quinta-feira, 7 de março de 2013

Dezesseis Luas 01 - MARGARET STOHL e KAMI GARCIA (Parte 1)


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O meio do nada















H



avia apenas dois tipos de gente em nossa cidade. "As burras e as
empacadas", que foi como meu pai afetuosamente classificara nossos
vizinhos. "Os que estão condenados a ficar ou são burros demais para ir
embora. Todos os outros acham um meio de fugir." Não havia dúvida sobre
qual dos dois ele era, mas eu nunca tinha tido coragem de perguntar o
motivo. Meu pai era escritor, e morávamos em Gatlin, Carolina do Sul,
porque todos os Wate sempre moraram ali, desde que o tataravô do meu
tataravô, Ellis Wate, lutou e morreu no outro lado do rio Santee durante a
Guerra Civil.

Só que o pessoal daqui não a chamava de Guerra Civil. Todos com
menos de 60 anos a chamavam de Guerra entre os Estados, enquanto todos
com mais de 60 a chamavam de Guerra da Agressão Norte, como se de
alguma forma o norte tivesse levado o sul a entrar na guerra por causa de um
fardo ruim de algodão. Todos, menos minha família. Nós a chamávamos de
Guerra Civil.

Era apenas mais um motivo pelo qual eu mal podia esperar para ir
embora daqui.

Gatlin não era como as cidadezinhas que se vê nos cinemas, a não ser
que fosse um filme sobre cinquenta anos atrás. Estávamos longe demais de
Charleston para ter um Starbucks ou um McDonalds. Só tínhamos um Dar-
ee Keen, já que os Gentry eram pães-duros demais para comprar novas letras
quando compraram o Dairy King. A biblioteca ainda tinha os livros
catalogados em cartões, a escola ainda tinha quadros-negros e nossa piscina


da comunidade era o lago Moultrie, com água marrom morna e tudo.
Podíamos ver um filme no Cineplex na mesma época que ele saía em DVD,
mas tínhamos que pegar uma carona até Summerville, perto da faculdade
comunitária. As lojas ficavam na rua Main, as boas casas ficavam na rua
River, e todas as outras pessoas moravam ao sul da autoestrada 9, onde o
asfalto se desmanchava em pedaços de concreto — terrível para andar, mas
perfeito para jogar em gambás furiosos, os animais mais cruéis que existem.
Nunca se viu esse tipo de coisa nos filmes.

Gatlin não era um lugar complicado; Gatlin era Gatlin. Os vizinhos
ficavam de guarda nas varandas no calor insuportável, sofrendo e suando à
vista de todos. Mas não havia sentido. Nada mudava nunca. Amanhã seria o
primeiro dia de aula, no segundo ano do ensino médio na escola Stonewall
Jackson High, e eu já sabia tudo que iria acontecer: onde eu me sentaria, com
quem eu falaria, as piadas, as garotas, quem estacionaria onde.

Não havia surpresas no Condado de Gatlin. Éramos nada mais nada
menos do que o epicentro no meio do nada.

Pelo menos é o que eu pensava quando fechei meu exemplar surrado de
Matadouro Cinco, desliguei meu iPod e apaguei a luz na última noite de
verão.

Só que eu não podia estar mais errado.

Havia uma maldição.

Havia uma garota.

E no final, havia um túmulo.

Nunca sequer imaginei que aconteceria.


























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Continue sonhando













C



aindo.

Eu estava em queda livre, despencando no ar.

— Ethan!

Ela me chamou, e o som da sua voz fez meu coração disparar.

— Me ajude!

Ela estava caindo também. Estiquei meu braço, tentando segurá-la.
Estiquei o braço, mas só encontrei ar. Não havia chão sob meus pés e minhas
mãos se enfiavam em lama. Encostamos as pontas dos dedos e vi fagulhas
verdes na escuridão.

Então ela escorregou por meus dedos e só consegui sentir a perda.

Limão e alecrim. Eu consegui sentir o cheiro dela, até naquele momento.

Mas não consegui segurá-la.

E não conseguia viver sem ela.





Me sentei de repente, tentando recuperar o fôlego.

— Ethan Wate! Acorde! Não vou admitir que chegue atrasado ao
primeiro dia de aula. — Eu podia ouvir a voz de Amma gritando do andar de
baixo.

Meus olhos focalizaram um ponto de luz suave na escuridão. Eu podia
ouvir o distante som da chuva contra a velha janela da fazenda. Deve estar
chovendo. Deve ser de manhã. Devo estar no meu quarto.

Meu quarto estava quente e úmido por causa da chuva. Por que minha
janela estava aberta?


Minha cabeça estava latejando. Deitei novamente na cama e o sonho foi
se dissipando, como sempre acontece. Eu estava em segurança no meu
quarto, em nossa antiga casa, na mesma cama de mogno que rangia onde
provavelmente seis gerações de Wate dormiram antes de mim, onde pessoas
não caíam por buracos negros feitos de lama e nada nunca acontecia.

Olhei para meu teto de gesso, pintado da cor do céu para impedir que as
abelhas carpinteiras fizessem ninho ali. O que havia de errado comigo?

Havia meses que eu tinha esse mesmo sonho. Apesar de não conseguir
me lembrar de tudo, a parte da qual eu me lembrava era sempre a mesma. A
garota estava caindo. Eu estava caindo. Tinha que me segurar, mas não
conseguia. Se eu soltasse, alguma coisa terrível aconteceria com ela. Mas esse
era o problema. Eu não conseguia soltar. Não podia perdê-la. Era como se eu
estivesse apaixonado por ela, mesmo não a conhecendo. Tipo um amor antes
da primeira vista.

Mas isso parecia loucura, porque era apenas uma garota num sonho. Eu
nem sabia como ela era. Eu vinha tendo o sonho há meses, mas em todo esse
tempo jamais vira o rosto dela, ou pelo menos não conseguia lembrar. Eu só
sabia que tinha a mesma sensação horrível toda vez que a perdia. Ela
escorregava da minha mão e meu estômago parecia afundar, como nos
sentimos durante a queda em uma montanha-russa.

Frio na barriga. Essa era uma porcaria de metáfora. Era mais como um
tiro.

Talvez eu estivesse enlouquecendo, ou talvez só precisasse de um banho.
Os fones ainda estavam em volta do meu pescoço, e quando olhei para o
visor do meu iPod, vi uma música que não reconheci.

"Dezesseis Luas."

O que era aquilo? Cliquei nela. A melodia era assustadora. Eu não
conseguia identificar a voz, mas tinha a sensação de que já ouvira aquilo.



Dezesseis luas, dezesseis anos

Dezesseis dos seus mais profundos medos

Dezesseis vezes você sonhou com minhas lágrimas

Caindo, caindo ao longo dos anos...



Era deprimente, assustadora... Quase hipnótica.


— Ethan Lawson Wate! — Consegui ouvir Amma gritando mesmo com
a música.

Desliguei o iPod e sentei na cama, afastando as cobertas. Os lençóis
pareciam estar cheios de areia, mas eu sabia que não era isso.

Era terra. E minhas unhas estavam pretas de lama, da mesma forma que
ficaram na última vez em que eu tivera o sonho.

Enrolei o lençol e o enfiei no cesto de roupa suja embaixo do uniforme
do treino do dia anterior. Entrei no chuveiro e tentei esquecer tudo enquanto
esfregava as mãos e os últimos pedaços pretos do meu sonho desapareciam
pelo ralo. Se eu não pensasse naquilo, não estaria acontecendo. Era assim que
eu lidava com a maioria das coisas nos últimos meses.

Mas não quando se tratava dela. Não dava para evitar. Eu sempre
pensava nela. Sempre voltava a ter o mesmo sonho, mesmo não conseguindo
explicá-lo. Então, era esse meu segredo, tudo que queria contar. Eu tinha 16
anos, estava me apaixonando por uma garota que não existia e estava ficando
louco.

Não importava o quanto eu esfregasse, eu não conseguia fazer meu
coração parar de bater forte. E mesmo com o cheiro de sabonete Ivory e do
xampu, eu ainda conseguia sentir aquela aroma. Bem de leve, mas eu sabia
que estava lá.

Limão e alecrim.





Desci as escadas para a segurança da mesmice de sempre. Na mesa de café da
manhã, Amma colocou na minha frente o mesmo prato de porcelana azul e
branco (porcelana-dragão era como minha mãe chamava) com ovos fritos,
bacon, torrada com manteiga e canjica. Amma era nossa governanta, mas era
mais como minha avó, apesar de ser mais inteligente e mais mal-humorada
do que minha verdadeira avó. Amma tinha praticamente me criado, e ela
achava que era a missão dela me fazer crescer mais uns 30 centímetros,
apesar de eu já ter 1,89 metro de altura. Esta manhã eu estava estranhamente
faminto, como se não comesse há uma semana. Comi um ovo e dois pedaços
de bacon e já me senti melhor. Sorri para ela com a boca cheia.

— Não pegue no meu pé, Amma. É o primeiro dia de aula. — Ela
colocou com força na minha frente um gigantesco copo de suco de laranja e


outro maior ainda de leite (integral, o único tipo que bebemos aqui).

— Acabou o achocolatado? — Eu bebia achocolatado do mesmo jeito
que algumas pessoas bebem Coca-Cola ou café. Mesmo de manhã, eu estava
sempre atrás da minha dose de açúcar.

— A-C-L-I-M-A-T-E-S-E. — Amma usava palavras cruzadas para tudo.
Quanto maior, melhor, e ela gostava de usá-las. O modo como ela soletrava
as palavras letra por letra fazia parecer que ela estava dando um tapa na
cabeça da gente a cada letra. — Quero dizer, acostume-se. E não pense em
botar um pé pra fora daquela porta antes de beber o leite que dei pra você.

— Sim, senhora.

— Vejo que você se arrumou. — Eu não tinha me arrumado. Estava de
jeans e uma camiseta desbotada, como em quase todos os dias. Cada uma
tinha um dizer diferente. A de hoje tinha escrito Harley Daviáson. E eu estava
com o mesmo Ali Star que usava havia três anos.

— Pensei que você fosse cortar o cabelo — falou como se fosse uma
bronca, mas eu percebi o que era realmente: puro e simples amor.

— Quando falei isso?

— Você não sabe que os olhos são a janela da alma?

— Talvez eu não queira que ninguém use uma janela pra ver a minha
alma.

Amma me puniu com mais um prato de bacon. Ela mal chegava a 1,50m
de altura e era provavelmente mais velha do que a porcelana-dragão, apesar
de em cada aniversário ela insistir que estava fazendo 53 anos. Mas Amma
era qualquer coisa, menos uma senhora amável. Ela era a autoridade
absoluta na minha casa.

— Bem, não pense que você vai sair nesse tempo com o cabelo molhado.
Não gosto da sensação que essa tempestade está me dando. Como se uma
coisa ruim tivesse sido chutada no vento, e nada consegue impedir um dia
como esse. Ele tem vontade própria.

Revirei os olhos. Amma tinha uma maneira própria de ver as coisas.
Quando ela estava com o humor assim, minha mãe costumava dizer que ela
estava escurecendo: religião e superstição misturadas, como só acontece no
sul. Quando Amma escurecia, era melhor ficar fora do caminho dela. Assim
como era melhor deixar os amuletos dela nos peitoris das janelas e as bonecas
que ela fazia nas gavetas onde ela as colocava.


Comi mais uma garfada de ovo e terminei o café da manhã dos
campeões: ovos, geleia congelada e bacon, tudo esmagado entre as torradas
num sanduíche. Enquanto enfiava isso na boca, olhei pelo corredor por puro
hábito. A porta do escritório do meu pai já estava fechada. Meu pai escrevia à
noite e dormia no sofá velho do escritório de dia. Era assim desde que minha
mãe morreu em abril passado. Ele podia muito bem ser um vampiro; era isso
que minha tia Caroline tinha dito depois de ter passado uns dias conosco
naquela primavera. Eu provavelmente tinha perdido a oportunidade de vê-lo
até o dia seguinte. Aquela porta não se abria depois que era fechada.

Ouvi uma buzina na rua. Link. Peguei minha mochila preta caindo aos
pedaços e corri pela porta na chuva. Podia muito bem ser tanto sete da noite
quanto sete horas da manhã, de tão escuro que o céu estava. O tempo estava
estranho havia alguns dias.

O carro de Link, o Lata-Velha, estava na rua, o motor fazendo barulho,
a música em alto volume. Eu ia para a escola com Link todo dia desde o
jardim de infância, quando nos tornamos melhores amigos depois de ele me
dar metade do seu Twinkie no ônibus. Só depois descobri que tinha caído no
chão. Apesar de nós dois termos tirado carteira nesse verão, Link era quem
tinha um carro, se é que podíamos chamar aquilo de carro.

Pelo menos o motor do Lata-Velha estava superando o som da
tempestade.

Amma ficou na varanda com os braços cruzados em uma postura
reprovadora.

— Não toque música alta aqui, Wesley Jefferson Lincoln. Não pense que
não vou ligar para sua mãe e contar a ela o que você ficou fazendo no porão
o verão inteiro quando tinha 9 anos.

Link fez uma careta. Poucas pessoas o chamavam pelo nome real; só a
mãe dele e Amma.

— Sim, senhora.

A porta de tela da varanda bateu. Ele riu, cantando pneu no asfalto
molhado ao se afastar do meio-fio. Como se estivéssemos fugindo, era assim
que dirigíamos quase sempre. Só que nunca fugíamos.

— O que você fez no meu porão quando tinha 9 anos?

— O que eu não fiz no seu porão quando eu tinha 9 anos? — Link
abaixou a música, e eu achei bom, porque ela era péssima e ele ia me


perguntar se eu tinha gostado, como fazia todo dia. O grande problema da
banda dele, Quem Matou Lincoln, era que nenhum integrante sabia tocar
um instrumento e nem cantar. Mas ele só falava sobre tocar bateria e mudar
para Nova York depois da formatura e sobre os contratos de gravação que
provavelmente jamais aconteceriam. E quando digo provavelmente, quero
dizer que ele tinha mais chance de fazer uma cesta de três pontos vendado e
bêbado do estacionamento do ginásio.

Link não ia para a faculdade, mas ele ainda estava um passo à minha
frente. Ele sabia o que queria fazer, mesmo sendo algo improvável. Tudo que
eu tinha era uma caixa de sapatos cheia de livretos de faculdades que eu não
podia mostrar para meu pai. Eu não me importava com qual faculdade fosse,
desde que fosse pelo menos a uns 1.500 quilômetros de Gatlin.

Eu não queria terminar como meu pai, morando na mesma casa, na
mesma cidade pequena em que cresci, com as mesmas pessoas que nunca
sonharam em sair daqui.









Ao nosso redor casas vitorianas velhas e encharcadas ladeavam a rua, quase
iguais ao dia em que tinham sido construídas há mais de 100 anos. Minha rua
se chamava Cotton Bend porque essas velhas casas costumavam ter na parte
de trás quilômetros de campos de plantação de algodão. Agora davam para a
autoestrada 9, que era provavelmente a única coisa que tinha mudado aqui.

Peguei um donut velho da caixa que estava no chão do carro.

— Você fez upload de uma música esquisita no meu iPod ontem à noite?

— Que música? O que acha dessa aqui? — Link aumentou o som da
mais recente faixa demo da banda.

— Acho que precisa ser trabalhada. Como todas suas outras músicas. —
Era a mais ou menos mesma coisa que eu dizia todo dia.

— É, seu rosto vai precisar ser trabalhado depois que eu der umas
porradas em você. — Era mais ou menos a mesma coisa que ele dizia todo
dia.

Dei uma olhada na minha lista de músicas.

— A tal música, acho que o nome era algo do tipo "Dezesseis Luas".


— Não sei do que está falando. — Não estava lá. A música havia
sumido, mas eu acabara de ouvi-la naquela manhã. E sabia que não tinha
imaginado porque ela ainda estava na minha cabeça.

— Se você quer ouvir uma música, vou botar uma nova. — Link olhou
para baixo para encontrar a música.

— Ei, cara, olhe para frente.

Mas ele não ergueu o olhar, e com o canto do meu olho, vi um estranho
carro passar na frente do nosso...

Por um segundo, os sons da rua e da chuva e de Link se dissolveram no
silêncio, e era como se tudo estivesse se movendo em câmera lenta. Eu não
conseguia desgrudar os olhos do carro. Era só uma sensação, não uma coisa
que conseguisse descrever. E então ele passou por nós, virando em outra
direção.

