você entendeu tudo errado. Na verdade,
sou a pessoa que tem as melhores intenções em toda essa história.

O quê? Como ele se atrevia a dizer aquilo? Eu estava no ponto em que
esperava que ele estivesse dentro da casa. Queria confrontá-lo, arrancar
sua máscara, aqui e agora.

A última porta estava fechada. Era meu quarto. Eu não me lembrava
de havê-la fechado.

Andei lentamente na direção da porta e coloquei a mão sobre a
maçaneta, virando-a cuidadosamente.

As cortinas de tecido leve se moveram com a brisa. Ou alguém
acabara de passar por elas? As portas duplas que levavam à sacada logo
depois estavam abertas. Passei por elas e fui até a enorme sacada,
observando o gramado, o lago e Tyler. O sol havia se posto e até mesmo os
pássaros estavam em silêncio.

Embora ele não dissesse nada, eu podia sentir a presença do Velho
dentro da minha cabeça. Éramos nós dois, em uma disputa acirrada, em
um limbo. Minha respiração era o som mais alto, seguida de perto pelas
batidas do meu coração.

E eu senti quando ele se afastou.






















30



















U
ma semana depois, eu estava em frente ao banco de corpos, observando
enquanto uma equipe de trabalhadores se preparava para demolir o prédio
espelhado que abrigara a Prime Destinations. A multidão, vestindo casacos
e jaquetas, era composta predominantemente por Enders da classe
trabalhadora — guardas e balconistas — que nunca souberam o verdadeiro
propósito daquele prédio. Havia alguns idosos ricos, em sua maioria ex-
inquilinos, e alguns menores ricos que tinham sido adotados. Ao redor da
multidão havia alguns Starters sem família, alguns ex-doadores como eu e
alguns que apenas esperavam pelo espetáculo proporcionado pela
demolição, com a imensa bola de metal que pendia da ponta do guindaste.

Vi vários rostos conhecidos. Lee estava lá, assim como Raj e Briona.
Não eram mais aquele trio inseparável. Cada um deles andava pelo lugar
sozinho, sem nem mesmo reconhecer os outros. Madison, a adolescente
com o cabelo loiro chanel, estava vários metros à minha esquerda. Nossos
olhares se cruzaram. Um sorriso surgiu em meu rosto; fiquei feliz ao vê-la.
Ela me olhou por alguns momentos com uma expressão vazia; em seguida,
desviou o olhar. Eu precisava lembrar que ela só havia conversado comigo
uma única vez, na noite em que tudo chegara ao fim no banco de corpos.
Provavelmente ela não se lembrava de mim. Ou talvez se lembrasse.

Vi sua ex-inquilina, Rhiannon, à minha direita, em seu corpo
verdadeiro. Ela se apoiava em um andador e acenou para mim. Retribuí o


cumprimento e estava prestes a me aproximar dela quando vi Michael, do
outro lado da multidão. Ele estava olhando para o prédio, esperando, como
o restante de nós.

— Michael! — eu gritei.

Ele estava longe demais para escutai. Sua atenção estava totalmente
focada no prédio. Aquilo fez com que eu me sentisse melhor.
Provavelmente ele havia voltado à cidade. Eu me virei e comecei a abrir
caminho para me aproximar dele, mas vi que alguém à minha esquerda
tentava atravessar a multidão de cabelos prateados.

Blake.

Senti um nó se formar ao redor da minha garganta. O que ele estava
fazendo aqui? Ele não deveria saber a respeito do banco de corpos. Eu não
o via desde o dia em que conversara com o senador em sua casa, havia
mais de uma semana. Voltei a olhar para Michael. Dessa vez ele me viu e
seu rosto se iluminou. Ele fez um gesto para que eu me aproximasse.

Virei-me para procurai Blake. Nossos olhares se cruzaram e ele me
deu um sorriso tímido. Estava andando em meio à multidão, vindo em
minha direção.

Engoli em seco. Não sabia o que fazer. Blake estava perto demais para
que eu simplesmente lhe desse as costas. Voltei a olhar para Michael. Do
lugar onde estava, ele podia ver o que estava acontecendo, e tive a
sensação de que uma película cinzenta cobriu seu rosto. Seu sorriso
desapareceu, seus ombros se contraíram. Era uma imagem torturante, mas
eu estava presa ali, impossibilitada de me mover no meio daquela
multidão, longe demais para tentai explicar, mesmo se eu pudesse.

Blake estava apenas a alguns corpos de distância. Eu prometera a seu
avô que não lhe revelaria nada sobre nosso passado, mas o que eu poderia
dizer?

Não havia tempo para pensar. Ele estava ali.

