quarta-feira, 6 de março de 2013

Starters 1 - Lissa Price (Parte 1)


STARTERS

LISSA PRICE

Shadow Hunters


1



















Os Enders me causavam arrepios. O porteiro abriu um sorriso ensaiado
quando permitiu que eu entrasse no banco de corpos. Ele não era tão
velho, talvez uns 110 anos, mas, mesmo assim, aquela presença me fazia
estremecer. Como a maioria dos Enders, seu cabelo era de um grisalho
prateado, um troféu de honra fajuto que demonstrava sua idade. Do lado
de dentro, o espaço ultramoderno, com uma distância enorme entre o piso
e o teto, fazia com que me sentisse ainda menor. Caminhei pelo saguão
como se estivesse deslizando por um sonho, no qual meus pés mal
tocavam o piso de mármore.

Ele me indicou a recepcionista de cabelos brancos, maquiada com um
batom vermelho opaco que manchava seus incisivos quando ela sorria.
Eles tinham que ser gentis comigo ali, no banco de corpos. Mas, se
estivéssemos na rua, eu seria invisível. Ninguém se importaria com o fato
de que eu tinha sido a melhor aluna de minha sala quando ainda existiam
escolas. Eu tinha 16 anos. Era um bebê para eles.

Os saltos dos sapatos da recepcionista estalavam quando ela andava e
ecoavam por aquele espaço opressor enquanto me conduzia a uma
pequena sala de espera. O lugar estava vazio, a não ser por cadeiras
forradas com brocado prateado nos cantos. Pareciam ser móveis antigos,
mas o cheiro de produtos químicos no ar indicava tinta fresca e materiais
sintéticos. Os sons naturais de pássaros silvestres também eram falsos.


Olhei para minha calça puída e sapatos surrados. Eu tinha tentado
engraxá-los da melhor maneira que podia, mas as manchas não safam. E,
como eu havia feito todo o caminho até Beverly Hills a pé sob a garoa da
manhã, estava encharcada como um gato perdido.

Meus pés doíam. Queria desabar em uma cadeira, mas não me atrevi
a deixar a marca molhada de meu traseiro no brocado. Um Ender alto
entrou na sala, interrompendo meu pequeno dilema sobre etiqueta.

— Callie Woodland? — Ele olhou para o relógio. — Você está
atrasada.

— Desculpe. A chuva...

— Tudo bem. O que importa é que você está aqui — disse ele,
estendendo a mão.

Seu cabelo prateado parecia ser ainda mais branco em contraste com
o bronzeado artificial que ele exibia. Conforme sorria, seus olhos se
arregalavam, deixando-me ainda mais inquieta do que o habitual quando
me encontrava na presença de um Ender. Não mereciam ser chamados de
idosos, como preferiam, aqueles malditos velhotes ambiciosos no fim de
suas vidas. Eu me forcei a apertar aquela mão enrugada.

— Sou o sr. Tinnenbaum. Bem-vinda à Prime Destinations. — Ele
colocou sua outra palma sobre minha mão.

— Vim aqui apenas para conhecer... — Eu olhei novamente para as
paredes, como se estivesse ali para inspecionar a arquitetura e a decoração
do lugar.

— Como as coisas funcionam? É claro. Não cobramos por isso. — Ele
sorriu e finalmente soltou minha mão. - - Venha comigo.

Ele estendeu o braço como se eu fosse incapaz de encontrar a saída
daquela sala. Seus dentes eram tão claros que cheguei até a me encolher
um pouco quando ele sorriu. Caminhamos por um pequeno corredor até
seu escritório.

— Pode entrar, Calhe. Sente-se.

Ele fechou a porta.

Mordi a língua para não engasgar com toda a extravagância que havia
ali. Uma imensa fonte de cobre fluía com uma quantidade enorme de água


ao longo de uma das paredes. Era incrível a maneira como eles deixavam
toda aquela água límpida e pura cair e respingar pelo lugar. Alguém
poderia até mesmo pensar que o líquido era gratuito.

Uma mesa de vidro incrustada com LEDs dominava o centro da sala,
com uma aerotela flutuando menos de meio metro acima dela. Ela
mostrava o retrato de uma menina da minha idade, com longos cabelos
ruivos, usando shorts de ginástica. Embora a garota estivesse sorrindo, a
foto fora tirada de um ângulo frontal, como as fotografias que tiram dos
criminosos quando são fichados pela polícia. Sua expressão era meiga.
Esperançosa.

Eu me sentei em uma cadeira moderna de metal enquanto o sr.
Tinnenbaum permanecia em pé atrás da escrivaninha, apontando para a
aerotela.

— Uma de nossas associadas mais recentes. Assim como você, ela foi
informada sobre nossa empresa por um amigo. As mulheres que alugaram
seu corpo ficaram bastante satisfeitas.

Ele tocou o canto da tela, trocando a imagem para a de um
adolescente que vestia um traje de banho de competição.

— Foi este rapaz, Adam, que indicou a garota. Ele pratica
snowboording, esqui e montanhismo. É uma escolha popular para homens
que gostam de atividades ao ar livre e que não conseguem desfrutar dessas
atividades há algumas décadas.

Ouvir aquelas palavras fez com que tudo parecesse real. Aqueles
Enders velhos e caquéticos, com braços e pernas tomados pela artrite,
tomando o controle do corpo daquele adolescente durante uma semana,
vivendo dentro de sua pele. Meu estômago começou a se revirar. Eu
queria sair correndo, mas uma ideia me mantinha ali.

Tyler.

Agarrei o assento de minha cadeira com as duas mãos. Meu estômago
roncava. Tinnenbaum me estendeu um pires de metal com supertrufas
embaladas em copinhos de papel. Meus pais tinham pires como aquele,
antigamente.

— Aceita uma? — perguntou ele.


Peguei um daqueles chocolates enormes em silêncio e, em seguida,
percebi que minha cortesia andava meio enferrujada.

— Ah, obrigada.

— Pegue mais — ele agitou o pires para me atiçar.

Peguei uma segunda e uma terceira, já que o pires ainda estava ao
alcance de minha mão. Embrulhei-as em seus copos de papel e as
coloquei no bolso de meu blusão. Ele pareceu ficar decepcionado por eu
não as comer ali, como se eu fosse o entretenimento do dia para ele. Atrás
de minha cadeira, a fonte borbulhava e respingava, provocando-me. Se ele
não me oferecesse algo para beber logo, talvez me visse enfiar a cabeça na
fonte, lambendo e engolindo a água como um cachorro.

— Poderia me dar um copo d’água? Por favor?

—É claro.

Ele estalou os dedos e aumentou o tom de voz, como se estivesse
falando em algum aparelho oculto.

— Um copo d’água para a senhorita.

Um pouco depois, uma Ender com o corpo de uma modelo entrou na
sala, equilibrando um copo d’água em uma bandeja. O copo estava envolto
em um lenço de tecido. Peguei o copo e vi que havia pequenos cubos
flutuando, brilhando como diamantes. Gelo. Ela colocou a bandeja a meu
lado e saiu.

Inclinei a cabeça para trás e engoli toda aquela água doce de uma só
vez, com o líquido gelado descendo por minha garganta. Meus olhos se
fecharam enquanto eu saboreava a água mais limpa que já tinha bebido
desde que a guerra terminara. Quando acabei, deixei que um dos cubos de
gelo deslizasse para dentro da boca. Mordi e senti que ele se quebrou com
um ruído. Quando abri meus olhos, vi que Tinnenbaum me observava.

— Quer mais? — perguntou ele.

Eu queria, mas percebi nos olhos dele que a pergunta fora feita
simplesmente por cortesia. Neguei com a cabeça e terminei de mastigar o
cubo. Minhas unhas pareciam ainda mais sujas em contato com o copo
quando o devolvi à bandeja. Ver o gelo derretendo me fez lembrar da
última vez em que eu havia bebido água gelada. Parecia uma eternidade,


mas fora há pouco mais de um ano, o último dia em nossa casa antes de os
inspetores chegarem.

— Quer saber como tudo funciona? — perguntou Tinnenbaum. —
Aqui na Prime Destinations?

Eu me segurei para não revirar os olhos. Enders. Qual outro motivo
me traria até aqui? Abri um meio-sorriso e confirmei com um aceno de
cabeça.

Ele tocou o canto da aerotela para apagar a imagem e tocou-a uma
segunda vez para carregar as holoanimações. A primeira mostrava uma
idosa reclinada em uma espreguiçadeira, com uma espécie de touca sendo
colocada na parte de trás da sua cabeça. Fios coloridos conectados à touca
iam até um computador.

— A inquilina é conectada a uma ICC, Interface Corporal
Computadorizada, em um consultório, sob a supervisão de enfermeiros
experientes — disse ele. — Em seguida, é colocada em um estado de
sedação, sem perda da consciência.

— Como acontece quando vamos ao dentista

— Sim. Todos os seus sinais vitais são monitorados durante toda a
jornada. — Do outro lado da tela, uma garota adolescente se reclinava em
uma cadeira longa e almofadada. — Você também será sedada com um
tipo de anestésico. É um processo completamente indolor e inofensivo.
Você desperta uma semana depois, um pouco sonolenta, mas muito mais
rica. — Ele mostrou aqueles dentes novamente.

Eu me forcei a reprimir um gemido.

— O que acontece durante a semana?

— Ela tem a oportunidade de ser você. — Ele mostrou as palmas e as
girou. - Você conhece os implantes que permitem a pessoas que tiveram as
mãos amputadas movimentarem as próteses substitutas? Elas
simplesmente pensam no movimento e ele acontece. É muito parecido.

— Quer dizer que ela visualiza a si mesma como se fosse eu e, se
quiser alguma coisa, pensa dessa maneira e minha mão pega o que ela
quer?

—Exatamente como se ela estivesse em seu corpo. Ela usa a mente


para caminhar para fora daqui em seu corpo e consegue ser jovem
novamente. — Ele apoiou o cotovelo sobre a outra mão. — Durante algum
tempo.

— Mas como...?

Ele apontou o outro lado da tela.

— Deste lado, em outra sala, a doadora — no caso, você — está
conectada ao computador por uma MX sem fio.

— Sem fio?

— Nós inserimos um pequeno neurochip na parte de trás de sua
cabeça. Você não vai sentir nada. É totalmente indolor. O neurochip
permite que você esteja conectada ao computador a qualquer momento.
Nós conectamos suas ondas cerebrais ao computador e ele conecta vocês
duas.

— Conecta. — Minhas sobrancelhas se franziram enquanto eu
tentava imaginar duas mentes conectadas daquela maneira. ICC.
Neurochip. Inserido. Ficava mais assustador a cada minuto, O impulso de
sair correndo estava voltando com muita intensidade. Mas, ao mesmo
tempo, eu queria saber mais

— Eu sei, tudo é muito novo. — Ele me deu um sorriso torto e
condescendente. — Nós fazemos de tudo para ter a certeza de que você
está completamente adormecida. A mente da inquilina toma conta de seu
corpo. Ela responde a uma série de perguntas feitas pela equipe para ter
certeza de que tudo está funcionando como deveria. Em seguida, ela está
livre para desfrutar do corpo que alugou.

O diagrama mostrava gráficos do corpo alugado jogando golfe, jogando
tênis e praticando mergulho.

— O corpo retém sua memória muscular. Portanto, quaisquer
esportes que você pratique, ela será capaz de praticar também. Quando o
contrato chega ao fim, a inquilina volta até aqui com seu corpo. A conexão
é finalizada na sequência correta. Os sedativos são removidos do
organismo da inquilina. Ela é examinada e prossegue com sua vida. Você,
a doadora, tem todas as suas funções cerebrais restauradas pelo
computador. Você desperta em seu próprio corpo com a sensação de que


passou vários dias dormindo.

— E se alguma coisa acontecer comigo enquanto ela estiver em meu
corpo? Por exemplo, fazendo snowboarding ou saltando de paraquedas? O
que acontece se eu me machucar?

— Isso jamais aconteceu aqui. Nossos clientes assinam contratos que
os responsabilizam legalmente por qualquer problema. Pode acreditar em
mim, todos os inquilinos querem seus depósitos de volta.

Ele me fazia sentir como se eu fosse um carro de aluguel. Um calafrio
percorreu meu corpo, como se alguém esfregasse um cubo de gelo contra
minha coluna. Aquilo me fez lembrar de Tyler, a única coisa que me
mantinha naquela cadeira.

— E o que acontece com o chip? —perguntei.

— Ele é removido após seu terceiro contrato de aluguel. — Ele me
entregou uma folha de papel. — Leia. Talvez isso faça com que você se
sinta mais confortável.



Regras da Prime Destinations para Inquilinos



1. Não é permitido alterar a aparência de seu corpo de aluguel de
maneira alguma, incluindo, mas não limitado a, piercings, tatuagens,
cortes ou tintura de cabelos, lentes de contato cosméticas e quaisquer
procedimentos cirúrgicos, incluindo implantes de silicone.

2 Não é permitido fazer qualquer mudança nas arcadas dentárias,
incluindo obturações, remoções e incrustações de joias.

3. O inquilino deve permanecer dentro de um perímetro de 80
quilômetros ao redor da sede da Prime Destinations. A empresa fornece
mapas da região.

4. Qualquer tentativa de acessar, modificar ou adulterar o neurochip
resultará no cancelamento imediato do contrato, sem direito a reembolso,
e as multas contratuais serão aplicadas.

5. Se houver algum problema com o corpo de aluguel, retorne à Prime
Destinations assim que for possível. Por favor, trate o corpo de aluguel
com cuidado, lembrando-se sempre de que o corpo, na realidade, é uma


pessoa jovem e viva.

Advertência: Todos os neurochips impedem que inquilinos se
envolvam em atividades ilegais.



Aquelas regras não fizeram com que eu me sentisse melhor. Na
verdade, me faziam pensar em outros problemas, coisas que nem mesmo
havia considerado.

— E quanto a... outras coisas? — eu perguntei.

—Como o quê, por exemplo?

— Não sei. — Eu preferia que ele não me forçasse a falar sobre isso,
mas era o que ele faria. — Sexo?

— O que você quer saber a respeito?

— As regras não falam nada sobre isso — eu disse.

Tinha certeza de que nâo queria que minha primeira vez acontecesse
enquanto eu não estivesse ali.

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Nós deixamos isso muito claro para os inquilinos. É proibido.

Ah, sim, com certeza. Pelo menos a gravidez seria impossível. Todos
sabiam que isso era um efeito colateral temporário das vacinações. Se tudo
corresse bem.

Senti meu estômago se revirar. Afastei os cabelos que me cobriam os
olhos e me levantei.

— Obrigada por sua atenção, Sr. Tinnenbaum. E pela demonstração.
Percebi que os lábios dele se retorceram. Ele tentou encobrir a expressão
com um sorriso forçado.

— Se assinar conosco hoje, nós lhe daremos um bônus. Ele retirou
um formulário de sua gaveta e rabiscou alguma coisa no papel, deslizando-
o em seguida por sobre a mesa em minha direção.

— O contrato é válido para três aluguéis. — Ele tampou a caneta.

Peguei o contrato. Todo aquele dinheiro seria suficiente para comprar
uma casa para nós e comida suficiente para um ano. Voltei a me sentar e
respirei fundo.

Ele estendeu a caneta. Eu a peguei.


— Três aluguéis? —perguntei.

— Sim. Você receberá o pagamento ao final do contrato.

O papel dançava sobre a mesa. Percebi que minha mão estava

—É uma oferta bastante generosa — disse ele. — Isso inclui o bônus,
caso você assine hoje.

Eu precisava daquele dinheiro. Tyler precisava.

Com a caneta nas mãos, o borbulhar da fonte começou a soar mais
alto em minha cabeça. Olhava fixamente para o papel, mas via flashes do
batom vermelho opaco, dos olhos do porteiro e dos dentes artificiais do sr.
Tinnenbaum. Pressionei a caneta contra o papel, mas, antes de fazer
qualquer marca, olhei para ele. Talvez eu quisesse uma última garantia de
que tudo correria bem. Ele assentiu e sorriu. O terno que ele usava era
perfeito, exceto por um fiapo branco na lapela. Tinha a forma de um ponto
de interrogação.

A expectativa que ele sentia era quase palpável. Antes que percebesse,
eu já havia colocado a caneta sobre a mesa.

Os olhos dele se estreitaram.

— Algum problema?

— Lembrei-me de uma coisa que minha mãe sempre dizia.

— E o que ela dizia?

— Que é importante analisar cuidadosamente uma decisão
importante. Preciso pensar a respeito.

Os olhos dele assumiram uma expressão fria.

— Não posso garantir que a oferta será a mesma daqui a alguns dias.

— Acho que vou ter que assumir o risco. —Dobrei o contrato,
coloquei-o no bolso e me levantei da cadeira. Forcei um leve sorriso.

—Você tem condições de fazer isso? — Ele se interpôs entre a porta
de saída e minha cadeira.

— Provavelmente não. Mas preciso pensar na oferta. — Eu me
levantei e o contornei, indo até a porta do escritório.

— Telefone se tiver alguma pergunta — ele disse, elevando um pouco
a voz.

Passei rapidamente pela mesa da recepcionista, que parecia estar


irritada por eu sair depois de tão pouco tempo. Ela me seguiu com os olhos
enquanto apertava algo que eu imaginava ser um botão de emergência.
Continuei avançando. O porteiro me olhou fixamente através da porta de
vidro antes de abri-la.

— Já vai embora? — Aquela expressão vazia era quase cadavérica.

Acelerei ainda mais o passo, deixando-o para trás.

Quando saí do prédio, o ar fresco do outono atingiu meu rosto.
Inspirei aquele ar conforme andava por entre a multidão de Enders que
enchia a calçada. Acho que fui a única pessoa que recusou a oferta de
Tinnenbaum, a única que não caiu naquela conversa de vendedor. Mas eu
sabia que não devia confiar nos Enders.

Caminhei pelas ruas de Beverly Hills, balançando a cabeça,
decepcionada, ao perceber os bolsões de riqueza que ainda restavam
depois de mais de um ano do fim da guerra. Aqui, somente uma em cada
três lojas estava abandonada. Roupas de grife, aparelhos eletrônicos e lojas
de robôs, tudo feito para que os Enders ricos pudessem satisfazer sua sede
pelo consumo. Era um bom lugar para procurar por coisas usadas. Se
alguma coisa quebrasse, eles teriam que jogá-la fora, pois não havia
ninguém capaz de consertá-la. Também era impossível conseguir peças de
reposição.

Eu mantinha a cabeça baixa. Embora não estivesse fazendo nada de
ilegal naquele momento, se algum inspetor me abordasse, eu não
conseguiria mostrar qualquer documento que menores adotados tinham
que carregar consigo.

Enquanto esperava um semáforo abrir, um caminhão parou à minha
frente com um bando de Starters de cara amarrada, sujos e esfarrapados,
sentados com as pernas cruzadas na carroceria, e uma pilha de pás e
picaretas no meio da carreta. Uma garota com a cabeça enfaixada olhou
fixamente para mim, com olhos que pareciam mortos.

Vi uma ponta de inveja nela, como se achasse que minha vida fosse
melhor que a sua. Quando o caminhão se afastou, a garota cruzou os
braços, como se quisesse abraçar a si mesma. Mesmo que minha vida
fosse ruim, a dela era pior. Devia haver uma forma de sair dessa situação


insana. Alguma maneira que não envolvesse aquele banco de corpos
assustador ou trabalho escravo legalizado.

Andei pelas ruas secundárias, evitando a área da Avenida Wilshire,
um lugar que naturalmente atraía os inspetores. Dois Enders, empresários
com sobretudos pretos, estavam vindo em minha direção. Desviei o olhar e
enfiei as mãos nos bolsos. No bolso esquerdo estava o contrato. No direito,
os chocolates embrulhados em papel.

Amargo e doce.

Os bairros foram perdendo sua beleza conforme me afastava de
Beverly Hills. Eu desviava de pilhas de lixo que esperavam por caminhões
de coleta que há muito tempo não passavam por aquela área. Olhei para
cima e percebi que estava passando por um prédio coberto com uma lona
vermelha. Contaminado. Os últimos mísseis de esporos caíram há mais de
um ano, mas as equipes especializadas em materiais perigosos ainda não
haviam conseguido descontaminar o local. Cobri meu nariz com a manga
de meu blusão, como meu pai me ensinara, e apressei o passo.

A luz do dia estava diminuindo e eu conseguia andar com mais
liberdade. Peguei minha lanterna de pulso e a afivelei às costas da mão
esquerda, mas não a liguei. Havíamos quebrado as luzes dos postes destas
ruas. Precisávamos da proteção das sombras para que as autoridades não
conseguissem nos capturar com uma justificativa qualquer. Queriam
muito nos trancafiar em alguma instituição. Eu nunca estivera dentro de
uma dessas, mas ouvira falar muito a respeito. Uma das piores, a
Instituição 37, ficava a apenas alguns quilômetros de onde eu morava.
Ouvi quando outros Starters falavam a respeito.

Quando eu estava a duas quadras do prédio onde morava, a escuridão
já era quase completa. Liguei minha lanterna. Um minuto depois, percebi
as luzes de duas outras lanternas de pulso que se moviam do outro lado da
rua, aproximando-se. Quem quer que estivesse com suas lanternas ligadas,
eu esperava que fossem camaradas. Ainda assim, no mesmo momento, as
duas luzes se apagaram.

Renegados.

Meu estômago se revirou e meu coração saltou para a garganta. Corri.


Não tinha tempo para pensar. Meu instinto me levou em direção a meu
prédio. Uma garota daquela dupla, alta e de pernas longas, com uma
tatuagem no rosto, conseguiu encurtar a distância. Ela estava logo atrás de
mim, estendendo as mãos para agarrar minha blusa.

Forcei minhas pernas a correr mais rápido. A porta lateral para o meu
prédio estava a apenas meio quarteirão de distância, esperando por mim.
Ela tentou novamente e, desta vez, conseguiu agarrar meu capuz.

Caí quando ela me puxou e senti meu corpo bater com força na
calçada. Minhas costas doíam e minha cabeça parecia zumbir. Ela montou
sobre mim como faria com um cavalo e começou a revistar meus bolsos.
Seu amigo, um garoto mais novo, voltou a ligar sua lanterna de pulso e a
apontou para meus olhos.

— Não tenho dinheiro. — Apertei os olhos, tentando afastar as mãos
dela com tapas.

Ela atingiu as laterais de minha cabeça com as palmas abertas,
acertando minhas orelhas com força. Um truque sujo das ruas, que fazia a
cabeça da vítima retinir com a dor.

— Não tem dinheiro para mim? — disse ela. Aquelas palavras
abafadas reverberavam dentro de minha cabeça. — Então, você acabou de
se encrencar ainda mais.

Uma onda de adrenalina me deu forças para mover o braço e eu lhe
acertei um soco direto no queixo. Ela quase perdeu o equilíbrio, mas
conseguiu se endireitar antes que eu saísse de debaixo dela.

— Agora você vai morrer, neném.

Eu me contorcia e me agitava, mas ela me imobilizou com coxas que
pareciam feitas de aço. Levantou o punho e colocou todo o peso do corpo
naquele golpe. Movi a cabeça para o lado no último segundo e o punho
dela atingiu o asfalto. Ela gritou.

Aquele grito me deu o impulso de que eu precisava para sair de
debaixo dela enquanto a garota segurava o punho, tentando aplacar a dor.
Meu coração estava pulando com tanta força que parecia querer sair de
meu peito. O outro garoto se aproximou com uma pedra. Minha respiração
saía em arfadas estranguladas enquanto eu me levantava.


Alguma coisa caiu de meu bolso. Todos pararam para olhar.

Uma das preciosas supertrufas.

— Comida! — gritou o amigo da garota, apontando a lanterna para o
chão.

A garota rastejou em direção ao doce, protegendo a mão esmigalhada
contra o peito. Seu amigo se jogou no chão e pegou a supertrufa. Ela
agarrou a mão dele, arrancou um pedaço da trufa e o engoliu. Ele devorou
o resto. Eu corri em direção à entrada lateral de meu prédio. Empurrei a
porta de entrada, minha porta, e depois me agachei para passar por ela.

Comecei a rezar para que não entrassem em meu prédio. Minha
sobrevivência dependia de eles sentirem medo de meus camaradas e de
quaisquer armadilhas que eu houvesse instalado. Apontei minha lanterna
para verificar a escada. Estava livre. Subi até o terceiro andar e espiei por
uma janela suja. Na rua, os ladrões renegados se afastavam rapidamente,
como ratos. A parte de trás de minha cabeça doía depois da queda no
asfalto, mas eu havia conseguido voltar para casa sem cortes profundos ou
ossos quebrados. Coloquei a mão sobre o peito e tentei respirar com mais
tranquilidade.

Foquei minha atenção no interior do prédio e examinei os lugares
habituais. Agucei os ouvidos para tentar escutar alguma coisa, mas eles
ainda zuniam após a briga. Balancei a cabeça para tentar espantar aquele
barulho.

Nenhum som novo. Nenhum habitante novo. Nenhum perigo. O
escritório no fim do corredor me atraía como um farol, a promessa de um
sono tranquilo. Nossa pilha de escrivaninhas formava uma barricada no
canto, isolando uma parte da sala cavernosa e vazia e dando a ilusão de
conforto. Provavelmente Tyler já estaria dormindo. Coloquei a mão nos
bolsos e toquei as supertrufas que ainda restavam ali. Talvez fosse melhor
lhe fazer uma surpresa pela manhã.

Mas eu não conseguia esperar.

— Ei, acorde. Eu trouxe uma coisa para você.

Quando dei a volta nas escrivaninhas, não havia nada. Nada de
cobertores, nada de irmão. Nada, Os poucos pertences que tínhamos


haviam desaparecido.

— Tyler? — eu chamei.

Senti um nó começando a se formar em minha garganta. Corri para a
porta, mas, assim que cheguei ali, um rosto apareceu.

— Michael!

Michael balançou sua cabeleira loira.

— Callie.

Ele colocou a lanterna de pulso sob o queixo e fez uma careta de
susto. Não conseguiu resistir e explodiu em uma gargalhada.

Se ele estava rindo, Tyler provavelmente estava bem. Eu lhe dei um
empurrão.

— Onde está Tyler?

—Tive que levar as coisas de vocês para meu quarto. Uma goteira
apareceu aqui. — Ele apontou sua lanterna para uma mancha escura no
teto. — Espero que não haja problemas.

— Não sei. Depende de suas habilidades com decoração de interiores.

Segui em direção a uma sala do outro lado do corredor. Na parte de
dentro, em dois cantos diferentes, as escrivaninhas formavam nichos
aconchegantes e protetores. Conforme me aproximei, vi que ele havia
recriado o posicionamento exato de nossos pertences. Entrei no nicho que
ficava no canto mais distante e vi que Tyler estava sentado contra a
parede, com o cobertor sobre as pernas. Ele parecia pequeno demais para
seus 7 anos. Talvez tenha sido o pensamento momentâneo de perdê-lo, ou
o fato de que fiquei fora o dia inteiro, mas parecia que eu o estava vendo
pela primeira vez depois de um bom tempo. Ele havia emagrecido desde
que começamos a morar nas ruas. Precisava de um corte de cabelo.
Sombras escureciam seu rosto, logo abaixo dos olhos.

— Onde você estava, Cara de Macaco? — a voz de Tyler estava rouca.

Esforcei-me para afastar a expressão de preocupação.

— Estava na rua.

— Você ficou fora o dia inteiro.

—Mas você estava com Michael. — Eu me ajoelhei a seu lado. —E
demorei um bom tempo para encontrar um presente especial para você.


Um leve sorriso se formou nos lábios dele.

— O que você me trouxe?

Tirei um dos copinhos de papel do bolso e desembrulhei o chocolate
enriquecido com vitaminas. Era do tamanho de um biscoito. Os olhos dele
se arregalaram.

— Uma supertrufa? — ele olhou para Michael, que estava ao meu
lado. — Uau!

— Trouxe duas — eu disse, mostrando a outra. — As duas são para
você.

Ele balançou a cabeça.

— Fique com uma.

— Você precisa das vitaminas — eu disse.

— Você já comeu hoje? — perguntou ele.

Eu olhei para ele. Será que conseguiria mentir sem que ele
percebesse? Não, ele me conhecia muito bem.

— Vocês podem dividir a outra — disse Tyler.

Michael deu de ombros e seu cabelo caiu por sobre um dos olhos,
naquela maneira bela e tranquila que o definia.

— Não dá para discutir desse jeito.

Tyler sorriu e segurou minha mão.

— Obrigado, Callie.

Nós comemos as supertrufas, sentados ao redor de uma escrivaninha
posicionada no meio da sala. Ela servia como nossa mesa de jantar, com a
lanterna de pulso de Michael no meio, regulada para funcionar como uma
vela. Cortamos os chocolates em pedaços pequenos e começamos a
brincar, dizendo que a primeira mordida era o aperitivo, a segunda era o
prato principal e a terceira era a sobremesa. Era como morder um pedaço
do céu, aqueles chocolates doces e grossos, uma mistura de brownie e
brigadeiro, um sabor forte e pungente em nossas línguas. Eles
desapareceram logo.

Tyler pareceu se animar depois de comer. Cantou uma canção para si
mesmo enquanto Michael apoiava o queixo sobre uma mão e olhava para
mim, do outro lado da mesa. Eu sabia que ele estava ansioso para


perguntar sobre o banco de corpos. E talvez sobre outras coisas, Vi os
olhos dele passando por meus novos cortes e arranhões.

— As trufas me deixaram com sede — eu disse.

— A mim também — disse Tyler.

Michael se levantou.

— Acho que é melhor encher as garrafas d’água.

Ele pegou nossas garrafas, que ficavam penduradas por correias atrás
da porta, junto com o balde que usávamos para nos lavar. Em seguida,
saiu.

Tyler pousou a cabeça sobre o tampo da escrivaninha. A animação
pelos chocolates estava cobrando seu preço. Acariciei seus cabelos
delicados e seu pescoço. O blusão havia lhe caído por cima de um dos
ombros, expondo a cicatriz da vacina. Deslizei meu dedo sobre ela, grata
pela presença daquela pequena marca. Se não fosse por ela, estaríamos
todos mortos, como nossos pais. Como todas as pessoas que tinham entre
20 e 60 anos. Nós, assim como os Enders idosos, éramos os mais
vulneráveis, então fomos os primeiros a receber as vacinas contra os
esporos genocidas. Agora, éramos os únicos que restavam. Não era
irônico?