Não reconheci o carro. Nunca o tinha visto antes. Vocês não podem
imaginar o quanto isso é impossível, porque eu conhecia cada carro na
cidade. Não havia turistas nessa época do ano. Ninguém se arriscaria na
temporada de furacões.

Esse carro era longo e preto, como um rabecão. Na verdade, eu estava
bem certo de que era um rabecão.

Talvez fosse um presságio. Talvez esse ano fosse ser pior do que eu
pensava.

— Aqui está. "Bandana Negra." Essa música vai me tornar famoso.

Quando ele voltou a olhar para a frente, o carro tinha ido embora.




























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Garota nova















O



ito ruas. Era essa a distância que tínhamos que percorrer de Cotton
Bend até a Jackson High. Aparentemente eu conseguia reviver minha
vida toda subindo e descendo oito ruas, e oito ruas eram o bastante para
tirar o estranho rabecão preto da minha cabeça. Talvez tenha sido por isso
que não mencionei nada para Link.

Passamos pelo Pare & Compre, também conhecido como Pare & Roube.
Era o único mercado da cidade, e o que tínhamos de mais parecido com um
7 Eleven. Então sempre que estávamos de bobeira com alguém por lá,
tínhamos que torcer para não dar de cara com a mãe de alguém fazendo
compras para o jantar ou pior, com Amma.

Percebi o familiar Grand Prix estacionado na porta.

— Oh-oh. Fatty já está de plantão. — Ele estava no banco do motorista,
lendo The Stars and Stripes.

— Talvez ele não tenha visto a gente. — Link olhava pelo retrovisor,
tenso.

— Talvez a gente esteja ferrado.

Fatty era o inspetor encarregado de procurar os alunos da escola
Stonewall Jackson High que matavam aula, assim como um orgulhoso
integrante da força policial de Gatlin. A namorada dele, Amanda, trabalhava
no Pare & Roube, e Fatty ficava estacionado lá na porta durante a maioria
das manhãs, esperando que os produtos da padaria chegassem. Isso era um
tanto inconveniente se você estivesse sempre atrasado, como Link e eu.

Não era possível frequentar a Jackson High sem conhecer a rotina de


Fatty tão bem quanto nosso próprio horário de aulas. Hoje, Fatty sinalizou
com a mão para irmos em frente sem nem tirar os olhos da seção de esportes.
Ele estava nos dando uma folga.

— Seção de esportes e um pão doce. Você sabe o que isso significa. —
Temos cinco minutos.







Seguimos no Lata-Velha até o estacionamento da escola com a marcha em
ponto morto, na esperança de passar pela secretaria despercebidos. Mas
ainda chovia muito, então na hora que entramos no prédio, estávamos
ensopados e nossos tênis faziam um barulho tão alto que daria na mesma se
tivéssemos entrado voluntariamente.

— Ethan Wate! Wesley Lincoln!

Ficamos de pé pingando na secretaria, esperando os bilhetes de detenção
que levaríamos para casa.

— Atrasados para o primeiro dia de aula. Sua mãe vai usar algumas
palavras bem escolhidas com você, Sr. Lincoln. E não faça essa cara de
superior, Sr. Wate. Amma vai te dar uma surra.

A Srta. Hester estava certa. Amma saberia que cheguei atrasado em uns
cinco minutos, isso se já não soubesse. As coisas eram assim por aqui. . Minha
mãe dizia que Carlton Eaton, o diretor da agência do correio, lia qualquer
carta que parecesse meio interessante. Ele nem se dava mais ao trabalho de
colar o envelope de novo. Não é como se alguma novidade de verdade
pudesse existir. Cada casa tinha seus segredos, mas todos na rua sabiam quais
eram. Até isso não era segredo.

— Srta. Hester, eu só vim dirigindo devagar por causa da chuva. — Link
tentou ser encantador. A Srta. Hester puxou um pouco os óculos e olhou para
Link, nada encantada. A correntinha que prendia os óculos dela ao redor do
pescoço balançou para frente e para trás.

— Não tenho tempo para bater papo com vocês agora. Estou ocupada
preenchendo seus bilhetes de detenção, que é onde vocês passarão a tarde de
hoje — ela disse enquanto nos entregava um folheto azul para cada um.

Ela estava ocupada, sei. Deu para sentir o cheiro do esmalte antes
mesmo de dobrar para o corredor. Bem-vindos de volta.






Em Gatlin, o primeiro dia de aula nunca muda. Os professores, que
conhecem a gente da igreja, decidiram se éramos burros ou inteligentes
quando estávamos no jardim de infância. Eu era inteligente porque meus pais
eram professores universitários. Link era burro porque amassou as páginas do
Livro Sagrado durante a Caça às Escrituras e porque vomitou uma vez
durante o desfile de Natal. Como eu era inteligente, recebia boas notas nos
meus trabalhos; como Link era burro, recebia notas ruins. Acho que ninguém
se dava ao trabalho de lê-los. Às vezes eu escrevia uma coisa qualquer no
meio das redações só para ver se meus professores diriam alguma coisa.
Nenhum nunca disse nada.

Infelizmente, o mesmo princípio não se aplicava a provas de múltipla
escolha. No primeiro tempo, na aula de Inglês, descobri que minha
professora de 700 anos de idade, cujo verdadeiro nome era Sra. English,
tinha mandado a gente ler O Sol é para Todos durante o verão, então me dei
mal na primeira prova. Ótimo. Eu tinha lido o livro há uns dois anos. Era um
dos favoritos da minha mãe, mas fazia tempo e eu tinha esquecido os
detalhes.

Uma informação pouco conhecida sobre mim: leio o tempo todo. Livros
são a única coisa que me tira de Gatlin, mesmo que por pouco tempo. Eu
tinha um mapa na parede, e toda vez que eu lia sobre um lugar que queria
conhecer, eu fazia uma marcação nele. Nova York estava marcada por causa
de O Apanhador no Campo de Centeio. Na Natureza Selvagem me levou a
marcar o Alasca. Quando li Pé na Estrada, marquei Chicago, Denver, Los
Angeles e Cidade do México. Kerouac pode nos levar praticamente a todos
os lugares. De tempos em tempos, eu fazia uma linha para ligar os lugares
marcados. Uma linha verde fina que eu seguiria numa viagem de carro no
verão antes de ir para a faculdade, isso se conseguisse sair dessa cidade. O
mapa e o lance da leitura eram um segredo só meu. Livros e basquete não
misturavam por aqui.

A aula de química não foi muito melhor. O Sr. Hollenback me
amaldiçoou escolhendo Emily Odeio-Ethan para minha parceira de
laboratório, também conhecida como Emily Asher, que me despreza desde o
baile do ano passado, quando cometi o erro de usar meu All Star com o


smoking e deixar que meu pai nos levasse no Volvo enferrujado. A janela
quebrada que não fechava tinha desarrumado seu cabelo louro perfeitamente
cacheado para o baile, e na hora que chegamos ao ginásio ela parecia Maria
Antonieta ao acordar. Emily não falou comigo o resto da noite e mandou
Savannah Snow me dar o fora por ela a três passos da mesa do ponche. E
esse foi o fim da história.

Era uma fonte de diversão sem fim para os caras, que viviam na
expectativa de que íamos ficar juntos de novo. O que eles não sabiam era que
eu não curtia garotas como Emily. Ela era bonita, mas era só isso. E olhar
para ela não compensava ter que ouvir o que saía de sua boca. Eu queria
alguém diferente, alguém com quem eu pudesse conversar sobre outras coisas
além de testas e coroações no baile de inverno. Uma garota que fosse
inteligente ou engraçada, ou pelo menos uma parceira de laboratório
razoável. Talvez uma garota assim fosse um sonho, mas um sonho ainda era
melhor do que um pesadelo. Mesmo se o pesadelo usasse saia de líder de
torcida.

Sobrevivi à aula de química, mas meu dia só piorou. Pelo visto, eu ia ter
aula de História Americana de novo esse ano, que era a única História
ensinada na Jackson, tornando o nome redundante. Eu passaria meu segundo
s ano consecutivo estudando a "Guerra da Agressão Norte" com o Sr. Lee,
cujo nome era só coincidência. Mas como todos nós sabíamos, em espírito, o
Sr. Lee e o famoso general da Confederação eram a mesma pessoa. O Sr. Lee
era um dos poucos professores que realmente me odiavam. No ano anterior,
por causa de um desafio de Link, eu tinha feito uma redação chamada
"Guerra da Agressão Sul", e o Sr. Lee me deu um D. Acho que os professores
liam sim as redações às vezes, afinal.

Achei um lugar atrás ao lado de Link, que estava ocupado copiando as
anotações da aula na qual ele dormira antes dessa. Mas ele parou de escrever
assim que sentei.

— Cara, você soube?

— Soube de quê?

— Tem uma garota nova na Jackson.

— Tem um monte de garotas novas, uma turma inteira de o ano,
imbecil.

— Não estou falando das garotas do 1º ano. Tem uma garota nova no


nosso ano.

Em qualquer outra escola, uma garota nova no 2º ano não seria
novidade. Mas estávamos na Jackson. E não tínhamos uma garota nova no
nosso ano desde o 3º ano fundamental, quando Kelly Wix veio morar com os
avós depois que o pai foi preso por gerenciar um esquema de jogatina no
porão da casa deles em Lake City.

— Quem é ela?

— Não sei. Tive aula de Cívica no segundo tempo com todos os nerds da
banda, e eles não sabiam nada além de que ela toca o violino ou algum
instrumento assim. Queria saber se ela é gata.

Link tinha a mente limitada, como a maioria dos caras. A diferença era
que a mente limitada dele estava diretamente ligada à boca.

— Então ela é uma nerd de banda?

— Não. É música. Talvez tenha o mesmo amor que eu por música
clássica.

— Música clássica?

Link só tinha ouvido música clássica no consultório do dentista.

— Você sabe, os clássicos. Pink Floyd. Black Sabbath. Os Stones.

Comecei a rir.

— Sr. Lincoln. Sr. Wate. Lamento interromper a conversa de vocês, mas
eu gostaria de começar, se vocês concordarem.

O tom do Sr. Lee era tão sarcástico quanto o do ano passado, e o cabelo
oleoso penteado de forma a tentar cobrir a careca e as marcas de suor nas
axilas continuavam horríveis. Ele distribuiu cópias do mesmo planejamento
que provavelmente usava há 10 anos. Participar de uma encenação da
Guerra Civil era obrigatório. Claro que era. Eu podia pegar emprestado o
uniforme de um dos meus parentes que participaram de encenações por
diversão nos finais de semana. Que sorte a minha.

Depois que o sinal tocou, Link e eu ficamos no corredor perto dos nossos
armários na esperança de dar uma olhada na garota nova. Pelo que ele ,
falava, ela já era sua futura alma gêmea e companheira de banda e,
provavelmente, companheira de algumas outras coisas que eu nem queria
saber. Mas a única coisa que conseguimos ver foi Charlotte Chase usando
uma saia jeans dois números menores. Isso significava que não íamos
descobrir nada até a hora do almoço, porque nossa próxima aula era LSA,


Linguagem de Sinais Americana, e falar era rigorosamente proibido.
Ninguém era bom o bastante nos sinais para sequer soletrar "garota nova",
principalmente porque LSA era a única aula que tínhamos junto com o resto
do time de basquete de Jackson.

Eu estava no time desde o oitavo ano, quando cresci 15 centímetros no
verão e acabei ficando uma cabeça mais alto do que todo mundo da minha
turma. Além do mais, é preciso fazer alguma coisa normal quando os dois
pais são professores. No fim das contas, eu era bom em basquete. Eu sempre
parecia saber por onde os jogadores do outro time iam passar a bola, e isso
me dava um lugar garantido para sentar no refeitório todo dia. Na Jackson,
isso valia alguma coisa.

Hoje aquele lugar valia ainda mais porque Shawn Bishop, nosso
armador, tinha visto a garota nova. Link perguntou a única coisa que
importava para qualquer um deles:

— E então, ela é gata?

— Muito gata.

— Gata estilo Savannah Snow?

Como se tivesse sido combinado, Savannah, o padrão pelo qual todas as
outras garotas da Jackson eram avaliadas, entrou no refeitório de braços
dados com Emily Odeio-Ethan, e todos ficamos olhando porque Savannah
tinha 1,72 metros com as mais perfeitas pernas que já tínhamos visto. Emily e
Savannah eram quase uma pessoa só, mesmo quando não estavam de
uniformes de líder de torcida. Cabelos louros, bronzeados artificiais, chinelos
e saias jeans tão curtas que mais pareciam cintos. Savannah tinha as pernas,
mas era o top do biquíni de Emily que todos os caras queriam conferir no
lago durante o verão. Elas nunca pareciam carregar livros, só pequenas
bolsinhas de metal enfiadas debaixo do braço, que mal tinham espaço para
um celular, isso nas poucas ocasiões em que Emily parava de mandar
mensagens de texto.

As diferenças entre elas se resumiam às posições na equipe de líderes de
torcida. Savannah era a capita, e também era base: uma das garotas que
sustentavam duas outras líderes de torcida na famosa pirâmide dos Wildcats.
Emily era uma voadora, a garota no topo da pirâmide, a que era jogada de
1,50 a 1,80 metros no ar para dar uma pirueta ou outra maluquice que
poderia facilmente resultar em um pescoço quebrado. Emily arriscaria


qualquer coisa para ficar no topo daquela pirâmide. Savannah não precisava.
Quando Emily era jogada, a pirâmide ficava bem sem ela. Quando Savannah
se movia dois centímetros, a pirâmide toda desabava.

Emily Odeio-Ethan reparou que olhávamos para elas e me encarou com
raiva. Os caras riram. Emory Watkins deu um tapinha nas minhas costas.

— Tá podendo, Wate. Você conhece Emily, quanto mais ela olha com
raiva, mais gosta da pessoa.

Eu não queria pensar em Emily hoje. Queria pensar no oposto de Emily.
Desde que Link tinha falado na aula de História, aquilo estava na minha
cabeça. A garota nova. A possibilidade de alguém diferente, de algum lugar
diferente. Talvez alguém com uma vida mais significativa que a nossa e,
provavelmente, que a minha.

Talvez até alguém com quem eu tenha sonhado. Eu sabia que era uma
fantasia, mas queria acreditar nela.

— Vocês souberam da garota nova?

Savannah sentou no colo de Earl Petty. Earl era o capitão do time e
namorado de Savannah de tempos em tempos. Agora, eles estavam juntos.
Ele passou as mãos pelas pernas alaranjadas dela tão alto na coxa a ponto de
a gente não saber para onde olhar.

— Shawn estava nos contando. Disse que ela é gata. Vão colocá-la na
equipe?

Link pegou umas batatas da minha bandeja.

— Improvável. Vocês têm que ver o que ela está vestindo.

Golpe um.

— E como ela é pálida.

Golpe dois. Ninguém é magra demais ou bronzeada demais pelos
padrões de Savannah.

Emily sentou ao lado de Emory, inclinando-se sobre a mesa um pouco
demais.

— Ele contou pra vocês quem ela é?

— O que isso quer dizer?

Emily fez uma pausa para efeito dramático.

— Ela é sobrinha do Velho Ravenwood.

Ela não precisava de efeito para dizer isso. Era como se tivesse retirado
todo o ar do recinto. Alguns caras começaram a rir. Pensaram que ela estava


brincando, mas eu vi que não estava.

Golpe três. Ela estava fora de questão. Tão fora que eu nem conseguia
mais imaginá-la. A possibilidade de minha garota dos sonhos aparecer sumiu
antes mesmo que eu pudesse imaginar nosso primeiro encontro. Eu estava
fadado a mais três anos de Emilies.

Macon Melchizedek Ravenwood era o recluso da cidade. Vamos apenas
dizer que eu lembrava o bastante de O Sol é para Todos para saber que o
Velho Ravenwood fazia Boo Radley parecer um cara extremamente popular.
Ele morava em uma casa velha em ruínas, na fazenda mais antiga e
abominável de Gatlin, e acho que ninguém o via desde antes de eu nascer ou
mais.

— Está falando sério? — perguntou Link.

— Completamente. Carlton Eaton contou para minha mãe ontem
quando trouxe nossa correspondência.

Savannah assentiu.

— Minha mãe ouviu a mesma coisa. Ela foi morar com o Velho
Ravenwood há alguns dias, vinda da Virgínia ou de Maryland, não lembro.