— Callie — disse ele, cumprimentando-me com um aceno de cabeça.
— Sua governanta disse que eu a encontraria aqui.

Ele enfiou as mãos nos bolsos e desviou o olhar.

— Meus amigos me dizem que sou sério demais. Acho que tem a ver


com o fato de que sou o neto de um senador — disse ele, dando de
ombros. — Meu pai também era sério. Minha mãe sabia como se divertir
— completou Blake, com um sorriso saudoso.

Do que ele estava falando? Parecia até mesmo que havia ensaiado um
discurso.

— De qualquer forma, todos dizem que sou um rato de biblioteca,
que não costumo sair muito, a menos que meus amigos me arrastem para
fora de casa — disse ele, agitando os pés, olhando para baixo. — O que
estou tentando dizer é isto. — Ele pegou seu telefone e me mostrou a
fotografia que havia tirado. — Eu vi a foto.

Eu olhei para a foto que mencionara na última vez em que
conversamos. A foto que fora tirada no dia em que fomos cavalgar. Exceto
pelo fato de que o pobre Blake nunca estivera lá; era o Velho. Ele estava
atrás de mim com um braço ao redor dos meus ombros, sua cabeça
tocando a minha, e eu lhe agarrava os braços com as duas mãos. Havíamos
acabado de apear dos cavalos, felizes, sentindo o calor do dia e um pouco
suados.

Ambos irradiávamos pura alegria. Era difícil olhar para aquela
imagem, mas Blake nunca entenderia a razão.

— Não me lembro de nada disso — disse ele. — Mas pareço estar
muito feliz. Acho que nunca me vi tão feliz antes. Nunca.

Os olhos dele voltaram a encontrar os meus, e dessa vez ele não os
desviou.

— Seja lá o que ocorreu entre nós, naquelas semanas perdidas das
quais não consigo me lembrar, por mais que tente, eu quero de volta.
Quero novamente.

Eu examinei seu rosto. Ele não estava brincando comigo. Estava
sendo totalmente sincero.

— Você quer? — ele me perguntou. — Quer ter isso de volta
também?

Meu estômago se revirava. Eu não sabia se poderia recuperar o que
nunca fora nosso, desde o princípio.

— Está tudo bem, não precisa decidir agora — disse ele.


Blake estendeu a mão para mim. Fiquei paralisada.

— Você sabe o que realmente aconteceu, Calhe. Eu preciso que você
me ajude a lembrar.

Sua expressão me fazia pensai em um astronauta que flutuava pelo
espaço após o cabo que o conectava à nave se romper, que tinha uma
única chance de agarrar um cabo de reserva ou flutuar para sempre, à
deriva, em um espaço negro e infinito. Eu conhecia aquela sensação, o
pânico que estendia o tempo, transformando segundos em anos, e a dor
profunda de ser atacado não por uma pessoa, mas por muitas, uma gangue
de valentões que se expandia por um bairro e posteriormente por uma
cidade, até que você questionasse o mundo inteiro. E a última coisa na
qual você pensa, enquanto estende o braço até que seus dedos estejam a
milímetros do cabo de salvação, é como será possível encontrar uma
maneira de consertar o que foi estraçalhado, para que você possa dizer
sim, dizer que quer voltar a fazer parte do mundo.

Movi minha mão na direção da mão dele.

Eu não deixaria o Velho vencer. Eu não deixaria que ele arrancasse
minhas melhores lembranças do tempo que passei com o garoto que
imaginava ser Blake.

Ele tocou minha mão e entrelaçou seus dedos nos meus. Sua pele era
familiar — a textura suave, a curva de seu polegar. Seu toque me levou de
volta aos momentos que passamos juntos em seu carro. Eu sentia muita
saudade daqueles momentos. Mais do que eu imaginava.

Não era o Blake que eu conhecia. Mas se parecia com ele. A sensação
era a de estar com ele. Ele estava perdido, e eu era a única pessoa que
poderia ajudá-lo.

Teríamos que tentar.

Ouvi o som de alguém respirando. Dentro da minha cabeça.

Meu coração acelerou.

Menina Cal.

Fazia muito tempo que eu não ouvia aquela voz.

Quando os gaviões gritam, é hora de voar.

Meu pai? Minha cabeça começou a girar, mesmo que eu soubesse


que não o veria. Os sons da multidão esmaeceram.

Blake sorriu para mim, com uma expressão curiosa.

— Você está bem?

Procurei dentro de mim mesma. Tentei aguçar os ouvidos, mas não
escutei nada.

Blake apertou minha mão quando a imensa bola de metal da máquina
de demolição atingiu a fachada espelhada do banco de corpos.





















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ENDERS

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