Depois de alguns minutos, Michael voltou com as garrafas d’água
cheias. Fui até o banheiro onde ele havia deixado o balde. Na primeira
semana após chegarmos ao prédio, ainda havia água corrente. Eu suspirei.
As coisas eram muito mais fáceis antes de termos que roubar água dos
canos externos quando ninguém estava olhando.

A água fria era refrescante, apesar de estarmos em novembro e de o
prédio não contar com aquecimento central. Joguei água sobre os cortes
em meus braços e rosto.

Quando voltei para o quarto, Tyler estava acomodado em nosso canto.
Michael estava deitado sob o pequeno forte de escrivaninhas, idêntico ao
nosso, do outro lado do quarto. Se alguém conseguisse entrar, um de nós
seria capaz de acertar o intruso pelas costas. Michael tinha um cano de


metal. Eu tinha um miniZip Taser1 que pertencera a meu pai. Não era tão
forte quanto o Zip Taser de um inspetor, mas eu confiava naquela arma.
Era triste perceber como aquele objeto me trazia uma sensação de
conforto.

1 Tasers são armas não letais que funcionam com a aplicação de uma forte descarga elétrica na vítima, que a deixa
paralisada. São utilizadas por policiais e empresas privadas de segurança em vários países, embora não sejam
consideradas instrumentos legais em todos eles (N. T.).

Sentei-me sobre meu saco de dormir e tirei os sapatos. Tirei também
meu blusão e entrei no saco de dormir, como se estivesse me preparando
para cair no sono. Acrescentei pijamas à lista de coisas de que sentia falta.
Feitos de flanela, ainda quentes após saírem da secadora de roupas. Eu
estava cansada de sempre estar vestida, pronta para fugir ou lutar. Queria
muito ter pijamas felpudos e a oportunidade de dormir profundamente,
esquecendo do resto do mundo.

— Michael trouxe nossas coisas para cá — disse Tyler, apontando sua
lanterna de pulso para nossos livros e tesouros sobre as escrivaninhas que
nos cercavam.

— Eu sei. Foi muito gentil ele fazer isso.

Ele apontou a lanterna para um cachorro de brinquedo.

— Assim como era antes.

No começo, pensei que ele se referia à vida em nossa antiga casa, mas
percebi que estava falando do dia anterior. Michael fizera questão de
organizar nossos pertences exatamente como estavam na outra sala. Ele
sabia o quanto eles eram preciosos para nós.

Tyler abriu nosso holoálbum. Ele fazia isso em algumas noites, quando
se sentia particularmente triste. Ele o segurava em sua palma e avançava
por entre os holos — nossa família na praia, nós dois brincando na areia,
nosso pai praticando tiro ao alvo, o casamento de nossos pais. Meu irmão
parou no mesmo lugar em que sempre se detinha — uma imagem de
nossos pais em um cruzeiro, capturada há três anos, pouco tempo antes de
as batalhas começarem no Oceano Pacífico. Era sempre difícil ter que
ouvir o som das vozes deles:

— Estamos com saudades, Tyler. Amamos você, Callie. Cuide bem


de seu irmão.

No primeiro mês, eu chorava sempre que ouvia essas vozes. Em
seguida, parei. Elas pareciam vazias agora, como se viessem de atores sem
nome.

Tyler nunca chorava. Ele continuava a absorver aquelas palavras,
incansavelmente. Isso era a mamãe e o papai para ele.

— Já chega. Hora de dormir — eu disse, estendendo a mão para
desligar o álbum.

— Não. Eu quero lembrar — seu olhar me implorava.

— Está com medo de esquecer?

— Talvez.

Toquei a lanterna que estava amarrada a seu pulso.

— Você lembra quem inventou isso?

Tyler concordou com um aceno de cabeça, estendendo o lábio
inferior.

— O papai.

— Isso mesmo. Com a ajuda de outros cientistas. Assim, sempre que
vir essa luz acesa, pense que é o papai que está cuidando de você.

— Você faz isso?

— Todos os dias — eu disse, acariciando sua cabeça. — Não se
preocupe. Prometo que nunca vamos nos esquecer deles. Nunca.

Para substituir o holoálbum, entreguei a Tyler seu brinquedo favorito,
o único que ele tinha agora, um pequeno cão-robô. Tyler o aninhou em
seu braço e o brinquedo entrou no modo de operação noturno, deitando-se
como se fosse um cachorro de verdade. Exceto pelos olhos verdes
brilhantes.

Coloquei o holoálbum de volta à escrivaninha acima de nós. Tyler
tossiu. Puxei a capa de seu saco de dormir para lhe cobrir o pescoço. Toda
vez que ele tossia, eu tinha que me esforçar para não ouvir a voz do médico
ecoando em minha mente: ‚Doença pulmonar rara... talvez possa ser
curada, talvez não‛. Observei o peito de Tyler subir e descer e ouvi a
respiração mais profunda do sono tomar conta dele. Após alguns
momentos, saí do saco de dormir e olhei por entre as mesas.


A lanterna de pulso de Michael brilhava contra a parede. Joguei meu
blusão por cima dos ombros e me aproximei.

— Michael? —. sussurrei.

— Pode vir — ele disse, em voz baixa.

Entrei na pequena fortaleza que ele construíra. Eu gostava de estar ali,
cercada pelos desenhos que ele fazia com lápis e carvão, seus apetrechos
artísticos preenchendo cada nicho e espaço. Ele desenhava cenas da
cidade, interpretando nossa paisagem de prédios vazios, camaradas e
renegados, completos com lanternas de pulso, várias camadas de roupas
desgastadas e esfarrapadas e garrafas d’água amarradas a tiras de plástico,
jogadas por sobre os corpos magros.

Ele fechou o livro que estava lendo e se sentou com as costas contra a
parede, fazendo um gesto para que eu me sentasse a seu lado sobre o
cobertor do exército.

— E então, o que aconteceu com seu rosto?

Toquei minha bochecha. Ela ardia.

— Está muito feio?

— Tyler não percebeu.

— Só porque está muito escuro aqui.

Eu me sentei em frente a ele, com as pernas cruzadas.

— Renegados?

Confirmei com a cabeça.

— Sim. Mas estou bem.

— Como era o lugar?

— Esquisito.

Ele ficou em silêncio por um momento. Sua cabeça pendia.

— O que foi? — perguntei.

Michael levantou a cabeça.

— Eu estava preocupado. Achei que você não voltaria mais.

— Eu prometi que voltaria, não foi?

Ele assentiu.

— Sim, mas eu estava pensando... e se você não conseguisse voltar?

Eu não tinha uma resposta para aquela pergunta. Ficamos sentados


por um momento até que ele finalmente quebrou o silêncio.

— E então, o que você achou sobre a proposta?

— Você sabia que eles inserem um neurochip aqui? — Apontei para a
parte de trás de minha cabeça.

— Onde? Deixe-me ver — disse ele, tocando meu cabelo.

— Eu já disse, fui lá só para conhecer o lugar.

Percebi a preocupação que ele tinha no rosto, o olhar suave e gentil
com o qual ele me encarava. É engraçado, eu nunca havia reparado muito
nele quando morávamos na mesma rua. É estranho pensar que a Guerra
dos Esporos é que tinha nos aproximado.

Enfiei as mãos nos bolsos e senti alguma coisa. Uma folha de papel.

Eu a puxei para fora.

— O que é isso? — perguntou ele.

— O homem no banco de corpos me entregou esse papel. É o
contrato.

Michael se inclinou em minha direção.

— Esse valor é o quanto eles vão pagar? — Ele arrancou o contrato de
minhas mãos.

— Devolva isso.

Ele leu o contrato.

— ‚... três conexões.’

— Não vou assinar.

— É melhor assim — disse ele, ficando em silêncio logo depois. —
Mas por quê? Eu a conheço, Callie. Você não está com medo.

— Eles nunca vão pagar todo esse dinheiro. É impossível. Foi o que
me fez perceber que era hora de sair de lá.

— Como eles conseguem burlar a lei? Não podem contratar Starters.

Dei de ombros.

— Deve haver alguma brecha.

— É algo que passa despercebido. Ninguém vê qualquer propaganda
ou anúncio dessa empresa.

Ele tinha razão.

— Só fiquei sabendo a respeito deles quando o cara que morava no


primeiro andar me falou.

— Provavelmente ele ganha dinheiro para cada Starter que consegue
levar até lá.

— Ele não vai ganhar nenhum dinheiro comigo — eu disse. Deitei de
lado, apoiando a cabeça sobre a mão. — Não confio naquele lugar.

— Você deve estar cansada. Foi uma longa caminhada.

— Cansada é pouco.

— Amanhã nós vamos até a doca de carregamento para tentar
conseguir algumas frutas.

As palavras dele pareciam se esmaecer no ar e eu sentia meus olhos
ficando pesados. Em seguida, abri os olhos e ele estava sorrindo para mim.

— Cal... vá dormir — disse ele, gentilmente.

Concordei. Enfiei novamente o contrato no bolso e voltei para perto
de Tyler. Senti meu corpo derreter quando entrei no saco de dormir.

Ajustei minha lanterna para o modo noturno. Ela começou a brilhar
com uma luz suave.

O inverno no sul da Califórnia não era brutal, mas o tempo ia ficar
bastante frio para Tyler. Eu precisava levá-lo para algum lugar aquecido,
uma casa de verdade. Mas como? Essa era minha preocupação ritual de
todas as noites. Esperava que o banco de corpos fosse a resposta, mas não.
Enquanto eu caía no sono, minha lanterna de pulso se apagou.

Meu sono foi interrompido pelo ruído dos detectores de fumaça. Um
cheiro forte tomava minhas narinas. Senti que Tyler, a meu lado, estava se
levantando e tossindo.

— Michael? — chamei.

— Fogo! — ele gritou, do outro lado da sala.

Minha lanterna de pulso mostrava que eram 5 horas da manhã. Tateei
ao redor para encontrar minha garrafa d’água e a abri. Abri uma gaveta
acima de mim e retirei uma camiseta, encharcando-a com água.

— Segure isso sobre o nariz — eu disse a Tyler.

A luz da lanterna de pulso de Michael brilhou no meio da fumaça.

— Vamos embora! — gritou ele.

Segurei no braço de meu irmão com firmeza. Nossas lanternas


penetravam parcialmente na cortina de fumaça enquanto nos agachávamos
e andávamos em direção à porta.

Michael colocou a mão em minhas costas, guiando-me em direção à
escada. A fumaça cobria toda a escadaria. Pareceu demorar uma
eternidade, mas conseguimos chegar ao térreo. Minhas pernas estavam
bambas quando conseguimos sair.

Nós nos afastamos do prédio, preocupados com as chamas e com a
possibilidade de que pedaços da estrutura caíssem sobre nós. Na
escuridão do começo da manhã, vimos outros camaradas se aproximando.
Dois deles eram conhecidos, e havia outros três que deviam estar nos
andares mais baixos.

Eles estavam olhando para o prédio, em choque. Eu me virei para
olhar.

— Onde estão as chamas? — perguntei.

— Onde está o fogo? — disse Michael.

— Estão todos aqui? — gritou um homem.

— Sim.

Vi um Ender, talvez com 100 anos de idade, se aproximando. Ele
usava um terno bastante elegante.

— Têm certeza? — O Ender olhava para os camaradas, que acenavam
afirmativamente com a cabeça. — Ótimo.

 O homem levantou a mão e três outros Enders que usavam
uniformes e equipamentos para trabalho na construção civil se
aproximaram. Um deles arrancou a fita que cobria a tranca na porta
lateral. Outro usou ima ferramenta para afixar um aviso. O homem de
terno nos deu uma cópia do aviso.

Michael leu o papel.

— Entrada proibida por ordem do novo proprietário.

— Eles usaram a fumaça para nos tirar de lá — disse um dos
camaradas.

— Vocês devem deixar a área agora — falou o homem de terno. Seu
tom de voz era calmo, mas cheio de autoritarismo. Quando ninguém se
moveu, ele acrescentou: — Vocês têm um minuto para cumprir a ordem.


—Mas nossas coisas... — eu comecei a andar em direção ao prédio.

— Não posso permitir que vocês voltem lá. Isso invalidaria nossa
apólice de seguro — disse o homem de terno.

—Vocês não podem ficar com nossas coisas — disse Michael.

— Invadir e se instalar em um imóvel que não lhe pertence é disse o
Ender. — Estou avisando para seu próprio bem. Trinta segundos.

Senti um aperto no coração.

— Tudo o que temos está lá dentro. Se não podemos entrar, por favor,
tragam nossas coisas para fora.

Ele balançou a cabeça.

— Não há tempo. Vocês têm que ir embora. Os inspetores estão a
caminho.

Isso fez com que os outros camaradas começassem a correr. Coloquei
um braço ao redor de Tyler e me virei para ir embora, mas alguma coisa fez
com que eu parasse. O homem de terno já havia virado as costas para nós,
mas um dos trabalhadores nos viu e fez um sinal para ele. O homem se
virou.

— Por favor. Nossos pais morreram. — Meus olhos ardiam com as
lágrimas. — As últimas fotografias que temos deles estão dentro daquele
prédio. Terceiro andar, no fim do corredor. Será que alguém poderia
apenas nos trazer o holoálbum? Mesmo se tiverem que jogá-lo pela janela?

Ele ficou imóvel por um momento, como se estivesse considerando o
pedido.

— Gostaria de poder fazer isso, mas é impossível. Lamento.

Ele nos deu as costas novamente. Nunca me senti tão vazia por
dentro. Era inútil tentar argumentar com ele. Mais de 100 anos nos
separavam; ele nunca conseguiria entender todo o sofrimento pelo qual
havíamos passado.

— Callie, está tudo bem — disse Tyler, puxando minha mão. —
Podemos nos lembrar deles sem as imagens. Nós não vamos esquecer.

Sirenes começaram a soar.

— São os inspetores — disse Michael. — Corram!

Não tínhamos escolha. Corremos por entre a escuridão do início da


manhã, deixando para trás os últimos elos físicos que tínhamos com nossa
família e com a vida que tivéramos juntos havia pouco mais de um ano.






























































2



















C
orremos pela rua, fugindo das sirenes dos inspetores. Olhei para trás
apenas por um instante, o suficiente para ver os cabelos prateados e
uniformes em tom cinza-chumbo correndo para fora da viatura. Michael
pegou Tyler nos braços e nós corremos o mais rápido que podíamos. Após
algumas curvas, nos agachamos embaixo de uma passarela entre nosso
prédio antigo e outro prédio de escritórios abandonado.

Ouvimos os inspetores nos perseguindo, mas já estávamos longe da
passarela antes que eles chegassem à entrada, evitando que percebessem
qual foi o caminho que tomamos. Eles tinham armas e mais de 100 anos
de experiência, mas nós tínhamos pernas jovens.

Conseguimos nos esconder em meio aos arbustos no terreno que
havia entre os prédios. Eles estavam ressecados e tinham espinhos, mas
ainda serviam para nos ocultar em meio à escuridão daquela hora. Foi bom
ter andado pelas redondezas para descobrir os possíveis esconderijos
quando nos mudamos para cá. Afastei os galhos, enquanto Michael
colocava Tyler no chão, e nós nos amontoamos ali, entre as moitas.

Os inspetores saíram da passarela. Eu os observei por um buraco que
havia entre os arbustos, examinando seus movimentos. Um deles foi para a
esquerda. O outro veio em nossa direção.

Ouvi um som que vinha da garganta de Tyler, um arfar que sempre
precedia uma tossida. Senti os pelos do meu braço se arrepiarem. Michael


cobriu a boca de Tyler com a mão.

O inspetor estava se aproximando. Será que percebera que estávamos
ali? Ele se agachou e chegou mais perto, com a arma em punho. As
batidas do meu coração ecoavam em meus ouvidos. Agarrei a camisa de
Michael com força e pressionei minha bochecha contra seu ombro.

A mão do inspetor tateou por entre as folhas que estavam diante do
meu rosto, Ele estava tão próximo que eu conseguia sentir o cheiro oleoso
das luvas que ele vestia. Prendi a respiração.

— Ele está aqui! — chamou a voz do outro inspetor.

Logo depois, o som que causou arrepios em nossas espinhas. Um
estalido eletrônico, seguido por um arco elétrico, ecoou em meio ao frio da
noite.

Zip Taser.

Gritos agonizantes soaram após o estalido. Eles nos abalaram
profundamente, fazendo com que nossos dentes doessem e causando a
mesma dor em nossas almas. As folhas do arbusto se agitaram quando
nosso inspetor se afastou correndo.

Encostei meu rosto no buraco nos arbustos para ver. Um garoto estava
deitado no chão, com o rosto virado para baixo. Seus gritos estavam se
transformando em gemidos.

Um dos inspetores o prendeu com algemas automáticas e o forçou a
se virar. Eu o reconheci. Era um dos que vieram morar em nosso prédio há
pouco tempo. A lateral de seu pescoço estava enegrecida, queimada pelo
disparo do Zip Taser. Isso sempre acontecia quando a arma era disparada
muito perto da vítima, ou se estivesse ajustada para disparar a carga
máxima. Eles faziam isso de propósito, para nos marcar.

Ele começou a gritar enquanto amarraram uma correia ao redor de
seus pulsos e do peito, implorando-lhes que o deixassem ir embora. Os
inspetores ignoraram os apelos do garoto, inclinando-o para a frente e
segurando a correia sobre os ombros para arrastá-lo enquanto se afastavam
do lugar. Os calcanhares do garoto arranhavam o chão, e cada
irregularidade no pavimento era pontuada por um grito.

Era como se houvessem capturado um animal.


Eles eram covardes. Faziam aquelas invasões na calada da noite, age
da vista de qualquer Ender mais gentil que pudesse tentar intervir.

Em meio à segurança de nossa cobertura de folhas, nós nos
abraçamos com força. Isso ajudou a manter Tyler aquecido, impediu que
ele tossisse e impediu que qualquer um de nós emitisse o menor som.
Cada grito nos fazia gemer. Se tivéssemos apenas mais alguns camaradas,
poderíamos ter atacado os inspetores pelas costas, mordendo, socando,
arranhando, até que o garoto conseguisse fugir.

Os gritos começaram a soar mais baixos e mais distantes conforme
eles percorreram a passarela. Em seguida, ouvimos a viatura dando a
partida. Eles estavam saindo dali, satisfeitos com uma captura. Haviam
enjaulado sua presa e aquilo era suficiente para preencher sua cota diária.
Mas retornariam amanhã.

Tyler finalmente tossiu, o que levou a mais um acesso de arfadas e
tosse. Nós nos arrastamos para fora dos arbustos para tirá-lo de perto
daquele chão molhado. Michael tirou seu blusão e o colocou ao redor de
Tyler, para que ele tivesse uma segunda camada de roupas sobre o corpo.
Eles ficaram abraçados atrás de um canteiro de concreto enquanto eu
andava de um lado para o outro.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Michael. — Perdemos
nossos sacos de dormir.

— E meu Zip Taser. — Engoli em seco, lembrando-me das armas dos
inspetores. — E também nossas garrafas de água. E todas as coisas que
conseguimos guardar, encontrar ou construir.

Minhas palavras ecoaram no ar frio da noite. A sensação de perda era
definitiva e esmagadora. Em seguida, Tyler deu sua contribuição.

— Meu cão-robô — disse ele.

Seu lábio inferior se projetou para a frente, mas tremeu conforme ele
lutou para não chorar. Não era simplesmente um brinquedo, ou o único —
fora o último brinquedo que ele ganhara de nossa mãe. Se eu fosse uma
pessoa melhor, talvez confessasse que entendia, que estava devastada por
perder as fotografias e vídeos que mostravam nossos pais. Eram gatilhos de
memória, agora desaparecidos. Nossas antigas vidas, aquelas que


tivéramos há pouco mais de um ano, haviam se tornado apenas histórias,
histórias sem qualquer comprovação. O último elo fora quebrado.

Mas eu mantive tudo aquilo dentro de mim. Ceder à emoção não era
uma opção.

— O que vamos fazer? — perguntou Tyler. — Para onde vamos
agora?

Ele estava sofrendo outro acesso de tosse seca.

— Não podemos ficar por aqui — eu disse em voz baixa. — Eles vão
voltar amanhã e vão trazer mais gente, agora que conseguiram capturar um
de nós.

— Conheço outro prédio. Não fica longe. A uns vinte minutos daqui
— disse Michael.

Outro prédio. Outro piso frio e duro. Outro lugar temporário para nos
escondermos. Senti que alguma dentro de mim se quebrava.

— Desenhe um mapa — eu disse, colocando a mão dentro do bolso
de meu blusão e retirando o contrato. Rasguei um pedaço do papel.

— Por quê? — perguntou ele.

— Vou encontrar vocês mais tarde.

Entreguei o papel a Michael e ele começou a desenhar.

— Para onde você vai? — perguntou Tyler, com a voz rouca.

— Vou ficar fora por um dia ou dois. — Eu olhei para Michael. — Sei
onde posso conseguir algum dinheiro.

Michael parou de desenhar e levantou os olhos. Seu olhar se cruzou
com o meu.

— Cal. Você tem certeza?

Olhei para o rosto cansado de Tyler, sua face esquálida, seus olhos
inchados. A fumaça havia piorado os sintomas. Se ele piorasse ainda mais
e não sobrevivesse, eu nunca me perdoaria.

— Não. Mas mesmo assim vou tentar.

Quando entrei em Beverly Hills, eram 8h45. As lojas ainda estavam
fechadas. Cruzei com alguns Enders que usavam joias espalhafatosas e
maquiagem em excesso. A medicina moderna podia facilmente esten3er a
expectativa de vida dos Enders até 200 anos, mas não conseguia ensiná-los


qualquer noção sobre moda ou senso estético. Os Enders gordos abriam a
porta de um restaurante e o aroma de ovos e bacon fritos atiçou meu nariz.
Meu estômago roncava.

Aqueles Enders ricos agiam como se tivessem se esquecido de que
uma guerra acontecera. Queria segurá-los pelos braços, sacudi-los com
força e perguntar: ‚Vocês não se lembram? Não se lembram de que
ninguém estava conseguindo vencer as batalhas do Anel do Pacífico e foi
por isso que eles lançaram os mísseis de esporos contra nós? Não se
lembram de que usamos as armas de pulso eletromagnético para destruir
os computadores dos inimigos, seus aviões e seus mercados de ações?‛

Foi uma guerra, gente. Ninguém venceu. Nem nós, nem os países do
Anel do Pacífico. Em menos de um ano, a face da América mudara para
algumas gotas de Starters como eu em meio a um oceano de Enders de
cabelos prateados — ricos, bem alimentados e despreocupados.

Nem todos eram ricos, mas nenhum deles era pobre como nós,
porque não tínhamos permissão para trabalhar ou votar. Aquela política
mesquinha e insidiosa já existia antes da guerra, com a população que
envelhecia, mas se tornara um problema ainda mais grave no período pós-
guerra. Balancei a cabeça. Detestava pensar na guerra.

Passei em frente a uma pizzaria. Fechada. O holograma na janela
parecia extremamente real, inclusive com o queijo borbulhante. As lufadas
de aroma falso eram uma tentação. Eu me lembrava do gosto, do queijo
quente e pegajoso, do sabor pungente do molho de tomate. Viver nas ruas
durante o último ano significava que eu estava sempre com fome. Mas
uma das coisas de que eu mais sentia falta era comida quente.

Quando cheguei à Prime Destinations, hesitei. O prédio tinha cinco
andares, era isolado de outros prédios nas proximidades e coberto por
vidraças espelhadas. Olhei para meu reflexo nelas. Roupas esfarrapadas,
rosto sujo. Cabelos compridos e embaraçados como cordas. Será que eu
ainda estava ali, em algum lugar, debaixo daquela imagem?

Meu reflexo desapareceu quando o guarda abriu a porta.

— Bem-vinda de volta— disse ele, com um sorriso torto.

Enquanto eu esperava por Tinnenbaum no balcão da recepção,


percebi dois homens discutindo acaloradamente em uma sala de
conferências que ficava em uma das laterais do saguão. Um deles, de
frente para a porta aberta, era Tinnenbaum. Eu via apenas as costas do
outro homem. Ele era mais alto e vestia um casaco elegante de lã preta.
Apenas uma pequena porção de seus cabelos prateados aparecia por baixo
do chapéu que ele usava. Ele bateu suas luvas em uma mão várias vezes e,
em seguida, bateu com elas sobre o tampo da mesa, fazendo com que
Tinnenbaum se sobressaltasse.

Tinnenbaum se moveu para a esquerda, saindo de meu campo de
visão. O homem alto olhava com uma expressão irritada para uma caixa de
vidro que continha equipamentos eletrônicos. Não consegui identificar o
rosto dele no reflexo, mas tive a sensação de que ele estava me
observando, como se, de algum modo, pudesse me olhar sem que eu
percebesse. Os cabelos em minha nuca se eriçaram. Ele parecia estar me
analisando.

Por quê?

Naquele momento, Tinnenbaum saiu da sala sozinho, fechando a
porta atrás de si. Ele veio me cumprimentar com aquele sorriso
perturbador, sua marca registrada.

— Callie. Eu tinha esperança de que voltaríamos a conversar. —
apertou minha mão. — Lamento por fazê-la esperar, meu chefe — disse
ele, indicando a sala de conferências com um movimento de cabeça.

— Tudo bem. Ele deve ser alguém importante.

— Pode-se dizer que ele é a personificação da Prime Destinations —
disse Tinnenbaum, abrindo os braços. — É como se toda a empresa fosse
filha dele.

Eu o acompanhei até o escritório e me sentei em frente à sua
escrivaninha enquanto ele tocava sua aerotela. À minha direita havia um
espelho emoldurado. Provavelmente, um espelho falso escondendo urna
janela de observação, eu imaginei.

— Quem nos indicou a você? — perguntou ele.

— Dennis Lynch.

— E onde você o conheceu?


— Estudávamos na mesma sala. Antes da guerra. — Tinnenbaum
continuava me olhando fixamente, como se eu devesse dizer mais a:guma
coisa. — Depois que a guerra acabou, eu o encontrei na rua. E ele me
falou sobre este lugar.

Eu não queria admitir que encontrara Dennis enquanto morava em
um prédio abandonado. Tinnenbaum sabia que eu era uma sem-teto, mas
não me atreveria a admitir aquilo.

Ele pareceu ficar satisfeito com a explicação

— E quais são os esportes que você pratica?

— Arco e flecha, esgrima, natação. Também sei atirar com rifes.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Rifes?

Meu pai sabia usar armas de fogo. Estava na divisão científica do
exército. Ele me ensinou a atirar.

— Ele faleceu, eu presumo.

— Sim. Minha mãe também.

Ele olhou para minhas roupas.

— Presumo também que você não tenha outros parentes vivos.

É claro que não tenho, seu imbecil. Você acha que eu estaria morando
na rua se tivesse avós?

— Sim, é verdade.

Ele assentiu e bateu a mão na mesa.

— Bem, vamos verificar se você é tão boa quanto parece.

Eu não me mexi.

— A menos que você tenha alguma pergunta?

Eu tinha que perguntar.

— Como vou saber que não serei capturada? Por estar trabalhando?

Ele sorriu.

— Veja bem, não estamos contratando-a para trabalhar. Você estará
doando seus serviços, não trabalhando. Não pode trabalhar conosco
enquanto estiver dormindo — disse ele, rindo. — Assim, você receberá a
quantia generosa que nós lhe daremos como honorários, não como salário.
Ele empurrou a cadeira para trás e se levantou. — Não se preocupe. Essa


é uma situação com benefícios mútuos. Precisamos de você tanto quanto
você precisa de nós. Agora, vamos ver o que você é capaz de fazer.







O sr. Tinnenbaum me apresentou a uma Ender chamada Dons, que foi
designada para ser minha mentora pessoal. Ela tinha o cabelo prateado
típico dos Enders, mas o corpo de uma bailarina. Vestia-se de acordo com
a moda habitual dos Enders, roupas em estilo retrô com toques modernos.
O traje que usava tinha um corte clássico da década de 1940, mas um
cinto de couro ousado contornava sua cintura minúscula. Sem dúvida,
resultado de uma cirurgia de remoção de costelas. Ela me levou até o
ginásio e testou minhas habilidades com esgrima e arco e flecha, além de
medir minha força, resistência e desempenho em exercícios de ginástica.
Eles não iam simplesmente acreditar em minha palavra, caso alguma
Ender aparecesse com o desejo de vencer uma competição de esgrima.

A única coisa que faltava era o tiro ao alvo. Eles não estavam
equipados para testar esse tipo de habilidade e, por isso, tivemos que ir até
uma área de tiro. Tinnenhaum e eu embarcamos na traseira de uma
limusine e o veículo rodou por vinte minutos. Preso naquele espaço
confinado, ele tossiu e franziu o nariz e, em seguida, cobriu-o com seu
lenço. Tenho certeza de que foi por causa de minha fragrância das ruas.
Aquilo nos deixava quites, porque eu não conseguia suportar o cheiro
artificial da colônia que ele usava. Ele nem mesmo olhava para mim,
preferindo ler sua miniaerotela durante todo o trajeto.

Mas consegui atrair a atenção de Tinnenbaum quando estávamos na
área de tiro e o diretor do lugar colocou um rifle nas minhas mãos. Aquele
movimento me empurrou para trás e me fez voltar três anos no tempo,
quando eu tinha 13 anos. Quando meu pai fizera a mesma coisa.

Na época eu tinha protestado, dizendo que o rifle era grande e pesado
demais para mim. Não queria admitir que estava com medo e que preferia
a passar o tempo com ele pescando ou caminhando pelas montanhas.

— Menina Cal, escute com atenção — dissera meu pai. Sempre que


usava aquele apelido especial enquanto falava comigo de maneira séria, ele
conseguia minha atenção. Há uma guerra acontecendo — continuou ele.
— Você precisa aprender a se defender. Defender a si mesma e Tyler.

— Mas a guerra não é aqui, papai — eu dizia.

Naquela época, a guerra acontecia predominantemente no Oceano
Pacífico. Mesmo assim, a resposta de meu pai deixou claro que ele sabia o
que aconteceria.

— Ainda não, Menina Cal — disse ele. — Mas ela vai chegar.