Todos continuaram a falar dela, das roupas e dos cabelos e do tio dela, e
do quanto ela provavelmente devia ser esquisita. Isso era o que eu mais
odiava em Gatlin: o fato de que todo mundo tinha alguma coisa a dizer sobre
tudo que você falava, fazia ou, nesse caso, vestia. Fiquei encarando o
macarrão na minha bandeja, nadando em um líquido laranja gosmento que
não se parecia muito com molho de queijo.

Dois anos, oito meses e a contagem continua. Eu tinha que sair dessa
cidade.







Depois da escola, o ginásio estava sendo usado para o teste de líderes de
torcida. A chuva tinha finalmente parado, então o treino de basquete foi na
quadra externa, com o concreto rachado, os aros das cestas tortos e poças de
água da chuva da manhã. A gente tinha que ter cuidado para não bater na
rachadura que percorria o meio da quadra como o Grand Canyon. Fora isso,
dava para ver quase todo o estacionamento e observar a maior parte da
interação social da Jackson High enquanto a gente se aquecia.


Hoje eu estava com a mão boa. Acertei todos os sete arremessos que fiz
da linha de lance livre, mas Earl também estava bem, fazendo cesta sempre
que eu fazia uma.

Swish. Oito. Parecia que era só eu olhar para a rede e a bola ia direto
para lá. Alguns dias simplesmente eram assim.

Swish. Nove. Earl estava irritado. Percebi pelo modo como ele batia a
bola com mais força cada vez que eu arremessava. Ele era nosso outro centro.
Nosso acordo não-verbal era: eu o deixava comandar o time e ele não me
perturbava se eu não estivesse com vontade de ficar de papo no Pare 8c
Roube todo dia depois do treino. Chegava uma hora que enchia o saco falar
das mesmas garotas e comer Slim Jims.

Swish. Dez. Eu não errava. Talvez fosse genético. Talvez fosse outra
coisa. Eu nunca tinha entendido, mas desde que minha mãe morreu, parei de
tentai' entender. Era espantoso que eu tivesse chegado a ir ao treino.

Swish. Onze. Earl resmungou atrás de mim, batendo a bola com ainda
mais força. Tentei não sorrir e olhei para o estacionamento quando fiz o
arremesso seguinte. Vi um emaranhado de cabelos pretos e compridos atrás
do volante de um longo carro preto.

Um rabecão. Fiquei paralisado.

Então ela se virou, e pela janela aberta pude ver uma garota olhando em
minha direção. Pelo menos pensei ver. A bola bateu no aro e quicou em
direção à cerca. Atrás de mim, ouvi um som familiar.

Swish. Doze. Earl Petty podia relaxar.

Quando o carro se afastou, olhei para a quadra. O resto dos caras estava
de pé ali como se tivessem acabado de ver um fantasma.

— Aquela era...?

Billy Watts, nosso ala, assentiu, segurando na cerca de metal com uma
das mãos.

— A sobrinha do Velho Ravenwood.

Shawn jogou a bola para ele.

— É. Exatamente como disseram. Dirigindo o rabecão dele.

Emory sacudiu a cabeça.

— Ela é gata mesmo. Que desperdício.

Eles voltaram a jogar bola, mas quando Earl fez o arremesso seguinte,
começou a chover de novo. Trinta segundos depois, fomos pegos no meio de


uma tempestade, a mais forte do dia. Fiquei lá de pé deixando a chuva acabar
comigo. Meu cabelo molhado caía sobre os olhos, bloqueando o resto da
escola, do time.

O mau presságio não era apenas um rabecão. Era uma garota.

Por alguns minutos, eu tinha me permitido ter esperanças. De que talvez
esse ano não seria como todos os outros anos, de que alguma coisa fosse
mudar. De que eu teria alguém com quem conversar, alguém que realmente
me entendesse.

Mas tudo que tive foi um dia bom na quadra, e isso nunca tinha sido o
suficiente.






















































p 2 de setembro p

d



Um buraco no céu















F



rango frito, purê de batata com molho, vagem e pão — o prato, frio e
raivoso sobre o fogão onde Amma tinha deixado. Normalmente ela
mantinha meu jantar quente até que eu chegasse do treino, mas hoje
não. Eu estava muito encrencado. Amma estava furiosa, sentada à mesa
comendo balinhas de canela e rabiscando nas palavras cruzadas do New York
Times. Meu pai assinava escondido a edição de domingo porque as palavras
cruzadas do The Stars and Stripes tinham muitos erros de ortografia e as do
Readers Digest eram pequenas demais. Não sei como ele conseguia fazer sem
que Carlton Eaton percebesse, pois ele teria feito a cidade inteira saber que
éramos bons demais para o The Stars and Stripes. Mas não havia nada que
meu pai não fizesse por Amma.

Ela deslizou o prato na minha direção, olhando para mim sem olhar
para mim. Enfiei purê de batata e frango frios na boca. Não havia nada que
Amma odiasse mais do que comida deixada no prato. Tentei manter
distância da ponta do seu lápis especial número dois, usado apenas para
palavras cruzadas e mantido tão apontado que poderia ferir a ponto de
sangrar. Hoje, era possível.

Escutei o barulho ininterrupto da chuva no telhado. Não havia nenhum
outro som na cozinha. Amma bateu o lápis na mesa.

— Oito letras. Confinar ou provocar dor devido a um erro cometido.

Ela me lançou outro olhar. Enchi a boca de purê de batata. Eu sabia o

que estava a caminho. Nove horizontal.

— C-A-S-T-I-G-A-R. O que quer dizer punir. O que quer dizer que se


não consegue chegar na escola na hora, não vai sair dessa casa.

Fiquei pensando sobre quem tinha ligado para informá-la de que eu
chegara atrasado, ou o mais provável, quem não tinha ligado. Ela apontou o
lápis apesar de ele estar ainda de ponta fina, enfiando-o no velho apontador
automático na bancada. Ela ainda estava claramente "não-olhando" para
mim, o que era bem pior do que me olhar nos olhos.

Andei até onde ela estava apontando o lápis e passei meu braço em torno
dela, dando-lhe um bom aperto.

— Pare com isso, Amma. Não fique zangada. Estava chovendo forte de
manhã. Você não ia querer que corrêssemos na chuva, não é?

Ela ergueu uma sobrancelha, mas a expressão se amenizou.

— Bem, parece que vai continuar chovendo de agora até o dia em que
você cortar esse cabelo, então é melhor você pensar em um jeito de chegar à
escola antes que o sinal toque.

— Sim, senhora. — Apertei-a mais uma vez e voltei para meu purê frio.
— Você nunca vai acreditar no que aconteceu hoje. Tem uma garota nova
na nossa turma. — Não sei por que eu disse aquilo. Acho que ainda estava na
minha cabeça.

— Acha que não sei sobre Lena Duchannes?

Engasguei com o pão. Lena Duchannes. Podia rimar com rain. O modo
como Amma falou fez parecer que a palavra tinha uma sílaba a mais. Du-
kay-yane.

— É esse o nome dela? Lena?

Amma empurrou um copo de achocolatado em minha direção.

— É e não, e não é da sua conta. Você não devia se meter com coisas das
quais não sabe nada, Ethan Wate.

Amma sempre falava em código e nunca oferecia mais do que isso. Eu
não ia à casa dela em Waders Creek desde que era criança, mas sabia que a
maioria das pessoas da cidade ia. Amma era a leitora de tarô mais respeitada
num perímetro de 160 quilômetros de Gatlin, assim como a mãe dela antes
dela e a avó dela antes da mãe. Seis gerações de videntes. Gatlin estava cheia
de batistas tementes a Deus, metodistas e pentecostais, mas eles não
conseguiam resistir à atração das cartas, da possibilidade de mudar o curso do
próprio destino. Porque era isso que eles acreditavam que uma poderosa
vidente podia fazer. E Amma era uma grande força com a qual contar.


Às vezes eu encontrava um dos seus amuletos caseiros na minha gaveta
de meias ou pendurado sobre a porta do escritório do meu pai. Só perguntei
para que eles serviam uma vez. Meu pai provocava Amma sempre que
achava um, mas percebi que ele nunca os removia. "Melhor prevenir do que
remediar." Acho que ele queria dizer se prevenir de Amma, que podia fazer
você precisar se remediar.

— Ouviu mais alguma coisa sobre ela?

— Cuidado. Um dia você vai fazer um buraco no céu e o universo vai
cair por ele. Aí todos nós estaremos com problemas.

Meu pai entrou na cozinha de pijama. Ele se serviu de uma xícara de
café e pegou uma caixa de cereal de trigo da despensa. Dava para ver os
tampões amarelos ainda enfiados nas orelhas dele. O cereal significava que o
dia dele estava começando. Os tampões significavam que ainda não tinha
começado de verdade.

Me inclinei e sussurrei para Amma:

— O que você ouviu?

Ela pegou meu prato com força e o levou para a pia. Lavou uns ossos
que pareciam de porco, o que era estranho, já que a comida tinha sido
frango, e os colocou em um prato.

— Isso não é da sua conta. O que eu gostaria de saber é por que você
está tão interessado.

Encolhi os ombros.

— Na verdade, não estou. Só curioso.

— Você sabe o que dizem sobre curiosidade.

Ela enfiou um garfo no meu pedaço de torta de creme. Depois se virou
para mim, dando Aquele Olhar e saiu. Até meu pai reparou na porta da
cozinha balançando depois que ela saiu e puxou um tampão do ouvido.

— Como foi a escola?

— Bem.

— O que você fez a Amma?

— Cheguei atrasado à escola.

Ele observou meu rosto. Observei o dele.

— Número dois?

Assenti.

— Apontado?


— Já estava apontado mas ela o apontou mais. — Suspirei.

Meu pai quase sorriu, o que era coisa rara. Senti uma onda de alívio,
talvez até de ter conseguido uma façanha.

— Sabe quantas vezes sentei a essa mesa velha enquanto ela me
ameaçava com um lápis quando eu era criança? — perguntou ele, apesar de
não ser exatamente uma pergunta. A mesa, lascada e manchada com tinta,
cola e caneta de todos os Wate que vieram antes de mim, era uma das coisas
mais velhas da casa.

Sorri. Meu pai pegou a tigela de cereal e balançou a colher na minha
direção. Amma tinha criado meu pai, um fato do qual eu era lembrado cada
vez que pensava em ser insolente com ela quando criança.

— M-I-R-I-A-D-E. — Ele soletrou a palavra enquanto colocava a tigela
na pia. — P-L-E-T-O-R-A. O que quer dizer maior do que você, Ethan
Wate.

Quando ele chegou embaixo da luz da cozinha, o meio-sorriso se reduziu
a um quarto e depois sumiu. Ele parecia ainda pior que o normal. As sombras
no rosto estavam mais escuras, e dava para ver os ossos embaixo da pele. O
rosto estava verde de tão pálido por nunca sair de casa. Ele parecia um pouco
com um cadáver vivo, já havia alguns meses. Era difícil lembrar que ele era a
mesma pessoa que costumava sentar comigo por horas na beira do lago
Moultrie, comendo sanduíche de salada de galinha e me ensinando como
jogar a linha de pesca. "Para a frente e para trás. Dez e duas. Dez e duas.
Como os ponteiros do relógio." Os últimos cinco meses foram difíceis para
ele. Ele amava mesmo minha mãe. Mas eu também amava.

Meu pai pegou o café e começou a andar em direção ao escritório. Era
hora de encarar os fatos. Talvez Macon Ravenwood não fosse o único recluso
da cidade. Eu achava que nossa cidade não era grande o bastante para dois
Boo Radley. Mas isso tinha sido o mais próximo de uma conversa que nós
tínhamos tido em meses, e eu não queria que ele fosse embora.

— Como está indo o livro? — soltei. Fique e converse comigo. Era o que
queria dizer.

Ele pareceu surpreso, mas deu de ombros.

— Está indo. Ainda tenho muito trabalho a fazer. — Ele não conseguia.
Era o que ele queria dizer.

— A sobrinha de Macon Ravenwood acabou de se mudar para cá. —


Falei essas palavras quando ele tinha colocado os tampões de volta. Fora de
sincronia, nosso modo habitual. Pensando melhor, minha sincronia com a
maioria das pessoas tinha sido assim ultimamente.

Meu pai tirou um tampão, suspirou e tirou o outro.

— O quê?

Ele já estava andando de volta para o escritório. O cronômetro da nossa
conversa estava quase zerado.

— Macon Ravenwood, o que sabe sobre ele?

— O mesmo que todo mundo, acho. Ele é um recluso. Não sai de casa
há anos, pelo que sei.

Ele empurrou a porta do escritório e passou por ela, mas não o segui.
Fiquei em frente à porta.

Nunca coloquei o pé lá. Uma vez, só uma, quando eu tinha 7 anos, meu
pai me pegou lendo o livro dele antes de ter terminado de revisar. O
escritório era um lugar escuro e assustador. Tinha um quadro que ele sempre
mantinha coberto com um lençol sobre o esfarrapado sofá vitoriano. Eu sabia
que não deveria nunca perguntar o que havia embaixo do lençol. Depois do
sofá, perto da janela, ficava a escrivaninha do meu pai. Era de mogno
entalhado, outra antiguidade que tinha sido herdada junto com a casa,
passada de geração em geração. E livros, velhos livros de capas de couro que
eram tão pesados que ficavam apoiados sobre um suporte de madeira quando
estavam abertos. Aquelas eram as coisas que nos prendiam a Gatlin, nos
prendiam a Wates Landing, assim como tinham prendido meus ancestrais
por mais de cem anos.

Sobre a escrivaninha estava o manuscrito dele. Estava lá em uma caixa
de papelão aberta, e eu tinha que saber o que dizia. Meu pai escrevia terror
gótico, então não havia muito que ele escrevesse que fosse apropriado para
um menino de 7 anos ler. Mas cada casa em Gatlin era cheia de segredos,
assim como o próprio sul, e minha casa não era exceção, mesmo naquela
época.

Meu pai me encontrou sentado no sofá do escritório com páginas
espalhadas em volta de mim, como se uma bombinha tivesse explodido
dentro da caixa. Eu não era esperto o bastante para disfarçar os vestígios que
deixava, coisa que aprendi rapidamente depois daquilo. Só me lembro dele
gritando comigo e de minha mãe ir atrás de mim e me encontrar chorando


embaixo da velha árvore de magnólias no nosso quintal. "Algumas coisas são
particulares, Ethan. Até mesmo para adultos."

Eu só queria saber. Esse sempre foi o meu problema. Até mesmo agora.
Queria saber por que meu pai nunca saía do escritório. Queria saber por que
não podíamos deixar essa velha casa insignificante só porque um milhão de
Wates tinham morado aqui antes de nós, principalmente agora que minha
mãe não estava mais aqui.

Mas não essa noite. Essa noite eu só queria me lembrar dos sanduíches
de salada de galinha e "dez e duas" e de uma época em que meu pai comia o
cereal na cozinha, brincando comigo. Adormeci lembrando.









Antes que o sinal tivesse tocado no dia seguinte, Lena Duchannes era o único
assunto sobre o qual todo mundo falava na Jackson. De alguma forma, entre
tempestades e apagões, Loretta Snow e Eugenie Asher, mães de Savannah e
Emily, tinham conseguido botar o jantar na mesa e ligar para todo mundo na
cidade para contar que a "parenta" do louco Macon Ravenwood estava
dirigindo por Gatlin no rabecão dele, o qual elas tinham certeza que ele usava
para transportar cadáveres quando ninguém estava vendo. A partir daí a
história só piorou. Há duas coisas com as quais sempre podemos contar em
Gatlin. A primeira é que você pode ser diferente, até louco, desde que saia de
casa de vez em quando para que o pessoal não pense que você é um assassino
da machadinha. A segunda, se há uma história para contar, pode ter certeza
que haverá alguém para contá-la. Uma garota nova na cidade foi morar na
mansão mal-assombrada com o recluso da cidade, isso é uma história,
provavelmente a maior em Gatlin desde o acidente de minha mãe. Então não
sei por que fiquei surpreso quando todos estavam falando sobre ela — todos
menos os caras. Eles tinham um compromisso antes.

— E então, o que temos, Em? — Link bateu a porta do armário.

— Contando os testes para líderes de torcida, parece que temos quatro
notas 8, três notas 7 e um bando de notas 4. — Emory não se deu ao
trabalho de contar as garotas do 1º ano que ele avaliou com nota abaixo de 4.

Bati a porta do meu armário.


— Isso é novidade? Não são as mesmas garotas que vemos no Dar-ee
Keen todo sábado?

Emory sorriu e deu um tapinha no meu ombro.