Dois anos depois, a Guerra dos Esporos transformaria todos nós.
Enquanto Tinnenbaum observava com um olhar cético, endireitei e trouxe
o rifle até a posição correta. Fechei um olho e usei outro para alinhara
mira digital como alvo, a silhueta de um homem. Em sega da, fechei os
dois olhos e rapidamente os abri. A arma ainda apontava para o mesmo
ponto. Inspirei o ar e puxei o gatilho.

A bala perfurou o círculo vermelho no meio da testa. O diretor a área
de tiro não disse nada. Apenas fez um movimento com a cabeça para que
eu atirasse novamente. Minha próxima bala passou pelo buraco que a
primeira deixara. Tinnenbaum estava completamente imóvel, olhando
fixamente para o alvo como se aquilo fosse simplesmente um truque.
Outros atiradores, todos eles Enders, pararam de praticar para me observar
enquanto eu alvejava o mesmo alvo, a cada disparo.

Continuamos o teste com uma variedade de armas, e eu também
consegui impressioná-los com o grande número de armas de fogo que
sabia usar. Obrigada, papai

No caminho de volta, Tinnenbaum já não torcia tanto o nariz. Ele
ajustou a base da sua miniaerotela para que eu pudesse lê-la. Meu
contrato estava ali.

Pulei os detalhes até a parte que me interessava: os três aluguéis e o
pagamento. O dinheiro seria o bastante para alugar um apartamento por
dois anos. E subornar um adulto para que assinasse o contrato por nós.

— O valor ainda é o mesmo que estava no contrato antes dos testes.

— Sim.

— Minhas habilidades não deveriam elevar o valor dos honorários? —


eu disse. Por que não arriscar a sorte?

O sorriso de Tinnenbaum desapareceu.

— Você sabe negociar bem. Para uma jovem. — Ele suspirou e
digitou valores mais altos. — O que acha dessa proposta?

Lembrei-me de algo que meu pai me ensinara a perguntar.

— Quais são os riscos? O que pode dar errado? — eu disse.

— Todos os procedimentos envolvem certos riscos. Entretanto, nós
tomamos todas as precauções para proteger nosso patrimônio.

— Ou seja, eu.

Ele concordou com um movimento de cabeça.

— Em doze meses de operação, não tivemos qualquer problema.

Não era muito tempo. Mas eu precisava mais do dinheiro do que de
uma resposta melhor. O que meu pai diria se soubesse o que eu estava
fazendo? Afastei aqueles pensamentos de minha mente.

— A parte mais difícil já acabou — disse Tinnenbaum. — O resto tão
fácil quanto deitar para dormir.

Meu irmão poderia ficar em um lugar aquecido todas as noites. Em
uma casa de verdade. E nós conseguiríamos o lugar depois de apenas três
aluguéis. Toquei a aerotela e minha impressão digital apareceu no
contrato, fechando o negócio. Tinnenbaum olhou pela janela da limusine,
tentando assumir um ar casual. Mas percebi que sua perna estava agitada,
com um tique nervoso incontrolável.

Quando voltamos ao banco de corpos, eu comecei a me perguntar se o
sr. Tinnenbaum me apresentaria ao homem alto que estava ali
anteriormente. Mas não o vimos novamente. Em vez disso, Tinnenbaum
me entregou a Dons.

—Espere até ver o que Dons tem para você.

Ele sorriu e depois desapareceu pelo corredor.

— É hora de começar sua renovação — disse Dons, fazendo um
volteio com o pulso, como se fosse a minha fada-madrinha.

— Renovação?

Doris me olhou de cima a baixo. Minha mão instintivamente tocou
pontas de meus cabelos desgrenhados, como se quisesse impedir que ela


os cortasse.

— Você não está achando que vamos apresentá-la desse jeito, não é?

Puxei a manga do blusão por cima da mão e esfreguei meu rosto. Ela
estendeu a mão para tocar meu braço.

— Você é uma garota de sorte. Vamos lhe dar uma renovação com-
Dieta, da cabeça aos pés.

Ela examinou minha mão. Suas unhas brilhavam com um esmalte
iridescente que me fez lembrar do interior da concha de um marisco. As
minhas davam a impressão de que eu estivera cavando um buraco em areia
manchada com óleo.

— Temos muito trabalho a fazer. — Dons colocou a mão em minhas
costas, guiando-me em direção a uma porta dupla. — Você não vai nem
conseguir se reconhecer quando terminarmos.

— É disso que eu tenho medo.







A primeira parada foi em algo que parecia um lava-rápido de seres
humanos. Fiquei nua em uma plataforma elevada e giratória e me segurei
em uma barra que ficava acima de minha cabeça. Óculos pequenos
protegiam meus olhos enquanto substâncias químicas de cheiro forte eram
lançadas contra meu corpo inteiro. Os óculos com lentes tipo olho-de-
peixe faziam com que tudo parecesse um pouco mais surreal do que já era,
incluindo o fato de que Dons assistia ao processo através de uma janela de
observação. Imensos rolos de espuma surgiram por entre painéis
encurvados, aproximando-se cada vez mais, e eu quase imaginei que seria
esmagada entre eles. Mas respirei fundo quando o material macio assumiu
os contornos de meu corpo e me esfregou da cabeça aos pés. Finalmente,
as máquinas pararam e os rolos de espuma se afastaram para o último
estágio, um jato d’água de alta potência que veio de todos os lados e que
me deu a sensação de que meu corpo estava sendo perfurado por agulhas.

Passei por uma pequena câmara iluminada apenas por luzes azuis e,
em seguida, por um compartimento seco e quente. Na última sala, que se


parecia com um consultório médico, dois Enders usando trajes de
proteção me examinaram para ver se havia contaminação por bactérias.
Eles decidiram que eu estava limpa, e, em seguida, fui levada para uma
série de procedimentos de embelezamento. Em primeiro lugar,
tratamentos a laser. A equipe de Enders disse que iria apenas descobrir
minhas sardas e clarear minha pele adolescente, mas demorou muito
tempo para terminar. Eles não me deixaram ver os resultados, mas
garantiram que eu ficaria contente. Percebi que eles haviam curado
completamente os cortes que as brigas deixaram em minhas mãos.

Depois, vieram manicure, pedicure e, como se eu ainda não estivesse
limpa o suficiente, uma esfoliação do corpo inteiro. A dor do esfregaço, em
uma escala de O a 10, chegaria facilmente ao nível 11. Posteriormente,
Dons me levou para uma sala pequena para conhecer a cabeleireira da
empresa. Era a primeira Ender que eu via cujos cabelos não eram
inteiramente brancos ou prateados. Os dela tinham mechas roxas e eram
totalmente espetados para cima.

Tentei recusar o corte de cabelo.

— Não seja tola. — Dons estava apoiada no balcão, tamborilando as
unhas cada vez mais rápido. — Ela não vai cortar seu cabelo como se você
estivesse prestes a entrar para o exército. Seu cabelo vai continuar longo.
Vamos apenas melhorar o estilo. Talvez com algumas camadas.

Deixei que a Ender de cabelos eriçados pusesse uma capa ao meu
redor, mas o fato de que ela se recusava a deixar que eu me olhasse no
espelho dificilmente inspiraria minha confiança.

Quando ela terminou, no chão havia cabelo suficiente para cobrir um
gato. Eu estava louca para ver os resultados, mas ninguém parecia se
importar. A última torturadora era uma maquiadora chamada Clara, que
passou mais de duas horas escovando e esfregando cores em cada
milímetro de meu rosto. Ela delineou minhas sobrancelhas com laser e
aplicou novos cílios. Doris escolheu algumas roupas para que eu vestisse e
me troquei em uma sala pequena, sem espelhos. Antes que eu pudesse dar
uma olhada em mim mesma, fui levada para outra sala, onde tinha que
ficar contra a parede e posar para a câmera.


Tentei sorrir como a garota ruiva que aparecia no holograma que
Tinnenbaum me mostrou. Acho que não consegui.

Quando saí da sala de holografia, eu me sentia exausta. Não parecia
que eu havia passado por uma renovação; parecia que a renovação havia
me atropelado.

— Terminamos? — perguntei a Dons.

— Por enquanto.

— Que horas são?

— Já é tarde.

Ela parecia tão cansada quanto eu.

— Vou mostrar onde fica seu quarto — disse ela.

— Aqui?

—Você não pode voltar para casa a pé às 11 da noite com essa
aparência — disse Dons, apoiando-se contra a parede e tamborilando as
unhas.

Coloquei a mão no rosto. Estaria tão diferente como ela dizia?

— Não ouviu as histórias de homens ricos que sequestram meninas
bonitas? — perguntou ela.

Eu conhecia algumas.

— São verdadeiras?

— Pode apostar que são verdadeiras. Você estará segura aqui. E
poderá descansar para as atividades de amanhã.

Ela se virou. Eu a segui pelo corredor, ouvindo os saltos de seus
sapatos estalarem contra o piso.

— Eu nem sei qual é minha aparência — eu disse em voz baixa.

Momentos depois, estava deitada em uma cama de verdade. Com
lençóis. E um edredom incrivelmente macio. Havia me esquecido do luxo
de ter uma cama limpa, de como os lençóis deslizavam sobre a pele. Era
como flutuar no paraíso.

Não conseguia evitar tocar meu rosto com as mãos. Minha nova pele
estava incrivelmente lisa. Aquilo me lembrou da pele de Tyler quando ele
era bebê e eu acariciava aquelas bochechas grandes e rosadas. Minha mãe
dizia que, se continuasse fazendo aquilo, iria desgastar as bochechas do


meu irmão.

Tyler.

Comecei a imaginar o que ele estaria fazendo. Será que o novo lugar
que Michael encontrara era seguro? Eles tinham cobertores que os
manteriam aquecidos?

Deitada naquela cama macia com um trilhão de travesseiros, eu me
senti culpada. Embora o quarto fosse apenas outra parte daquele prédio
imenso, ele estava decorado de modo que se parecesse com o quarto de
hóspedes da casa de alguém, com uma jarra enorme de água junto da
cama, junto de um vaso de margaridas. Aquilo me lembrava de nosso velho
quarto de hóspedes, que minha mãe decorou com muito amor.

Olhei para a comida que deixaram ao lado da minha cama: sopa de
batatas, queijo e uma variedade de pacotes de biscoitos. Quase me sentia
cansada demais para comer. Quase. Tomei a sopa e comi o queijo, mas
guardei todos os biscoitos para levá-los para Michael e Tyler, mais tarde,
quando me deixassem sair dali.

Só quando acordei na manhã seguinte é que percebi que faltava algo
naquela imitação de quarto de hóspedes: uma janela. Quando abri as
cortinas de algodão que estavam suspensas sobre a minha cama, tudo que
vi foi uma parede.

Fui até a porta e encostei a orelha nela. Tudo o que conseguia ouvir
era o zunzum de um prédio comercial. Tentei girar a maçaneta para olhar
do lado de fora, mas ela estava trancada. Meu coração se acelerou quando
percebi que estava presa. Respirei fundo duas rezes e disse a mim mesma
que a porta estava trancada para minha proteção.

Eu usava o pijama branco que estava sobre a cama na noite anterior.
Abri o armário para procurar outras roupas, mas, em vez disso, deparei-me
com meu reflexo no espelho de corpo inteiro que havia no lado externo da
porta. Suspirei.

Eu estava linda.

Ainda era meu rosto, com os olhos da minha mãe e o contorno do
queixo que herdei do meu pai, mas tudo estava muito melhor. Minha pele
brilhava com um frescor impressionante. As maçãs do rosto estavam mais


salientes. Era isso que o dinheiro podia fazer. Essa era a aparência que
todas as garotas poderiam ter se tivessem uma quantidade infinita de
recursos. Cheguei mais perto do espelho e olhei meus olhos, que ainda
tinham a maquiagem aplicada no dia anterior.

Há um ano eu não me maquiava. O que Michael diria quando a visse?

Concentrei minha atenção no guarda-roupa. Uma única peça estava
pendurada ali. Uma camisola cirúrgica.

Dons destrancou minha porta e entrou vestindo um blazer
complementado por uma calça comprida, cinto e com um sorriso grande
demais no rosto.

— Bom dia, Callie. — Ela examinou meu rosto. — Dormiu bem?

— Sim, muito.

— Fizeram um ótimo trabalho com você — disse ela. Doris examinou
cuidadosamente meu rosto e se apoiou contra a parede. Ela voltou a
tamborilar a parede com as unhas, um hábito que já estava começando a
me irritar bastante.

— Não se preocupe com a maquiagem. Vamos reaplicá-la mais tarde.
Venha comigo.

Meu estômago roncou. Percebi que a bandeja do jantar da noite
passada desaparecera. Quando isso tinha acontecido?

— Doris?

Ela interrompeu o passo.

— Sim, querida?

— Vamos tomar o café da manhã? — eu perguntei.

— Oh, querida, você vai participar de um banquete mais tarde. Com
tudo de que você gosta.

Ela acariciou meus cabelos. Ninguém fazia aquilo comigo desde que
minha mãe morrera. O gesto me tocou profundamente e senti meus olhos
se encherem de lágrimas. Um nó se formou em minha garganta.

Doris se inclinou em minha direção e sorriu.

— É que não podemos alimentá-la antes de sua cirurgia.








Eu olhava para o teto enquanto eles me empurravam sobre uma maca
através de um corredor que parecia não ter fim. Eu havia afastado o
procedimento de minha mente, mas agora ele estava à minha volta.
Detestava agulhas, detestava facas, detestava ser anestesiada e não ter
qualquer controle. Talvez eles soubessem disso, porque me deram algum
tranquilizante. A textura do teto começou a ficar indistinta, até não passar
de um borrão.

Tinnenbaum disse que a cirurgia seria simples, mas ouvi a conversa
dos médicos quando estava passando pelo exame pré-operatório. Seria
complicada. Eu estava atordoada demais para lembrar dos detalhes.

O Ender enfermeiro, magro e elegante, sorriu para mim enquanto
empurrava minha maca. O que ele estava usando ao redor dos olhos?
Delineador?

Isso era loucura. Eu era uma fracote que ficava com as mãos
encharcadas de suor apenas com a expectativa de receber urna vacina. E
ali estava eu, oferecendo-me voluntariamente para passar por uma cirurgia.

Em meu cérebro, de todos os lugares.

Provavelmente a parte do meu corpo de que eu mais gostava.
Ninguém nunca reclamava sobre ter um cérebro gordo. Ninguém acusava
wu cérebro de ser alto ou baixo demais, largo ou estreito demais. Ou frio.
Ou a coisa funcionava ou não funcionava. E o meu funcionava muito bem.

Comecei a rezar, pedindo que ele continuasse a funcionar bem depois
da cirurgia.

Senti que a maca parou. Eu estava na sala de cirurgia, sentindo-me
assar sob as fortes luzes. O enfermeiro — o nome ‚Terry‛ estava
estampado em seu crachá — tocou meu braço.

— Não se preocupe, neném. Pense no procedimento como aquele
pequeno microchip que colocamos em nossos animais de estimação. Bing,
bang, e, antes que você perceba, já está lá dentro.

Neném‛? Quem era esse Ender? Eu já sabia que aquilo ia além da
instalação de um microchip. Braços se moviam à minha volta. Alguém
colocou um cone sobre minha boca e me disse para fazer uma contagem


regressiva até zero, começando em dez.

— Dez. Nove. Oito.

Tudo se apagou.







Acordei em uma cama, depois do que pareceram ser apenas alguns
segundos. Terry, o enfermeiro, me olhava fixamente.

— Como se sente, neném?

Minha cabeça parecia ser feita de algodão doce, difusa e sem
qualquer contorno.

— Já terminou?

— Sim. O cirurgião disse que foi uma beleza.

— Quanto tempo eu fiquei anestesiada? — Sentia meu corpo se
movendo lentamente enquanto procurava por um relógio. Tudo o que eu
via era uma névoa esbranquiçada.

— Pouco tempo. — Ele examinou meus sinais vitais. — Sente alguma
dor?

— Não consigo sentir nada.

— Isso vai passar. Deixe-me ajudá-la a se levantar.

Ele levantou a parte de cima de minha cama e comecei a me sentir
um pouco mais lúcida. Meus olhos entraram em foco. Eu não reconhecia
aquele quarto.

— Onde estou?

— Em sua sala de conexão. Acostume-se a ela. É onde você fará suas
entradas e saídas.

Era um quarto pequeno, com uma janela que dava para um corredor.
À minha esquerda, um painel que provavelmente era um espelho falso.
Havia várias câmeras prateadas, uma no teto e duas nas paredes. À minha
direita, um Ender alto com óculos de aros pretos e cabelos brancos
compridos, sentado em frente a um computador.

— Aquele é Trax — disse Terry. — Estamos nos domínios dele agora.
Ele é o rei por aqui.


Trax levantou uma das mãos. Grande coisa. Ele podia ser um Ender,
mas, uma vez nerd, sempre nerd.

— Oi, Callie.

Levantei minha mão também. Percebi que havia um bracelete médico
de plástico ao redor de meu pulso.

Trax apontou para vários ícones em sua aerotela.

— E então, Callie? O que vai querer para o almoço?

Já fazia um ano desde que alguém me fizera aquela pergunta pela
última vez. Meus pratos favoritos se enfileiraram em minha cabeça:
lagosta, carne assada... droga, até mesmo uma pizza me deixaria feliz. Seria
demais pedir um cheesecake de caramelo?

Antes que eu pudesse dizer qualquer palavra, Trax abriu um sorriso.

— Então, que tal começarmos com um creme de lagosta e, em
seguida, uma pizza com fatias de carne assada?

Meu queixo caiu.

— Mas como...

— Não se preocupe, não conseguimos ler mentes. Por outro lado, a
escolha daquilo que alguém quer comer é fácil. Nós enviamos seus dados
cerebrais e os comparamos com um pequeno banco de dados para obter os
resultados.

— Não sei se gosto disso.

— Não há problema. O que seu cérebro gosta não importa muito.
Você vai estar adormecida. Precisamos apenas fazer uma conexão firme
narre seu cérebro e o do inquilino. E isso prova que temos uma conexão
entre você e o computador. Seu neurochip está funcionando
perfeitamente. Oba! — disse ele, girando o dedo indicador.

—Eles costumam apresentar problemas? — eu perguntei.

— Computadores costumam apresentar problemas? — riu Trax.

Terry deu palmadinhas em meu ombro. Eu percebi que as unhas
deles estavam pintadas de preto.

— Não se preocupe tanto, neném. Apenas aproveite o passeio.








De volta ao meu quarto de hóspedes, eu estava sentada em uma mesa,
vestindo um roupão. Comi o almoço que haviam trazido para mim. Senti
um pesar profundo por não poder dividir aquela comida com Michael e
Tyler. Estava terminando meu cheesecake quando Dons entrou.

— Viu? Eu disse que iríamos alimentá-la. Já comeu o bastante?

— Estou quase explodindo.

— Não podemos alugar alguém sem que o tanque esteja cheio.

Eu me perguntei se teria visto uma ponta de tristeza nos olhos dela.
Mas. se isso aconteceu mesmo, ela conseguiu afastar a sensação. Doris
abriu o armário e apontou para um cabide com uma camiseta regata cor-
de-rosa e uma calça jeans branca. Também havia roupas íntimas no
cabide, um sutiã modesto com estampa de bolinhas e uma calcinha maior
do que aquelas que eu geralmente usava.

— Pode vestir estas roupas quando terminar de comer. Remova tudo,
inclusive isso — disse ela, apontando para minha lanterna de pulso.

— Posso pegá-la de volta depois? — Cobri a lanterna com minha
outra mão.

— Seus objetos pessoais ficarão guardados em segurança.

— Quem escolheu as roupas? — procurei não levantar a voz. Poderia
ter sido a própria Dons.

Os inquilinos sempre escolhem o guarda-roupa. Clara virá até aqui
para aplicar sua maquiagem e pentear seus cabelos, e você estará pronta
para seu primeiro aluguel.

— Agora?

Ela confirmou com um movimento de cabeça.

— Será apenas por um dia. Sempre agimos dessa maneira. É um
aluguel de teste para nos certificarmos de que tudo está funcionando
conforme o planejado.

— Quem é a inquilina?

Ela cruzou os braços e pareceu se lembrar de um discurso que já havia
pronunciado outras vezes.

—Nós procuramos manter sigilo absoluto. É melhor para os


inquilinos, para você e para nós. É melhor que seja assim. Nós
examinamos nossos clientes com bastante cuidado, então você pode ficar
tranquila. Ela é uma mulher adorável.

— Se é tão adorável assim, então me apresente a ela.

— Não se preocupe. Os inquilinos também assinam contratos. Eles
não podem fazer nada com seu corpo que esteja fora dos limites
estabelecidos. Nenhum esporte que não esteja na lista de atividades
aceitáveis, nada de corridas de carro, paraquedismo ou coisas do tipo. —
Ela colocou o braço ao redor de mim. — Sua segurança e satisfação são
prioridades para nós. Tudo que você tem que fazer é relaxar e receber o
dinheiro ao fim do contrato. Você verá que é bem fácil. Algumas pessoas
voltam para me visitar. E você será uma dessas.

— Uma última pergunta. Vi um homem conversando com o sr.
Tinnenbaum e ainda não fui apresentada a ele.

— Quando?

— No dia em que fiz os testes. Ele era alto, usava um casaco
comprido e um chapéu.

Ela assentiu e baixou o tom de voz.

— Ele é o chefão. O diretor-geral da Prime.

— Qual é o nome dele? — eu perguntei.

— Nós o chamamos afetuosamente de o Velho. Mas nunca diga isso i
E. Agora, pare de pensar tanto e seja feliz.

Era fácil para ela falar. Fazia muito tempo que eu não era feliz. Muito
tempo desde que a vida se resumia a gloss para os lábios, música e amigas
bobas. Muito tempo desde que minhas maiores preocupações eram as
provas da escola ou se havia me esquecido de fazer a lição de casa. Estava
tentando ficar segura, ser livre e conseguir sobreviver.














3



















A
atmosfera na sala de conexão quase estalava com a tensão que havia no
ar. Trax estava sentado em frente ao console do computador, enquanto
Dons e Terry estavam ao meu redor. Eu podia apostar que Tinnenbaum
estava acompanhando tudo por uma das câmeras.

Estava pronta para o que viria a seguir, sentada na cadeira, com
maquiagem e cabelo perfeitos. Dons colocou uma pulseira com pingentes
em meu braço. Era prateada, com pequenos símbolos esportivos.

— É um presentinho que dou a todas as minhas garotas — disse
Dons.

Os pingentes reluziam: uma raquete de tênis, esquis e patins para
hóquei no gelo.

— Toque-os — disse ela.

Ela estendeu a mão sobre mim e, com o dedo indicador, tocou os
patins de hóquei, iniciando uma projeção holográfica de patins girando
sobre o gelo.

— Uau! — Toquei a raquete e uma bola de tênis pareceu voar pelo ar.
— Adorei a pulseira. Obrigada.

Ela pareceu ficar um pouco agitada.

— Ela é muito carinhosa — disse Terry, praticamente cantarolando a
frase.

Ele colocou um avental sobre mim para proteger minhas roupas. Será


que ele achava que eu ia começar a babar?

— Está tudo em ordem agora. Pode se recostar — disse ele,
sussurrando. Não vai despentear seu cabelo — disse Doris, apalpando o
travesseiro. — É feito de seda.

Minha cadeira estava com o encosto na posição vertical. Se tudo
corresse bem, E — ou melhor, meu corpo — não ficaria naquele lugar por
muito tempo.

Minha inquilina estava em algum ponto do prédio. Estava sentada em
uma cadeira como a minha. Em pouco tempo, ela estaria controlando meu
corpo como se fosse eu.

Aquele pensamento me fez estremecer.

— Está com frio? — perguntou Dons.

Terry ficou de prontidão, pronto para me trazer um cobertor.

— Ela está bem — disse Trax. Nossos olhares se cruzaram. Eu não
conseguia esconder nada dele.

Terry trouxe o carrinho de anestesiologia com o cone. Dentro de
pouco tempo, eu estaria inconsciente. Dentro de pouco tempo, meu corpo
pertenceria a outra pessoa.







Eu estava sonhando. E sabia que estava sonhando. Eles não me disseram
que isso poderia acontecer. Mas aqui estava eu, sonhando. Vi Tyler,
correndo para fora de uma casa em frente ao lago. Ele tinha um sorriso
imenso no rosto. Correu pelo gramado e pegou uma vara de pescar.

Parecia saudável. Eu queria contar a Michael, mas não conseguia
encontrá-lo. Corri para dentro da casa, uma residência grande, feita de
madeira. Ele não estava em nenhum dos quartos. Finalmente, eu o
encontrei no ancoradouro, olhando para o lago. Mas, quando corri até ele,
ele se virou, e não era Michael.





Ouvi vozes em algum lugar ao longe. Alguém estava balbuciando.


Reconheci o som. Era a voz de uma mulher. Minha mãe?

— Os olhos dela estavam trêmulos — disse a mulher.

Mãe?

— Callie? Neném? — disse uma voz masculina.

— Não a chame assim.

Abri meus olhos.

— Como se sente? — era uma mulher, mas não minha mãe. Era uma
Ender.

— Callie? — um homem que usava delineador nos olhos se curvou
sobre mim. — Como está se sentindo, garota?

— Onde estou?

A mulher parecia preocupada.

— Você está na Prime Destinations. Acabou de passar por seu
primeiro aluguel.

Eu me lembrava daquela mulher.

—Doris?

Um sorriso aliviado suavizou os contornos de seu rosto.

— Sim, Callie.

— Como foi?

Ela acariciou meu ombro.

— Você foi um enorme sucesso.







Estava louca para saber por onde meu corpo tinha andado. Que esportes
eu praticara? Meus braços não estavam doloridos, nem minhas pernas. Era
muito esquisito não saber onde seu corpo estivera ou o que fizera durante
um dia inteiro. Com quem você conversou, de quem você gostou e de
quem não gostou. E se minha inquilina houvesse irritado alguém? Eu teria
um novo inimigo?

Olhei para meu corpo. Todas as partes pareciam estar inteiras. Um
aluguel estava terminado, ainda faltavam dois.

Trax fez uma lista de perguntas, como se estivéssemos em uma


reunião após a conclusão de um projeto. Não havia muito a dizer; eu não
conseguia me lembrar de nada além do sonho que tivera. Ele se interessou
pelo sonho e registrou o conteúdo. Evidentemente, não era incomum
sonhar. Ele queria saber se eu me sentia relaxada e descansada, e tive que
admitir que era exatamente assim que me sentia.

Terry verificou minha pressão sanguínea e minha temperatura e fez
um sinal afirmativo para Trax.

— Está tudo em ordem, moça — disse ele. — Você já está pronta
para seu próximo aluguel.

— Não tenho alguns dias de folga?

— Por que motivo? Sua inquilina comeu e cuidou de todas as suas
necessidades corporais — disse Trax.

— Não estou falando desse tipo de folga. Preciso ir a um lugar —
disse.

Os olhos dele se arregalaram. Ele se inclinou para a frente e chamou
em voz alta:

— Doris.

Depois de alguns momentos, Doris entrou na sala, com os saltos
estalando contra o piso.

— O que houve, Callie?

— Posso sair agora, antes do próximo aluguel?

— Ir embora? Por quê?

Eu baixei os olhos. Talvez fosse melhor não insistir naquilo.

Ela colocou a mão em minhas costas.

— Por que não continua? Vai terminar antes que você perceba. Nós
investimos muito tempo e dinheiro em você. Por que você quer colocar
seus honorários em risco? Você pode se machucar lá fora. — A mão de
Doris estremeceu, como se o mundo que havia fora da empresa fosse o
inferno.

De certo modo, ela tinha razão. Mas era onde eu morava, afinal de
contas.

— Se não cumprir suas responsabilidades contratuais, fornecendo seu
corpo saudável e em boa forma física, você não receberá o seu amento.


— Você já tem outra inquilina esperando?

— Sim, e ela é...

— ... uma mulher adorável? — Eu revirei os olhos. — Tudo bem,
vamos logo com isso.

— Que maravilha. Desta vez, o período de aluguel será de três dias.







O segundo aluguel passou bem rápido, assim como o primeiro. Aprendi
uma coisa: quando você está inconsciente, o tempo voa. Tive sonhos
estranhos novamente, mas não consegui me lembrar deles. Percebi uma
coisa estranha quando acordei. Havia um corte feio, de cerca de dez
centímetros de comprimento, em meu braço direito. Não doía —
provavelmente haviam usado algum tipo de spray anestésico — mas era
horroroso. Doris me levou para a sala de laser. Eles curaram o ferimento e
não sobrou nem mesmo uma cicatriz, mas eu queria saber o que
acontecera. Não me disseram. Talvez não soubessem.

Doris me levou de volta para seu escritório, uma sala decorada em
tons de branco e dourado, uma espécie de neobarroco. Ela me fez sentar
em frente à escrivaninha e me informou que meu terceiro e último aluguel
duraria um mês inteiro.

— Um mês? — Eu agarrei os braços da cadeira. — Não posso ficar
aqui por tanto tempo.

— É um procedimento normal. Nós começamos com períodos mais
curtos para ter certeza de que tudo está bem, antes de oferecer aluguéis
por períodos mais longos.

— Ninguém me disse que o aluguel seria tão longo. Preciso ver meu
irmão mais novo.

— Seu irmão?— Ela afastou uma mecha de cabelo cacheado que lhe
cobria o olho. — Você nunca disse que tinha um irmão.

— O que há de errado com isso?

— Perguntamos se você tinha algum parente vivo quando assinamos o
contrato e você disse que não tinha nenhum.


— Achei que vocês estavam falando de pais ou avós. Ele só tem 7
anos. Os ombros dela relaxaram.

— Sete anos — disse Doris, olhando para a parede. — Entendo. Bem,
mesmo assim, você não pode sair daqui. Não podemos assumir

— O que pode acontecer de ruim comigo? Você acha que vou acabar
me cortando? — Eu levantei e apontei para o lugar em meu braço onde o
corte estivera antes da cirurgia. — Consigo cuidar de mim mesma melhor
do que suas adoráveis inquilinas.

Ela balançou a cabeça negativamente.

— Lamento, Callie, mas não é assim que as coisas funcionam.

— Quero falar com o sr. Tinnenbaum.

— Tem certeza de que quer fazer isso?

— Absoluta.

Doris falou com o microfone invisível que estava instalado na sala.

— Sr. Tinnenbaum, por favor.

Ela alisou seu terno e passou as mãos pelos cabelos. Em seguida,
começou a tamborilar as unhas na escrivaninha daquela maneira
detestável novamente. Após alguns momentos, o sr. Tinnenbaum marchou
para dentro da sala.

— Callie está pedindo uma licença para visitar... seu irmão — Doris
enfatizou a palavra ‚irmão‛

Tinnenbaum balançou a cabeça negativamente.

— Impossível.

— Ninguém me disse que eu teria que ficar aqui durante um mês
inteiro — eu disse. — Isso não deveria ter sido mencionado antes de tudo
começar?

— Você nunca perguntou a respeito. E não nos disse que tinha um
irmão — disse ele. — Em relação aos agendamentos, nós raramente
sabemos qual será a programação até o processo começar. Foi o que
aconteceu desta vez.

— Mas você sabia que isso poderia acontecer. Eu nem sabia que era
possível fazer um contrato de aluguel com duração de um mês.

— Está no contrato — disse ele.


— Nas letras miúdas? — Eu me virei para Doris. — Algo tão
importante assim deveria ser deixado claro.

— Da mesma forma que você deveria ter nos contado que tinha um
irmão — disse Tinnenbaum.

Doris olhava para o chão.

— Eu realmente preciso vê-lo antes de fazer isso. Preciso dizer a ele
quanto tempo isso vai demorar. Ele tem só 7 anos e eu sou a única pessoa
que ele tem no mundo.

— Talvez possamos enviar alguém para ver como ele está? — Doris
olhou para o sr. Tinnenbaum.

Tinnenbaum fez um movimento negativo, quase imperceptível, com a
cabeça.

— Não quero complicar as coisas. — Fiz questão de me levantar,
tentando ficar o mais alta que podia. — Estou imaginando que o processo
aconteça de maneira bem mais tranquila quando o doador coopera. Mas
não vou me sentir muito solícita se não puder conversar com meu irmão
antes.

Tinnenbaum batia a ponta do pé no chão nervosamente, como se
aquilo o ajudasse a pensar.

— Qual é o horário programado para a conexão de Calhe amanhã? —
perguntou ele a Dons.

— Oito da manhã — disse ela.

Ele bufou como um cavalo.

— Eu lhe darei três horas e um guarda-costas que irá acompanhá-la a
cada segundo. Não faça nenhuma tolice, pois podemos usar o chip em sua
cabeça para monitorá-la. — Ele apontou para mim. — Mantenha esse
corpo exatamente como está. Porque, neste exato momento, ele ainda
pertence a nós.

Não consegui ver os dentes dele uma única vez. Acho que seu estoque
de sorrisos estava esgotado.








Voltei pelo corredor, acompanhando Doris.

— Terei que buscar roupas novas para você — disse ela. — Me
espere em seu quarto.

Ela entrou por outra porta e eu continuei na direção do quarto no qual
eu me lembrava de estar hospedada. Mas, quando abri a porta, havia outra
garota lá. Ela tinha quase a mesma idade que eu, mas seus cabelos eram
curtos e negros. Ela estava trocando de roupa, já com uma calça florida,
mas segurava um top em frente ao peito para cobrir seu sutiã.

— Desculpe — eu disse. — Acho que entrei no quarto errado.
Percebi que o quarto dela era decorado exatamente como o meu, mas em
tons de verde. Fechei a porta. A porta ao lado era a que levava a meu
quarto. Decorado em tons de rosa.

Doris chegou um minuto depois, trazendo calças brancas e um top.

— Acho que você vai querer tomar um banho. E aqui está uma muda
de roupas. Você está usando essas há muito tempo.

— Onde estão minhas roupas antigas?

— Querida, nós nos livramos daqueles trajes assim que você os
despiu. Pode ficar com essas que está vestindo.

— E minha lanterna de pulso?

Doris abriu uma gaveta. Retirou a lanterna e a segurou apenas com
dois dedos.

— Rodney a escoltará até sua casa. Não se preocupe em parar para
comer. Você não terá fome nas próximas horas.

— Não vou ter fome? Por quê?

— Você já comeu.

Era muito estranho perceber que as pessoas sabiam mais sobre seu
corpo do que você.

Doris me acompanhou até um estacionamento subterrâneo, ligado à
parte de trás do prédio da Prime Destinations. Rodney estava ao lado de
um carro de luxo. Ele tinha cabelos prateados em um corte baixo e
espetado, e seus bíceps eram tão grandes que o terno que ele usava
parecia estar prestes a explodir.

Ele percebeu que eu trazia minha lanterna de pulso.


— Você não precisará disso — disse ele. — Tenho uma megaluz no
carro.

Amarrei a lanterna a meu pulso assim mesmo. Tê-la comigo me trazia
uma sensação de bem-estar e solidez.

— Ela é sua responsabilidade — disse Doris a ele. — Traga-a de volta
até as 22 horas, no máximo.

— Sim, senhora. — Ele abriu a porta de trás para mim e eu entrei no
carro. Rodney sentou-se no banco do motorista e Dons nos acompanhou
enquanto saíamos. Percebi que havia uma caixa com comida no assento a
meu lado.

— É para seu irmão — Rodney fez um gesto em direção à caixa. —
Com os cumprimentos de Doris.

O cheiro era muito bom.

— Opa.

Ele dirigiu o carro e entrou no trânsito de Beverly Hills.

— Ela é um amor de pessoa. Eu a conheço há mais de sessenta anos.
Nós trabalhávamos no ramo de turismo antigamente, na época em que as
pessoas ainda podiam viajar. Agora, ninguém pode sair dos Estados
Unidos. Os outros países estão todos paranoicos por causa dos malditos
esporos. E ninguém quer vir até aqui. O México... você acredita que eles
construíram aquela muralha para impedir os americanos de atravessarem a
fronteira?

Deixei que Rodney continuasse a tagarelar. Não estava a fim de ouvir
as histórias dos Enders. Elas sempre duravam uma eternidade, pois
atravessavam várias e várias décadas. A única coisa que conseguia pensar
era em ver as duas pessoas de que mais gostava no mundo.

Tirei o mapa de Michael de um compartimento em minha lanterna de
pulso e o usei para navegar pelas ruas em direção à nova casa. Quando
chegamos à rua indicada, vi vários prédios abandonados. O primeiro teve
sua construção interrompida no meio do processo. Um esqueleto que
nunca chegou a ter vida. Quatro prédios mais adiante, o lugar onde
Michael e Tyler estavam. Rodney estacionou o carro logo em frente.

Ele entrou primeiro, carregando a megaluz. Nunca tive um guarda-


costas antes. Aquilo fez com que eu me sentisse como se fosse a filha do
presidente. Rodney segurou a enorme porta de vidro para que eu entrasse.

— Qual é o andar? — Ele iluminou o saguão com a lanterna.

— Terceiro.

— Vocês gostam de subir escadas, hein?

— O terceiro piso é mais seguro. Temos mais tempo para fugir. —
Acendi minha lanterna de pulso. — Se ouvirmos gritos no andar de baixo,
temos algum tempo. Podemos chegar até a escada de incêndio.

Subimos pela grande escadaria que levava até o terceiro andar.
Rodney andava na frente, iluminando cada escritório abandonado pelo
qual passávamos com sua lanterna. Um vulto saiu e se postou de pé no
fundo do corredor, empunhando um pedaço de cano como se fosse uma
arma. Era Michael.

— Parem! — disse ele.

Apontei a lanterna de pulso para meu rosto.

— Michael, sou eu.

Rodney estendeu o braço para impedir que eu avançasse.

— Fique atrás de mim.

Eu me agachei para passar por baixo do braço dele.

— Ele é meu amigo — disse, correndo pelo corredor.

Michael manteve sua posição defensiva, até que eu me aproximei.

— Callie? — O cano caiu das mãos de Michael e bateu no chão,
retinindo.

Eu me joguei nos braços dele e o abracei. Rodney se aproximou e
parou a poucos metros de distância.

—Este é Rodney — eu disse. — Ele trabalha para a Prime
Destinations.

Rodney o cumprimentou com um aceno de cabeça, enquanto Michael
o olhava com desconfiança.

— Quer dizer que ajuda não acabou? — perguntou Michael.

Eu balancei a cabeça negativamente.

— Não posso ficar aqui por muito tempo. Como está Tyler?

— Ele sente muito sua falta. — Michael apontou sua lanterna para


meu cabelo. Estendeu uma das mãos e tocou uma das mechas. — Eu não
a reconheci. Você está muito diferente.

— Diferente no bom ou no mau sentido? — eu perguntei, enquanto
caminhávamos.

— Está brincando? Você está fantástica — disse ele.

Michael nos levou para uma sala no final do corredor, um espaço
acarpetado, o que ajudou a compensar o fato de que não tínhamos mais
sacos de dormir. Tyler estava sentado no canto, com um cobertor verde-
escuro sobre as pernas.

— Ficarei aqui — disse Rodney em voz baixa, indicando uma cadeira
ao lado da porta. Ele posicionou sua lanterna de modo que ela iluminasse
aquela parte do recinto.

Eu entrei na sala e me ajoelhei ao lado de Tyler. Estendi as mãos para
abraçá-lo, mas ele se esquivou.

— O que aconteceu com seu cabelo? — Tyler apontou sua lanterna
para mim, retorcendo o rosto.

—Você não gostou?

Ele examinou atentamente minhas feições.

— O que fizeram com sua cara? — ele puxou meus novos brincos
com pingentes. — Essas coisas são perigosas.

— No lugar onde estou trabalhando eles me deixaram mais bonita e
me deram roupas novas. Você não gostou?

— Você vai acabar se sujando. — Ele me olhava como se eu fosse
idiota. — E quem é ele? — perguntou Tyler, apontando para Rodney.

— Ele trabalha comigo e me deu uma carona até aqui. — Eu mostrei
a caixa a Tyler — Ele também me deu esta comida gostosa, para que eu
trouxesse a você. Ainda está quente. Sinta o cheiro.

— O cheiro é horrível — disse ele, virando o rosto.

Eu fui até o outro lado.

— Tyler, eu sei que você está triste porque passei alguns dias fora.

— Faz uma semana que você não aparece. — O rosto dele estava
vermelho. Ele estava a ponto de chorar.

— Eu sei. Me desculpe.


— Sete dias. Sete dias longe de nós.

Uma semana sem cão-robô, sem imagens e vídeos de nossos pais,
longe de um ambiente que lhe fosse familiar e sem a irmã.

— Mas Michael não cuidou de você? Ele não lhe trouxe este
cobertor? E aquela garrafa d’água? Parece que vocês estão se alimentando
bem.

Olhei para Michael, apoiado contra um arquivo de metal que fazia
parte da nova fortaleza. Ele enfiou as mãos nos bolsos do seu jeans e fez
um sinal afirmativo com a cabeça.

— Na verdade, vou pegar um pouco de água para nós agora — disse,
piscando o olho.

Quando Michael saiu, Tyler se virou para mim.

— Callie?

—O que foi?

— Estou feliz por você ter voltado — disse ele, com a voz suave. Ele
estendeu a mão e a colocou sobre a minha. — Mesmo com esse cabelo
esquisito.

— Obrigada. — Eu me inclinei até que nossas cabeças se tocaram.
Queria muito guardar aquele momento, aquela trégua conquistada com
esforço, mas precisava dizer a verdade.— Eu queria poder ficar
definitivamente, mas só tenho permissão para sair por algumas horas.
Tenho que voltar para o trabalho.

Ele tirou a mão de cima da minha.

— Por quê? — E seus olhos se encheram de lágrimas.

— Porque ainda não terminei. — Eu o abracei com força. — Preciso
que você seja forte e que tenha coragem. Quando tudo isso terminar, nós
teremos uma casa novamente.

Ele se agarrou com força a meu corpo.

— De verdade? sussurrou ele, com a voz estrangulada. — Você
promete?

Meu coração se despedaçou.

— Prometo.








Nós nos sentamos no chão, em volta de um caixote que servia como mesa.
A lanterna de pulso de Michael tremeluzia, ajustada para o modo vela,
enquanto ele e Tyler terminavam de comer o frango frito e a salada de
batatas que Dons enviou. Rodney arrastou sua cadeira para o corredor,
mas ainda estava à vista. Ele colocara fones de ouvido e agitava a cabeça
conforme o ritmo da música que ouvia.

— Estão gostando? — Eu apontei para o frango.

— Está ótimo— disse Tyler enquanto chupava um osso. — Faz alguns
dias que estamos comendo pudim e salada de frutas.

— A igreja que fica perto do velho aeroporto nos deu comida — disse
Michael. — Doze horas de caminhada para ir e voltar.

— Onde vocês encontraram água?

— Nas casas da redondeza. Eu nunca vou à mesma casa duas vezes.

— Pense — eu disse a Tyler. — Logo nós vamos ter uma cozinha e
água vai sair direto pela torneira.

— Onde nós vamos morar? — perguntou Tyler. — Depois que você
conseguir todo esse dinheiro?

— Onde quisermos.

Tyler levantou os braços.

— Nas montanhas.

— Por que você quer morar nas montanhas? — perguntou Michael.

— Porque lá nós vamos poder pescar — disse Tyler.

Michael riu.

— Pescar? Como assim?

— Nosso pai prometeu que levaria Tyler para pescar — eu disse. —
Logo depois, a guerra começou.

Michael deu palmadinhas no ombro de Tyler. Falar sobre a guerra
sempre causava tristeza.

— E você, Cal? É pescadora? — perguntou Michael.

— Acho que não.

Pensei na época em que tinha 8 anos. Meu pai me ajudou a pegar


meu primeiro peixe. Um bagre. Mas não tive estômago para limpá-lo. Em
vez de ficar bravo ou frustrado, meu pai simplesmente sorriu e terminou o
serviço para mim.

— Nunca estive nas montanhas — disse Michael. — Como é esse
lugar?

— Limpo. Refrescante.

— E tem peixes também — disse Tyler.

— Que não estão contaminados, como os peixes do oceano — eu
disse.

— É verdade. Mas é preciso ter coragem para pescar. Sabe por quê?

— Por quê? — perguntou Tyler.

— Porque você precisa pegar minhocas nojentas e gosmentas — disse
ele, fazendo cócegas na barriga de Michael. — Opa, acho que deixei cair
uma agora. Ela está rastejando em cima da sua camisa.

Tyler riu como se tivesse 5 anos novamente.

Quando as risadas pararam, Tyler se deixou atacar pelo sono. Não
demorou muito até que ele dormisse, com a cabeça sobre meu colo.

— Me conte, então. Como tudo aconteceu? — disse Michael,

olhando para mim.

— Foi incrivelmente fácil. É dormir.

— É mesmo?

— Sim — falávamos em voz baixa para não acordar Tyler. — E logo
vou receber o dinheiro do contrato. E aí vamos dizer ‚olá, dinheiro para a
casa‛.

— Uma casa de verdade novamente. Ele vai adorar. — Michael olhou
para Tyler.

— Você também vai — eu disse.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso me aproveitar de seu dinheiro.

Eu quis protestar, mas me contive. Talvez, para ele, isso fosse algo
muito grandioso, ou talvez fosse cedo demais.

Ele baixou a cabeça e seu olhar se cruzou com o meu.

— Se eu fosse até o banco de corpos também, nós poderíamos juntar


nosso dinheiro. Talvez pudéssemos até mesmo comprar uma casa.

Eu sorri. Pensar naquilo era reconfortante. Não precisaríamos mais
fugir. Após três anos, chegaríamos à maioridade e poderíamos fazer tudo
que quiséssemos. Conseguir empregos de verdade.

Michael se sentou a meu lado. Ele colocou um braço ao redor de
meus ombros e cheirou meu cabelo.

— Tem cheiro de... cerejas — disse ele.

— Isso é bom?

— O que você acha? — Ele sorriu. — É como se você fosse um carro,
um belo carro, que não era lavado há um ano — disse. — E, de repente,
você recebeu uma lavagem, um polimento e uma cristalização — disse
brincando com os pingentes de meus brincos. — Você está reluzente, mas
ainda é o mesmo carro.

Eu me virei na direção dele e me aproximei. Os olhos de Michael
esquadrinhavam meu rosto, como se estivesse esperando por minha
permissão. Fiz um movimento afirmativo, e, sem pensar, umedeci meu
lábio com a língua. Ele se aproximou de mim, mas, naquele momento,
Rodney bateu com os nós dos dedos na parede.

— Callie? Lamento, mas precisamos voltar.

Michael fechou os olhos. Era muito azar e nós dois sabíamos disso.

— Tudo bem, Rodney. Saio em um minuto.

Nós ouvimos seus passos se afastarem no corredor. Tyler acordou,
sentou-se e esfregou seu rosto. Toquei seu braço com a mão.

— Tyler, eu tenho que ir. Por isso, me escute com atenção, por favor.
Você e Michael são uma dupla agora, entendeu?

— Uma dupla — ele disse, com a voz arrastada pelo sono.

— Vou pensar muito em você. Vou ficar fora um bom tempo, um mês
inteiro. Mas, quando eu voltar, vai ser para sempre. Não vou mais embora.
E tudo vai ficar melhor. Certo?

Ele concordou com a cabeça. Parecia tão solene que fez meu coração
doer.

— Você é o homem da casa, agora.

Ele sorriu, sonolento.


— Tenha coragem — eu disse. Segurei na mão dele e depois o puxei
para abraçá-lo.

— Não demore para voltar — sussurrou ele. Senti seu hálito quente
em meu ombro.

Quando o soltei, seus olhos estavam cheios de lágrimas.

— Seja forte — eu disse.

— Seja rápida — ele respondeu.

Michael me acompanhou pelo corredor. Rodney foi à frente.

Quando chegamos ao topo da escadaria, uma garota alta estava
subindo em sentido contrário. Rodney apontou sua lanterna de alta
potência na direção dela e a garota levantou a mão para proteger os olhos.

— Dá para tirar isso da minha cara? — ela disse.

— Está tudo bem — disse Michael a Rodney. — Ela é uma das
nossas camaradas.

Rodney baixou o facho de luz de modo que não atingisse os olhos da
menina, mas ainda iluminando seu corpo. Ela tinha uma lanterna de pulso
e cabelos escuros e curtos. Era magra como todos nós, mas ainda tinha
curvas.

— Oi, Michael. Eu vim lhe trazer uma coisa.

Ela enfiou a mão dentro de uma bolsa de pano e tirou duas laranjas de
lá.

— Consegui estas com um Ender jardineiro.

— Obrigado. — Michael pegou as laranjas, que provavelmente
haviam sido roubadas.

Ela lhe deu um sorriso.

— Preciso ir agora. Até mais tarde.

— Quem é ela? — eu perguntei.

Michael olhou para mim conforme a garota desapareceu em meio à
escuridão.

— Só uma amiga.

— Qual é o nome dela?

— Florina.

—Bonita.


Fiquei feliz por haver outra camarada no prédio. Rodney, sem dúvida
pressentindo que precisávamos de um momento a sós, desceu um dos
lances de escada e esperou com as costas viradas para nós.

Michael me envolveu em um abraço. Um abraço longo e apertado.

Nossos corpos eram parecidos, mais ossos do que carne. Mas aquele
contato era bom.

— Vou sentir saudades — sussurrou ele, em meio a meus cabelos.

— Eu também. — Eu poderia ficar ali para sempre, mas tinha que me
afastar. — Vejo você daqui a um mês.

Ele me entregou um pedaço de papel dobrado.

— O que é isso? — eu perguntei.

— Dê uma olhada, mais tarde.

Eu queria saber mais, mas não havia tempo. Coloquei o papel dentro
do meu sutiã, meu melhor esconderijo. Em seguida, dei-lhe um sorriso do
qual esperava que ele se lembrasse.

—Fique bem.

— Tenha cuidado — ele disse.

No caminho de volta, Rodney me deixou sozinha com meus
pensamentos. O carro me embalava como se eu fosse um bebê, conforme
a noite na cidade passava em frente à minha janela. Entre os prédios
lacrados e abandonados, a vida continuava, fazendo com que a paisagem
se parecesse mais com a de um país de terceiro mundo, com carrinhos
improvisados vendendo comida e fumaça saindo de fogareiros
improvisados em tonéis de metal. Eu pensava no quanto os dois últimos
anos foram difíceis para Tyler e para mim.

Uma das luzes da rua brilhou em frente a meus olhos por um
momento, assim como as luzes dos inspetores quando eles vinham para
nos capturar.

— Pegue sua mochila e saia correndo — sussurrei para Tyler.

Corremos para a cozinha no escuro enquanto os inspetores batiam
com força na porta da frente. Tyler pegou sua mochila e a garrafa de água;
eu peguei as minhas. A arma estava guardada dentro de minha mochila.

Saímos correndo pela noite antes que os inspetores conseguissem


chegar até o quintal.

Ajudei Tyler a se arrastar por baixo de cercas e correr por entre
quintais vazios. Eu estava feliz por nosso pai ter mapeado nosso plano de
fuga antes de ser levado para a área de quarentena. Tyler e eu
continuamos a morar em nossa casa por um bom tempo, como as outras
crianças que não tinham parentes. Estávamos nos virando bem, mas
sabíamos que não demoraria muito até que o governo chegasse e
condenasse nossa casa, como fizera com o resto do quarteirão. Era um
bairro de classe média, mas estava se tornando uma cidade fantasma. Os
adultos saudáveis que ainda restavam estavam cuidando de várias crianças
do bairro, até que a doença os atacou também.

Na semana anterior, as crianças do outro lado da rua foram levadas,
aos gritos, pelos inspetores. Tivemos mais sorte. Ficamos sabendo que era
hora de sair dali quando meu pai nos mandou um Zing. Eu sabia que isso
significava que o pior iria acontecer.

Antes de ser levado para a área de quarentena, meu pai me fez
prometer que, se esse dia chegasse, eu não deveria pensar nele e não
deveria chorar. Deveria ser forte e proteger meu irmão, porque eu seria a
única pessoa que restaria para cuidar de Tyler.

Foi a coisa mais difícil que já tive que fazer.

Meu pai. Morto. As imagens passavam diante de meus olhos. Mãos
firmes, que me guiavam e apoiavam. Abraços.

Mordi a língua para não chorar. Não penso nele. Cuide de Tyler.

Seja forte.

Conseguimos chegar até o prédio da velha biblioteca, ao lado do
parque. Estava completamente escuro, mas nossas lanternas de pulso
iluminavam o caminho. Entramos no porão através de uma janela
quebrada que ficava nos fundos.

O cheiro de livros mofados encheu minhas narinas. Junto com o odor
de corpos sujos. Um grupo de crianças estava amontoado no escuro, atrás
das prateleiras, dormindo. Uma delas me reconheceu.

— É uma das nossas.

Encontrei um espaço para nós ao lado da parede e trouxe as mochilas


para perto.

— Já estamos seguros? — perguntou Tyler, com a respiração
entrecortada.

— Shhh. Vai ficar tudo bem — eu sussurrei.

Quando a manhã chegou, algum imbecil resolveu acender uma
fogueira para cozinhar e a fumaça atraiu os inspetores. Pegamos nossas
mochilas e saímos correndo. Quando chegamos ao próximo ponto no mapa
que meu pai fizera, abri a mochila e percebi que minha pistola havia sido
roubada. Todo o resto continuava ali. Todo aquele treinamento e eu não
tinha mais minha arma. Senti-me vazia por dentro.

A arma de fogo desaparecera. Meu pai ficaria muito irritado. Mas ele
não precisava saber. Estava morto.

Agora, enquanto Rodney passava pelas ruas silenciosas, eu apoiava
minha cabeça contra a janela do carro e pensava em todos os lugares de
onde havíamos fugido no ano anterior. Deixei meus olhos se banharem nas
luzes da cidade até que ficassem ofuscados pelas cores.

O banco de corpos seria o fim das fugas.







De volta à Prime Destinations, havia muita empolgação no ar. Parecia que
minha inquilina queria dar início ao contrato ainda naquela noite. Eu
estava no escritório de Doris, enquanto ela deslizava os dedos por entre
seus cabelos.

— Está tudo bem — disse ela. — Sempre fico na empresa até mais
tarde. Mas agora estamos realmente forçando um pouco a situação. Vá
vestir estas roupas. — Ela apontou para um conjunto de roupas pretas em
um cabide atrás de mim. — Você pode usar meu banheiro.

Segui as instruções dela e saí do banheiro usando um blusão de gola
rulê e calças pretas.

— Excelente. Vamos para a sala de conexão.

— Não vou comer nada desta vez? — eu perguntei. — Estou
começando a ficar com fome.


Doris colocou a mão em minhas costas.

— Esta inquilina prefere que seja assim — disse ela, dando de
ombros. — Talvez ela tenha feito reservas em um restaurante cinco
estrelas.

Fomos depressa para a sala de conexão, a mesma onde ocorreram as
duas transferências anteriores. Trax e Terry estavam esperando por mim.

— Você fica bem de preto disse Terry, dando tapinhas em meu ombro
enquanto eu me sentava na cadeira. — Quase tão bem quanto moi.

Após alguns testes e verificações no computador, Trax olhou para
mim.

— Tudo continua igual a antes. É só relaxar — disse ele. — Vejo você
daqui a um mês, Calhe, nesta mesma sala.

O cone desceu sobre meu rosto e eu dei um aceno de adeus para
minha equipe.







Desta vez, meus sonhos foram muito estranhos. Tyler tinha a cabeça de
um filhote de pássaro. Não achei que havia nada errado com aquilo;
simplesmente era assim em meu sonho. Eu estava procurando alpiste para
alimentar Tyler, mas não conseguia encontrar nada. Chamei Michael, mas
ele não estava em lugar nenhum. Estávamos morando em alguma fazenda
abandonada. Corri até o celeiro para procurá-lo e subi por uma escada até
chegar ao depósito de feno. Quando cheguei até lá, vi que Michael estava
com uma garota. Florina. Os dois estavam deitados sobre o feno, cercados
por centenas de laranjas.
















4



















B
oom, boom, boom. A percussão fazia meu corpo vibrar, e a minha cabeça
latejava na mesma batida. Um cheiro adocicado e enjoativo se entranhava
em meu nariz.

Onde estou?

Abri os olhos. O mundo parecia estar inclinado em um ângulo agudo,
e o lugar onde eu estava tinha pouca iluminação. Estava deitada no chão.
Apoiei minha mão para me levantar e senti que havia tocado em algo
pegajoso e nojento. Trouxe minha mão até o nariz para cheirá-la —
abacaxi.

Feixes de laser cortavam o espaço escuro. Nos momentos em que
havia luz, eu conseguia vislumbrar pessoas que tentavam escapar, agitando
as mãos no ar. Mas eram sempre puxadas de volta. Foi aí que percebi que
elas estavam apenas dançando ao som da música.

Um par de saltos-agulha revestidos de couro se aproximou. Meu
ouvido sentiu a vibração de cada passo reverberando pelo piso. A dona dos
sapatos de salto se ajoelhou a meu lado.

— Você está bem? — gritou ela.

— Não sei. — Eu ainda não tivera tempo de verificar nada além da
minha cabeça, que ainda latejava.

—O quê?

— Não tenho certeza! — gritei em resposta. Toda aquela gritaria fez


minha cabeça doer.

Ela passou seu braço por baixo do meu.

— Vamos, levante-se.

Ela tinha a minha idade, com cabelos loiros em um corte geométrico
que lhe cobria um dos olhos. Seu vestido brilhante era tão curto que
poderia ser confundido com uma blusa. Talvez fosse. Ela me levou até um
dos lados do salão, onde a música não estava tão alta.

— Onde estou? — perguntei, tocando minha têmpora. Eu estava
muito confusa.

— No Club Rune — ela respondeu, com uma expressão perplexa.

— Não se lembra?

Eu balancei a cabeça negativamente.

— Como vim parar aqui?

Ela deu uma risadinha.

— Ah, querida, você realmente está bêbada. É melhor eu lhe trazer
um pouco de cafeína.

— Não, não vá embora. — Será que eu estava bêbada ou haveria
outra coisa acontecendo? O pânico subiu por minha garganta. Agarrei o
braço dela como se fosse uma boia e eu estivesse me afogando. — Por
favor, eu estou...

— Vamos arrumar uma cadeira para você.

Ela me apoiou enquanto eu andava com passos vacilantes pela sala,
tropeçando em meus próprios saltos. Olhei para baixo e percebi que eu
também estava usando um vestido, uma peça curta e metálica que
envolvia meu corpo. Sentia que era frio ao toque. Uma bolsa para a noite
estava pendurada pela alça sobre meu ombro. E meus sapatos, também
com saltos-agulha, eram do tipo que só vi pessoas famosas calçarem, nas
Páginas.

Ela parou em frente a uma poltrona de veludo encostada na parede e
fez com que eu me sentasse. Macia. Não me sentava em algo tão
confortável há muito tempo. Havia me esquecido daquela sensação.

A música parou. Já vi danceterias em holos, quando meus pais ainda
eram vivos, mas nunca estive em uma. Eu nem sabia que elas ainda


existiam, especialmente lugares feitos exclusivamente para adolescentes.
Seria algo que os Starters privilegiados tinham direito a fazer?

— Você já está parecendo melhor — ela sorriu para mim.

As luzes de neon azul do bar brilhavam sobre a poltrona. Mesmo com
aquela iluminação ruim, ela era lindíssima.

— Você é nova por aqui, não é? — perguntou ela.

— O quê?

— Desculpe, eu não me apresentei. Meu nome é Madison.

—Callie.

— Que nome meigo. Você gosta dele?

Dei de ombros.

— Acho que sim.

— Eu também gosto do meu. Prazer em conhecê-la, Callie. —
Estendeu a mão. Tudo parecia estranho, mas eu a apertei. — Bem, EU
dizia, essa é a sua primeira vez, não é?

Eu assenti.

— Primeira vez que venho aqui.

A última coisa de que eu me lembrava era receber o sedativo no banco
de corpos. Eu deveria ter acordado lá. O que poderia ter acontecido? Eu
estava prestes a entrar em pânico, mas ainda conseguia manter a cabeça
no lugar o bastante para me lembrar de que não devia falar sobre o banco
de corpos. Tinha que agir como se soubesse o que estava acontecendo.