— Mas elas estão no jogo agora, Wate. — Ele olhou para as garotas no
corredor. — E estou pronto para jogar.

Emory falava mais do que fazia. Ano passado, quando éramos do 1º ano,
só o ouvíamos falando das formandas gatas com quem ele achava que ia ficar
agora. Ele era tão iludido quanto Link, mas não tão inofensivo. Emory tinha
um traço cruel; todos os Watkins tinham.

Shawn sacudiu a cabeça.

— Como colher pêssegos do arbusto.

— Pêssegos dão em árvores.

Eu já estava irritado, talvez porque já tivesse encontrado os caras na
seção de revistas do Pare & Roube antes da aula me sujeitando a essa mesma
conversa enquanto Earl folheava exemplares da única coisa que ele lia:
revistas com garotas de biquíni deitadas sobre capôs de carros.

Shawn olhou para mim, confuso.

— De que você está falando?

Nem sei por que me importava. Era uma conversa idiota, assim como
era idiota que todos os caras tivessem que se encontrar antes da escola às
quartas de manhã. Era uma coisa que eu passei a encarar como bater ponto.
Algumas coisas eram esperadas quando se estava no time. Sentávamos juntos
no refeitório. íamos às festas de Savannah Snow, convidávamos uma líder de
torcida para nos acompanhar nos bailes, ficávamos de bobeira no lago
Moultrie no último dia de aula. Era possível escapar de quase tudo se a gente
batesse ponto. Só que para mim estava ficando cada vez mais difícil bater
ponto, e eu não sabia por quê.

Eu ainda não tinha dado uma resposta quando a vi.

Mesmo que não a tivesse visto, eu saberia que ela estava lá porque o
corredor, que geralmente ficava cheio de gente correndo para seus armários e
tentando chegar às aulas antes do segundo sinal, esvaziou em questão de
segundos. Todo mundo deu um passo para trás quando ela andou pelo
corredor. Como se ela fosse uma estrela do rock.

Ou uma leprosa.

Mas eu só conseguia ver uma garota bonita de vestido longo cinza sob


um casaco esporte branco com a palavra Munique costurada e um Ali Star
surrado preto nos pés. Uma garota que usava um cordão longo prateado em
volta do pescoço, com um monte de coisas penduradas: um anel de plástico
de uma máquina de chicletes, um alfinete e um bando de outras coisas que eu
estava longe demais para ver. Uma garota que não parecia pertencer a
Gatlin. Eu não conseguia tirar os olhos dela.

A sobrinha de Macon Ravenwood. O que havia de errado comigo?

Ela prendeu os cachos pretos atrás da orelha, o esmalte preto brilhando
sob a luz fluorescente. As mãos estavam cobertas de tinta preta, como se ela
tivesse escrito algo nelas. Andou pelo corredor como se nós fôssemos
invisíveis. Tinha os olhos mais verdes que eu já vira, tão verdes que podiam
ser considerados de uma nova cor.

— É, ela é gata — disse Billy.

Eu sabia em que eles estavam pensando. Por um segundo, pensaram em
largar as namoradas pela chance de dar em cima dela. Por um segundo, ela
foi uma possibilidade.

Earl a olhou de cima a baixo e bateu a porta do armário.

— Se você ignorar o fato de que ela é esquisita.

Havia alguma coisa no jeito que ele falou isso, ou mais provavelmente,
na razão pela qual ele falou. Ela era esquisita porque não era de Gatlin,
porque não estava tentando entrar na equipe de líderes de torcida, porque
não tinha olhado para ele duas vezes, ou nem mesmo uma. Em qualquer
outro dia, eu o teria ignorado e ficado de boca fechada, mas hoje eu não
estava com vontade de ficar calado.

— Então ela é automaticamente esquisita, e por quê? Porque ela não está
de uniforme, cabelo louro e saia curta?

Era fácil de ler o rosto de Earl. Essa era uma daquelas vezes em que eu
deveria ter seguido a opinião dele, e eu não estava mantendo minha parte do
nosso acordo não-verbal.

— Porque ela é uma Ravenwood.

A mensagem foi clara. Gata, mas nem pense nisso. Ela não era mais uma
possibilidade. Mas isso não os impediu de olhar, e todos ainda estavam
olhando. O corredor, e todo mundo nele, tinha travado o olhar nela como se
ela fosse um cervo preso entre caçadores.

Mas ela apenas continuou andando, o cordão balançando em torno do


pescoço.









Minutos depois, eu estava parado na porta da minha aula de inglês. Lá estava
ela. Lena Duchannes. A garota nova, que ainda seria chamada assim
cinquenta anos mais tarde (isso se não fosse chamada de sobrinha do Velho
Ravenwood), entregando uma folha cor-de-rosa de transferência para a Sra.
English, que apertou os olhos para ler.

— Fizeram uma confusão com meu horário e eu não tinha aula de Inglês
— estava dizendo ela. — Eu tinha História Americana em dois tempos, e eu
já estudei História Americana na minha escola antiga. — Ela parecia
frustrada, e eu tentei não sorrir. Ela nunca tinha tido aula de História
Americana, não do jeito que o Sr. Lee ensina.

— É claro. Escolha seu lugar.

A Sra. English deu a ela um exemplar de O Sol é para Todos. O livro
parecia nunca ter sido aberto, o que provavelmente era verdade já que
fizeram um filme baseado nele.

A garota nova olhou para a frente e me pegou observando-a. Olhei para
o outro lado, mas era tarde demais. Tentei não sorrir, mas fiquei sem graça, e
isso só me fez sorrir mais. Ela não pareceu perceber.

— Tudo bem, eu trouxe o meu. — Ela pegou um exemplar do livro, de
capa dura, com uma árvore entalhada na capa. Parecia bastante velho e
gasto, como se ela o tivesse lido mais de uma vez. — É um dos meus livros
favoritos. — Ela apenas comentou, como se não fosse estranho. Agora eu a
estava encarando.

Senti um rolo compressor nas minhas costas e Emily me empurrou pela
porta como se eu não estivesse de pé ali. Esse era o jeito dela de dizer oi e de
esperar que eu a seguisse até o fundo da sala, onde nossos amigos estavam
sentados.

A garota nova sentou em um lugar vazio na primeira fila, na Terra de
Ninguém, em frente à mesa da Sra. English. Movimento errado. Todo
mundo sabia que não se deve sentar ali. A Sra. English tinha um olho de
vidro, e a péssima audição de alguém cuja família tem o único estande de tiro


da região. Quem se sentava em qualquer lugar que não fosse em frente à
mesa dela não era visto, portanto não era solicitado. Lena ia ter que
responder perguntas pela turma inteira.

Emily pareceu contente e mudou o caminho para passar pelo lugar dela,
chutando a bolsa de Lena e fazendo com que os livros dela se espalhassem
pelo corredor entre as fileiras.

— Ops. — Emily se abaixou e pegou um caderno espiral surrado que
estava quase perdendo a capa. Ela o segurou como se fosse um rato morto. —
Lena Duchannes. É esse seu nome? Pensei que fosse Ravenwood.

Lena olhou para o alto, lentamente.

— Pode me dar meu caderno?

Emily folheou as páginas como se não tivesse ouvido.

— É seu diário? Você é escritora? Isso é tão legal.

Lena esticou a mão.

— Por favor.

Emily fechou o caderno e o afastou dela.

— Posso pegar isso emprestado por um minuto? Eu adoraria ler alguma
coisa que você escreveu.

— Eu queria de volta agora. Por favor. — Lena ficou de pé. As coisas
iam ficar interessantes. A sobrinha do Velho Ravenwood estava prestes a se
enfiar no tipo de buraco do qual ninguém conseguia sair, a memória de
Emily era excelente.

— Primeiro você teria que saber ler. — Peguei o caderno da mão de
Emily e o entreguei a Lena.

Depois sentei na carteira ao lado da dela, bem ali na Terra de Ninguém.
O Lado do Olho Bom. Emily me encarou, incrédula. Eu não sabia por que
tinha feito aquilo. Estava tão chocado quanto ela. Nunca tinha sentado na
frente em nenhuma aula na minha vida. O sinal tocou antes que Emily
pudesse dizer alguma coisa, mas não importava; eu sabia que pagaria por
aquilo mais tarde. Lena abriu o caderno e ignorou nós dois.

— Podemos começar, pessoal? — A Sra. English olhou da mesa para
nós.

Emily foi para o lugar habitual no fundo da sala, longe o bastante da

frente para que não tivesse que responder pergunta alguma o ano todo,
longe o bastante da sobrinha do Velho Ravenwood. E agora, longe o bastante


de mim. Isso dava uma sensação libertadora, mesmo se eu tivesse que analisar
o relacionamento de Jem e Scout por cinquenta minutos sem ter lido o
capítulo.

Quando o sinal tocou, me virei para Lena. Não sei o que eu pensava que
podia dizer. Talvez estivesse esperando que ela me agradecesse. Mas ela não
disse nada enquanto enfiava os livros de volta na bolsa.

156. Não era uma palavra que estava escrita em sua mão.

Era um número.









Lena Duchannes não falou comigo de novo, nem naquele dia, nem naquela
semana. Mas isso não me impediu de pensar nela e nem de vê-la em
praticamente todo lugar para onde eu tentava não olhar. Não era apenas ela
que estava me incomodando, para dizer a verdade. Não era a sua aparência
— Lena era bonita, apesar de ela estar sempre usando as roupas erradas e
aquele tênis surrado. Não eram as coisas que ela dizia na aula, normalmente
coisas em que ninguém mais teria pensado, e que, se tivessem pensado, era
algo que não ousariam dizer. Não era o fato dela ser diferente de todas as
outras garotas da Jackson. Isso era óbvio.

Era que ela me fez perceber o quanto eu era como os outros, mesmo
quando eu queria fingir que não era.

Tinha chovido o dia todo, e eu estava sentado na aula de cerâmica,
também conhecida como AG, "A garantido", já que a nota dessa aula só
dependia do esforço. Eu tinha me matriculado em cerâmica na primavera
porque tinha que preencher a exigência de ter aulas de artes no currículo, e
estava desesperado para ficar longe da banda, que praticava fazendo muito
barulho no andar de baixo sob a liderança da enlouquecida magricela e
empolgada ao extremo, Srta. Spider. Savannah estava sentada ao meu lado.
Eu era o único homem da turma, e como era homem, não tinha ideia do que
deveria fazer.

— Hoje se trata de experimentação. Vocês não serão avaliados por isso.
Sintam a argila. Libertem a mente. E ignorem a música que vem de baixo. —
A Sra. Abernathy fez uma careta enquanto a banda assassinava algo que '


parecia com "Dixie". — Busquem bem fundo. Sintam o caminho até a alma.

Liguei o torno de oleiro e olhei para a argila enquanto ela começou a
girar na minha frente. Suspirei. Isso era quase tão ruim quanto a banda,
então, quando a sala foi ficando em silêncio e o barulho dos tornos de oleiro
se sobrepôs à falação das fileiras de trás, a música do andar de baixo mudou.
Ouvi um violino, ou talvez um daqueles violinos maiores, acho que se chama
viola. Um som bonito e triste ao mesmo tempo, e era desconcertante. Havia
mais talento na voz crua da música do que a Srta, Spider jamais vera o prazer
de conduzir. Olhei à minha volta; ninguém parecia perceber a música. O som
rastejava sob a minha pele. Reconheci a melodia, e em poucos segundos
minha mente conseguiu identificar a letra, tão claramente como se estivesse
ouvindo meu iPod. Mas dessa vez, a letra tinha mudado.



Dezesseis luas, dezesseis anos

Som de trovão nos seus ouvidos

Dezesseis milhas antes que ela se aproxime

Dezesseis procura o que dezesseis teme...



Enquanto eu olhava para a argila que girava na minha frente, a massa
virou uma mancha. Quanto mais eu me concentrava, mais a sala se dissolvia
ao meu redor, até que a argila pareceu estar girando a sala de aula, a mesa e
minha cadeira junto. Como se tudo estivesse ligado nesse redemoinho de
movimento constante, ligado ao ritmo da melodia da sala de música. A sala
estava desaparecendo à minha volta. Lentamente, estiquei a mão e passei a
ponta de um dedo pela argila.

Depois um brilho, e a sala que girava se dissolveu em outra imagem...

Eu estava caindo.

Nós estávamos caindo.

Eu estava de volta ao sonho. Vi a mão dela. Vi minha mão agarrar a
dela, meus dedos afundando em sua pele, no pulso, em uma tentativa
desesperada de segurá-la. Mas ela estava escorregando; eu podia sentir, os
dedos passando para minha mão.

— Não solte!

Eu queria ajudá-la, queria segurar. Mais do que jamais quis alguma
coisa. E então ela escorregou pelos meus dedos...




— Ethan, o que está fazendo? — A Sra. Abernathy parecia preocupada.

Abri meus olhos e tentei me concentrar, me trazer de volta. Eu vinha
tendo os sonhos desde que minha mãe morreu, mas essa era a primeira vez
que eu tinha um durante o dia. Olhei para minha mão cinza e enlameada,
coberta de argila seca. A argila no torno de oleiro trazia a marca perfeita de
uma mão, como se eu tivesse acabado de achatar seja o que for que eu
estivesse fazendo. Olhei mais de perto, A mão não era minha, era pequena
demais. Era de uma garota.

Era dela.

Olhei embaixo das minhas unhas, onde dava para ver a argila que eu
tinha raspado do pulso dela.

— Ethan, você podia ao menos tentar fazer alguma coisa.

A Sra. Abernathy colocou a mão sobre meu ombro e dei um pulo. Do
lado de fora da janela da sala de aula, ouvi o roncar de trovões.

— Mas, Sra. Abernathy, acho que a alma de Ethan está se comunicando
com ele. — Savannah riu, se inclinando para dar uma boa olhada. — Acho
que ela está dizendo pra você fazer as unhas, Ethan.

As garotas ao meu redor começaram a rir. Esmaguei a marca da mão
ora o punho, transformando-a num monte de nada cinza. Fiquei de pé e
limpei as mãos no jeans quando o sinal tocou. Peguei minha mochila e saí
rápido da saia, escorregando nos meus tênis de cano alto molhados quando
virei no corredor e quase tropeçando nos cadarços desamarrados ao correr
elos dois lances de escada que me separavam da sala de música. Eu tinha que
saber se tinha imaginado.

Empurrei a porta dupla da sala de música com as duas mãos. O palco
tava vazio. A turma passava por mim. Eu estava indo na direção errada,
caminhando contra a corrente enquanto todo mundo tentava sair. Respirei
do, mas sabia que cheiro iria sentir antes mesmo que o sentisse.

Limão e alecrim.

No canto do palco, a Srta. Spider estava recolhendo as partituras
espalhadas sobre as cadeiras dobráveis que ela usava para a lamentável
orquestra da Jackson. Eu a chamei.

— Com licença, professora. Quem estava tocando aquela... aquela
música?


Ela sorriu para mim.

— Tivemos uma maravilhosa aquisição para nossa seção de cordas. Uma
viola. Ela acabou de se mudar para a cidade...

Não. Não podia ser. Não ela.

Me virei e corri antes que ela pudesse dizer o nome.







Quando o sinal do oitavo tempo tocou, Link estava esperando por mim em
frente ao vestiário. Ele passou a mão pelo cabelo espetado e esticou a
camiseta desbotada do Black Sabbath.

— Link. Preciso da sua chave, cara.

— E o treino?

— Não posso ir. Tem uma coisa que preciso fazer.

— Cara, do que você está falando?

— Só preciso da sua chave.

Eu tinha que sair dali. Estava tendo sonhos, ouvindo música, e agora
apagando no meio da aula, se é que pode se chamar assim. Eu não sabia o
que estava acontecendo comigo, mas sabia que era ruim.

Se minha mãe ainda estivesse viva, eu provavelmente teria contado tudo
para ela. Ela era assim, eu podia contar qualquer coisa. Mas ela se foi, e meu
pai estava enfiado no escritório o tempo todo, e Amma jogaria sal no meu
quarto inteiro durante um mês se eu contasse para ela.

Eu estava sozinho.

Link me entregou a chave.

— O treinador vai te matar.

— Eu sei.

— E Amma vai descobrir.

— Eu sei.

— E ela vai chutar sua bunda daqui até County Line. — A mão dele
vacilou quando eu peguei a chave. — Não seja burro.