— Uma peça maravilhosa — disse Madison, deslizando os dedos pelo
tecido de meu vestido. — É muito bom poder vestir roupas como essas,
não é? E vir a lugares como este? Tenho certeza de que é melhor do que
ficar sentada em uma cadeira de balanço, fazendo crochê enquanto assiste
a reprises de programas antigos na televisão nas noites de sábado. — Ela
piscou para mim e me tocou com o cotovelo. — Talvez, no seu caso, sejam
partidas de mahjong2? Ou bridge3?

2 Jogo de origem chinesa, geralmente jogado por quatro pessoas, com peças similares a dominós, entalhadas com
vários tipos de desenhos e gravuras (N. T).

3 Jogo de cartas, também disputado por quatro pessoas divididas em duas duplas. Ambos os jogos são passatempos
sociais entre idosos nos Estados Unidos (N. T.).

— Isso mesmo. — Abri um sorriso enquanto olhava ao redor. Não


fazia a menor ideia do que ela estava falando.

— Callie, querida, não precisa fingir comigo.

Com a surpresa, meus olhos piscaram.

— Não é difícil identificar um dos nossos quando sabemos o que
acontece, garota. Você passou em todos os testes. — Madison usou seus
dedos para contar. — Nenhuma tatuagem, nenhum piercing, nada de
mechas de cores fluorescentes no cabelo... — Ela me usou para ilustrar o
resto dos itens em sua lista. —Roupas caras, joias elegantes, bons modos e
incrivelmente bonita.

Eu? Ela estava falando sobre mim?

— Ah, e, como sempre, nós sabemos muitas coisas — disse ela,
acariciando meu braço. — Porque vivemos cada uma dessas experiências.

Meu cérebro ainda estava um pouco confuso, mas eu estava
começando a entender.

— Admita, Callie, você é uma cliente da PD. Uma inquilina. Assim
como eu. — Ela se inclinou em minha direção e eu senti o perfume de
gardênias.

— Você... ?

— Eu também não me encaixo nessa lista? — Ela apontou para vários
pontos do próprio corpo. — Este corpinho é incrivelmente bonito, você
não acha?

Eu não sabia o que dizer. Ela era uma inquilina. Poderia me
denunciar se soubesse que eu era uma doadora que estava com algum tipo
de problema técnico. Eu poderia ser demitida e nunca receberia o dinheiro
para ajudar Tyler.

— É ótimo.

— Certo, eu confesso, este é o Club Rune, afinal de contas — disse
ela, indicando o salão com um gesto. — Muitos de nós vêm até aqui,
então foi fácil perceber você.

— Há vários de... nós? Onde?

Madison examinou a danceteria.

 — Lá. Aquele garoto ali, que se parece com uma celebridade. É um
inquilino. E aquela outra, a ruiva.


— Inquilina?

— Olhe para ela — disse Madison, com um sotaque exagerado. —
Acha que ela poderia ser ainda mais perfeita?

— Mas os outros são adolescentes verdadeiros?

— É claro que são.

— E o que me diz dele? — Eu indiquei um garoto do outro lado do
salão que havia chamado minha atenção. Tinha um copo de refrigerante
nas mãos e conversava com dois outros rapazes. Havia algo especial nele.
— Aquele de camisa azul e jaqueta preta. Ele deve ser um inquilino
também.

— Aquele ali? — Madison cruzou os braços. — Ah, ele é muito
bonito. Mas já conversei com ele hoje. É um adolescente, por dentro e por
fora.

Provavelmente meu senso de adivinhação não era muito bom. Para
mim, ele parecia tão atraente quanto os inquilinos que ela havia indicado.
Talvez mais. Ele se virou e nos encarou diretamente. Eu desviei o olhar.

— Há vários adolescentes normais e incrivelmente ricos aqui —
continuou Madison. — Você pode identificá-los porque seus avós
antiquados não permitem que façam qualquer tipo de obra.

- Obra?

— Cirurgias. Portanto, eles não são tão bonitos quanto nós. E sempre
vai ser possível testá-los se perguntar sobre a vida antes da guerra. Eles não
sabem quase nada a respeito — riu ela. — Acho que não ensinam história
nas escolas particulares de Zype.

Meu coração estava acelerado. Tudo estava muito confuso, o mundo
parecia estar de cabeça para baixo. Eu tinha que lembrar a mim mesma de
que a belíssima Madison era, na verdade, uma mulher de cento e poucos
anos.

E o fato de que ela pensava o mesmo a respeito de mim era realmente
desconcertante.

— Se você estiver se sentindo melhor, Callie, eu realmente preciso
pegar uma bebida. Algo que tenha um nome longo e sexy.

— Eles vão lhe servir bebida?


— Querida, este clube é privado. Totalmente discreto, assim como o
banco de corpos — disse ela, tocando em meu braço.—Não se preocupe,
meu bem. Estarei por perto e volto logo.

Ela se levantou da poltrona. Eu apoiei os cotovelos sobre os joelhos e
encostei a testa em minhas mãos. Queria que o mundo parasse de girar.
Mas, quanto mais eu tentava entender tudo o que estava acontecendo,
mais as coisas pareciam piorar. Minha cabeça latejava. Por que eu havia
acordado em uma danceteria e não no banco de corpos? O que tinha
acontecido?

Tudo estava indo muito bem até ali. Eu receberia meu dinheiro,
conseguiria um lugar quente para Tyler poder dormir, uma casa de
verdade. E agora, isso.

Foi quando ouvi uma voz.

Olá?

Ergui a cabeça. Não era Madison. Ela estava longe de mim, em frente
ao balcão do bar. Olhei para trás. Não havia ninguém por perto.

Seria minha imaginação?

Pode... me ouvir?

Não, era real. A voz vinha de...

Dentro. Da. Minha. Cabeça.

Será que eu estava sofrendo uma alucinação? Meu coração estava
disparado. Talvez Madison estivesse certa, eu devia estar bêbada. Posso ter
batido a cabeça quando caí. Alguma coisa estava muito, muito errada.
Minha respiração se acelerou e eu comecei a hiperventilar.

A voz parecia ser de uma mulher. Segurei a respiração para tentar me
acalmar e ouvir melhor.

O barulho da danceteria interferia em minha percepção. Enfiei os
dedos nos ouvidos e tentei escutar, mas tudo que eu ouvia eram as batidas
de meu próprio coração. Não conseguia afastar o choque de ouvir uma voz
daquela maneira.

Onde era a saída? Queria sair dali. Precisava de ar fresco.

A próxima voz que ouvi era jovem, muito masculina e vinha de um
ponto logo à minha frente.


— Você está bem? — Era ele. O rapaz de camisa azul, o ‚adolescente,
por dentro e por fora‛, como Madison explicara. Ele parecia estar
preocupado.

O que ele disse? Perguntou se eu estava bem. Lutei para me
controlar, para não demonstrar que estava em pânico.

— Sim. Estou. — Puxei a barra de meu vestido, numa tentativa inútil
de cobrir minhas pernas.

Ele era ainda mais bonito agora que estava perto, inclusive com
covinhas no rosto. Mas eu não tinha tempo para essa distração. Precisava
saber se ouviria aquela voz novamente. Ele simplesmente olhava em minha
direção enquanto eu tentava escutar.

Minha cabeça estava em silêncio. Fora obra de minha imaginação?

Pelo fato de eu estar bastante desorientada, depois de ser jogada de
volta para meu corpo daquela forma? Talvez o rapaz tivesse assustado a
Voz.

Ele usava uma jaqueta preta que parecia ser bem cara. Pensei no
veredicto de Madison sobre ele. Eu me levantei e o examinei rapidamente
em busca dos sinais.

Nada de tatuagens, piercings ou cores estranhas no cabelo. Certo.
Roupas e joias caras — qual seria a marca do relógio que ele tinha no
pulso? — certo. Bem educado, incrivelmente bonito. Certo. Era um
inquilino.

Em seguida, ele virou o rosto na direção do bar e eu estava perto o
bastante para perceber uma cicatriz que ele tinha perto do queixo. Doris
nunca deixaria aquilo passar.

— Eu vi quando você caiu — disse ele, com uma toalha pequena na
mão. — Fui pegar isto no banheiro.

— Obrigada. — Encostei a toalha em minha testa e vi um sorriso se
abrindo no rosto dele. — O que é tão engraçado?

— Não é para sua cabeça — disse ele, gentilmente pegando a toalha
de volta e deslizando-a por meu braço, que ficara sujo com o que havia no
chão.

— Eu escorreguei. Alguém derramou uma bebida. E, com estes


saltos...

— São saltos fabulosos. — Ele olhou para meus pés e sorriu, com as
covinhas no rosto ficando ainda mais pronunciadas.

Ser o centro das atenções dele era demais para mim. Eu tinha que
desviar o olhar. Um rapaz assim, rico e bonito, interessado em mim, a
garota que morava nas ruas? Vi meu reflexo em uma pilastra espelhada e
fui trazida violentamente de volta à realidade. Eu havia me esquecido de
que tinha a aparência de uma celebridade.

Quando me virei, percebi que Madison ainda estava em frente ao
balcão do bar, tentando atrair a atenção do bartender, um Ender que devia
ter dificuldade para escutar.

O rapaz se virou para olhar na direção em que eu estava olhando e
deixou a toalha sobre uma pequena mesa.

— Ela é sua amiga? — perguntou ele.

— Mais ou menos.

Ele ergueu um dedo, como se estivesse tentando se lembrar.

— O nome dela é Madison, certo?

Fiz que sim com a cabeça.

— Eu estava conversando com ela mais cedo. Ela é engraçada —
disse ele.

— Como assim

— Ela me perguntou um monte de coisas.

— Que tipo de perguntas?

— Sobre história, dá para acreditar? Coisas que aconteceram há vinte
ou trinta anos. Por exemplo, você sabe qual holo ganhou dez Oscars há
uma década?

Apertei os olhos e tentei lembrar se meu pai chegara a mencionar algo
assim. Ele saberia, com certeza. Eu dei de ombros.

— Viu? Você também não sabe — disse ele. — Obviamente, não
passei no teste da Madison. Quando percebeu que eu não sabia as
respostas, ela simplesmente me deu as costas e se afastou. Eu vim para
dançar, não para participar de um programa de perguntas e respostas. —
Ele olhou para os próprios pés e depois para mim. — Você gostaria de...?


— Percebi que a música havia recomeçado, mas era uma batida mais
lenta e não tão barulhenta. — Não. Não posso.

— É claro que pode.

Pensei em Michael no prédio abandonado, cuidando de Tyler para
mim. Não parecia certo. Eu não podia simplesmente sair para dançar.
Ainda não fazia a menor ideia do que havia acontecido, onde eu estava ou
como havia chegado até ali, e eu realmente não era eu mesma.

— Estou só um pouco tonta.

— Talvez mais tarde? — disse ele, com uma ponta de esperança na
voz e levantando as sobrancelhas.

— Desculpe. Já estou de saída.

Eu sabia que aquela era uma maneira rude de falar, mas não queria
lhe dar qualquer falsa esperança.

Os olhos dele refletiram a mesma decepção que eu sentia, mas ele
conseguiu escondê-la bem. Parecia que estava prestes a dizer alguma outra
coisa, mas, naquele exato momento, Madison voltou, xícara em uma mão e
um coquetel na outra.

— Trouxe um café para você. Espero que goste dele bem forte. Ela
me entregou a xícara e percebeu que o rapaz estava por perto. — Ah!
Blake, não é mesmo? Oi, de novo.

Blake a cumprimentou com um movimento de cabeça, mas não tirou
seus olhos de mim. Nós compartilhamos um sorriso, uma experiência
secreta, às custas de Madison. Uma daquelas experiências de aproximação
entre pessoas, do tipo ‚ela não sabe que estávamos falando dela‛. Madison
não pareceu notar, ocupada enquanto tentava arrancar m pedaço de
abacaxi que decorava seu copo.

— Preciso voltar para perto dos meus amigos — ele disse. Madison
engoliu a fruta e lhe deu um sorriso cortês.

— É ótimo vê-lo novamente, Blake.

— Tchau, Madison. — E, em seguida, ele sorriu para mim. — Até
mais tarde, Callie. —Ele inclinou a cabeça e girou sobre os calcanhares,
como se estivesse fazendo um movimento de dança.

Não cheguei a me apresentar para ele. De algum modo, ele havia


descoberto.

Eu o observei enquanto se afastava, com as mãos nos bolsos. Eu
estava me sentindo um pouco melhor.

Escute... por favor...

Senti um arrepio correr por minha coluna. Não. Era aquela Voz
novamente. Dentro da minha cabeça. Se fosse obra da minha imaginação,
então provavelmente ela estava funcionando muito bem, porque a Voz
parecia muito real. Tudo estava errado. Eu tinha que sair dali.

Qualquer que fosse o lugar de onde a Voz estava vindo — de dentro
da minha mente ou de algum outro lugar —, as palavras seguintes me
perfuraram como agulhas pontiagudas.

Escute... importante... Callie... não volte à... Prime Destinations.










































5



















E
u estava em pé no meio da danceteria, paralisada. Seria alguma reação
aos medicamentos que a Prime havia me aplicado? Ou talvez tivesse a ver
com o chip.

Eu me virei na direção de Madison.

Não diga nada a ela...

Ela agarrou meu braço.

— Não. Esqueça. As. Regras. Sobre. Garotos —. disse ela,
enfatizando cada palavra com um movimento do dedo indicador.

Madison me trouxe de volta ao mundo físico. Ela parecia uma pop
star, mas agia como uma vovó.

— Preste atenção .— disse ela, enquanto algumas das mechas de seu
cabelo lhe caíam sobre um olho. — Isso é importante.

— De qual regra você está falando? — eu perguntei, tentando manter
o tom neutro.

— Você sabe. — Ela baixou a voz. — Nada de s-e-x-o. — Ela levantou
as sobrancelhas. —Especialmente com adolescentes verdadeiros.

— O que você quer dizer com ‚especialmente‛? Se é uma regra, não
pode haver casos que sejam ‚especialmente‛ importantes.

— Você sabe o que eu quero dizer. — Ela revirou os olhos. —
Simplesmente esqueça aquele garoto.

Com vozes na cabeça, eu tinha outras coisas muito mais importantes


com que me preocupar.

— Que garoto? — eu perguntei.

Isso a fez rir. Blake estava junto com seus amigos, no outro lado do
salão.

— Quer dizer que ele não sabe que somos inquilinas? — perguntei.

— Você não leu seu contrato, querida? É claro que ele não sabe. Não
podemos contar a ninguém que não seja um inquilino.

— Quem ainda lê contratos hoje em dia? — Eu dei de ombros. Do
outro lado do salão, Blake olhava para mim, atraindo-me com seu olhar.

Madison cruzou os braços, que cintilavam com o glitter que ela havia
aplicado.

— É melhor terminar de tomar seu café.

Esvaziei a xícara, gemendo com o amargor. Talvez isso ajudasse a
clarear minhas ideias. Talvez fizesse a Voz ir embora completamente.

— Qual é o problema? Você não costuma tomar café? — perguntou
ela.

Senti uma coceira em minha boca.

— Não. Nunca. — As únicas vezes em que tomara café foi misturado
com leite, com bastante açúcar e chantilly, antes da guerra.

— Considere isso como um remédio para sua bebedeira. — Madison
olhou para o relógio. — Céus, está tarde. Preciso ir embora. — Ela abriu a
pequena bolsa que trazia consigo e tirou algo de dentro.— Aqui está,
Callie, querida. Meu cartão—disse ela, entregando-o a mim. Antes que eu
pudesse examiná-lo, ela perguntou: — Onde está o seu?

Abri minha bolsa e não vi nenhum. Havia um ticket de
estacionamento, um documento universal de identidade, um telefone e
um maço de dinheiro. Tentei não suspirar ao ver todo aquele dinheiro.

— Acho que entreguei todos que tinha — eu disse.

— Não há problema. Basta me enviar um Zing. Bem, preciso ir.
Amanhã o dia será cheio. Que tal me acompanhar até meu carro?

Ela enlaçou seu braço com o meu. Quando passamos por Blake, senti
que ele estava com os olhos fixos em mim. Não olhei para trás. Procurei
me concentrar em Madison, percebendo o modo como ela andava com


passos longos e confiantes e recebia e ignorava os olhares de admiradores,
como se estivesse cercada por um campo de força.

Dois porteiros Enders abriram as enormes portas metálicas para nós.
Saímos da danceteria e sentimos o ar frio da noite. Um grupo de
adolescentes esperava por seus carros. Madison entregou seu ticket para o
manobrista e se virou para mim.

— Escute a voz da experiência — disse ela, colocando os braços ao
redor de si mesma e movimentando-se sobre os saltos dos sapatos. — com
calma na primeira vez que sair. Não faça nada muito selvagem. Não deixe
que nada aconteça com esse corpo, porque as multas são simplesmente
astronômicas.

Ela não precisava me dizer como eu devia proteger este corpo.
Continuei em silêncio, sabendo que nós iríamos nos despedir em breve e
que e eu nunca mais a veria. Ela inclinou a cabeça. Os brincos de argola
que usava balançaram.

— Eu lembro de meu primeiro aluguel. Já faz nove meses.

— Quantas vezes você já alugou?

— Querida, quem se importa com quantas vezes? — ela sorriu. —
tantos corpos diferentes para experimentar.., eu passo mais tempo sendo
jovem do que velha hoje em dia.

O Ender manobrista chegou com um conversível vermelho elegante,
cheio de curvas e reentrâncias. Ele olhou para Madison e acenou.

— Esse é seu carro?

— É meu carro de adolescente — disse ela, piscando o olho.

Eu a acompanhei até o automóvel e admirei a pintura reluzente e
dimensional. A ilusão de que havia camadas era incrivelmente realista e
era possível imaginar que eu estava olhando para um cânion.

— Da hora — comentei.

Madison franziu as sobrancelhas.

— Callie, tem certeza de que essa é a sua primeira vez?

Senti meu corpo tensionar.

— Por quê?

— Porque você fala como se fosse uma adolescente de verdade. Ainda


tenho que pensar sobre o que vou dizer quando tento me passar por uma
adolescente.

Tentar se passar por adolescente — era exatamente o oposto do que
eu estava tentando fazer. Eu queria que ela tivesse certeza de que eu era
uma inquilina, assim como ela. O que eu podia fazer? É claro. Ir em
sentido contrário.

Inclinando-me para a frente, eu a toquei no braço, da mesma forma
que ela havia me tocado anteriormente. Procurei deixar a voz um pouco
mais grave, e, deliberadamente, falei mais devagar.

— Eu me esforcei muito para estudar vozes antes que meu aluguel
começasse. Além disso, ainda sou bastante jovem. Tenho só 95 anos! —
Eu pisquei o olho.

— Ah, eu odeio você. — Ela deu uma gorjeta para o manobrista.
Estou brincando. Você vai ter que me ensinar seus truques algum dia.

Outro cano estacionou logo atrás do conversível de Madison.

— Preciso ir. Foi um prazer conhecê-la, Callie. Amanhã, de
parapente! — ela levantou os braços no ar. — Divirta-se com seu novo
corpo!

Madison embarcou no carro, deu a partida no motor e saiu em
disparada. Não havia nada de velho ou antiquado em seu modo de dirigir.

— Moça? — O manobrista estendeu a mão. — Seu ticket, por favor?

Eu o retirei de minha bolsa. Esperei até que Madison se afastasse,
caso eu tivesse problemas para conseguir dirigir. Como eu conseguiria
fazer isso? A palma das minhas mãos estava encharcada de suor. A última
vez que dirigira um carro fora há dois anos, quando meu pai me levara para
praticar no estacionamento de uma escola. O que ele tinha dito? Segure o
volante onde estariam os números 2 e 10 em um relógio. Diminua a
velocidade antes de frear. Nunca mande um Zing enquanto estiver
dirigindo.

Alguns rapazes saíram da danceteria e me despiram com o olhar.

Adolescentes típicos, a julgar pelas espinhas no rosto. Dei as costas
para eles. Não queria que descobrissem quem eu era realmente. Tudo que
queria era dar o fora dali.


Percebi que a Voz não retornara. Ninguém estava falando comigo e a
Voz também não. Isso era bom.

Precisava me lembrar de tudo. Eu sabia dirigir, mas, quanto mais
tentava me lembrar, mais rápido meu coração batia. Espero sinceramente
que meu carro seja fácil de dirigir, pensei.

Logo depois, o manobrista chegou com um carro esportivo amarelo
que parecia uma nave espacial.

Não. Não podia ser aquele.

Inevitavelmente, o manobrista parou à minha frente. Era o dobro do
carro de Madison, em todos os aspectos. A capota estava abaixada. Mesmo
aqui, com todos aqueles adolescentes ricos e mimados, os murmúrios
ecoaram por entre as pessoas que esperavam por seus carros.

Senti que todos os olhos estavam sobre mim enquanto andava até a
porta do lado do motorista. Dei uma gorjeta para o manobrista como
Madison fizera, sentei no banco de couro macio e me deparei com um
painel que tinha mais controles e mostradores do que um avião a jato. O
manobrista fechou minha porta e eu ergui a mão, pedindo que ele não
saísse de perto.

— Espere — Onde estamos?

— Onde? — Ele parecia confuso.

— Que cidade é essa? — continuei falando com a voz baixa.

— Los Angeles. Você está no centro de Los Angeles — ele apontou
para algum ponto do painel do carro antes de correr para buscar o próximo.

Percebi que ele estava apontando para o sistema de navegação.
Apertei o botão para ligá-lo. A aerotela se iluminou no espaço entre meu
rosto e o para-brisa. Vi a palavra ‚casa‛ flutuando ali e toquei nela.

Casa. Era isso que eu queria. O carro sabia onde eu morava, mesmo
eu não soubesse.

Engatei a marcha do carro e soltei o freio de mão. Diferente da de
Madison, minha saída em grande estilo ocorreu em passo de tartaruga.

Conforme eu safa lentamente da área da danceteria, ouvi um rapaz se
despedindo.

Olhei pelo retrovisor e vi Blake, com uma mão no bolso e a outra


acenando para mim.





Quando eu estava a alguns quarteirões de distância da danceteria,
estacionei o carro próximo à calçada, em frente a um prédio de escritórios.
Meu coração batia muito rápido e minhas pernas tremiam. Mas, pelo
menos, não havia batido o carro... ainda. Não estava me sentindo bêbada,
apenas desorientada, porque minha cabeça ficava mais lúcida a cada
minuto que passava. Eu tinha que descobrir o que estava acontecendo.
Como era possível ouvir vozes dentro da minha cabeça?

Já era tarde da noite. As ruas estavam vazias e silenciosas. Se aquela
Voz fosse retornar, essa seria a melhor hora. Tentei escutar, prendendo a
respiração, temendo o que eu poderia ouvir.

Silêncio. Ainda bem. A voz misteriosa desaparecera.

O que a Prime fizera com minha cabeça? Talvez alguma coisa tivesse
acontecido com meu cérebro quando eles inseriram o chip. Poderia ser o
próprio chip? Eu nunca deveria ter confiado meu corpo a eles.

Precisava me acalmar e dominar a situação. Olhei para os controles do
carro. O motor ronronava como um tigre enquanto eu pegava a bolsa que
estava no assento do passageiro e retirava o documento universal de
identidade. O cartão tinha minha holo, que girava para mostrar meu perfil.
Reconheci as imagens — as mesmas que eles registraram no banco de
corpos. Mas o nome no documento de identidade era Caule Winterhill,
não Calhe Woodland. O endereço era o mesmo que aparecia no navegador
GPS da aerotela.

Provavelmente o banco de corpos gerava documentos para todos os
inquilinos. Meus dados estariam codificados no cartão — meu UNA e as
impressões digitais. ‚Winterhill‛ provavelmente era o sobrenome da
inquilina. Dessa forma, ela poderia fingir ser parente da inquilina se fosse
abordada por quaisquer autoridades. Ela poderia se passar por sua própria
neta.

Portanto, eu tinha um carro maravilhoso que poderia me levar a
qualquer lugar. Queria muito ver meu irmão, mas me lembrei de


Tinnenbaum, que dissera que eles poderiam usar o neurochip para me
rastrear. Eles sabiam onde ‘Tyler morava; Rodney me levara até lá. Se meu
chip fosse até lá, eles saberiam que não era minha inquilina que estava
dentro de mim, mas eu mesma. E poderiam me acusar de quebrar o
contrato.

Eu poderia voltar ao banco de corpos. Não era isso que queriam que
eu fizesse? Mas a Voz,‛não retorne à Prime‛, parecia muito sinistra.
Estremeci. O que aconteceria comigo se eu voltasse?

Havia tanto barulho na danceteria que eu não conseguira ouvir a Voz
claramente. Mesmo assim, quanto mais pensava naquilo, mais a Voz
parecia vir de um Ender. Poderia ser alguém no banco de corpos, falando
comigo através do chip? Dons, quem sabe? Mas por que ela me diria para
não retornar à Prime? Será que ela queria que eu ficasse longe da empresa,
pois o problema seria resolvido logo? Ou talvez.., talvez houvesse outra
razão para não voltar.

Se eu deixasse o carro me levar para a casa de minha inquilina, talvez
conseguisse encontrar algumas respostas. Se meu aluguel houvesse
terminado antes do prazo, era possível que ela estivesse lá. Olhei para meu
relógio — bem, o relógio superelegante e cravejado de diamantes de
Winterhill. Já passava da meia-noite.

Também vi que era 14 de novembro. Meu aluguel começara havia
uma semana. Ainda tinha três semanas inteiras para cumprir.

O que havia acontecido?

Naquele momento, percebi algum tipo de movimento em meu
espelho retrovisor. O som baixo de pegadas se aproximava, calçados
esportivos correndo sobre o asfalto.

Renegados, correndo em direção a meu carro.

Cinco deles, com correntes e canos de metal nas mãos e ódio nos
olhos.

Meu sangue gelou. Corri os olhos pelos botões. O câmbio automático,
a primeira marcha. Onde estava o câmbio?

Um dos renegados pulou sobre a traseira do conversível. Uma cabeça
raspada, coberta por tatuagens.


Encontrei o botão que engatava as marchas e o apertei com força.
Pisei com tudo no acelerador. O renegado voou para trás e caiu no chão.

O reflexo do espelho mostrava que ele estava se levantando. Seus
amigos me mostraram o dedo médio. Eu tremia.

Aquele era um jogo totalmente novo. O simples fato de ter um carro
não significava que eu poderia baixar minha guarda. Na verdade, agora que
eu parecia ser rica, precisava estar mais alerta do que nunca.

Respirei fundo e expirei.

Daquele ponto em diante, o GPS foi minha única companhia. Ele
tinha um sotaque australiano e uma voz tão tranquila que ajudou a me
acalmar. Segui suas instruções até chegar à rodovia. Era muito mais fácil
dirigir em linha reta pela estrada, e, a essa hora da noite, havia poucos
carros em meu caminho. Passei por duas equipes de trabalhos estruturais,
cerca de 20 Starters que trabalhavam na construção e manutenção de
estradas. Uma onda de culpa se abateu sobre mim enquanto eu passava
rapidamente por eles naquele carro caro, com minhas roupas de grife e o
relógio de diamantes. Eu queria gritar para eles que não era a dona de
nenhuma daquelas coisas.

Mas eles já eram apenas pontos brancos em meu espelho retrovisor.

Depois de aproximadamente meia hora dirigindo em direção ao oeste,
o navegador me levou para a comunidade de Bel Air. Eu me lembrava de
que, antes da guerra, várias celebridades moravam ali. Passei por um
guarda particular que olhou para mim enquanto dirigia. Passei em frente a
mansões dignas de qualquer sonho, algumas vigiadas por guardas. Até que
o navegador avisou que eu havia chegado à minha casa.

Ele não tinha me avisado que era uma megamansão.

Não vi nenhum guarda, mas havia um portão enorme de ferro. Dirigi
até o portão e parei, freando com tanta força que meu corpo foi projetado
para a frente. Recostei-me no assento e procurei pelo controle que abriria
o portão. Um pequeno disco preto repousava no porta-copos. Eu o apertei
e os portões se abriram como se aquilo fosse a entrada do paraíso.

Dirigi por um acesso pavimentado com pedras. À esquerda, o acesso
se curvava até a frente da mansão. À direita, o caminho continuava em


direção a uma garagem para cinco carros. As portas da garagem se abriram
junto com o portão, revelando três carros estacionados. Um furgão, uma
limusine e um carro esportivo pequeno, azul. Estacionei em uma das duas
vagas que ainda restavam e desliguei o motor.

Senti meu corpo amolecer por inteiro. Não batera em nada no
caminho até ali. Tinha levado o carro caríssimo da sra. Winterhill em
segurança até seu devido lugar. Eu esperava, de todo o coração, que ela
ficasse feliz com isso.

E agora? Percebi que havia algumas coisas estranhas aqui. Eu
esperava que a sra. Winterhull estivesse em casa para me explicar o que
±avia acontecido. Talvez tudo se resolvesse e pudéssemos começar de
novo. Se eu tivesse sorte, conseguiria o crédito pela parte do contrato que
já cumprira.

Uma porta dentro da garagem servia como entrada lateral para a casa.
Bati. Ninguém veio atender. Era quase uma hora da manhã. Olhei para o
teclado que havia ao lado da porta, mas não fazia ideia de qual era o
código.

Andei pela garagem e saí por uma porta nos fundos. Meus saltos-
agulha estalavam contra as pedras enquanto eu caminhava em direção à
porta da casa, passando por obras de paisagismo elegantíssimas —
gramados bem cuidados, arbustos floridos, árvores imponentes. A conta de
água da sra. Winterhill devia ser astronômica.

Subi dois degraus até as imensas portas de entrada. Minha
proximidade ativou o sensor de presença e eu ouvi uma campainha tocar
dentro da casa. Depois de um minuto, ouvi passos. A porta se abriu.

Uma Ender magra e sonolenta segurava seu roupão ao redor do corpo
e saiu do caminho para permitir que eu entrasse.

— Quer dizer que você finalmente decidiu voltar para casa.












6



















S
enti minha boca ficar seca quando pisei no impressionante hall de
entrada da mansão Winterhill. O lugar parecia ter saído de um filme
antigo. Móveis de antiquário, o teto e o pé-direito tão altos que chegavam
até as nuvens, e uma escadaria enorme para levar os visitantes até lá.

A Ender fechou a porta.

Ela me olhou duramente por um momento. Se esperava que eu me
pronunciasse, teria que esperar para sempre.

Finalmente, ela falou.

— Imagino que tenha se divertido bastante, sra. Winterhill? — Ela
apertou a faixa na cintura de seu roupão como se fosse o nó de uma forca.

Com aquela pergunta, eu sabia que não havia qualquer chance de
encontrar a verdadeira sra. Winterhill na casa. Se contasse a verdade
àquela Ender sisuda, eu poderia ser colocada para fora ou levada de volta
ao banco de corpos. Talvez eu tivesse problemas. Talvez eles me
demitissem e eu nunca conseguisse ganhar o dinheiro que custearia a
nossa casa.

Eu não estava em condições de tomar uma decisão rápida. Precisava
dormir.

— Sim. O lugar era fabuloso — respondi.

Ela examinou meu rosto. Ou talvez eu estivesse apenas sofrendo um
ataque de paranoia.


— Esqueceu sua chave de novo?

Admiti que sim.

— Tenho certeza de que vai encontrá-la no carro. Quer alguma coisa?
— perguntou ela. — Fiz alguns de seus biscoitos favoritos.

Eu queria evitar qualquer interação com ela. Meu cérebro estava
quase fritando após passar a noite inteira mentindo e fingindo ser quem
não era.

— Você deve estar tão cansada quanto eu — eu disse. — Não se
preocupe comigo. Vá dormir.

— Tudo bem. Boa noite, sra. Winterhill.

Ela se virou em direção ao corredor que ficava à direita. Em seguida,
parou.

— Eu quase me esqueci — disse ela. — Redmond telefonou.

— Obrigada. — Fosse lá quem fosse.

Eu a observei enquanto ela continuava a percorrer o corredor em
direção a seu quarto. Olhei ao redor do grande hall de entrada. Minha
velha casa, onde eu morava com minha família, era um lugar muito
confortável, um rancho modesto no Vale. A mansão de Winterhill me
deixou embasbacada. Era como voltar no tempo ou como estar em algum
museu. Uma mesa antiga de mármore dominava o centro do hall e servia
como base para um imenso arranjo de flores brancas que teria levado
minha mãe às lágrimas. A fragrância das flores intensificava a sensação de
intoxicação que tomava conta de mim.

Olhei para a imensa escadaria de mogno que levava ao segundo andar.
O quarto dela provavelmente ficava lá em cima. Segurei no corrimão,
lustroso e brilhante, e subi as escadas.

Virei à esquerda após o primeiro lance de escada, passando em frente
a vários retratos. Eram todos da mesma mulher — a sra. Winterhill, sem
dúvida — em diferentes estágios da sua vida. Estava sempre muito bonita,
com as maçãs do rosto proeminentes, o nariz e o queixo com contornos
fortes. Os olhos dela me seguiram.

Cheguei ao corredor do segundo andar, com uma iluminação discreta
que vinha das arandelas instaladas nas paredes. Virei à direita. Havia várias


portas nos dois lados do corredor e todas estavam fechadas. Será que mais
alguém morava aqui? Era o que eu estava prestes a descobrir.

Abri a primeira porta à minha direita. Agitei a mão sobre o lugar onde
o painel de luz deveria estar e as lâmpadas se acenderam.

Esse primeiro cômodo parecia ser um quarto de hóspedes — nenhum
objeto pessoal à vista. Desliguei a luz e fui em direção à porta seguinte,
que se abria para um quarto de costura e bordados. Em seguida, havia um
quarto decorado para uma garota adolescente. Eu não sabia se era o quarto
das fantasias adolescentes da sra. Winterhill ou se uma adolescente de
verdade morava ali. Fiquei aliviada ao perceber que ele estava vazio.

Atravessei o corredor. A primeira porta que tentei abrir estava
trancada. Fui até a porta seguinte, onde encontrei o que procurava o
quarto da sra. Winterhill. Uma cama com dossel feita em ébano estava no
meio do quarto. Os pilares da cama eram esculpidos de forma a parecer
que se retorciam ao redor de si mesmos e cada um deles terminava em
uma pata de animal que segurava uma bola. Sobre a cama, um tecido
dourado formava o dossel, com as dobras plissadas de forma precisa ao
centro. A colcha listrada em verde e dourado tinha franjas generosas que
pendiam nos cantos. Uma montanha de travesseiros coroava a cabeceira
da cama.

A melhor coisa naquela cama era o fato de não haver nenhuma sra.
Winterhill nela.

Por mais convidativa que a cama parecesse, o que atraiu minha
atenção foi a área logo à esquerda. Era uma área de descanso, mobiliada
com uma espreguiçadeira e uma pequena escrivaninha, outra antiguidade.

Sobre a escrivaninha havia uma caixa achatada feita de madeira,
decorada com detalhes de marchetaria.

Abri a caixa. Dentro dela havia um computador.

Corri para trancar a porta, voltei rapidamente para o computador, me
sentei e tirei os sapatos. Percebi uma luz amarela sobre o painel e agitei
minha mão sobre ela. A aerotela apareceu logo acima.

Se Beverly Hills sofrera um blecaute ou tivera problemas com as
células de energia, talvez isso explicasse o motivo pelo qual eu perdera a


conexão com minha inquilina. Procurei nas Páginas.

Nada apareceu. Continuei a ler, mas não havia nada de novo nas
notícias.

Procurei por minha mãe e meu pai, esperando que alguma imagem
deles ainda existisse em algum lugar. Encontrei uma que os mostrava em
uma festa. Olhei para aquela imagem por um longo tempo, absorvendo
cada detalhe dos rostos deles.

Deixei meu corpo afundar na cadeira e senti que minhas pálpebras
estavam ficando pesadas. Eram 2 horas da manhã.

Ao lado do computador havia um holoálbum com uma imagem da sra.
Winterhill. Seu nome estava gravado na moldura: Helena Winterhill. Os
contornos do rosto eram os mesmos que estavam nos retratos da parede,
mas o holoálbum mostrava uma imagem mais recente. Embora parecesse
ter cerca de 100 anos, ela tinha um corpo escultural, assim como uma
aparência elegante e forte.

— Helena Winterhill, onde você está?

Ela simplesmente sorria para mim.

Eu me levantei, tirei o vestido de festa, coloquei-o sobre o encosto da
cadeira e deitei na cama, apenas com as roupas de baixo. Pensei em Tyler
e Michael em suas pequenas fortalezas, dormindo profundamente.







Na manhã seguinte, abri meus olhos e vi um dossel dourado acima de
mim. Por baixo de meu corpo, lençóis finos de seda. Minha cabeça
flutuava no travesseiro mais macio do mundo, enquanto o aroma delicado
de cedro se mesclava com o de madressilvas, tornando o quarto ainda mais
relaxante. Eu estava definitivamente em um território digno de uma
princesa.

Levantei da cama e peguei o telefone celular de minha inquilina.
Nenhuma ligação da Prime. Seria otimismo demais esperar encontrar
alguma solução para o que estava acontecendo?

Eram 9 horas da manhã. Michael estaria buscando água para que


Tyler pudesse se lavar agora.

Fui até o banheiro de Helena. Uma área grande e aberta, feita de
mármore, indicava o chuveiro. Assim que eu me aproximei, uma cascata
começou a fluir do teto. Havia dois sensores para ajustar a temperatura.
Agitei a mão em frente ao sensor vermelho para deixar a água mais quente.
Tirei meu sutiã e a calcinha de seda e me enfiei debaixo daquela cascata
de água.

Por um segundo, senti uma onda de culpa ao pensar em quanta água
estava sendo desperdiçada. Apenas por um segundo. A sensação de poder
fechar os olhos e sentir a água cair sobre minha cabeça era muito
refrescante. Eu me senti renovada.

Enrolei-me em uma toalha aquecida e grossa e agitei os dedos dos pés
no tapete felpudo enquanto jatos de ar quente sopravam para secar minha
pele. Quando me abaixei para pegar o sutiã, lembrei do papel que Michael
me entregara quando nos despedimos. Eu o coloquei dentro do sutiã.

Mas aquilo acontecera havia uma semana. Eu estava usando outro
sutiã.

Fui até a cômoda no quarto de Helena. Queria examinar a gaveta de
roupas íntimas, mas um pedaço de papel que estava sobre a cômoda atraiu
minha atenção.

O papel tinha marcas que indicavam onde fora dobrado. Era um
desenho com minha imagem. Eu não me lembrava de posar para aquele
retrato, mas o traço de Michael era inconfundível. Aquele devia ser o
papel que ele me entregara antes de eu sair do prédio com Rodney.

Helena provavelmente encontrara o desenho escondido em meu —
em nosso — sutiã.

Olhei fixamente para o desenho, fascinada. Era bonito. Sublime. E
um pouco assustador, também.

Não era uma representação exata. Michael se aproveitara de algumas
liberdades artísticas, como me dar olhos de cores diferentes. Mas eu vi
aquilo como uma interpretação perspicaz de meu espírito. A imagem me
fez pensar — seria pelo fato de Michael ser um artista talentoso? Ou
estávamos assim tão conectados?


Não tinha certeza da resposta, mas fiquei emocionada. Coloquei o
papel novamente no topo da cômoda.

Os painéis de madeira escura que revestiam as paredes do quarto
davam acesso a dois guarda-roupas. Abri o primeiro e examinei as roupas
usadas tipicamente por Enders: vestidos e ternos em cores escuras, todos
de um tamanho muito maior do que o meu. Abri o armário ao lado e
encontrei roupas para mim. Exatamente do meu tamanho.

Escolhi um jeans e uma camiseta bordada e os vesti. Perfeitos. Sobre
a cômoda havia uma gargantilha com um camafeu que combinava com
minhas roupas e resolvi usá-la. Quando prendi o fecho ao redor do
pescoço, senti que meu cabelo ainda estava úmido. Imaginei que não havia
ficado tempo suficiente diante dos jatos de ar. Ao apalpar a parte de trás
de minha cabeça, senti algo estranho — a incisão onde a Prime inserira o
chip. Tinha um formato oval e estava um pouco dolorida.

Sobre a cômoda, também, estava o relógio que eu usara na noite
anterior. Não fazia ideia de quanto ele tinha custado. Provavelmente o
bastante para alimentar uma família durante um ano. Abri uma gaveta e o
guardei. Não queria ser responsabilizada caso o relógio fosse roubado ou
danificado.

Peguei a bolsa que estava comigo na noite anterior. Era elegante
demais. Encontrei outra bolsa no guarda-roupa, feita de couro e com uma
alça para passar por sobre o ombro — exatamente o que eu precisava — e
coloquei a carteira de motorista e o telefone celular nela. Peguei também o
maço de dinheiro e o agitei rapidamente. Aquele dinheiro todo não era
realmente meu. Mas eu precisava dele agora para comprar comida e
gasolina, enquanto tentava descobrir o que estava acontecendo.

Decidi manter um registro de meus gastos e ressarcir a ara. Winterhill
quando recebesse meu pagamento. Depois de contar as notas, coloquei o
dinheiro na bolsa de couro.

Havia mais uma coisa na bolsa da noite anterior: o cartão de Madison.
Li o nome ‚Rhiannon Huffington‛. O holo mostrava Madison como ela
realmente era, uma mulher acima do peso, com 125 anos de idade,
vestindo uma longa túnica de seda e mostrando os dentes em um sorriso.


Ela contraía os lábios em um beijo e o soprava, piscando o olho. Essa era a
mulher que estava dentro da pequena Madison. Rhiannon podia ser
excêntrica, mas certamente sabia como se divertir. Eu tinha que admitir
isso.

Coloquei o cartão dela dentro da bolsa maior.

Guardei as roupas da noite passada e arrumei a cama. E, após alguns
momentos, me dei conta de que a sra. Winterhill provavelmente nunca
arrumava sua própria cama. Era para isso que ela tinha aquela governanta.
Assim, decidi deixar tudo desarrumado de novo. Estava quase saindo
quando percebi que havia deixado o computador ligado.

Sentei-me e fechei a caixa onde o computador ficava guardado. Talvez
houvesse alguma outra coisa ali que pudesse me dizer mais sobre a sra.
Winterhill. Abri uma das gavetas da escrivaninha e vi somente canetas e
blocos de notas. Mas, na gaveta do meio, havia um estojo de prata para
cartões pessoais.

‚Helena Winterhill‛ era o nome que aparecia nos cartões. A imagem
holográfica era a mesma que estava sobre a escrivaninha. Peguei alguns
cartões e coloquei-os em minha bolsa.

O celular de Helena vibrou com um toque para o aparelho. Alguém
havia enviado um Zing.

A mensagem era a seguinte: ‚Eu sei o que você vai fazer. NÃO. Não
faça isso ‚.

Aquilo me fez hesitar. Quem seria? Algum amigo de Helena que
descobrira suas aventuras com o aluguel de corpos? Enders sabiam julgar
as outras pessoas como ninguém.

Ou será que isso tinha alguma coisa a ver com a Voz?

Coloquei o telefone em minha bolsa. Eu queria sair dali e queria fazê-
lo sem precisar encontrar a governanta. Destranquei a porta do quarto e
espiei o corredor. Não havia ninguém ali, em nenhuma direção. Fechei a
porta por trás de mim com todo o cuidado para não fazer barulho e desci
as escadas.

Quando dei a volta entre o primeiro e o segundo lance da escadaria,
percebi a governanta esperando por mim em frente ao último degrau.


Ela trazia um regador nas mãos e o colocou no chão, ao lado da mesa
com as flores.

— Bom dia, sra. Winterhill. — Ela enxugou as mãos no avental.
Usava calça e camisa pretas, discretas.

— Bom dia.

Tentei descobrir qual porta levaria à garagem. Não tinha certeza.

— Seu café da manhã está na mesa.

— Não estou com fome. Vou sair.

— Não está com fome? — Ela levantou a cabeça como se isso fosse
algo que a sra. Winterhill nunca dissesse. — Está doente? Quer que eu
ligue para o médico?

— Não, não. Estou bem.

— Então você precisa tomar seu café e um suco, pelo menos. Para
ajudar a absorver as vitaminas.

Ela se virou e andou pelo corredor, levando-me em direção à cozinha
gourmet. Assim como os banheiros, não tinha o mesmo estilo antigo do
resto da casa; em vez disso, estava cheia de todas as conveniências
modernas de última geração.

O cheiro de canela enchia a cozinha e entristeceu meu coração.
Aquilo me fez lembrar dos brunches nos fins de semana felizes dos quais
Tyler, nossos pais e eu costumávamos desfrutar quando éramos uma
família. A governanta havia preparado um lugar para mim no centro da
mesa enorme. Uma imensa vasilha prateada estava cheia de frutas
cortadas, inclusive a minha favorita: mamão. Senti minha boca se encher
d’água.

Sentei-me e cobri o colo com um guardanapo. A governanta estava de
costas para mim enquanto se ocupava com o fogão. Olhei para a direita e
percebi um pequeno corredor de acesso que levava até uma porta. Seria o
caminho para a garagem? Ela se aproximou com uma frigideira nas mãos e
colocou uma fatia de rabanada em meu prato. Fazia muito tempo que eu
não via um pedaço de rabanada. Ela trouxe um frasco e polvilhou açúcar
por cima do pão, exatamente como minha mãe costumava fazer.

Eu estava faminta. Não sabia quando a sra. Winterhill fizera sua


última refeição, mas tinha a sensação de que fazia vários dias. A
governanta mencionara vitaminas. Era interessante que minha inquilina
estivesse tão disposta a cuidar de um corpo temporário.

Tudo tinha um sabor delicioso, de comida que acabara de ser
preparada. O suco era como ambrosia, uma mistura de vários sabores
tropicais. Fiquei contente ao ver uma jarra sobre a mesa, porque sentia
muita sede. Olhei para a cornucópia de frutas e imaginei se haveria
alguma maneira de levar algumas delas para Tyler e Michael.

Quando terminei minha refeição, a governanta me trouxe pequeno
pote com vitaminas. Os comprimidos tinham várias cores diferentes e
presumi que ela queria que eu tomasse todas.

— Você precisa cuidar bem desse corpo — disse ela. — Mesmo que
não seja seu.

Eu assenti, com a boca cheia de vitaminas, e bebi alguns goles do
suco. Coloquei meu guardanapo sobre a mesa e me levantei.

— Obrigada. Estava delicioso.

A governanta me lançou um olhar estranho. Imaginei se havia dito
algo errado. Fui até a porta que eu esperava ser minha saída.

Coloquei a mão na maçaneta e a puxei. Dei de cara com a despensa.

— O que está procurando? — perguntou a governanta.

Examinei as prateleiras e peguei uma supertrufa.

— Já encontrei.

Saí da despensa e vi outra porta que passava por um saguão menor.
Tinha que ser aquela. Fiz menção de ir naquela direção quando um som
me assustou.

Era a campainha da porta da frente.

A governanta saiu da cozinha para atendê-la. Fui para o corredor
lateral e abri a porta. Sorri quando vi o foguete espacial amarelo e os
outros carros esperando, como se fossem meus cavalos puro-sangue,
prontos para me levar aonde eu desejasse.

Ouvi a governanta me chamando enquanto voltava apressadamente
para a cozinha.

— O que foi? — eu perguntei.


— Há um... rapaz que veio vê-la — sussurrou ela, com o rosto pálido.

— Um rapaz?

Ela levou a mão enrugada até o nariz e confirmou com um aceno de
cabeça. Suas feições se retorceram, como se ela estivesse trazendo a pior
notícia do mundo. Ela deixou a mão cair sobre o avental e o agarrou com
força.

— Ele disse que vocês marcaram um encontro.






















































7



















C
orri para o saguão principal da casa, com a governanta em meus
calcanhares.

Era o rapaz que eu havia conhecido na danceteria, Blake. Ele usava
jeans e uma jaqueta de couro. O que ele viera fazer aqui?

— Oi, Callie,

— Blake — caminhei até a mesa de mármore para me apoiar. À luz
cio dia, os olhos dele eram ainda mais penetrantes.

— Está se sentindo melhor? — perguntou ele.

— Sim, obrigada. — Será que ele atravessara a cidade só para ver
como eu estava?

— Como eu disse a Eugênia — ele indicou a governanta com um
movimento de cabeça—, nós marcamos um encontro ao meio-dia. — Os
olhos dele olhavam para ela e para mim. — Você não esqueceu, não e?

Como ele sabia onde eu morava? Gaguejei qualquer coisa incoerente.

— Você esqueceu — disse ele, com um suspiro.

Olhei para Eugênia. Pelo menos agora eu sabia o nome dela.

— Por favor, você poderia...?

Ela foi em direção à cozinha. Eu me virei para Blake.

— Quando foi que marcamos esse encontro? — Minha mente estava
confusa com tantas ideias e pensamentos. Imagens da noite anterior se
misturavam em borrões. — E quando foi que eu disse sim?


Ele se aproximou.

— Quando eu a encontrei ontem à noite, sentada em frente ao balcão
do bar no Club Rune. Não se lembra? Você não conseguia chamar a
atenção do bartender. Pedi a bebida que você queria.

— No balcão?

— Nós conversamos e rimos. Você disse que gostava de cavalos —
comentou ele.

Eu estava no Club Rune, mas não havia me sentado no balcão do bar.
Ele devia ter conversado com Helena antes que eu voltasse a assumir o
controle de meu corpo. Fora assim que ele havia descoberto meu nome.
Seu olhar era tão intenso que achei que fosse me derreter. Deslizei meus
dedos pelo tampo frio da mesa de mármore. O perfume forte das flores
não estava ajudando a manter meus nervos sob controle.

— Eu não estava em meu estado normal noite passada — eu disse.

Ele baixou a cabeça para que nossos olhares se cruzassem.

— Quer marcar para outro dia?

Estava quase a ponto de mandá-lo embora, porque, teoricamente, eu
estava trabalhando. Mas o banco de corpos ainda não havia entrado em
contato. Eles sabiam como me encontrar por meio do chip. E poderiam
ligar para a casa de Helena se quisessem me encontrar.

E a lembrança daquela voz em minha cabeça me convenceu de que
eu não deveria retornar à empresa.

— Não — eu disse.

Ele me olhava com uma pergunta em sua expressão.

— ‚Não‛ quer dizer ‚não‛? — perguntou ele. — Do tipo... embora e
não me procure mais‛?

Eu sorri.

— Não — continuei. Era divertido provocá-lo. — ‚Não‛ quer dizer
‚não precisamos marcar para outro dia‛. Espere um pouco, eu já venho.

Corri até o quarto de Helena, no andar superior. Disse a mim mesma
que o verdadeiro motivo para justificar aquele encontro era o fato de
precisar que ele me fizesse um grande favor. Aquela era minha chance de
fazer amizade com um verdadeiro adolescente, não um Ender que fingia


ser um deles. Um adolescente com um carro, a liberdade e a capacidade
de ir a qualquer lugar. Ele poderia me fazer um favor e Tyler e Michael se
beneficiariam. Eu esperaria pelo momento certo para pedir a ele.

Peguei o desenho de meu rosto sobre a cômoda, dobrei-o e o enfiei na
minha bolsa.

Blake e eu saímos juntos da casa. Seu carro, um modelo esportivo
vermelho de alta potência, esperava por nós no acesso pavimentado com
pedras em frente a casa. Tinha um acabamento de metal escovado mm
linhas suaves, sem nenhum acessório inútil. Ele abriu a porta para mim e
entrou pelo lado do motorista. Os cintos de segurança zumbiram com um
ruído baixo enquanto nos abraçavam contra os assentos.

Percebi que o portão estava aberto. Será que eu não o fechara na noite
passada?

Enquanto Blake se afastava da casa, vi a governanta, Eugênia, por
uma das janelas do segundo andar. Havia uma expressão de desaprovação
em seu rosto que a cobria como uma segunda camada de talco. E, se eu
ainda não houvesse entendido a mensagem, ela balançava a cabeça de um
lado para o outro.

Nós passamos pelo portão e chegamos à rua, e, de repente, senti meu
estômago se revirar.

O que é eu estava fazendo?

— Você está bem? Confortável? — perguntou Blake.

Eu fiz que sim com a cabeça.

Eu não passava de uma impostora. Ele era rico e eu não era, e, mesmo
assim, ali estava eu, fingindo, usando roupas caras de marcas famosas e
agindo como se morasse em uma mansão, uma ricaça com sua própria
criada. Sabia que devia lhe contar a verdade sobre mim, mas como isso
soaria? Blake, adivinhe só, eu sou uma órfã sem-teto que dorme no chão
em prédios abandonados e só estou viva porque pego comida nas lixeiras
dos restaurantes. Não tenho casa, não tenho roupas, não tenho parentes.
Nada. Pior do que tudo isso, eu vendi meu corpo para um lugar chamado
Prime Destinations. Até duas semanas atrás, eu não tinha essa aparência.
Eles me deixaram assim usando lasers, pinças de sobrancelha e


cosméticos. E, tecnicamente, este corpo agora pertence a uma Ender
chamada Helena Winterhill, porque ela pagou para usá-lo. Você poderia
estar saindo para um encontro romântico com ela neste exato momento,
uma mulher de mais de 100 anos, saberia, O que acha disso?

Olhei para Blake. Ele parecia não ter a menor noção do que estava
acontecendo. Dirigia tranquilamente. Ele percebeu que eu o observava e
sorriu para mim, e logo depois voltou a concentrar sua atenção na estrada.

Recostei-me no assento e inalei o aroma de couro novo.

Será que Cinderela chegara a cogitar a possibilidade de confessar a
verdade para o príncipe na noite em que se divertira com o belo vestido de
baile? Será que chegara a pensar em dizer que, ah, por falar nisso,
Príncipe, a carruagem não é minha, sou apenas uma criada suja e descalça
e essa aparência não vai durar muito tempo? Não. Ela tinha aproveitado
cada momento.

E fora embora discretamente depois da meia-noite.







Enquanto passávamos pela estrada, comecei a fazer cálculos em minha
cabeça. Eu tinha 13 anos quando a guerra explodira e estava vivendo nas
ruas desde os 15. Era uma excelente justificativa para que esse fosse meu
primeiro encontro com um rapaz. Tudo que eu sabia sobre encontros e
namoros estava em holos que eu vira com meu pai, e ele gostava muito de
fazer a aquilo. Eu me lembro de uma vez que fomos ao Xperience da
cidade para a imersão total em imagens, som e clima. Sentia falta das
poltronas especiais que se moviam e vibravam, fazendo com que as
pessoas sentissem que estavam realmente na cabine de uma nave espacial
ou voando pelas florestas ao lado de fadas e duendes.

Gostava tanto daquele lugar que sonhava em trabalhar com algo do
tipo, atuando na criação das Xperiences com as quais eu crescera.

Para mim, encontros românticos eram algo saído de musicais, nos
quais tudo acontecia perfeitamente. Ou então de comédias, onde tudo era
esquisito e engraçado. Qual, dentre essas duas, iria acontecer comigo?


Blake me levara para um haras particular nas colinas ao norte de
Malibu. Meu pai nos levara para cavalgar uma única vez em um estábulo
público, e a ocasião fora totalmente diferente. Aqueles cavalos eram lentos
e pareciam estar sempre cansados, e nós cavalgamos vagarosamente por
trilhas secas e planas cercadas por arbustos esqueléticos. Eu achava que
aquele passeio fora maravilhoso — que eu sabia sobre a vida? Entretanto,
cavalguei com Blake por campos exuberantes em imponentes cavalos
árabes, com pelos sedosos cor de avelã. Trotamos por uma trilha que
atravessava uma floresta de pinheiros e atravessamos riachos borbulhantes.
Havia apenas nós dois, nenhum outro cavaleiro — nenhuma outra pessoa
— por todo o trajeto. Blake tinha mais experiência e cavalgava melhor, j
teve seu cavalo para me acompanhar. Eu não queria ir mais rápido do que
um trote. Não queria me arriscar, sabendo que poderia cair e me
machucar.

Depois de algumas horas, Blake parou seu cavalo e apeou.

— Está pronta para o almoço?

Estávamos no meio de uma área totalmente desabitada.

— É claro. Mas não estou vendo nenhuma lanchonete drive-thru por
aqui.

Ele sorriu.

— Venha comigo.

Blake pegou as rédeas e conduziu o cavalo ao redor de uma curva. Sob
a sombra de um enorme carvalho havia uma mesa cheia de comida: vários
tipos de sanduíches, uvas, longos palitos de madeira com pedaços de
frutas e brownies. Ele percebeu minha expressão e riu.

— Eu só pedi sanduíches de manteiga de amendoim e batatas fritas
— ele deu de ombros.

Blake me ajudou a apear do cavalo e nós amarramos nossa rédeas a
uma árvore. Havia baldes de água e um pouco de feno para os cavalos.

Ele tirou o telefone celular do bolso.

— Venha aqui.

Um sorriso torto se formou em seus lábios. Hesitei por um segundo,
depois me aproximei.


Blake fez com que eu me virasse, de modo que ficasse de costas para
ele. Em seguida, ele passou o braço ao redor de meu pescoço e me trouxe
para mais perto dele. Sua pele estava quente após a cavalgada sob o sol e
cheirava a protetor solar. Segurei o braço dele com as duas mãos, sentindo
sua força. Ele segurou o telefone com a outra mão, apontando a câmera
para nós.

— Para nos lembrarmos.

Click.

Sem olhar para a foto, ele colocou o telefone de volta no bolso.

— Não está com fome? — perguntou.

Sentamos à mesa e enchemos nossos pratos. Percebi que havia uma
cesta de piquenique enorme no chão.

— Quem preparou tudo isso? — eu perguntei, entre as mordidas.

— As fadas — ele me entregou um refrigerante.

— São criaturas muito artísticas. Trouxeram até mesmo flores. —
Toquei um vaso pequeno, com orquídeas minúsculas.

Blake pegou uma das orquídeas e me entregou.

— É para você.

Peguei a flor e a admirei. As pétalas eram amarelas com pequenas
manchas arroxeadas, parecidas com a pele de um leopardo.

— Nunca vi uma orquídea com esse tipo de manchas — eu disse,
levando-a até meu nariz.

— Eu sei. Elas são raras. Assim como você.

Senti meu rosto corar. De repente, estava bastante concentrada em
beber meu refrigerante.

— Então, quem você é realmente, Callie, garota cheia de mistérios?
— perguntou ele. — Por que eu nunca a vi antes?

— Se tivesse visto, eu não seria um mistério.

— Qual é seu prato preferido? Não pense. Só responda.

— Cheesecake.

— E qual é sua flor preferida?

— Esta aqui. — Eu girei o caule da orquídea com manchas.

— Melhor holo que viu este ano?


— Holos demais para poder escolher. — Não queria dizer que vira
nenhum.

—Animal?

—Baleia.

— Essa foi rápida. — Ele balançou a cabeça e nós dois rimos.

— E o que me diz de você? — eu perguntei. — Vamos ver as coisas
de que você gosta.

— Cor: azul. Comida: batatas fritas. Instrumento: guitarra — ele falou
rapidamente. — Interesse especial: espécies em extinção.

— É um bom interesse. Posso assumir como uma das coisas que me
interessam, também?

Ele apertou os olhos, fingindo que estava pensando seriamente sobre
o assunto.

— Tudo bem.

Ficamos sentados sob o sol por um bom tempo, conversando e nos
conhecendo melhor. Tive a sensação de que poderia ficar ali com ele para
sempre. Mas estava começando a esfriar. Esfreguei meus braços.

— O que você acha? É hora de irmos embora? — perguntou ele. Fiz
que sim com a cabeça e comecei a recolher os pratos.

— Não se preocupe — disse ele, colocando a mão em meu braço.
Alguém vai vir até aqui para cuidar disso.

— Quem? As fadas? Não é muito gentil de sua parte forçá-las a
trabalhar tanto, não acha? Não vai fazer mal para aquelas mãozinhas
delicadas?

— Elas gostam de trabalhar. Gostam do salário das fadas.

— Esse rancho é seu, não é?

Ele franziu os lábios. Tive a impressão de que não queria se vangloriar.

— Pertence à minha avó.

Senti que havia algo mais ali, um tipo de tristeza. Provavelmente
pertencera a seus pais em algum momento, mas eles haviam morrido,
assim como os pais de todos os Starters. Eu assenti.

— Então, realmente é melhor deixarmos que as fadas cuidem dos
pratos.