Me virei e corri. Tarde demais.










p 11 de setembro p

d



Colisão













Q



uando cheguei ao carro, eu estava encharcado. Os sinais de tempestade
manifestaram-se ao longo de toda a semana. Havia um alerta sobre o
tempo em todas as estações de rádio que eu conseguia pegar, o que não
era muito, considerando que o Lata-Velha só pegava três estações, todas AM.
^s nuvens estavam totalmente pretas, e como estávamos na temporada de
rações, isso não era algo a ser visto com descaso. Mas não importava. Eu
precisava espairecer minha cabeça e entender o que estava acontecendo,
mesmo sem ter ideia de onde eu estava indo.

Tive que ligar os faróis até para sair do estacionamento. Não dava para
ver mais do que um metro a frente. Não era um dia bom para se dirigir. Um
relâmpago cruzou o céu escuro à minha frente. Contei, como Amma ia me
ensinado há anos: um, dois, três. O trovão soou, o que significava que a
tempestade não estava longe. Cinco quilômetros, de acordo com os cálculos
de Amma.

Parei no sinal em frente à Jackson, um dos apenas três da cidade. Eu não
lha ideia do que fazer. A chuva despencou sobre o Lata-Velha. A rádio foi
reduzida à estática, mas ouvi uma coisa. Aumentei o volume e a música
inundou o carro pelos alto-falantes vagabundos.

Dezesseis Luas.

A música que tinha desaparecido da minha lista do iPod. A música que
mais ninguém parecia ouvir. A música que Lena Duchannes tinha tocado na
viola. A música que estava me enlouquecendo.

A luz ficou verde e o Lata-Velha seguiu em frente. Eu estava a caminho,
e não tinha a menor ideia de onde estava indo.


Um relâmpago partiu o céu. Contei: um, dois. A tempestade estava se
aproximando. Liguei os limpadores de para-brisa. Não fez a menor diferença.
Eu não conseguia ver nem até a metade do quarteirão. Um relâmpago
piscou. Contei: um. O trovão rugiu sobre o teto do Lata-Velha e a chuva
ficou horizontal. O para-brisa chacoalhou como se pudesse ceder a qualquer
momento, o que, considerando a condição do carro, poderia ter acontecido.

Eu não estava caçando a tempestade. A tempestade estava me caçando, e
tinha me encontrado. Eu mal conseguia manter as rodas na pista
escorregadia, e o Lata-Velha começou a sambar, deslizando erraticamente de
um lado a outro das duas pistas da autoestrada 9.

Eu não conseguia ver nada. Pisei no freio, girando na escuridão. Os
faróis piscaram por apenas um segundo, e um par de enormes olhos verdes
olharam para mim do meio da rua. A princípio pensei que fosse um cervo,
mas estava enganado.

Tinha alguém na rua!

Segurei o volante com as duas mãos com toda a força que consegui. Meu
corpo bateu contra a lateral do carro.

A mão dela estava esticada. Fechei meus olhos para o impacto, que
nunca aconteceu.

O Lata-Velha parou de repente, não mais do que a um metro de
distância. Os faróis formavam um círculo pálido de luz na chuva, refletindo
uma daquelas capas de chuva baratas de plástico que se pode comprar por
três dólares numa farmácia. Era uma garota. Ela puxou o capuz da cabeça
lentamente, deixando a chuva cair no rosto. Olhos verdes, cabelos pretos.

Lena Duchannes.

Eu não conseguia respirar. Sabia que ela tinha olhos verdes; eu os tinha
visto antes. Mas hoje eles pareciam diferentes, diferentes de quaisquer olhos
que eu já tinha visto. Estavam enormes e com um tom verde nada natural,
um verde brilhante, como o relâmpago da tempestade. De pé na chuva
daquele jeito, ela quase não parecia humana. Saí cambaleando do Lata-
Velha para a chuva, deixando o motor ligado porta aberta. Nenhum de nós
disse uma palavra, parados no meio da autoestrada 9 no tipo de temporal que
só víamos quando tinha um furacão ou uma tempestade vinda do nordeste.
Adrenalina pulsava nas minhas s e meus músculos estavam tensos, como se
meu corpo ainda esperasse batida.


O cabelo de Lena sacudia com vento à sua volta, pingando da chuva.
Dei passo em direção a ela e de repente percebi. Limão molhado. Alecrim
molhado. Imediatamente o sonho começou a voltar, como ondas estourando
na minha cabeça. Só que dessa vez, quando ela escorregava pelos meus os, eu
pude ver seu rosto.

Olhos verdes e cabelo preto. Lembrei. Era ela. Ela estava bem na minha
7 frente.

Eu tinha que ter certeza. Peguei o pulso dela. Lá estavam: os pequenos
arranhões em formato de meia-lua, bem onde meus dedos seguraram seu
pulso no sonho. Quando toquei nela, uma onda de eletricidade percorreu seu
corpo. Um relâmpago atingiu uma árvore a menos de três metros de onde
estávamos, partindo o tronco quase no meio. Ele começou a soltar fumaça.

— Você é maluco? Ou só é péssimo motorista? — Ela se afastou de mim,
olhos verdes faiscando. De raiva? De alguma coisa.

— É você.

— O que estava tentando fazer, me matar?

— Você é real. — As palavras saíam de um jeito estranho da minha
boca, como se ela estivesse cheia de algodão.

— Quase um cadáver real. Graças a você.

— Não sou maluco. Achei que era, mas não sou. É você. Você está bem
na minha frente.

— Não por muito tempo.

Ela deu as costas para mim e começou a subir a rua. Isso não estava
acontecendo do jeito que eu tinha imaginado. Corri para alcançá-la.

— Foi você que apareceu do nada e correu pro meio da rua.

Ela balançou o braço de forma dramática como se estivesse afastando
mais do que apenas uma ideia. Pela primeira vez, vi o longo carro preto nas
sombras. O rabecão, de capô levantado.

— Oi? Eu estava procurando alguém para me ajudar, gênio. O carro do
meu tio morreu. Você podia ter passado direto. Não precisava tentar me
atropelar.

— Foi você nos sonhos. E a música. Aquela música estranha no meu
iPod.

Ela se virou.

— Que sonhos? Que música? Você está bêbado ou isso é algum tipo de


piada?

— Sei que é você. Você tem as marcas no pulso.

Ela virou a mão e olhou para baixo, confusa.

— Estas? Tenho um cachorro. Pare com isso.

Mas eu sabia que não estava errado. Eu conseguia ver o rosto do meu
sonho claramente agora. Seria possível que ela não soubesse?

Ela puxou o capuz e começou a longa caminhada até Ravenwood na
tempestade. Eu a alcancei.

— Vou te dar uma dica. Da próxima vez, não deixe o carro no meio da
rua durante uma tempestade. Ligue para a emergência.

Ela não parou de andar.

— Eu não ia ligar para a polícia. Nem devia estar dirigindo. Só tenho
habilitação provisória. E, de qualquer maneira, meu celular morreu.

Ela obviamente não era daqui. O único jeito de ser parada pela polícia
nessa cidade era se estivesse dirigindo na contramão.

A tempestade estava aumentando. Eu tinha que gritar para ser ouvido
sobre o uivo da chuva.

— Deixa eu te levar pra casa. Você não devia estar andando por aqui.

— Não, obrigada. Vou esperar pelo próximo cara que quase vai me
atropelar.

— Não vai haver outro cara. Pode demorar horas até alguém chegar.

Ela recomeçou a andar.

— Não tem problema. Vou andando.

Eu não podia deixá-la vagando sozinha na chuva. Minha mãe me criou
para ser melhor que esse tipo de cara.

— Não posso deixar você ir pra casa com esse tempo. — Como se
combinado, um trovão soou sobre nossas cabeças. O capuz dela caiu. — Vou
dirigir como minha avó. Vou dirigir como sua avó.

— Você não diria isso se conhecesse minha avó. — O vento estava
aumentando. Agora ela também estava gritando.

— Vamos.

— O quê?

— Para o carro. Entre. Comigo.

Ela olhou para mim, e por um segundo eu não tive certeza se ela ia
ceder.


— Acho que é mais seguro do que ir andando. Com você na rua, pelo
menos.







O Lata-Velha estava encharcado. Link ia enlouquecer quando visse. A
tempestade tinha um som diferente de dentro do carro, ao mesmo tempo
mais alta e mais tranquila. Eu podia ouvir a chuva caindo no teto, mas o som
quase desaparecia com o som do meu coração e dos meus dentes batendo.
Mexi no câmbio do carro. Eu estava ciente demais de que Lena estava ao
meu lado, a apenas centímetros no banco do passageiro. Dei uma rápida
olhada.

Mesmo sendo irritante, ela era bonita. Seus olhos verdes eram enormes,
u não conseguia entender por que pareciam tão diferentes hoje. Ela tinha os
cílios mais longos que eu já tinha visto, e sua pele era clara, e ficava ainda
mais clara pelo contraste com o volumoso cabelo preto. Ela tinha um
pequeno sinal marrom de nascença na face bem abaixo do olho esquerdo —
o formato lembrava uma lua crescente. Ela não se parecia com ninguém da
Jackson. Ela não se parecia com ninguém que eu já tivesse visto. Ela tirou a
capa de chuva pela cabeça. A camiseta preta e o jeans estavam grudados
como se ela tivesse caído numa piscina. O colete pingava sem arar no assento
de couro sintético.

— Você está me enc-carando.

Olhei para o outro lado, pela janela, para qualquer lugar menos para ela.

— Você devia tirar isso. Só vai fazer você sentir mais frio.

Pude vê-la lutando com os delicados botões prateados do colete, incapaz
de controlar o tremor das mãos. Estiquei a mão e ela ficou paralisada. Como
se eu ousasse tocá-la novamente.

— Vou aumentar o aquecimento.

Ela voltou aos botões.

— Ob-brigada.

Eu podia ver as mãos dela — tinham mais tinta, agora manchada por
causa da chuva. Só consegui decifrar alguns números. Talvez um ou sete,
cinco, dois. 152. O que era aquilo?

Dei uma olhada no banco traseiro em busca do cobertor do exército que


Link normalmente deixava lá. Em vez disso, havia um saco de dormir velho,
provavelmente da última vez que Link brigou com os pais e teve que dormir
no carro. Tinha cheiro de fumaça velha de acampamento e mofo de porão.
Entreguei-o a ela.

— Humm. Assim é melhor.

Ela fechou os olhos. Eu podia senti-la relaxar com o calor, e relaxei só
em observá-la. O bater dos dentes dela diminuiu. Depois disso, seguimos em
silêncio. O único som era da tempestade e das rodas girando e espalhando
água pelo lago em que a rua tinha se transformado. Ela desenhou formas na
janela embaçada com o dedo. Tentei manter os olhos na estrada, tentei
lembrar o resto do sonho — algum detalhe, alguma coisa que provasse a ela
que ela era, sei lá, ela, e que eu era eu.

Mas quanto mais eu tentava, mais tudo parecia sumir, na chuva e na rua
e nos muitos hectares de campo de tabaco pelos quais passávamos, cheios de
velhos equipamentos de fazenda e celeiros que apodreciam. Chegamos aos
arredores da cidade, e eu conseguia ver a bifurcação na rua mais à frente. Se
virássemos à esquerda, em direção à minha casa, chegaríamos à rua River,
onde todas as casas restauradas anteriores à guerra acompanhavam a linha
do rio Santee. Esse era também o caminho para sair da cidade. Quando
chegamos à bifurcação, eu automaticamente virei para a esquerda, por puro
hábito. A única coisa à direita era a fazenda Ravenwood, e ninguém nunca ia
lá.

— Não, espere. Vire para a direita — ela disse.

— Ah, sim. Desculpe.

Eu senti um enjoo. Subimos o morro na direção da casa grande de
Ravenwood. Eu tinha estado tão envolvido com quem ela era que tinha
esquecido quem ela era. A garota com quem eu sonhava há meses, a garota
em quem eu não conseguia parar de pensar, era a sobrinha de Macon
Ravenwood. E eu a estava levando para casa, para a mansão mal-assombrada
— era assim que a chamávamos. Era assim que eu a tinha chamado.

Ela olhou para as próprias mãos. Eu não era o único que sabia que ela
estava morando na mansão mal-assombrada. Fiquei imaginando o que ela
lha ouvido nos corredores. Se ela sabia o que todos estavam dizendo sobre
ela. O olhar desconfortável em seu rosto dizia que sim. Não sei por que, as eu
não conseguia suportar vê-la daquele jeito. Tentei pensar em alguma coisa


para dizer para quebrar o silêncio.

— Por que veio morar com seu tio? Normalmente as pessoas querem sair
de Gatlin; ninguém se muda pra cá.

Ouvi o alívio em sua voz.

— Morei em todos os lugares. Em Nova Orleans, Savannah, Florida
Keys, Virgínia por alguns meses. Morei até em Barbados por um tempo.
Percebi que ela não respondeu à pergunta, mas não pude deixar de pensar
que eu daria tudo para morar em um desses lugares, ainda que apenas um
verão.

— Aonde os seus pais estão?

— Estão mortos. Senti meu peito apertar.

— Desculpe.

— Tudo bem. Morreram quando eu tinha 2 anos. Nem me lembro deles,
'orei com muitos dos meus parentes, a maior parte do tempo com minha avó.
a teve que viajar por alguns meses. Por isso estou morando com meu tio.

— Minha mãe morreu também. Acidente de carro. — Eu não tinha
ideia por que havia dito aquilo. Eu passava a maior parte do tempo tentando
não falar sobre o assunto.

— Lamento.

Eu não disse que estava tudo bem. Tinha a sensação de que ela era o tipo
de garota que sabia que não estava.





Paramos em frente a um portão de ferro forjado preto maltratado pelo
tempo. Na minha frente, na encosta íngreme, pouco visível devido à névoa
estavam os dilapidados restos da casa de fazenda mais antiga e mais famosa
de Gatlin, Ravenwood. Eu nunca tinha chegado tão perto antes. Desligue: o
motor. Agora a tempestade tinha diminuído para uma chuvinha suave e
constante.

— Parece que os relâmpagos pararam.

— Tenho certeza de que tem mais de onde aqueles vieram.

— Talvez. Mas não esta noite.

Ela olhou para mim, quase curiosa.

— Não. Acho que acabou por hoje.

Os olhos dela pareciam diferentes. Tinham se esvaído de volta para um


tom de verde menos intenso, e estavam de alguma forma menores — não
pequenos, mas com aparência mais normal.

Comecei a abrir minha porta para acompanhá-la até a casa.

— Não precisa. — Ela parecia envergonhada. — Meu tio é meio tímido.
— Aquele era um adjetivo um tanto suave.

Minha porta estava meio aberta. A porta dela estava meio aberta. Nós
dois estávamos ficando mais molhados, mas apenas ficamos lá sentados sem
dizer nada. Eu sabia o que queria dizer, mas também sabia que não podia
dizer. Não sabia por que estava sentado ali, encharcado, em frente a
Ravenwood. Nada fazia sentido, mas eu sabia de uma coisa. Depois que eu
dirigisse morro abaixo e voltasse para a autoestrada 9, tudo voltaria a ser
como antes. Tudo faria sentido de novo. Não faria?

Ela falou primeiro.

— Acho que devo agradecer.

— Por não atropelar você?

Ela sorriu.

— É, isso. E pela carona.

Olhei para ela sorrindo para mim, quase como se fôssemos amigos, o que
era impossível. Comecei a ficar claustrofóbico, como se tivesse que sair dali.

— Não foi nada. Quero dizer, tudo bem. Não esquenta.

Coloquei o capuz do casaco de basquete, do jeito que Emory fazia
quando uma das garotas que ele tinha dispensado tentava falar com ele no
corredor.

Ela olhou para mim balançando a cabeça e jogou o saco de dormir em
cima de mim com um pouco de força demais. O sorriso tinha sumido.

— Então tá. Te vejo por aí. — Virou de costas, passou pelo portão e cor-
pelo caminho íngreme e enlameado até a casa. Bati a porta.

O saco de dormir estava sobre o banco. Eu o peguei para jogar para trás.
Ainda tinha o cheiro de mofo e fogueira, mas agora também cheirava a limão
e alecrim. Fechei os olhos. Quando o abri de novo, ela já na metade do
caminho.

Abri minha janela.

— Ela tem um olho de vidro.

Lena olhou para mim.

— O quê?


Gritei, a chuva molhando a parte de dentro da porta do carro.

— A Sra. English. Você tem que sentar do outro lado ou ela vai fazer
você falar.

Ela sorriu enquanto a chuva caía pelo seu rosto. — Talvez eu goste de
falar. — Virou na direção de Ravenwood e subiu os degraus correndo até a
varanda.

Engatei a ré no carro e desci até a bifurcação, para que eu pudesse pegar
que costumava pegar e seguir pela rua que usei em toda minha Até hoje. Vi
uma coisa brilhando entre o assento e o encosto do banco, botão prateado.

Eu o enfiei no bolso e fiquei imaginando com o que sonharia esta noite.




















































p 12 de setembro p

d



Vidro quebrado















N



ada.

Foi um sono longo e sem sonhos, o primeiro em muito tempo.

Quando acordei, a janela estava fechada. Não havia lama na minha
cama, nenhuma música misteriosa no meu iPod. Verifiquei duas vezes. Até
meu banho só tinha cheiro de sabonete.

Fiquei deitado na cama, olhando para meu teto azul, pensando em olhos
verdes e cabelos pretos. A sobrinha do Velho Ravenwood. Lena Duchannes,
que rimava com rain.

O quão distante um cara podia ficar?







Quando Link encostou o carro, eu estava esperando na calçada. Entrei e
meus tênis afundaram no tapete molhado, o que deixava o Lata-Velha com
um cheiro ainda pior do que o habitual. Link balançou a cabeça.

— Desculpe, cara. Vou tentar secá-lo depois da escola.

— Deixa pra lá. Só me faz um favor e deixe de agir como louco, ou todos
vão falar de você em vez de falar da sobrinha do Velho Ravenwood.

Por um segundo, considerei manter segredo, mas eu tinha que contar
para alguém.

— Eu a vi.

— Quem?

— Lena Duchannes.

Ele pareceu não entender.


— A sobrinha do Velho Ravenwood.











Quando paramos no estacionamento, eu já tinha contado a Link a história
toda. Bem, talvez não toda. Mesmo os melhores amigos têm limites. E não
posso dizer que ele acreditou em tudo, mas também, quem acreditaria? Eu
ainda estava tendo dificuldade em acreditar. Só que mesmo sem saber os
detalhes, enquanto andávamos para encontrar os caras, ele sabia de uma
coisa. Era preciso controlar os danos.

— Mas não aconteceu nada. Você a levou pra casa.

— Não aconteceu nada? Você estava prestando atenção? Tenho sonhado
com ela há meses e ela acaba sendo...

Link me interrompeu.

— Vocês não ficaram nem nada. Você não entrou na mansão mal-
assombrada, certo? E você nunca viu, você sabe... ele? — Nem Link
conseguia dizer o nome dele.

Uma coisa era passar um tempo com uma garota bonita, em qualquer
situação. Outra era passar um tempo com o Velho Ravenwood. Balancei a
cabeça.

— Não, mas...

— Eu sei, eu sei. Você está confuso. Só estou dizendo, guarde segredo,
cara. Só conversamos o que foi preciso. Quero dizer, ninguém mais precisa
saber.

Eu sabia que aquilo seria difícil. Não sabia que seria impossível.









Quando abri a porta da sala de inglês, ainda estava pensando em tudo —
nela, no nada que tinha acontecido. Lena Duchannes.

Talvez fosse aquele cordão doido que ela usava com todo aquele lixo
pendurado, como se cada coisa que ela tocasse pudesse importar ou


realmente importasse para ela. Talvez fosse o tênis surrado que ela usava,
estando de jeans ou de vestido, como se ela pudesse sair correndo a qualquer
minuto. Quando eu olhava para ela, ia mais para longe de Gatlin do que
jamais tinha ido. Talvez fosse isso.

Acho que, enquanto pensava nisso, parei de andar, e acabei sentindo
alguém bater contra mim. Só que não foi um rolo compressor dessa vez,
parecia mais um tsunami. Colidimos com força. No segundo em que nos
tocamos, a luz do teto queimou e uma chuva de fagulhas caiu sobre nossa
cabeça.

Eu me abaixei. Ela não.

— Você está tentando me matar pela segunda vez em dois dias, Ethan?

A sala ficou em silêncio total.

— O quê? — Eu mal consegui pronunciar as palavras.

— Perguntei se está tentando me matar de novo.

— Eu não sabia que você estava aí.

— Foi o que você disse ontem à noite.

Ontem à noite. As palavrinhas que podiam mudar sua vida para sempre
na Jackson. Apesar de haver muitas luzes acesas, parecia que havia um
holofote sobre nós, para a plateia acompanhar. Eu pude sentir meu rosto ficar
vermelho.

— Desculpe. Quero dizer... Oi — murmurei, parecendo um idiota. Ela
parecia estar se divertindo, mas continuou andando. Colocou o livro na
mesma carteira em que sentou a semana toda, bem em frente à Sra. English.
No Lado do Olho Bom.

Eu tinha aprendido minha lição. Ninguém dizia a Lena Duchannes onde
ela podia ou não sentar. Independentemente do que se pensava dos
Ravenwood, Lena tinha essa característica a seu favor. Sentei ao seu lado,
bem no meio da Terra de Ninguém. Como tinha feito a semana toda. Só que
dessa vez ela estava falando comigo, e isso tornava tudo diferente. Não
diferente de um modo ruim, apenas apavorante.

Ela começou a sorrir, mas se controlou. Tentei pensar em alguma coisa
interessante para dizer, ou pelo menos alguma coisa que não fosse idiota. Mas
antes que eu pudesse pensar em algo, Emily sentou do meu outro lado, com
Eden Westerly de um lado e Charlotte Chase do outro. Seis fileiras mais perto
do que o habitual. Nem mesmo sentar no Lado do Olho Bom ia me ajudar


hoje.

A Sra. English olhou para nós da mesa dela, com uma expressão
desconfiada.

— Oi, Ethan. — Eden se virou para mim e sorriu, como se eu estivesse
envolvido no joguinho delas. — Como vai?

Não fiquei surpreso em ver Eden seguindo o comando de Emily. Eden
era apenas mais uma das garotas bonitas que não era bonita o bastante para
ser como Savannah. Eden era um elemento de segunda categoria, na equipe
de torcida e na vida. Não era da base, não era voadora, às vezes nem
participava dos jogos. Mas ela nunca desistia de tentar fazer alguma coisa
para mudar de categoria. O lance dela era ser diferente, com exceção, acho
eu, da parte que diz respeito a ser diferente. Ninguém era diferente na
Jackson.

— Não queríamos que você tivesse que sentar aqui sozinho. — Charlotte
riu. Se Eden era de segunda categoria, Charlotte era de terceira. Charlotte
era uma coisa que nenhuma líder de torcida com respeito próprio deveria ser:
um pouco gordinha. Ela nunca havia perdido aquela gordurinha infantil, e
apesar de estar em dieta perpétua, não conseguia perder os 5 quilos que
faltavam. Não era culpa dela; ela nunca deixava de tentar. Comia o recheio
da torta e deixava a massa. O dobro de pão e metade do molho.

— Tem como esse livro ficar ainda mais chato? — Emily nem olhou em
-minha direção. Aquilo era uma disputa de território. Ela podia ter me dado
um pé na bunda, mas certamente não queria ver a sobrinha do Velho
Ravenwood perto de mim. — Como se eu quisesse ler sobre uma cidade
cheia de gente completamente doida. Já temos muito disso aqui.

 Abby Porter, que costumava sentar no Lado do Olho Bom, sentou ao
lado de Lena e deu-lhe um fraco sorriso. Lena retribuiu o sorriso e parecia
que ia dizer algo simpático, mas Emily lançou um olhar para Abby que
deixava claro que a famosa hospitalidade sulista não se aplicava a Lena.
Desafiar Emily Asher era um ato de suicídio social. Abby puxou uma pasta do
Conselho Estudantil e afundou o nariz nela, evitando Lena. Mensagem
recebida.

Emily se virou para Lena, avaliando-a do topo do cabelo sem luzes de
Lena, passando pelo rosto pálido e seguindo até a ponta das unhas sem
esmalte rosa. Eden e Charlotte se viraram nas cadeiras para ficar de frente


para Emily, como se Lena não existisse. Era o gelo das garotas — hoje estava
fazendo 15 graus negativos.

Lena abriu o surrado caderno espiral e começou a escrever. Emily pegou
o celular e começou a digitar uma mensagem de texto. Olhei para meu
caderno, enfiando a revista em quadrinhos do Surfista Prateado entre as
páginas, algo que era bem mais difícil de fazer nas primeiras fileiras.

— Certo, senhoras e senhores, já que parece que o resto das luzes vai
permanecer aceso, vocês estão sem sorte. Espero que todos tenham lido o
livro ontem à noite. — A Sra. English escrevia freneticamente no quadro-
negro. — Vamos falar por um minuto sobre conflitos sociais num ambiente
de cidade pequena.









Alguém devia ter avisado a Sra. English. No meio da aula, já tínhamos algo
além de conflitos sociais num ambiente de cidade pequena. Emily estava
coordenando um ataque de grandes proporções.

— Quem sabe por que Atticus está disposto a defender Tom Robinson
frente à limitação de pensamento e ao racismo?

— Aposto que Lena Ravenwood sabe — disse Eden, sorrindo
inocentemente para a Sra. English. Lena olhou para as linhas do caderno e
não disse uma palavra.

— Cale a boca — sussurrei um tanto alto demais. — Você sabe que esse
não é o nome dela.

— Podia muito bem ser. Ela mora com aquela aberração — disse
Charlotte.

— Cuidado com o que diz. Ouvi dizer que eles são, tipo, um casal. —
Emily estava usando armas pesadas.

— Já chega. — A Sra. English virou o olho bom para nós e nos calamos.

Lena mudou de posição; a cadeira fez um barulho alto ao arrastar no
chão. Eu me inclinei para a frente, tentando ser uma parede entre Lena e as
seguidoras de Emily, como se pudesse fisicamente desviar os comentários
delas.

Você não pode.


O quê? Eu me sentei ereto, assustado. Olhei em volta, mas ninguém
estava falando comigo; ninguém estava falando nada. Olhei para Lena. Ela
ainda estava meio escondida atrás do caderno. Ótimo. Não era o bastante
sonhar com garotas de verdade e suas musicas imaginárias. Agora eu tinha
que ouvir vozes também.

A coisa toda em relação à Lena estava começando a me afetar. Acho que
eu me sentia responsável de certa forma. Emily e as outras talvez não a
odiassem tanto se não fosse por mim.

Odiariam.

Lá estava de novo, uma voz tão baixa que eu mal conseguia ouvir. Era
como se viesse do fundo da minha cabeça.

Eden, Charlotte e Emily continuaram atirando, e Lena nem piscava,
como se pudesse bloqueá-las enquanto estava escrevendo naquele caderno.

— Harper Lee parece estar dizendo que não se pode conhecer realmente
alguém até que se coloque no lugar dessa pessoa. O que entendem por isso?
Alguém?

Harper Lee nunca morou em Gatlin.

Olhei em volta, segurando uma gargalhada. Emily olhou para mim
como se eu fosse louco.

Lena levantou a mão.

— Acho que significa que temos que dar uma chance às pessoas, antes de
pular automaticamente para o ódio. Não acha, Emily? — Ela olhou para
Emily e sorriu.

— Você é bizarra — sussurrou Emily baixinho.

Você nem faz ideia.

Olhei mais diretamente para Lena. Ela tinha deixado o caderno de lado;
agora estava escrevendo na mão com caneta preta. Eu nem precisaria ver ara
saber o que era. Outro número. 151. Tentei imaginar o que significava e por
que ela não podia escrever no caderno. Enfiei a cara de volta no Surfista
Prateado.

— Vamos falar sobre Boo Radley. O que os faria acreditar que ele está
deixando presentes para as crianças Finch?

— Ele é como o Velho Ravenwood. Provavelmente está querendo atrair
as crianças até a casa deles para depois matá-las — sussurrou Emily alto o
bastante para Lena ouvir, mas baixo o bastante para que a Sra. English não


ouvisse. — Então ele coloca os corpos no rabecão e os leva para o meio do da
para enterrá-los.

Cale a boca.

Ouvi a voz na minha cabeça de novo, e ouvi mais uma coisa. Um som
estalo. Baixinho.

— E ele tem um nome estranho, Boo Radley. Do que se trata?

— Você está certa, é aquele nome bíblico assustador que ninguém mais
usa.

Fiquei tenso. Sabia que estavam falando do Velho Ravenwood, mas
também estavam falando de Lena.

— Emily, por que você não dá um tempo? — devolvi.

Ela apertou os olhos.

— Ele é esquisito. Todos eles são e todo mundo sabe.

Mandei calar a boca.

O som de estalo estava ficando mais alto e começou a parecer mais com
algo se partindo. Olhei em volta. O que era aquele barulho? E o mais
estranho era que ninguém parecia tê-lo ouvido, assim como a voz.

Lena estava olhando diretamente para a frente, mas dava para notar a
tensão no seu maxilar; ela estava concentrada de uma forma nada natural em
um ponto bem na frente da sala, como se não conseguisse ver nada além
daquele ponto. A sala parecia estar ficando menor.

Ouvi a cadeira de Lena arrastar no chão de novo. Ela saiu da cadeira e
foi em direção à estante sob a janela, na lateral da sala. Provavelmente
fingindo apontar o lápis para conseguir escapar do inescapável; juiz e júri da
Jackson. O apontador começou a fazer barulho.

— Melchizedek, é isso.

Pare.

Eu ainda ouvia o apontador.

— Minha avó diz que é um nome maligno.

Pare pare pare.

— Combina bem com ele.

CHEGA!

Agora a voz estava tão alta que cobri os ouvidos. O apontador parou.
Vidro saiu voando pelo ar quando a janela se estilhaçou sem mais nem menos
— a janela bem na direção da nossa fileira na sala, bem onde Lena estava


apontando o lápis. Bem do lado de Charlotte, Eden, Emily e eu. Elas
gritaram e levantaram das cadeiras. Foi aí que entendi o que tinha sido
aquele estalo. Pressão. Pequenas rachaduras no vidro, se espalhando como
dedos, até que a janela se estilhaçou para dentro como se tivesse sido puxada
por um fio.

Foi um caos. As garotas gritavam. Todos na sala ficaram de pé. Até eu
pulei.

— Não entrem em pânico. Estão todos bem? — perguntou a Sra.
English, tentando recuperar o controle.

Me virei em direção ao apontador. Queria ter certeza de que Lena estava
bem. Ela não estava. Estava ao lado da janela quebrada, cercada de vidro,
aparentando estar em pânico. Seu rosto estava mais pálido do que o habitual
os olhos maiores e mais verdes. Como na noite anterior, na chuva. Mas
também pareciam diferentes. Pareciam assustados. Lena não parecia mais
corajosa.

Ela esticou as mãos. Uma estava cortada e sangrava. Gotas vermelhas no
chão de linóleo.

Eu não pretendia...

Ela havia estilhaçado o vidro? Ou o vidro tinha estilhaçado e a cortado?

— Lena...

Ela saiu correndo da sala antes que eu pudesse perguntar se estava tudo
bem.

— Você viu aquilo? Ela quebrou a janela! Jogou alguma coisa nela
quando andou até lá!

— Ela deu um soco no vidro. Vi com meus próprios olhos! Então como é
que ela não está toda sangrando?

— Você é o que, da perícia policial? Ela tentou nos matar.

— Vou ligar pro meu pai agora. Ela é louca, que nem o tio dela! Parecia
um bando de gatos de rua furiosos, gritando uns com os outros. Sra. English
tentou restaurar a ordem, mas isso era querer o impossível.

— Todos se acalmem. Não há motivo para pânico. Acidentes
acontecem. Provavelmente não foi nada além de uma janela velha e vento.

Mas ninguém acreditou que a explicação podia ser uma janela velha e o
vento. Acreditavam mais na sobrinha de um velho e uma tempestade com
relâmpagos. A tempestade de olhos verdes que tinha acabado de se mudar


para cidade. O furacão Lena.

Uma coisa era certa: o tempo tinha mudado mesmo. Gatlin nunca tinha
visto uma tempestade assim.

E ela provavelmente nem sabia que estava chovendo.


































































p 12 de setembro p

d



Greenbrier

















N



ão.

Eu conseguia ouvir a voz dela na minha cabeça. Pelo menos eu
achava que conseguia.

Não vale a pena, Ethan.

Valia.

Foi quando empurrei minha cadeira e corri pelo corredor atrás dela. Eu
sabia o que tinha feito. Tinha escolhido um lado. Estava em outro tipo de
encrenca agora, mas não me importava.