Desamarramos os cavalos e trotamos de volta enquanto o sol se punha
sobre as montanhas. Fazia muito tempo que eu não passava um dia inteiro
sem ter que lutar por minha sobrevivência. Senti um aperto na garganta ao
pensar que aquele momento terminaria. Como se pudesse ler minha
mente, ele parou e nós assistimos ao pôr do sol juntos, com os cavalos lado
a lado.

— Divertiu-se? — perguntou ele.

Eu sentia vontade de deixar minha alegria jorrar em palavras, mas me
contive.

— Foi legal.

Olhei para ele, sentado sobre seu cavalo, e lhe lancei um sorriso. Ele
retribuiu. Em seguida, simplesmente ficou me olhando, com um lado do
rosto mais avermelhado devido ao reflexo do pôr do sol. Sene que um calor
invisível emanava dele. Se aquele fosse um jogo na aerotela, haveria
corações enormes flutuando entre nós.

De repente eu senti uma forte pontada de culpa em relação a
Michael. Embora não estivéssemos realmente namorando, eu tinha que
parar de pensar em Blake. Aonde isso me levaria? A lugar nenhum.
Nenhum. Nenhum.

Respirei fundo e, mentalmente, dei um tapa em mim mesma. Pare de
analisar tudo e aproveite o pouco tempo que você ainda tem com ele,
pensei enquanto o último pedaço do sol desaparecia por trás das
montanhas.







De volta ao carro, eu estava pensando em como poderia pedir o favor de
que precisava. Mas ele queria parar na casa da mãe de seu avô. Ela
precisava de ajuda para regular sua aerotela.

Ela vivia em um prédio alto em Westwood. No elevador, ele explicou
que o nome de sua bisavó era Marion, mas ele a chamava de Nani. Ela não
gostava de revelai sua idade, mas Blake imaginava que ela provavelmente
teria 200 anos.


Quando ela abriu a porta, não era o que eu esperava ver. Era uma
mulher pequena, e seu cabelo não era de um branco reluzente ou
prateado, mas de um tom amarelado. Usava um blusão de casimira. Mas a
maior entre todas as surpresas foi perceber que ela mostrava suas rugas
com orgulho, evitando cirurgias e tratamentos de pele em geral.

Ela segurou minha mão enquanto me levava para uma cadeira. Tinha
um aroma de lavanda ao redor de si.

— Blakey, a aerotela não está ligando — disse a bisavó, sentando-se
em uma poltrona a meu lado. —Ele me disse que talvez trouxesse uma
amiga. Fico muito feliz em conhecê-la.

Blake sentou-se ao lado de Marion e começou a examinar sua
miniaerotela. Ela acariciou a mão dele.

— Ele é um ótimo garoto. Não acredito nessas coisas negativas que
falam sobre as pessoas jovens. Você sabe, aqueles que não têm boas casas
como vocês dois. Todos dizem que tudo o que esses jovens fazem é brigar,
roubar e vandalizar. Eles não fazem só isso, tenho certeza; é apenas o que
ouvimos a respeito. Não acredito que devam ser colocados em instituições.
É errado fazer isso. Como eles vão conseguir contribuir com nossa
sociedade se não os integrarmos a ela?

Tudo que eu podia fazer era assentir em silêncio e imaginar o que ela
diria se conhecesse minha história.

Marion se inclinou em direção a Blake e apontou para a tela.

— Conseguiu consertá-la?

— A célula de energia estava solta — disse ele.

— Já conheceu meu filho? O avô de Blake? — Marion apontou para
um quadro que estava pendurado na parede.

Eu balancei a cabeça.

— Ele é um senador, sabia? — Ela sorriu. — Senador Clifford C.
Hanison.

— É mesmo? — Olhei para o retrato de um Ender

— Você se parece com ele — eu disse a Blake.

— Ele realmente se parece, não é? — disse Marion.

— Nani... — Blake falou.


— Por que eu não deveria me orgulhar de meu filho? E de meu
bisneto? — Ela o beliscou na bochecha. — Ele me trata muito bem e
sempre me telefona. E vem até aqui sempre que eu preciso dele. Quantos
netos fazem isso?

O rosto dele corou. Achei lindo.

No elevador, a caminho do térreo, olhei para Blake mais inveja.

— Você não me disse que seu avô era senador.

Ele enfiou suas mãos nos bolsos e deu de ombros.

—Bem, agora você sabe.

Eu gostava de perceber que ele não se vangloriava.

— Ela é ótima — eu disse, indicando o apartamento de sua bisavó.

— Nani é um amor de pessoa. Queria que minha avó fosse como ela.

O elevador parou e nós fomos até a frente do prédio. Blake deu seu
ticket para o manobrista.

— Ela não tem as mesmas opiniões de Marion?

Ele balançou a cabeça.

— Desde que ela possa fazer compras na Tiffany’s, tudo está bem com
o mundo. E você? Como é sua avó?

Olhei para meus pés enquanto esperávamos pelo manobrista.

— Não é muito diferente da sua.

— Que pena.

Fiz questão de não perguntar sobre seu avô. Blake não parecia se
sentir muito confortável com o fato de que ele era um grande senador.

Já havia escurecido quando voltamos a Bel Air. Ele estacionou o carro
na rua, logo em frente ao portão, e desligou o motor, O interior da casa da
sra. Winterhill estava iluminado com luzes douradas suaves.

— Eu me diverti muito — disse ele

—Eu também. — Tinha que perguntar a ele, mas não sabia como
dizer. Assim, eu simplesmente joguei tudo para fora. — Preciso que você
me faça um favor.

Ele me observou por um segundo.

— Qualquer coisa que você precise.

— Tem papel e caneta?


Ele abriu o porta-luvas, tirou uma caneta e um bloco de notas e os
entregou a mim. Tentei redesenhar o mapa de Michael com o máximo de
detalhes que consegui recordar.

— Preciso que você vá até este lugar. — Apontei para o prédio. Ele
olhava para meu desenho.

— Que lugar é esse?

— É um prédio comercial abandonado.

— Está brincando?

— Por favor. Tenho um amigo que passou por alguns problemas. Ele
precisa deste dinheiro. — Tirei todo o dinheiro que tinha na bolsa. —
Quando chegar lá, estacione na rua lateral. Não saia do erro se perceber
que há alguém por perto. Se não houver ninguém à vista, entre por esta
porta e vá direto para o terceiro andar. Assim que chegar ao andar certo,
chame o nome dele, Michael, e diga: ‚Callie tem um recado para você‛.
Espere até que ele saia. Não entre em nenhuma das salas.

Eu estava com o dinheiro na mão, mas Blake não o pegou.

— Você está brincando, não é? — Ele riu, nervoso.

— Estou falando sério.

Ele me fazia lembrar de Michael. Aparentemente, eu estava
condenada a passar a eternidade lidando com rapazes teimosos. Estendi o
dinheiro até que as notas tocassem sua mão. Ele ainda não queria pegá-lo.

— Quando ele aparecer, entregue o dinheiro. E isto, também. — Eu
lhe dei o papel dobrado com o desenho. — Ele vai acreditar em você
quando vir isto. Pergunte se todos estão bem, ele vai entender. Se ele não
quiser aceitar o dinheiro, me ligue e eu conversarei com ele.

— Você não quer vir comigo?

— Eu gostaria muito, mas não posso — respondi. Seria ótimo poder
ver Tyler novamente. Mas não poderia fazer aquilo sem que a Prime
soubesse que eu fora até o prédio.

— Parece um pouco arriscado.

— O lugar não é exatamente seguro. Por isso, vá embora assim que
puder.

Ele finalmente pegou o dinheiro, com dedos relutantes.


— Deixe comigo.

— Obrigada por fazer isso por mim, Blake.

— Ei, é importante para você. — Ele olhou em meus olhos. — Sendo
assim, é importante para mim também.

Ele estava fazendo muito por mim. Eu estava acostumada a frequentar
lugares como aquele, mas ele não estava. Eles perceberiam imediatamente
que ele era um forasteiro.

Mas aquele dinheiro poderia comprar comida e vitaminas para Tyler.

— E obrigada por não fazer perguntas — eu disse enquanto saía do
carro. Antes que eu fechasse a porta, ele se inclinou em minha direção.

— Mas não garanto que não farei perguntas no futuro — disse ele.

Eu sorri. Ouvir aquela palavra, ‚futuro‛, me causava uma sensação
muito boa. Em seguida, me senti culpada, pois o pobre Blake não sabia
que não teríamos qualquer futuro juntos, o príncipe e a plebeia. Mas tudo
aquilo foi colocado de lado enquanto algo muito real começou a acontecer
comigo.

Minhas mãos ficaram geladas.

Entorpecidas.

Uma tontura forte tomou conta de mim, como se alguém houvesse me
girado dez vezes ao redor de mim mesma. Como aconteceu com Alice
quando perseguia o coelho, eu senti que caía em um buraco negro e
profundo.
























8



















Q
uando consegui acordar, estava com uma arma nas mãos.

O quê?

Uma arma?

Por quê?

Seria para me defender? O suor começou a se formar em minha ata.
Meu coração batia com tanta força que eu jurava que conseguia ouvi-la.

Quem estava me perseguindo? Agarrei a arma com as duas mãos, o
dedo no gatilho.

Minha respiração pesada ecoava em meus ouvidos. Eu estava pronta
para atirar.

Mas não havia ninguém ali.

Eu estava sozinha, no meio do quarto de alguém. Grande e luxuoso.

Parecia-se com um museu. Eu o reconheci.

Helena. Era o quarto de Helena.

O que acontecera?

Imagens ricocheteavam em minha mente. Rostos, carros, sorrisos,
imagens em vislumbres, como peixes que saltavam. Quando eu tentava
concentrar em uma dessas imagens, ela já havia desaparecido.

Olhei para a arma nas minhas mãos. Era uma Glock 85. Eu já havia
usado uma antes, mas essa era um modelo modificado.

Tinha um silenciador.


Examinei o pente para ver se a arma estava carregada. Não estava Fui
até a cômoda e a coloquei sobre o móvel. Assim que o fiz, uma dor
lancinante me atingiu e fez com que eu me retorcesse. A pressão subiu por
meu pescoço e chegou até a cabeça, como se meu crânio fosse explodir
feito um vulcão.

Tentando aliviar o latejamento, pressionei as têmporas. Caí de joelhos,
balançando de um lado para o outro. A dor continuava a vir, em ondas.
Quando ela diminuía e eu pensava que tudo estava terminado, bom— lá
estava ela novamente.

Depois do que pareceu ser uma eternidade, mas provavelmente não
levou mais do que alguns minutos, a dor se foi. Esperei, com medo de que
isso fosse apenas uma pausa maior entre as ondas de dor, mas havia
realmente terminado. Eu estava curvada no chão, as mãos úmidas e o
corpo encharcado de suor.

O silêncio no quarto era esmagador. Todos os meus sentidos pareciam
estar ampliados.

Consegui me levantar e me apoiar na cômoda. Meu cérebro
funcionava em alta velocidade.

Por que Helena tinha uma Glock em seu quarto? Para se proteger.
Aquela arma era maior e mais potente do que as armas de segurança que
as pessoas normalmente guardavam em suas mesinhas de cabeceira. Uma
Ender teria dificuldades para manejar uma pistola como essa.

E por que havia um silenciador? Não era um bom sinal.

Percebi que uma das portas do closet de Helena estava aberta. Um
estojo estava aberto no carpete, logo em frente. Eu me aproximei e
confirmei que era um estojo para guardar uma arma de fogo. Trouxe a
arma até ele e a coloquei entre os contornos de espuma, onde se encaixava
perfeitamente.

Dentro do closet, o tapete havia sido levantado, revelando um
compartimento secreto sob o piso, quase do mesmo tamanho do estojo da
pistola. Fechei o estojo, guardei-o no compartimento e recoloquei o
carpete por cima.

Tirar a arma de meu campo de visão fez com que eu me sentisse


melhor.

Logo depois, tentei descobrir o que estava acontecendo. O que eu
estava fazendo antes que as luzes se apagassem?

Blake. Eu estava me despedindo de Blake. Dera o dinheiro que ele
deveria entregar a Tyler e safra do carro. Estava tarde. Agora, a luz do sol
brilhava pelas janelas. O relógio mostrava 15 horas.

Onde estava a bolsa de couro que eu tinha usado naquele dia? Olhei
em volta e percebi que ela estava sobre a escrivaninha. Abri-a e peguei o
telefone celular para verificar a data.

Era... amanhã. Eu ficara inconsciente por dezoito horas. E, por algum
motivo, recobrei a consciência.

Imaginei que o que me trouxera à consciência antes, quando eu estava
na danceteria, me trouxera de volta agora. Várias perguntas enchiam
minha cabeça. Haveria alguém controlando a situação ou as coisas
estavam acontecendo de maneira totalmente aleatória? Haveria de errado
com meu neurochip? Será que isso acontecia com outros doadores, ou eu
era um caso especial?

Tão fácil quanto deitar para dormir. Sei.

Provavelmente minha inquilina recuperara o controle sobre meu
corpo. Helena já tinha aquela arma; eu tinha certeza disso, por causa do
compartimento secreto em seu quarto. E, quando voltei à consciência eu
estava naquele quarto, empunhando a arma. Se minha teoria estivesse
correta, isso significava que Helena tomara o controle de meu corpo
depois que eu me despedira de Blake. Ela dissera alguma coisa a ele? Ou
simplesmente entrara na casa? Será que dissera algo a Eugênia?

Não sabia como deveria agir. O que dizer, o que não dizer. Era
assustador não saber o que seu corpo estivera fazendo sem você.

E Tyler? Será que Blake o encontrara? Peguei o telefone e enviei um
Zing para Blake. Ele não respondeu.

Uma arma. E não era uma arma qualquer. Uma Glock com um
silenciador. Não era somente um treino de tiro ao alvo, era muito mais do
que eu esperava.

Eu tinha que voltar à Prime.


Na garagem, deixei para trás o foguete amarelo de Helena e fui até o
carro menor, um modelo esportivo azul que estava no fim da fila. Não era
um carro que gritava ‚cheguei‛ como o foguete. Ainda do lado de fora, vi
um alienígena verde e felpudo pendurado no retrovisor. Não era
exatamente o estilo de Helena. Provavelmente era o carro de uma neta.

A chave estava pendurada em um suporte na parede, em um chaveiro
com outro alienígena pendurado, mas muito menor. Entrei no carro e
acionei o navegador GPS Ele falou com a voz de um antigo personagem de
desenho animado.

— Para onde? — o navegador cantarolou naquela voz alegre.

— Prime Destinations, em Beverly Hills.

Alguns segundos se passaram antes que ele dissesse:

— Não foi possível encontrar o local.

É claro. A Prime não divulgaria seu endereço ao público.

— Novo endereço — eu disse, preparando o aparelho para dados
manualmente.

Comecei a ditar o endereço quando a Voz retornou.

Callie... não... não volte... Prime. Está me ouvindo? Você voltar... É
perigoso... Extremamente perigoso...

Meus braços se arrepiaram. ‚Perigoso‛, disse a Voz, igual à primeira
vez. Ela era consistente. Estava me avisando claramente para não retornar
à Prime Destinations.

— Por quê? — perguntei à Voz. — Pode me explicar?

Silêncio.

— Quem está falando? — perguntei. — Helena?

Nenhuma resposta.

Armas. Avisos. Perigo. Não gostei de acordar com uma arma na mão;
mas, pelo menos, eu sabia como usá-la. Não sabia o que estava esperando
por mim na Prime.

Desliguei o motor e voltei para dentro da casa.

Liguei o computador de Helena para descobrir mais a seu respeito. Se
ela estivesse realmente tomando o controle de meu corpo sempre que eu
sentia minha vista escurecer, eu precisava saber tudo que pudesse. Por


que motivo ela tinha uma arma? Talvez alguém a estivesse perseguindo e
agora eu seria o alvo daquela fúria.

Quantos dentre seus amigos sabiam que ela estava alugando um
corpo? Além da pessoa que enviara o Zing em tom de reprovação. Se fosse
mesmo um amigo.

Examinei os arquivos do computador de Helena. Mais de cem anos de
memórias, trabalho, cartas e fotos. Analisei todo o conteúdo e descobri
que seu filho e a esposa foram mortos na guerra, como a maioria das
pessoas com idade similar. Eles tinham uma filha chamada Emma, com a
minha idade. A neta de Helena.

Naveguei pelas CamPages, portais para pessoas compartilharem o que
quisessem sobre sua vida. Os mais egocêntricos registravam tudo o que
lhes acontecia durante o dia e reproduziam diretamente nas aerotelas ou
em modo holográfico. Os garotos realmente loucos nunca as desligavam.

Helena não tinha uma página pessoal, mas isso não chegava a ser
incomum. Vários Enders apagavam suas páginas depois que completavam
seu centésimo aniversário. Provavelmente, achavam que eram maduros
demais para esse tipo de bobagem.

Mas era estranho perceber que a página de Emma havia sido excluída.

Fiz uma busca por seu nome e encontrei um anúncio de seu funeral.
Dois meses atrás. E não havia qualquer menção à causa da morte.

Lembrei-me do quarto decorado para uma adolescente que vira na
primeira noite em que explorara a casa. Levantei da cadeira e atravessei
corredor, entrando no quarto de Emma.

A tristeza baixou sobre mim como uma névoa. A luz do sol entrava
pela janela, filtrada por cortinas brancas muito finas, imóveis no ar
enclausurado. Não era somente um quarto, mas também um memorial.
Alguma coisa se moveu no canto de minha visão periférica. Virei-me em
direção ao criado-mudo. Um holoálbum que exibia várias memórias,
mostrando-as ininterruptamente para ninguém.

Sentei na beirada da cama para olhar mais de perto. Senti uma
pontada de dor dentro de mim ao lembrar de nosso holoálbum, que já não
existia mais. A inscrição na base daquele aparelho dizia ‚Emma‛. Suas


feições lembravam as da avó, o mesmo queixo forte e a mesma expressão
determinada. Tinha o ar relaxado e confiante de uma garota rica embora
não tivesse a beleza de uma doadora de corpo. Sua pele em vibrante, mas
seu nariz orgulhoso era um pouco longo demais. As imagens retratavam
uma vida luxuosa e privilegiada - - jogando tênis. assistindo a uma ópera na
noite de estreia e passando as férias na Grécia, com os braços ao redor de
seus pais.

Meus olhos examinaram o quarto. Ela morrera havia pouco mais de
dois meses. Parecia que Helena mantivera tudo como costumava ser. E
teria feito o mesmo por meus pais, se pudesse me dar ao luxo de continuar
morando em nossa casa.

Mesmo assim, uma coisa estava faltando. Não havia um computador.

Fui até o guarda-roupa para procurar por algum segredo. Era ali que as
pessoas geralmente os escondiam. Vi uma prateleira alta cheia de chapéus
e caixas organizadoras de acrílico. Puxei uma cadeira e subi sobre ela para
começar a revistar as lembranças de Emma.

Examinei tudo que havia naquela estante, bem como também debaixo
da cama e em todas as gavetas, tirando tudo para fora. Não encontrei nada
de importante. Sentei-me em frente à escrivaninha dela com a mão no
queixo. Meus olhos se concentraram na única coisa que eu não havia
examinado: a caixinha de joias sobre a cômoda. Não esperava achar
qualquer pista ali, mas era a única coisa que eu ainda não havia
inspecionado, além do estojo de maquiagem.

Dentro da caixa, encontrei ouro, prata e uma boa quantidade de
bijuterias e pedras preciosas, adequadas para uma garota de 16 anos
incrivelmente rica.

E uma coisa que nunca esperei encontrar: um bracelete com
pingentes.

Não era um bracelete qualquer. Era feito de prata, com pequenos
penduricalhos em forma de equipamentos esportivos. Uma raquete de
digi-tênis, esquis, patins para gelo.., eu os toquei e vi o holo familiar dos
patins girando.

Coloquei-o ao lado do bracelete que estava em meu pulso, aquele que


Doris, a funcionária da Prime, havia me dado.

Era exatamente iguais.

Por que Emma tinha um desses? Havia apenas uma resposta, e aquilo
fez meu rosto queimar.

Emma tinha sido podre de rica, morado neste palácio e poderia ter
tudo que quisesse. Por que ela se venderia para o banco de corpos?







À noite, fui ao Club Rune no pequeno carro esportivo azul de iria. Desci
dele usando um microvestido de grife que encontrei no set de Emma, com
acessórios que pertenceram a ela — sapatos de salto, colar e bolsa de grife.
Penteei meu cabelo do mesmo jeito que Emma mostrava em suas
imagens, puxando-os para trás e prendendo-os em uma de suas presilhas
com diamantes. Ninguém me confundiria com ela se estivesse cara a cara
comigo, mas, em uma danceteria escura, possivelmente se me vissem de
costas, imaginei que não faria mal. vez eu atraísse alguém que a
conhecera.

Era cedo e a música estava tocando em um volume no qual ainda era
possível ouvir as pessoas conversando. Eu sentia que tinha um controle
maior sobre mim dessa vez. Caminhei lentamente, deixando que os olhos
se ajustassem à escuridão. Tentei recriar a maneira de andar Madison
enquanto desfilava pelo salão, fazendo o teste que ela me mana para
perceber se as pessoas pelas quais eu passava eram adolescentes
verdadeiros ou inquilinos.

Olhei em direção à área do bar e notei que todas as banquetas
estavam ocupadas, assim como todas as cadeiras da área social, ao lado.
Fiquei em frente a uma pilastra espelhada antes que uma garota viesse até
onde eu estava. Hora de fazer o teste de Madison. Ela era linda, com
cabelos ruivos longos e lisos, olhos verdes e uma pele de porcelana que
parecia ter luz própria. Inquilina.

— Bem — disse ela, olhando-me da cabeça aos pés —, você tem um
corpo maravilhoso.


— Obrigada — eu disse. — Eu gosto dele.

— Oi, Helena. Adivinha quem é? — Ela se aproximou, falando com a
voz baixa. Mostrou seu telefone celular. Os corações no alto da tela
estavam piscando. O nome de Helena aparecia ao lado deles.

— Você não pode se esconder do meu Sync — disse ela. Peguei o
telefone que pertencia a mim/Helena. Os corações também estavam
piscando. Ao lado dos ícones aparecia o nome Lauren.

— Foi você que mandou o Zing naquele dia — eu disse.

— É claro que fui eu. Quem mais? — Ela parecia estar chateada.

Então, essa Ender não era apenas uma amiga íntima de Helena, mas
poderia ser a única pessoa que sabia que Helena estava alugando um
corpo, além da governanta. Parecia estranho que Lauren tentasse
convencer Helena a não alugar, quando também estava alugando.

— Bem, eu já estava decidida — eu disse, tentando manter as
aparências. — E você me conhece bem.

— Mais teimosa do que Kate em A Megera Domada.

Decidi retribuir o elogio.

— Você está ótima. Fez uma boa escolha.

— Como você pode dizer isso? — Ela levou à mão ao rosto perfeito.

— Que os céus caiam sobre nossas cabeças. Eu me sinto horrível por
fazer isso, usar assim o corpo dessa pobre garotinha.

Ela olhou para o corpo que havia alugado. As mechas de seus cabelos
ruivos reluziram sob as luzes de neon do bar quando ela levantou a cabeça

— Mas, como você sempre disse, se as pessoas pretendem
transformar milhares de adolescentes desafortunados em vítimas, nós
teremos que usar alguns deles para impedir que isso aconteça.

Parecia que Helena tinha um plano e que Lauren sabia a respeito
dele.

— Você sempre teve boa memória, Lauren.

— Não me chame assim. —Ela se inclinou em minha direção. — Sou
Reece agora. — Ela levantou as sobrancelhas para ter certeza de que eu
entendera. — Não deveríamos nos arriscar a conversar por tanto tempo.
Alguém pode nos ver e descobrir o que estamos fazendo. — Ela olhou ao


redor. —Você provavelmente ainda não fez nada de maneira impulsiva, ou
eu já saberia por meus contatos on-line.

— Não. Não fiz nada.

— Não faça. Ela tocou meu braço. — Eu lhe imploro. Você e eu
passamos pelas mesmas situações, mas não é assim que vamos resolver
coisas. Elas só vão piorar.

Ela estava falando sobre vários assuntos relacionados, a nada sobre
‚meu‛ plano.

Lauren se afastou um pouco. Olhou ao redor do salão, examinando o
lugar.

— Preciso ir. Estou seguindo uma pista importante.

Coloquei minha mão no ombro dela.

— Podemos conversar amanhã? Em algum lugar mais tranquilo?

Ela deu um passo para trás, deixando minha mão no ar.

— Somente sob uma condição: que você dê ouvidos à razão.

— Talvez você se surpreenda.

Acho que vou surpreender a mim mesma, pensei.

Ela inclinou a cabeça como se estivesse intrigada. Deu outro passo
para trás e, em seguida, parou, olhando-me novamente da cabeça aos pés.

— Esse não é um dos vestidos de Emma? — perguntou.

Como ela pensava que eu era a avó de Emma, tudo isso
provavelmente parecia muito deselegante. Mas não havia como esconder a
verdade.

— Sim.

— E o colar dela?

— E os sapatos também. — Meu estômago se revirou. Eu estava
prestes a perder a confiança daquela Ender e precisava dela, precisava
daquelas respostas. — Achei que poderia atraí-los se me vestisse assim.

— Muito esperta — ela assentiu.

Ela me deixou sozinha em meio à multidão. Examinei os outros.
imaginando se Blake estaria ali. Havia uma poltrona vazia na área social.
Era a última das cadeiras de almofadas grossas ao redor de uma mesa. As
outras estavam ocupadas por dois rapazes e uma garota. Ela me viu e me


chamou com um gesto discreto.

— Não há ninguém sentado aqui. — A garota tirou sua bolsa da
cadeira e deu alguns tapinhas sobre o assento, como alguém faria para
chamar seu poodle.

Sentei-me junto deles, porque obviamente eram inquilinos. Pareciam
ter saído das páginas centrais de uma revista de moda. Dois rapazes
bonitos — um moreno, que vestia um terno de corte europeu, e um
asiático sensual com roupas de couro preto — e uma garota com uma pele
de ébano lustrosa e cabelos longos e lisos. O rosto e o corpo deles eram
100%perfeitos.

Talvez pudessem me dizer algo sobre Emma. Mas eu tinha que ter
cuidado para não cometer um deslize e revelar meu segredo.

— Quer uma bebida? — perguntou o rapaz de terno. Ele tinha o
sotaque melodioso e os olhos maquiados com uma sombra esfumaçada.
como os dos atores dos velhos musicais de Bollywood.

— Não, obrigada. — Tentei soar mais velha e sofisticada.

— Meu nome é Raj. Ou, devo dizer, é o nome que uso aqui. — Ele
lançou um olhar cheio de cumplicidade para o outro rapaz e os dois riram.
Todos olhavam para mim, esperando por minha apresentação.

— Podem me chamar de Callie. — Revirei os olhos. — Ainda não me
acostumei a usar esse nome.

— Não consigo me acostumar com esse sotaque — disse Raj,
apontando para a própria garganta. Isso desencadeou outra onda de risos
entre os rapazes.

A garota inclinou a cabeça em minha direção. Seu nome era Briona e
ela parecia uma supermodelo, com braços e pernas longas. O rapaz
asiático se chamava Lee. Eu tinha que me lembrar a todo momento de
que, na realidade, eles eram Enders velhos e assustadores.

— É sua primeira vez, Callie? — perguntou Raj.

— É tão óbvio assim? — eu disse.

Todos riram.

— Nunca vimos esse corpo antes — disse Briona. — É muito bonito.

—Sim, é ótimo — disse Lee.


— Como está se saindo até o momento? — perguntou Raj.

— Bem. — Eu dei de ombros.

— O que fez de bom? — perguntou ele. Tinha um sorriso torto no
rosto. — Ou esta é sua primeira noite?

— Nada muito especial. Fui cavalgar.

Eles sorriram.

— Isso é bem divertido. Onde? — perguntou Lee.

— Em um rancho particular.

— Um inquilino? — perguntou Raj.

—Não.

Eles trocaram olhares.

— Um adolescente verdadeiro? — perguntou Raj.

Meus olhos pousaram em Briona, Raj e Lee, nesta ordem. Eles
pareciam estar preocupados.

— Há algo errado? — eu perguntei.

—Bem.., eles não gostam muito quando alguém faz esse tipo de coisa
— disse Raj.

Briona estendeu a mão e tocou meu braço

—Não se importe com isso. Você pagou para se divertir, não foi? Não
é isso que fizemos por merecer?

— Por falar nisso, vamos fumar este baseado e sair para nos
divertirmos de verdade — disse Lee.

Ele se inclinou para a frente, com um sorriso malandro no rosto. Raj
terminou de tomar sua água mineral e bateu a garrafa de plástico contra a
mesa.

— Ótima ideia.

Todos se levantaram. Briona enlaçou seu braço no meu.

— Vamos lá. Podemos bater um papo só entre meninas. Adoro ajudar
inquilinos de primeira viagem. Sabe fazer crochê? Bordar?

Talvez fosse pelo fato de eu ser a estranha no meio de um grupo onde
todos se conheciam, mas eu não conseguia deixar de pensar que eles
sabiam algo que eu não sabia.

Talvez, se me juntasse a eles, eu conseguisse saber.






O vento batia em meus cabelos enquanto passávamos pela cidade no
conversível de Lee. Eu estava sentada no banco de trás com Briona. Raj
estava no banco do passageiro, com Lee.

— Para onde estamos indo? — eu perguntei.

— Quem sabe? — disse Briona. — Com certeza é algum lugar
perigoso e estúpido.

— Vamos brincar com algo que pertence a outra pessoa — disse Lee.

— Mas este carro não é seu? — eu perguntei.

— Falei em sentido figurado.

Lee dirigia descuidadamente pelas ruas.

— Estamos quase lá.

Ele contornou uma curva fechada e eu vi uma ponte que passava
sobre um cânion alto, com um pequeno riacho no fundo. Vários carros
estavam estacionados lá. Percebi um clarão de algo que se movia para
longe da ponte.

— Lá vão eles — apontou Lee.

— Não. — Raj balançou a cabeça. — Não nesta vida.

— Você quer dizer... não na vida dele. — Lee apontou para a barriga
de Raj e o cutucou.

Os dois rapazes riram.

— É para lá que estamos indo? — eu perguntei.

— Isso não é engraçado — disse Briona.