Não era só Lena. Ela não era a primeira. Eu tinha passado minha vida
inteira os vendo fazer aquilo. Fizeram com Allison Birch quando seu eczema
ficou tão ruim que ninguém sentava perto dela no almoço, e com o pobre
Scooter Richman porque ele era o pior trombonista da história da Orquestra
Sinfônica Jackson.

Apesar de eu nunca ter pegado uma caneta e escrito PERDEDOR em
um armário, eu tinha ficado de lado assistindo, muitas vezes. Sempre tinha
me incomodado. Mas nunca o bastante para sair da sala.

Mas alguém tinha que fazer alguma coisa. Uma escola inteira não podia
derrubar uma pessoa assim. Uma cidade inteira não podia derrubar uma
família. Só que, na verdade podiam, porque sempre tinham feito isso. Talvez
fosse por isso que Macon Ravenwood não saía de casa desde antes de eu
nascer.

Eu sabia o que estava fazendo.


Não sabe. Acha que sabe, mas não sabe.

Ela estava na minha cabeça de novo, como se sempre tivesse estado.

Eu sabia o que encararia no dia seguinte, mas nada daquilo importava.
Só queria encontrá-la. E não saberia dizer naquele momento se era por ela ou
por mim. Independentemente disso, eu não tinha escolha.

Parei no laboratório de Biologia, sem fôlego. Link apenas olhou para
mim e jogou a chave, sacudindo a cabeça sem nem perguntar. Peguei a chave
e corri. Tinha certeza que sabia onde encontrá-la. Se eu estivesse certo, ela
teria ido para onde qualquer um iria. Para onde eu teria ido.

Ela tinha ido para casa. Mesmo se a casa fosse Ravenwood, e ela tivesse
ido para o lar de Boo Radley de Gatlin.









A propriedade parecia gigante na minha frente. Ela se erguia no morro como
um desafio. Não estou dizendo que estava com medo, porque essa não é bem
a palavra certa. Fiquei com medo quando a polícia foi à nossa porta na noite
em que minha mãe morreu. Fiquei com medo quando meu ai desapareceu
no escritório e me dei conta de que ele jamais sairia de novo. Fiquei com
medo quando eu era criança e Amma escurecia, quando me dei conta de que
as bonequinhas que ela fazia não eram brinquedos. Eu não estava com medo
de Ravenwood, ainda que ela fosse tão horripilante quanto aparentava. O
inexplicável era algo certo no sul; toda cidade tem uma casa mal-assombrada,
e se você perguntasse à maior parte das pessoas, elo menos um terço delas
juraria já ter visto um fantasma ou dois ao longo vida. Além disso, eu morava
com Amma, cujas crenças incluíam pintar janelas de azul-pálido para manter
os espíritos afastados, e cujos amuletos eram feitos de algibeiras de pelo de
cavalo e terra. Eu estava acostumado com coisas estranhas. Mas o Velho
Ravenwood, isso era outra coisa.

Andei até o portão e coloquei a mão com hesitação no ferro deformado.
O portão abriu com um rangido. E depois, nada aconteceu. Nenhum
relâmpago, nenhuma combustão, nenhuma tempestade. Não sei o que eu
esperava, mas se tinha aprendido alguma coisa sobre Lena até aquele
momento, era para esperar o inesperado e prosseguir com cautela.


Se alguém tivesse me dito um mês antes que eu passaria a pé por aquele
portão, subiria o morro e entraria no território de Ravenwood, eu teria dito
que essa pessoa estava maluca. Em uma cidade como Gatlin, em que
sabemos tudo que vai acontecer, eu não teria previsto isso, Da última vez, eu
só tinha chegado até o portão. Quanto mais perto eu chegava, mais fácil era
ver que tudo estava caindo aos pedaços. A casa grande de Ravenwood
parecia o estereótipo de fazenda sulista que as pessoas no norte esperariam
ver depois de tantos anos assistindo a E o Vento Levou...

Ravenwood ainda era impressionante, pelo menos em tamanho. Era
flanqueada por pequenas palmeiras e ciprestes, e parecia ter sido o tipo de
lugar onde as pessoas sentavam na varanda, bebendo coquetel de hortelã e
jogando cartas o dia todo, se não estivesse desmoronando. Se não fosse
Ravenwood.

A casa era no estilo neoclássico grego, o que era incomum em Gatlin.
Nossa cidade estava cheia de fazendas do estilo arquitetônico chamado
Federal, o que fazia com que Ravenwood se destacasse ainda mais como algo
que não pertencia ao ambiente. Enormes colunas dóricas brancas com a tinta
descascando por anos de descuido apoiavam um telhado que caía muito
inclinado para um lado, dando a impressão de que a casa estava tombando
para o lado como uma velha com artrite. A varanda coberta estava se
despedaçando e se soltando da casa, ameaçando desabar se alguém ousasse
colocar ao menos um pé nela. Uma hera densa crescia com tanto vigor nas
paredes externas que em alguns pontos era impossível ver a janela que havia
embaixo. Como se o chão tivesse engolido a casa, tentando levá-la de volta
para a terra onde ela havia sido construída.

Havia um lintel sobreposto, que é aquela parte da viga que fica sobre a
porta em algumas casas muito velhas. Eu podia ver algum tipo de entalhe ali.
Símbolos. Pareciam círculos e luas crescentes, talvez as fases da lua. Dei um
passo hesitante para subir na escada que rangia para poder olhar mais de
perto. Eu sabia um pouco sobre lintéis. Minha mãe era historiadora da
Guerra Civil, e ela os mostrava para mim em nossas incontáveis
peregrinações para cada local histórico que ficasse a um dia de carro de
Gatlin. Ela dizia que eles eram bem comuns em casas antigas e castelos em
lugares como a Inglaterra e a Escócia. E era de lá que algumas das pessoas
daqui tinham vindo, bem antes de serem daqui.


Eu nunca tinha visto um com símbolos entalhados, só com palavras.
Esses pareciam mais hieróglifos, circundando o que parecia ser uma única
palavra em uma língua que não reconheci. Provavelmente tivera algum
significado para as gerações de Ravenwood que moraram ali antes do lugar
estar aos pedaços.

Respirei fundo e subi o resto dos degraus da varanda, dois de cada vez.
Achei que diminuiria minhas chances de cair neles em cinquenta por cento se
eu só pisasse na metade deles. Estiquei o braço em direção à alça de latão
pendurada na boca de um leão que servia para bater na porta e bati. Bati de
novo, e de novo. Ela não estava em casa. Eu tinha me enganado, afinal. Mas
então ouvi a melodia familiar. Dezesseis Luas. Ela estava aqui, em algum
lugar.

Forcei o ferro calcificado da maçaneta. Ele gemeu, e eu ouvi o ferrolho
respondendo do outro lado da porta. Me preparei para ver Macon
Ravenwood, que ninguém na cidade tinha visto, pelo menos não durante o
tempo em que eu estava vivo. Mas a porta não abriu.

Olhei para o lintel, e alguma coisa me disse para tentar. Quero dizer, o
que podia acontecer de pior? A porta não abrir? Instintivamente, estiquei a
mão e toquei o entalhe central sobre a minha cabeça. A lua
crescente.Quando a apertei, pude sentir a madeira cedendo sob meu dedo.
Era algum tipo de gatilho.

A porta abriu sem barulho algum. Passei pela soleira. Não havia como
voltar atrás agora.









A luz entrava pelas janelas, o que parecia impossível considerando que as
janelas do lado de fora estavam completamente cobertas de vegetação e
escombros. Ainda assim, o interior era claro, iluminado e tudo era novo. Não
havia mobília de períodos antigos nem pinturas a óleo dos Ravenwood que
viveram antes do Velho Ravenwood, nenhuma herança do período antes da
guerra. O lugar parecia mais uma página de um catálogo de mobília. Havia
sofás com estofados fofos e cadeiras e mesas de tampo de vidro cobertas de
livros de mesinha de centro. Era tudo tão chique, tão novo. Eu quase espe-


rava ver o caminhão de entregas ainda estacionado do lado de fora.

— Lena?

A escada em espiral parecia pertencer a um loft; parecia continuar em
círculos para cima, bem acima do chão do segundo andar. Eu não conseguia
ver o topo,

— Sr. Ravenwood? — Ouvi minha própria voz ecoando no teto alto.
Não havia ninguém lá. Pelo menos, ninguém interessado em falar comigo.
Ouvi um barulho atrás de mim e dei um salto, tropeçando e quase caindo em
um tipo de cadeira de camurça.

Era um cachorro negro lustroso, ou talvez um lobo. Algum tipo de
animal doméstico assustador, porque ele usava uma coleira pesada de couro
com uma lua prateada pendurada que balançava quando se movia. Ele
olhava para mim como se estivesse planejando o próximo passo. Havia algo
de estranho em seus olhos. Eram redondos demais, quase pareciam humanos.

O cachorro-lobo rosnou para mim e mostrou os dentes. O rosnado se
tornou alto e agudo, como um grito. Fiz o que qualquer um faria.

Corri.









Desci a escada aos tropeços antes mesmo que meus olhos tivessem se ajustado
à luz. Continuei correndo pelo caminho de cascalho, para longe de
Ravenwood, para longe do animal assustador, dos estranhos símbolos e da
porta esquisita até voltar à luz turva da tarde real. O caminho continuava em
curvas por campos malcuidados e alamedas de árvores sem poda, crescendo
selvagens e cheias de arbustos em volta. Não me importava onde o caminho
ia dar, desde que fosse longe dali.

Parei e me curvei, as mãos nos joelhos, meu peito explodindo. Minhas
pernas pareciam de borracha. Quando olhei para a frente, vi um muro de
pedra despedaçado. Eu mal conseguia ver o topo das árvores depois do muro.

Senti um cheiro familiar. Limoeiros. Ela estava aqui.

Falei para você não vir.

Eu sei.

Estávamos tendo uma conversa, só que não estávamos, Mas assim como


na aula, eu conseguia ouvi-la na minha cabeça, como se ela estivesse parada
ao meu lado sussurrando em meu ouvido.

Senti que estava indo em direção a ela. Havia um jardim murado, talvez
até mesmo um jardim secreto, como algo de um livro que minha mãe teria
lido quando crescia em Savannah. Esse lugar devia ser muito antigo. O muro
de pedra estava gasto em alguns lugares e completamente quebrado em
outros. Quando forcei pela cortina de vinhas que escondia a entrada em arco
de madeira velha e apodrecida, eu ouvi o som de alguém chorando ao longe.
Olhei no meio das árvores e arbustos, mas ainda não conseguia vê-la.

— Lena?

Ninguém respondeu. Minha voz soava estranha, como se não fosse
minha, ecoando nos muros de pedra que cercavam o pequeno bosque.
Segurei no arbusto mais próximo de mim e arranquei um galho. Alecrim, é
claro. E na árvore acima da minha cabeça, lá estava: um limão amarelo,
estranhamente perfeito e liso.

— Sou eu, Ethan.

O som abafado de choro ficar mais alto e eu soube que estava me
aproximando.

— Vá embora, já falei. — Ela parecia estar resfriada; devia estar
chorando desde que saiu da escola.

— Eu sei. Ouvi o que você disse.

Era verdade, e eu não sabia explicar. Andei com cuidado ao redor do
alecrim selvagem, tropeçando nas raízes enormes.

— É mesmo? — Ela parecia interessada, momentaneamente distraída.

— É.

Era como nos sonhos. Eu conseguia ouvir a voz dela, só que ela estava
aqui, chorando em um jardim descuidado no meio do nada em vez de
escorregando dos meus braços.

Afastei um emaranhado grande de galhos. Lá estava ela, encolhida sobre
grama alta, olhando para o céu azul. Ela tinha um braço jogado sobre a
cabeça e a outra mão segurava a grama, como se achasse que levantaria voo
se soltasse. O vestido cinza estava amontoado ao seu redor. O rosto
visivelmente coberto de lágrimas.

— Então por que você não foi?

— Pra onde?


— Embora.

— Queria ter certeza de que você estava bem.

Sentei ao lado dela. O chão era surpreendentemente duro. Passei a mãe
embaixo de mim e descobri que estava sentado em um pedaço liso de pedra
achatada, escondido sob a cobertura de terra.

Assim que me deitei, ela sentou. Eu sentei, ela deitou de novo. Estranha
Assim era tudo o que eu fazia quando dizia respeito a ela.

Agora estávamos os dois deitados, olhando para o céu azul. Estava
ficando cinzento, da cor de Gatlin durante a temporada de furacões.

— Todos me Odeiam.

— Nem todos. Eu não. Nem Link, meu melhor amigo.

Silêncio.

— Você nem me conhece. Deixa o tempo passar; você provavelmente vai
me odiar também. .

— Quase atropelei você, lembra? Tenho que ser legal com você pra que
não mande me prender.

Era uma piada idiota. Mas lá estava, o menor sorriso que já vira em
minha vida.

— Está bem no topo da minha lista. Vou denunciar você pro cara gordo
que fica o dia todo na frente do supermercado.

Ela olhou de volta para o céu. Eu a observei.

— Dê uma chance a eles. Não são más pessoas, não completamente
Quero dizer, são sim, nesse momento. Estão apenas com inveja. Você sabe
disso, não sabe?

— Ah, claro.

— Estão. — Olhei para ela pela grama alta. — Eu estou.

Ela sacudiu a cabeça.

— Então você é maluco. Não há nada para ter inveja, a não ser que você
goste muito de almoçar sozinho.

— Você morou em um monte de lugares.

O olhar dela era vazio.

— E daí? Você provavelmente está na mesma escola e mora na mesma
casa a vida toda.

— Isso mesmo, e esse é o problema.

— Acredite em mim, isso não é problema. Entendo de problemas.


— Você viajou por vários lugares, viu coisas. Eu daria tudo para fazer
isso.

— É, sempre sozinha. Você tem um melhor amigo. Eu tenho um
cachorro.

— Mas você não tem medo de ninguém. Age como quer e diz o que
quer. Todo mundo aqui tem medo de ser eles mesmos.

Lena mexeu no esmalte preto do dedo indicador.

— Às vezes gostaria de poder agir como todo mundo, mas não posso
mudar quem eu sou. Já tentei. Mas nunca uso as roupas certas nem digo as
coisas certas, e alguma coisa sempre dá errado. Só queria ser eu mesma e
ainda assim ter amigos que reparam quando vou à escola ou não.

— Acredite em mim, reparam. Hoje, pelo menos, repararam. — Ela
quase riu. Quase. — Quero dizer, de um jeito bom. — Olhei para o outro
lado.

Eu reparo.

Em quê?

Se você vai à escola ou não.

— Então acho que você é doido. — Mas quando ela disse isso, o som
parecia de alguém que também estava rindo.

Ao olhar para ela, não parecia ter mais importância se eu tinha uma
mesa de almoço onde sentar ou não. Eu não conseguia explicar, mas ela era,
o tudo era maior do que aquilo. Eu não podia ficar de fora observando
enquanto tentavam derrubá-la. Não a ela.

— Sabe, é sempre assim. — Ela falava para o céu. Uma nuvem flutuava
no céu cinza-azulado que escurecia.

— Nublado?

— Na escola, pra mim.

Ela ergueu a mão e a sacudiu. A nuvem pareceu andar na mesma
direção de sua mão. Ela limpou os olhos com a manga da blusa.

Não é que eu me importe se gostam mesmo de mim. Só não quero que
me odeiem automaticamente. Agora a nuvem era um círculo.

— Aquelas imbecis? Em alguns meses, Emily vai ganhar um carro novo e
Savannah vai ganhar uma coroa nova; Eden vai pintar o cabelo de outra cor
e Charlotte vai, sei lá, ter um bebê, fazer uma tatuagem ou algo assim, e isso
tudo ficará no passado. — Eu estava mentindo, e ela sabia. Lena sacudiu a


mão de novo. Agora a nuvem parecia mais um círculo meio amassado, e
depois talvez uma lua.

— Sei que são imbecis. Claro que são imbecis. Com aquele cabelo louro
pintado e aquelas bolsas idiotas de metal.

— Exatamente. Elas são imbecis. Quem se importa?

— Eu me importo. Elas me incomodam. E é por isso que sou burra. Isso
me torna exponencialmente mais burra do que burra. Sou burra elevada à
potência burra.

Ela sacudiu a mão. A lua se desmanchou.

— Essa é a coisa mais burra que eu já ouvi.

Olhei para ela de canto de olho. Ela tentou não sorrir. Ficamos deitados
lá um minuto.

— Sabe o que é burrice? Tenho livros embaixo da minha cama. — Eu
apenas falei, como se fosse algo que eu dissesse o tempo todo.