— Não é engraçado, é divertido — disse Lee.

Dentro de pouco tempo, já havíamos estacionado em frente à ponte
com os outros carros. Os rapazes saíram do veículo e foram em direção a
uma multidão que se aglomerava no meio da ponte. Agarrei o braço de
Briona.

— O que está acontecendo? — perguntei, confusa.

— Salto elástico. Alguns idiotas se jogam de uma ponte e a única
coisa que os impede de virarem panquecas é uma correia fina de alta
tecnologia. Supostamente, ela é inteligente o bastante para se ajustar ao


seu peso e à sua velocidade. — Ela observou as pessoas antes de
continuar. — Supostamente.

— Parece perigoso — eu disse.

Ela deu de ombros.

—Bem, pelo menos, não é seu corpo.

Nós nos seguramos ao corrimão que nos separava de uma longa queda
no desfiladeiro abaixo. O vento soprava em nossos cabelos enquanto
observávamos um rapaz se atirar da ponte, caindo em direção o riacho.
Prendi a respiração e fechei os olhos.

— Não, olhe — Briona me estimulou, olhando para baixo.

Ele caiu e caiu, chegando muito perto de beijar o chão, mas a cor- mia
o impediu no último momento, como Briona disse que aconteceria. O
impulso o trouxe de volta até uma altura em que os outros rapazes na
ponte conseguiram puxá-lo de volta.

Raj e Lee estavam a vários metros de distância, apoiando-se contra o
corrimão e discutindo seriamente a respeito de algo.

— Briona... preciso lhe fazer uma pergunta.

— Claro, querida. Qualquer coisa.

— Por acaso você conheceu o corpo de uma doadora chamada
Emma?

Brionna estava olhando para mim. Talvez estivesse tentando se
lembrar.

— Ela era alta, com cabelo loiro e cacheado, feições fortes — eu
disse.

— Não parece familiar. Ela fez alguma coisa para você?

—Não. Eu só gostaria de encontrar alguém quê a tivesse conhecido.

— Desculpe. Gostaria de poder ajudar. Mas, depois de algum tempo,
a maioria dos doadores parece ter o mesmo rosto.

— E seus amigos? Você acha que eles poderiam tê-la conhecido?

— Duvido. Apesar de se vangloriarem tanto, eles não alugaram muitas
vezes. — Ela olhou em direção a Lee e Raj. Lee estava se preparando para
pular. — Não acredito!

Em um segundo, o corpo de Lee se tornou uma bala preta, fazendo


um arco pelo ar e caindo em câmera lenta.

Mesmo com todas aquelas regras e contratos.




























































9



















D
epois que Lee sobreviveu a seu salto no espaço, ele nos levou de volta ao
Club Rune. Raj permaneceu no carro enquanto Lee estava com o motor
ligado. Briona e eu desembarcamos e fomos nos despedir. Alisei meu
cabelo, que estava despenteado pelo vento.

— Mantenha contato, Callie. Podemos nos divertir muito. Você joga
bridge? Ah, olhe só para mim, falando sobre jogos para velhos solteirões.
Deixe isso pra lá. Podemos ir fazer compras. Ou sair para dançar. Ou para
patinar.

Ela me deu um longo abraço. Quando nos afastamos, abri minha
carteira para procurar um cartão e entregai a ela. Em vez disso, fiquei
surpresa ao ver um maço de dinheiro. Eu havia esvaziado minha bolsa
ontem para que Blake entregasse tudo a Michael.

— O que está fazendo?

— Pegando um de meus cartões para lhe entregar.

— Você não precisa disso, sua boba. Quem faz isso são os Enders
velhos. — Ela piscou.

Nunca tinha ouvido um Ender se referir a si mesmo dessa forma, mas,
de todo modo, ela estava imitando uma adolescente.

Ela estava com o telefone na mão.

— Ou perigoso — interrompeu Lee, com a mão pousada sobre o
encosto do assento do carro.


— ... ligue para mim — prosseguiu Briona. — Me ligue para qualquer
coisa que precise. Quero vê-la outras vezes. Sinto como se já fôssemos
velhas amigas.

‚Velhas‛ é a palavra certa, eu pensei.

Ela voltou para o carro e acenou com sua bela mão, cheia de anéis e
pulseiras, enquanto ia embora. Tudo em que eu conseguia pensar era no
dinheiro que estava em minha bolsa. Quando estava em meu carro, com as
portas fechadas e antes de me afastar da segurança da zona dos
manobristas, contei o dinheiro que estava na bolsa. Era exatamente o
mesmo valor que eu havia dado a Blake.







Na manhã seguinte, entrei no carro e dirigi até estar a alguns quarteirões
da casa, estacionando ao lado da calçada. Liguei para Blake, mas caí em
seu Zing de voz.

— Oi, aqui é Blake. Você sabe o que tem que fazer.

— Oi, Blake. Sou eu, Callie. Pode me ligar, por favor?

Quando desconectei, tive a impressão de que deveria ter dito mais.
Mas não queria voltar a ligar. Ele não havia me telefonado desde nosso
encontro.

Eu não ligaria para ele se não fosse por meu irmão.







Encontrei Lauren em um restaurante tailandês que ela escolheu. Ficava
no Vale, escondido em um dos cantos de um minishopping com muitas
placas. Não era um lugar que Enders ricas como Lauren usariam como
ponto de encontro. Mas eu sabia que ela o escolhera porque as chances de
encontrarmos alguém que nos conhecesse seriam próximas de zero. Não
que fôssemos reconhecíveis, mas não queríamos que alguém ouvisse nossa
conversa.

Nós nos sentamos a uma mesa perto da parede. O atendente Ender


nos trouxe água e deu uma boa olhada em nós duas. Os Enders da classe
trabalhadora nem sequer imaginavam que um lugar exclusivo como o
banco de corpos existisse. Não sabiam que a bela e jovem ‚Reece‛ era, na
verdade, Lauren, com mais de 100 anos de idade, ou que meu visual
encantador não era meramente uma obra da mãe natureza, mas o
resultado de tecnologias de ponta. Não fazia parte do mundo deles. Eles
simplesmente estavam felizes por terem empregos que os sustentariam em
sua velhice estendida.

E isso fez com que a transição caótica após a Guerra dos Esporos
fosse mais fácil, já que os Enders haviam voltado ao mercado de trabalho,
agora que podiam contar com sua longevidade.

Depois de fazermos nossos pedidos, Lauren olhou em volta, com o
cabelo ruivo e sedoso movendo-se graciosamente. O grupo mais próximo
estava a duas mesas de distância e a música ambiente tailandesa encobria
sua conversa. Ela pareceu satisfeita por ninguém poder nos ouvir.

— Helena, você ainda está disposta a levar essa ideia adiante? — Ela-
me olhava com aqueles olhos verdes hipnóticos.

Bebi minha água lentamente. Precisava dizer algo que não revelasse o
fato de que eu não tinha qualquer noção sobre o plano de Helena.

Finalmente, optei por uma frase neutra,

— Não sei.

Ela se endireitou na cadeira e seus olhos se iluminaram. Minhas
palavras lhe deram esperança.

— É errado — ela disse. — Você sabe que é errado.

— Acho que sim.

— É claro que é — ela diminuiu o volume da voz até não passar de
um sussurro. — Assassinato sempre é errado.

Assassinato?

Fiz o melhor que pude para não demonstrar o choque que atingiu meu
estômago como o punho de um renegado. Apoiei m cotovelos na beirada
da mesa e coloquei a testa nas mãos, encobrir minha tristeza como se fosse
apenas a angústia típica uma Ender.

Por dentro, eu estava chocada.


Eu tinha que saber mais. Mas não podia simplesmente pergunta:

Mordi a boca. Em seguida, lembrei-me do que Lauren dissera na de
ontem.

— Mas usar Starters — eu me corrigi em tempo — ... adolescentes
também é errado. Você não acha?

— É claro que é errado. Todos os dias eu acordo pensando em Kevin.
Depois que minha filha e meu genro se foram, ele era tudo eu tinha.

— Assim como aconteceu comigo.

— Mas você desistiu. Eu ainda tenho esperança de encontrar meu
neto vivo em algum lugar. Essa é a maior diferença entre nós duas.

Se ela soubesse...

Era estranho ouvir palavras tão refinadas saindo daqueles lábios
adolescentes.

— É um enigma horrível.., tentar encontrar pessoas que o viram,
buscar por restos e vestígios de informações.

— Descobriu alguma coisa ontem à noite?

Ela balançou a cabeça.

— Não, era um alarme falso. Eles nunca viram Kevin.

A comida chegou, mas não estávamos muito interessadas nela.

—Ele sempre foi um garoto bonito — disse ela, contemplando seu
prato de pad thai. — Não precisava passar por todo aquele processo de
embelezamento.

Olhei para ela e minha mente tentava a todo custo entender o que
estava acontecendo. Ela cobriu a boca com a mão.

— Oh, Helena. Perdoe-me. Você sabe que eu não quis dizer que
Emma precisava...

Eu não compreendia tudo que estava acontecendo, mas estava
começando a entender uma ou outra coisa.

— Emma nunca teve uma beleza convencional — eu disse,
arriscando-me. — Eu sei disso.

— Até passar por aquela renovação — disse Lauren, com a voz mais
tranquila.

Seria aquela a razão pela qual ela fizera isso? Para conseguir a


renovação cosmética?

—Eu acho... acho que isso era o que ela realmente queria — eu disse,
procurando por uma confirmação.

Lauren estendeu a mão por sobre a mesa e pousou-a sobre a minha.

— Não é sua culpa. Quantas coisas nossos netos já pediram e nós não
tivemos coragem de dizer não? Assim como nossos filhos? Tutores devem
ser capazes de dizer não.

Apoiei o queixo sobre a palma da mão e assenti, estimulando-a a dizer
mais.

— Nós duas pensamos que estávamos fazendo a coisa certa — disse
ela. — Cirurgia plástica com titânio, bioescultura com laser verde aos 16
anos? Como pudemos aprovar isso?

— Mas Emma encontrou uma maneira de conseguir o que queria.

—Assim como meu Kevin. — Ela tirou a mão de cima da minha e
voltou a se endireitar na cadeira.— Quem diria que garotos poderiam ser
tão vaidosos quanto meninas? — Ela deu de ombros.

Portanto, eu estava errada. Emma — como Kevin —podia viver em
uma vida de luxo, mas não tinha tudo que queria. Eles queriam a perfeição
física. E a única maneira de conseguirem isso era através do banco de
corpos.

— Eles mentiram, então.

— É claro. A Prime não os aceitaria se eles tivessem parentes. Eles
querem os sem laços, sem passado, sem esperança. Crianças sem famílias
para investigar os motivos pelos quais eles não voltaram para casa. A Prime
libera alguns garotos para atraírem mais corpos, mas os nossos não tiveram
essa sorte.

Eu poderia jurar que vira um indício de sua idade verdadeira por trás
daqueles olhos verdes.

A imagem do quebra-cabeça estava se formando. Alguns garotos ricos
e mimados mentiam para o banco de corpos, usando sobrenomes falsos
para que pudessem fingir ser órfãos pobres. Não queriam o dinheiro.
Queriam as cirurgias plásticas gratuitas que seus avós não lhes permitiriam
fazer. E nunca mais voltavam para casa.


— Lauren...

Ela me interrompeu.

— Me chame de Reece, por favor. É melhor.

— Reece, a respeito de matar.., é algo que tem importância para mim.
— Baixei os olhos. Não precisava mais fingir angústia. — Andei pensando
no caso... é errado.

— É mesmo?

— Mas a Prime Destinations... — Eu tinha que fazê-la me dizer quem
eu mataria. Alguém no banco de corpos, a julgar pelas poucas informações
que eu tinha. — Eu realmente os detesto pelo que fizeram.

— Você não está sozinha.

— Sim. Você, eu... — deixei a frase no ar, esperando que ela a
completasse.

— ... e também os Colemans, os Messians, os Posts. — Ela contou
cada nome nos dedos. — Os outros avós que encontramos também
culpam a Prime. Mas nenhum deles esta falando sobre atirar em pessoas.

Agora era minha vez de olhar ao redor. Percebi que uma garçom a
duas mesas de distância nos olhava fixamente.

— Não se preocupe, eu mantive a minha palavra — disse Lauren. —
Não contei para ninguém. Ainda não.

— O diretor da Prime Destinations... — Devia ser ele.

— Não comece com isso de novo. É impossível encontrar o Velho.

— Ele é alto. E usa um chapéu — eu disse, me lembrando de quando
o vira pelas costa naquele dia na Prime. — E um casaco longo.

— Foi o que ouvimos dizer. Mas eu nunca o vi.

Eu, sim. Discutindo com Tinnenbaum na Prime. Mas Lauren parecia
ter certeza de que ele não era o alvo de Helena. Se o diretor da Prime não
era o homem que ela planejava assassinar, quem seria?

Lauren se inclinou para a frente, olhando-me diretamente nos olhos.

— Me conte, Helena, quem é? Quem você quer matar?

Ela não sabia.

— Não posso dizer. — Desviei o olhar. Provavelmente foi a única
coisa verdadeira que eu disse.


— Seu alvo não é o único que vai morrer. E essa pobre garota em
quem você está agora, esse corpo belo e jovem? — Lauren estendeu a mão
novamente e acariciou meu cabelo. — Vão abrir fogo sobre ela
imediatamente.

O mundo inteiro ficou em silêncio.

Sou eu! Era o que eu queria gritar. Meu corpo! Eu! Mas as palavras
estavam travadas em algum lugar na minha garganta. O cheiro pungente
de limão e molho de peixe estava me deixando enjoada. Tudo que eu podia
fazer era olhar para o fundo de minha tigela de curry amarelo perceber
que, pela primeira vez no ano, eu não tinha qualquer apetite para comer.

Descobrir que sua inquilina é uma assassina é um excelente inibidor
de apetite. E que você provavelmente será morta, também.







Dirigi pela rodovia o mais rápido que podia, sem me arriscar a levar ama
multa. Quer dizer que Helena não queria surfar ou se jogar do alto de
pontes; ela me usaria para assassinar alguém. Mate e seja morta. Essa
devia ser a razão pela qual ela exigira que o corpo soubesse usar armas de
fogo.

Vi meu telefone se iluminar. Blake me enviara um Zing enquanto eu
estava no restaurante.

A mensagem era carta: ‚O que você ainda precisa dizer?‛.

Era muito esquisito. Apertei o botão de chamada no carro e consegui
entrar em contato com ele.

— Blake, me encontre no parque de Beverly Glen em trinta minutos.
Vou explicar tudo.

— Trinta minutos — ele disse. Sua voz parecia seca.







Caminhei pelo parque, passando por Enders deitados em espreguiçadeiras
ou sentados em bancos de madeira. Dois estavam sentados nos balanços,


indo lentamente de um lado para o outro. Era raro ver crianças fora de
casa desde os tempos da guerra. Muitos Enders que não tinham netos não
queriam ficar perto de crianças pequenas, talvez porque houvessem
perdido todos os seus filhos. E as pessoas estavam paranoicas a respeito de
esporos residuais no ar, com ou sem vacinas.

Um guarda de segurança particular com óculos escuros vigiava o lugar,
com as mãos nos quadris. Vacilei quando percebi sua arma, pensando na
Glock. Percebi outro casal de Enders, ambos com cabelos brancos que
lhes caíam por sobre os ombros, discutindo acalorada- mente debaixo de
uma árvore. A mulher batia repetidamente com a ponta do dedo no peito
do homem.

Aquilo me lembrou de meus pais, um ano e meio atrás. Fora durante o
verão. Havíamos terminado o jantar e Tyler e eu estávamos assistindo à
aerotela. Uma edição extra do noticiário interrompeu a programação. O
locutor, com a expressão sisuda, dizia que a guerra havia de intensificado e
que os ataques com mísseis de esporos, que até o momento eram apenas
rumores, tinham sido confirmados. Estavam focados no noroeste do pais.
Corri até a cozinha para contar a meus pais, mas, aparentemente, eles já
sabiam. Fiquei do lado de fora da porta enquanto os ouvia discutindo.

Minha mãe estava em frente à pia, com o pano de prato na mão.

— Por que você não consegue algumas doses para nós? Você tem
conexões importantes com o governo.

— Você sabe o porquê. Os protocolos.

— Precisamos dessa vacina, Ray. Esta é sua família. Seus filhos.

Ele se apoiou no balcão.

— Os protocolos servem para a proteção de todos.

— As celebridades estão conseguindo a vacina. Os políticos também.

— Isso não quer dizer que seja correto.

Ela jogou o pano de prato sobre o balcão, com um ruído estalado que
fez com que ele se esquivasse.

— É correto abandonar nossos filhos à própria sorte, deixando que se
tornem órfãos sem ninguém para protegê-los? Condená-los a passar fome,
a serem assassinados ou coisa pior?


Ela batia repetidamente com a ponta do dedo no peito dele para
enfatizar suas perguntas. Lágrimas de raiva enchiam seus olhos.

Meu pai a agarrou pelos ombros e a segurou por um momento para
acalmá-la. Em seguida, puxou-a para perto de si, em um abraço carinhoso.
Ela se entregou ao abraço e apoiou a cabeça sobre o ombro dele. Naquele
momento, ela me viu.

Ela parecia tão assustada.

Afastei a imagem do rosto de minha mãe assustado de minha mente e
corri os olhos pelo parque, buscando o casal de Enders. Eles estavam indo
embora.

Onde estava Blake? Logo o avistei, sentado sobre o tampo de uma
mesa de piquenique de concreto. Fui até onde ele estava e me sentei ao
seu lado.

Assim como o vigia, ele usava óculos escuros, uma barreira entre nós.

— Tudo bem? — O tom dele era gelado.

— Conseguiu falar com meu amigo? — Eu me senti constrangida ao
perguntar sobre Michael, mas precisava saber.

— Não — disse ele, com um tom exasperado, como se eu devesse
saber. — Você me disse para não fazer aquilo.

Senti minha pele se arrepiar.

— Eu disse isso?

— Sim. Não se lembra? Quando ficou bem irritada e exigiu que eu
devolvesse seu dinheiro?

Era disso que eu tinha medo. Helena.

— O que mais?

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Não me force a lembrar de tudo o que houve. Você sabe o que
disse.

— Na verdade, não sei o que disse. Sei que isso pode parecer
estranho. Por favor, me conte.

Ele enfiou as mãos nos bolsos.

— Disse que eu não deveria ligar nem mandar um Zing. Você nunca
mais queria me ver.


Eu suspirei. Helena dissera aquilo.

— Me desculpe. — Eu o toquei no braço. Sua pele estava quente.

— Foi um erro.

— Eu achei... achei que havíamos nos divertido. — Ele não reagiu a
meu toque, mas não tentou se afastar.

— O dia foi maravilhoso. — Senti uma dor forte dentro de mim. —
Um dos melhores que já tive.

Ele olhou na direção dos Enders que estavam nos balanços.

— Então, por quê...?

— Não era eu mesma. Isso acontece comigo às vezes. — Abri a bolsa
e tirei o dinheiro. — Nunca aconteceu de você ter um dia ruim e desejar
poder apagar o que aconteceu? Podemos tentar mais uma vez? Por favor?

Eu estendi o dinheiro. Ele hesitou.

— Tem certeza de que quer que eu dê isso a seu amigo desta vez?

— Sim. Tenho certeza absoluta.

— E você realmente não quer fazer isso pessoalmente? Ou vir
comigo?

E arriscar meu contrato com o banco de corpos?

— Eu gostaria de poder ir com você, mas realmente não posso ir até
lá. E ele precisa desse dinheiro agora. — Eu empurrei o dinheiro na
direção dele, encostando as notas em sua camisa. — Por favor, Blake.

Ele pegou o dinheiro e fechou o punho ao redor dele. Finalmente,
Blake me olhou nos olhos.

— Acho que todas as pessoas têm seus dias ruins às vezes.

Em seguida eu me lembrei do desenho. Não estava mais em minha
bolsa, como o dinheiro.

— Lembra-se daquele pedaço de papel que eu lhe dei? — perguntei.

— Este aqui? — Ele tirou o desenho do bolso, ainda dobrado.

Eu esperava que ele não o desdobrasse agora. Não queria ter que
responder a perguntas.

— Sim. Entregue para ele, também. Junto com o dinheiro.

Ele enfiou o dinheiro e o papel em sua carteira. Tentei não
demonstrar meu alívio.


— Ele é muito talentoso — disse Blake. — Seu amigo.

Quer dizer que ele havia olhado o desenho. Percebi um leve toque de
ciúmes na maneira como ele pronunciara a palavra ‚amigo‛. E tive que
admitir, aquilo me fez vibrar.




























































10



















E
ntrei em meu carro e me afastei do parque, fazendo uma curva fechada
que fez o alienígena felpudo preso ao retrovisor do carro de Emma bater
contra o para-brisa. Enquanto ele balançava para a frente e para trás,
pensei em minhas alternativas. Se não precisasse tanto daquele dinheiro,
provavelmente já teria desistido. Mas não era tão fácil. Havia um chip em
minha cabeça. Se eu retornasse à Prime, quais seriam as chances de que
os Enders acreditassem em mim, em vez de em uma inquilina rica? Eu
podia até mesmo visualizar uma discussão acalorada que terminaria
comigo sendo enviada para uma instituição. Já morava havia um ano nas
ruas e esse tempo me ensinara como sobreviver, dia após dia. Era dessa
forma que eu lidaria com a situação.

De volta a Bel Air, estacionei o carro e entrei na casa sem que
Eugênia percebesse que eu estava de volta. Fui até o quarto de Helena e
tranquei a porta.

Fui até o armário e puxei o carpete, expondo o compartimento oculto.
Removi o estojo e olhei para a Glock.

Onde eu poderia escondê-la? Por mais que eu quisesse ter uma arma
novamente, não poderia ficar com aquela. Tinha que me livrar dela, de
modo que Helena não conseguisse encontrá-la da próxima vez que
assumisse o controle sobre meu corpo. Escondê-la em algum lugar da
mansão não seria uma boa ideia, porque Eugênia poderia me ver e dizer a


Helena se fosse questionada. Helena poderia tentar arranjar outra arma,
mas, se eu conseguisse dificultar o processo, poderia ajudar a impedir um
assassinato. Ela teria que esperar por uma semana, no mínimo — uma
nova lei, aprovada depois da guerra — ou perder tempo e dinheiro
procurando uma arma no mercado negro. Helena não parecia ser alguém
acostumada a negociar no mercado negro, embora houvesse se mostrado
uma bela caixinha de surpresas.

Onde as pessoas poderiam se livrar de armas de fogo? Era o que eu
me perguntava. O litoral inteiro ainda estava destruído pela guerra e o
público em geral não tinha acesso à região. Gostaria de poder entregá-la a
Michael, mas não podia pedir a Blake que fizesse isso. E, na realidade, eu
não queria que Helena tivesse condições de descobrir o paradeiro daquela
arma quando voltasse a ter controle sobre meu corpo.

Fui até o banheiro, encharquei uma toalha com removedor de
maquiagem e esfreguei na Glock para remover quaisquer resíduos de
DNA, como vira nos holos. Em seguida, guardei a arma novamente no
estojo e o coloquei em uma sacola de papel pardo que encontrei no closet
de Helena.

Voltei ao carro e dirigi até um megamercado, rodando lentamente pelo
estacionamento. Os guardas armados da loja estavam patrulhando a
entrada. Passei por todas as vagas de estacionamento perto da entrada,
escolhendo uma que ficava um pouco mais distante. Peguei a bolsa e
dobrei a parte de cima para lacrá-la. Aja normalmente, disse a mim
mesma.

Desci do carro. Uma Ender que tomava iogurte em um banco à minha
frente me olhou fixamente enquanto eu passava.

Havia duas lixeiras grandes. Escolhi a da direita e levantei o canto da
tampa. Era mais pesada do que eu pensava. Tive que usar as duas mãos
para erguê-la e, antes que eu percebesse, a bolsa escorregou e caiu no
chão.

Metade do estojo escorregou para fora dela.

Peguei rapidamente a bolsa, abri a tampa da lixeira e me livrei da
arma. O estojo fez um barulho alto de metal batendo contra metal. Como


eu poderia saber que a lixeira fora esvaziada havia pouco tempo?

Dei meia-volta e fui em direção ao carro. A Ender me olhava
fixamente, como se soubesse que eu estava fazendo algo errado. Eles
sempre tinham essa postura em relação a Starters, independente de
sermos ricos ou pobres. Ela se levantou e acenou para o guarda, que estava
do outro lado do prédio.

Quando eles conseguiram conversar, eu já estava saindo do
estacionamento.

Agora que havia me livrado da arma, eu tinha condições de me
concentrar em descobrir quem Helena estava planejando matar.
Estacionei o carro em frente a uma loja de conveniência e comecei a
examinar os registros de seu telefone celular. Os z-mails não continham
qualquer pista. Nada parecia estar fora do comum, nenhuma referência
para me indicar quem seria seu alvo.

A agenda do telefone. Havia comentários e listas de coisas a fazer in
todos os dias, até a data em que ela fora ao banco de corpos. A data a
transferência estava marcada com ‚P. D.‛, com várias outras anotações
posteriores.

Antes que eu pudesse prosseguir, um barulho me interrompeu.
Levantei os olhos e vi uma pequena gangue de garotos de rua, renegados,
vindo a toda velocidade em direção a meu carro. Pelo menos, dessa vez, eu
não estava em um conversível. Pisei no acelerador com força e saí daquele
lugar, deixando-os para trás rapidamente, atirando pedras que
provavelmente amassaram a traseira do cano.

Abri um sorriso. Da última vez que isso acontecera, eu ficara
aterrorizada. Mas, quando você descobre que está prestes a assassinar
alguém, isso muda totalmente sua perspectiva.

Dez quarteirões adiante, eu parei em um sinal vermelho. Voltei a olhar
para a agenda do celular enquanto esperava pela luz verde. O dia 19 de
novembro, às 20 horas, estava assinalado com uma marca de confirmação.
Todas as datas depois dessa marca estavam em branco.

O dia do assassinato.

Se aquilo fosse verdade, eu teria dois dias para descobrir o que ainda


faltava. Menos de dois dias, na realidade. Já sabia o que acontece- ria e
quando. Agora, precisava saber quem era o alvo e onde o ataque ocorreria.
E descobrir uma maneira de impedi-lo.

A luz verde se acendeu e eu entrei na rodovia. Não tive receio â
acelerar. Sentia mais confiança em minha habilidade como motorista
Agarrei o volante com força e estercei o carro para a esquerda, entrando na
faixa de trânsito rápido. Senti um formigamento nas mãos. Agitei os dedos,
mas a sensação não passou.

Comecei a me sentir tonta.

Não.

Aquela sensação de estar afundando tomou conta de mim. E estava
me dominando.

Eu estava dirigindo a 110 quilômetros por hora e minha visão estava
escurecendo.







Quando voltei a mim, minha cabeça estava latejando, mas não era tão
ruim quanto a primeira dor de cabeça forte que tivera. Estava com as
costas apoiadas contra uma parede, no saguão de um prédio de escritórios
que funcionava normalmente. Paredes de mármore negro decoradas com
molduras prateadas. Não reconheci aquele lugar.

O segurança, um Ender que estava na escrivaninha do outro lado do
saguão, se entretinha com uma revista eletrônica sobre carros em sua
aerotela. As cores se refletiam em seu rosto.

Olhei para um relógio na parede e vi que eram quase 16h30. Eu
estava com as mesmas roupas que usava antes de perder o controle sobre
mim mesma. Apenas uma hora havia passado.

Meu telefone tocou. Eu o retirei da bolsa. O identificador de
chamadas mostrava a frase ‚Lembretes‛. Apertei o botão dos lembretes e
escutei. Uma voz mecânica de mulher anunciava:

— Você gravou um lembrete para si mesma, agendado para as 16h30.

A voz que surgiu em seguida não era minha. Era de uma Euder.


— Callie, aqui é Helena Winterhill. Sua inquilina.

Meu coração acelerou.

Eu a reconheci. Ela era a Voz. Aumentei o volume.

— Há muitas coisas a dizer, mas não sei quanto tempo terei antes
voltar a meu próprio corpo. Como você provavelmente já percebeu, temos
uma conexão consistente. Há um problema no sistema. Espero que ele
seja reparado rapidamente. Até que isso aconteça, não entre em contato
com a Prime, em nenhuma circunstância. Espero que isso esteja claro.

Cobri a outra orelha com a mão para não perder nenhuma palavra.

Havia um leve tom de nervosismo por trás daquela força.

— Nesse meio tempo, eu lhe peço que não use as roupas de minha
neta. Meu coração dói quando percebo que, repentinamente, estou de
volta a seu corpo e descubro que estou com as roupas dela. — A voz
parecia estar estrangulada, como se tentasse conter o choro. — Mas esse
não é o motivo pelo qual estou lhe enviando esta mensagem. Quero
garantir a você que, se continuar a seguir nosso contrato conforme o
planejado, não importa o que aconteça, você receberá um bônus quando
tudo estiver terminado. Um bônus bastante substancial, desde que você
coopere totalmente.

A mensagem terminou.

Eu estava atordoada. Era óbvio que ela não fazia a menor ideia de que
eu sabia do plano de assassinato. É claro, ela sabia apenas o que conseguia
descobrir naqueles breves períodos em que habitava meu corpo. Não
haveria como saber sobre minha conversa com Lauren.

‚Um bônus generoso‛, ela dissera. Mas eu provavelmente acabaria
morta. É muito fácil prometer bônus a garotas mortas.

Como eu só ficara inconsciente por uma hora, Helena não teve tempo
de voltar para casa. Não sabia que eu havia me livrado de sua arma. Isso
era bom. A parte ruim era o fato de eu estar presa ao plano dela.

Olhei ao redor e vi que o guarda me observava. Eu estava ali havia
muito tempo. Virei para olhar as placas que indicavam as empresas e os
profissionais que ocupavam os escritórios daquele prédio. As rodinhas da
cadeira do guarda rangeram quando ele a empurrou para trás e se


levantou.

Li rapidamente os nomes nas placas, listados em ordem alfabética Em
sua maioria, eram advogados e alguns contadores. Quando já havia passado
por cerca de um terço da lista, encontrei um nome que se destacava dos
outros.

SENADOR CLLFFORD C HARRTSON.

O avô de Blake.

Nenhum comentário:

Postar um comentário