— O quê?

— Romances. Tolstoi. Salinger. Vonnegut. E eu os leio. Leio porque
quero.

Ela rolou de lado, apoiando a cabeça no cotovelo.

— E? O que seus amigos atletas acham disso?

— Vamos dizer que guardo isso pra mim e continuo fazendo cestas.

— Certo. Na escola, reparei que você prefere os quadrinhos. — Ela
tentou parecer casual. — Surfista Prateado. Vi você lendo. Logo antes de
tudo acontecer.

Você reparou?

Talvez nem tenha reparado.

Eu não sabia se estávamos falando ou se eu estava imaginando a coisa
toda, só que eu não estava tão maluco. Ainda.

Ela mudou de assunto, ou mais precisamente, voltou o assunto.

— Eu também leio. Mais poesia.

Eu conseguia imaginá-la deitada na cama lendo poemas, mas tinha
dificuldade em imaginar a tal cama em Ravenwood.

— É? Já li aquele cara, Bukowski. — E era verdade, se dois poemas
contassem.

— Tenho todos os livros dele.

Eu sabia que ela não queria falar do que tinha acontecido, mas eu não


podia mais segurar. Eu tinha que saber.

— Você vai me contar?

— Contar o quê?

— O que aconteceu lá?

Houve um longo silêncio. Ela sentou e puxou a grama ao redor dela. Se
virou de barriga para baixo e olhou nos meus olhos. Estava a apenas alguns
centímetros do meu rosto. Fiquei ali deitado, paralisado, tentando me
concentrar no que ela dizia.

— Eu não sei, na verdade. Coisas assim apenas acontecem comigo às
vezes. Não consigo controlar.

— Como os sonhos. — Observei o rosto dela, procurando por ao menos
um sinal de reconhecimento.

— Como os sonhos. — Ela falou sem pensar, depois hesitou e olhou para
mim, chocada. Eu estava certo o tempo todo.

— Você se lembra dos sonhos.

Ela escondeu o rosto nas mãos. Me sentei.

— Eu sabia que era você, e você sabia que era eu. Você sabia sobre o que
eu estava falando o tempo todo. — Afastei as mãos do rosto, e a corrente
elétrica fez meu braço vibrar.

Você é a garota.

— Por que não disse alguma coisa ontem à noite?

Eu não queria que você soubesse.

Ela não olhava para mim.

— Por quê? — A palavra soou alta no silêncio do jardim. E quando ela
olhou para mim, seu rosto estava pálido e ela parecia diferente. Assustada. Os
olhos dela eram como o mar antes de uma tempestade na costa da Carolina.

— Eu não esperava que você estivesse aqui, Ethan. Pensei que eram
apenas sonhos. Eu não sabia que você era uma pessoa de verdade.

— Mas depois que soube que era eu, por que não falou alguma coisa?

— Minha vida é complicada. E eu não queria você... Não quero ninguém
envolvido nisso.

Eu não tinha ideia de sobre o quê ela estava falando/Ainda estava
tocando a mão dela; e sabia disso. Eu podia sentir a pedra dura debaixo de
nós, e me segurei na beirada dela, me apoiando. Só que minha mão se fechou
em algo pequeno e redondo, preso na beirada da pedra. Um besouro ou


talvez uma pedrinha. O objeto se soltou da pedra e se prendeu à minha mão.

Então o choque me atingiu. Senti a mão de Lena se fechar em torno da
minha.

O que está acontecendo, Ethan?

Não sei.

Tudo ao meu redor mudou, e era como se eu estivesse em outro lugar.
Eu estava no jardim, mas não no jardim. E o cheiro de limão se transformou
em cheiro de fumaça...









Era meia-noite, mas o céu estava em chamas. As labaredas tentavam alcançar
o céu, soltando rolos enormes de fumaça, engolindo tudo no caminho. Até a
lua. O chão tinha virado um pântano. Era um chão de cinza queimada que
tinha sido encharcada pelas chuvas que precederam o fogo. Se ao menos
tivesse chovido hoje... Genevieve engasgou com a fumaça que lhe queimava
tanto a garganta que dificultava a respiração. Havia lama grudada na barra
de suas saias, fazendo-a tropeçar cada vez que dava alguns passos em meio às
volumosas dobras de tecido, mas ela se forçava a continuar andando.

Era o fim do mundo. Do seu mundo.

E ela podia ouvir os gritos, misturados aos tiros e ao ininterrupto rugir do
fogo. Podia ouvir os soldados gritando ordens de assassinato.

"Queimem aquelas casas. Deixem que os Rebeldes sintam o peso da
derrota. Queimem tudo!"

E, uma a uma, os soldados da União tinham tocado fogo na casa grande
das fazendas, com os próprios lençóis e cortinas embebidos em querosene.
Uma a uma, Genevieve viu as casas dos vizinhos dela, dos amigos e
familiares, se renderem às chamas. E, na pior das circunstâncias, muitos
desses amigos e familiares se renderam também, comidos vivos pelas chamas
nas mesmas casas em que nasceram.

Era por isso que ela corria, na fumaça, em direção ao fogo, bem na boca
da fera. Tinha que chegar a Greenbrier antes dos soldados. E não tinha muito
tempo. Os soldados eram metódicos, trabalhando ao longo da Santee
queimando as casas uma a uma. Já tinham queimado Blackwell; Doves


Crossing seria a próxima, depois Greenbrier e Ravenwood. O general
Sherman e seu exército tinham começado a campanha de incêndios centenas
de quilômetros antes de chegar a Gatlin. Tinham queimado completamente
Columbia e continuaram a marchar para o leste, incendiando tudo no
caminho. Quando chegaram aos arredores de Gatlin, a bandeira da
Confederação ainda tremulava; a energia renovada de que eles precisavam.

Foi o cheiro que disse a ela que era tarde demais. Limão. O cheiro ácido
de limão misturado com cinzas. Estavam queimando os limoeiros.

A mãe de Genevieve amava limões. Então quando o pai dela visitara
uma fazenda na Geórgia quando ela era criança, tinha trazido dois limoeiros
para sua mãe. Todo mundo dizia que eles não iam crescer, que as noites frias
do inverno da Carolina do Sul os mataria. Mas a mãe de Genevieve não
prestou atenção. Ela plantou as árvores em frente ao campo de algodão e
cuidou delas sozinha. Nas noites frias de inverno, cobria as árvores com
cobertores de lã e fazia pilhas de terra nas bordas para afastar a umidade. E
as árvores cresceram. Cresceram tão bem que ao longo dos anos o pai de
Genevieve trouxe para ela 28 outras árvores. Algumas das outras damas da
cidade pediram limoeiros aos maridos, e alguns deles até conseguiram um ou
dois. Mas nenhuma delas conseguiu descobrir como manter as árvores vivas.
As árvores só pareciam florescer em Greenbrier, sob os cuidados da mãe dela.

Nada tinha conseguido matar aquelas árvores. Até hoje.









— O que acabou de acontecer?

Senti ela afastar sua mão da minha e abri meus olhos. Ela estava
tremendo. Olhei para baixo e abri minha mão para ver o objeto que eu tinha
inadvertidamente tirado de debaixo da pedra.

— Acho que teve alguma coisa a ver com isso. — Minha mão encontrara
um velho camafeu amassado, preto e oval, com o rosto de uma mulher
entalhado em marfim e madrepérola. O trabalho na face do objeto era
intrincado e cheio de detalhes. Na parte de dentro, reparei que havia um
pequeno calombo. — Olhe. Acho que ele abre.

Apertei o dispositivo e a frente do camafeu abriu, revelando uma


pequena inscrição.

— Só diz GREENBRIER. E uma data.

Ela se sentou.

— O que é Greenbrier?

— Deve ser onde estamos. Aqui não é Ravenwood. Aqui é Greenbrier. A
fazenda ao lado.

— E aquela visão, os incêndios, você viu também?

Assenti. Era quase horrível demais para falar.

— Aqui só pode ser Greenbrier, ou o que sobrou dela.

— Me deixa ver o medalhão.

Entreguei a ela com cuidado. Parecia algo que tinha sobrevivido a muita
coisa, talvez mesmo o incêndio da visão. Ela o virou nas mãos.

— 11 DE FEVEREIRO DE 1865. — Ela deixou o medalhão cair e ficou
branca.

— O que foi?

Lena olhou para a grama.

— Onze de fevereiro é meu aniversário.

— É uma coincidência. Um presente de aniversário antecipado.

— Nada na minha vida é coincidência.

Peguei o medalhão e o virei. Na parte de trás havia dois grupos de
iniciais entalhadas.

— ECW & GKD. Esse medalhão deve ter sido de um deles. — Fiz uma
pausa. — Isso é estranho. Minhas iniciais são ELW.

— Meu aniversário, suas iniciais. Você não acha que é um pouco mais do
que uma estranha coincidência?

Talvez ela estivesse certa. Ainda assim...

— Devíamos tentar de novo para que possamos descobrir, — - Eu não
conseguia parar.

— Não sei. Pode ser perigoso. Parecia mesmo que a gente estava lá.
Meus olhos ainda estão ardendo da fumaça.

Ela estava certa. Não tínhamos saído do jardim, mas parecera que
estávamos bem no meio dos incêndios. Eu podia sentir a fumaça nos meus
pulmões, mas não importava. Eu precisava saber.

Estendi o medalhão e minha mão.

— Vamos lá, você não é corajosa?


Era um desafio. Ela revirou os olhos, mas esticou a mão mesmo assim.
Seus dedos encostaram de leve nos meus, e senti o calor da mão dela se
espalhando na minha. Um arrepio elétrico. Não sei descrever de outra
maneira.

Fechei meus olhos e esperei. Nada. Abri meus olhos.

— Talvez tenhamos imaginado. Talvez esteja sem pilha. Lena olhou para
mim como se eu fosse Earl Petty na aula de Álgebra pela segunda vez.

— Talvez não dê para dizer a uma coisa como essas o que fazer ou
quando fazer. — Ela se levantou e se limpou. — Tenho que ir.

Ela fez uma pausa e olhou para baixo, para mim.

— Sabe, você não é o que eu esperava.

Ela me deu as costas e começou a andar pelo meio dos limoeiros até a
extremidade do jardim.

— Espere! — chamei, mas ela continuou andando. Tentei alcançá-la,
mas tropecei nas raízes.

Quando ela chegou ao último limoeiro, parou.

— Não.

— Não o quê? Ela não olhava para mim.

— Me deixe em paz enquanto tudo ainda está bem.

— Não entendo o que você está falando. De verdade. E estou tentando.

— Esqueça.

— Acha que é a única pessoa complicada no mundo?

— Não. Mas... é meio que minha especialidade.

Ela se virou novamente para ir. Hesitei e coloquei a mão sobre seu
ombro. Estava quente do sol que desaparecia. Eu podia sentir o osso embaixo
da roupa, e, naquele momento, ela pareceu uma coisa frágil, como nos
sonhos. E aquilo era estranho, porque quando ela estava me encarando, e. só
conseguia pensar no quanto ela parecia inquebrável. Talvez houvesse alguma
relação com aqueles olhos.

Ficamos daquele jeito um momento, até que finalmente ela cedeu e se
virou para mim. Tentei de novo.

— Olha. Tem alguma coisa acontecendo aqui. Os sonhos, a música
cheiro e agora o medalhão. É como se devêssemos ser amigos.

— Você acabou de dizer cheiro? — Ela parecia horrorizada. — Na
mesma frase que amigos?


— Tecnicamente, acho que era uma outra frase.

Ela olhou para minha mão, e eu a tirei de seu ombro. Mas eu não
conseguia deixar para lá. Olhei bem nos olhos dela, olhei mesmo, talvez pela
primeira vez. O abismo verde parecia ir a um lugar tão distante que eu jamais
conseguiria alcançar, mesmo em uma vida inteira. Imaginei o que a teoria de
Amma de que "os olhos são a janela da alma" acharia disso.

Ê tarde demais, Lena. Você já é minha amiga.

Não posso ser.

Estamos nisso juntos.

Por favor. Você tem que confiar em mim. Não estamos.

Ela quebrou a conexão dos nossos olhos e apoiou a cabeça no limoeiro.
Parecia infeliz.

— Sei que você não é como eles. Mas há coisas sobre mim que você não
pode entender. Não sei por que há essa ligação entre nós. Não sei por que
temos os mesmos sonhos; sei tanto quanto você.

— Mas eu quero saber o que está havendo...

— Faço 16 anos em cinco meses. — Ela ergueu a mão, pintada com
número, como sempre. 151. — Cento e cinquenta e um dias.

O aniversário dela. O número escrito em sua mão que mudava todo dia.
Ela estava fazendo contagem regressiva até o aniversário.

— Você não sabe o que isso quer dizer, Ethan. Não sabe de nada. Posso
nem estar aqui depois disso.

— Está aqui agora.

Ela olhou para além de mim, na direção de Ravenwood. Quando
finalmente falou, não estava olhando para mim.

— Gosta daquele poeta, Bukowski?

— Gosto — respondi, confuso.

— Nem tente.

— Não entendi.

— É o que está escrito na lápide de Bukowski.

Ela desapareceu pelo muro de pedra e se foi. Cinco meses. Eu não tinha
ideia sobre o que ela estava falando, mas reconheci o sentimento nas minhas
entranhas.

Pânico.

Quando consegui cruzar a passagem no muro, ela tinha sumido como se


jamais tivesse estado lá, deixando só uma brisa no ar de limão e alecrim. O
engraçado era que, quanto mais ela corria, mais eu ficava determinado a
segui-la.

Não tente.

Eu estava bem certo de que minha lápide teria algo diferente escrito.
































































p 12 de setembro p

d



As Irmãs















P



ara minha sorte, a mesa da cozinha ainda estava posta quando cheguei
em casa — Amma teria me matado se eu tivesse perdido o jantar. O que
eu não tinha levado em consideração era o sistema de recados que fora
ativado no momento em que saí da aula de inglês. Mais de metade da cidade
devia ter ligado para Amma até a hora que cheguei em casa.

— Ethan Wate? É você? Porque se for, você está em uma encrenca
enorme.

Ouvi um som de batida familiar. As coisas estavam piores do que eu
pensava. Me abaixei para passar na porta e entrar na cozinha. Amma estava
de pé ao lado da bancada com o avental industrial de brim, que tinha 14
bolsos para pregos e podia suportar quatro ferramentas pesadas. Estava
segurando o cutelo e na bancada havia uma pilha de cenouras, repolho e
outros legumes que eu não consegui identificar. Rolinhos primavera era a
receita que exigia a maior quantidade de legumes picados do que qualquer
outra receita na caixa azul de plástico de Amma. Se ela estava fazendo
rolinhos primavera, isso só queria dizer uma coisa, e não era que ela gostava
de comida chinesa.

Tentei dar uma explicação aceitável, mas não saiu nada.

— O treinador ligou esta tarde, depois a Sra. English, o diretor Harper, a
mãe de Link e metade das senhoras da ERA. E você sabe como odeio falar
com aquelas mulheres. São más como o diabo, cada uma delas.

Gatlin era cheia de associações para assistência às senhoras, mas o FRA
era a mãe de todas elas. Fazendo justiça ao nome, Filhas da Revolução


Americana, tinha-se que provar ser parente de um patriota de verdade da
Revolução Americana para ser candidata a pertencer ao grupo. Ser um
membro aparentemente dava o direito de dizer aos vizinhos da rua River de
que cores deviam pintar as casas e mandar, perturbar e julgar todo mundo na
cidade. A não ser que fosse Amma. Isso eu queria ver.

— Todos disseram a mesma coisa. Que você saiu correndo da escola, no
meio da aula, atrás da garota Duchannes.

Outra cenoura rolou pela tábua de cortar.

— Eu sei, Amma, mas...

O repolho foi partido ao meio.

— Então eu disse: "Não, meu menino não sairia da escola sem permissão
e não faltaria ao treino. Deve haver algum engano. Deve ser outro garoto
desrespeitando a professora e sujando o nome da família. Não pode ser o
menino que eu criei aqui nesta casa."

Cebolinhas rolaram pela bancada.

Eu tinha cometido o pior dos crimes, eu a tinha envergonhado. Pior
ainda, aos olhos da Sra. Lincoln e das mulheres do FRA, suas inimigas
juradas.

— O que tem a dizer a seu favor? O que faria você sair correndo da
escola como se seu rabo estivesse pegando fogo? E eu não quero ouvir que foi
'uma garota qualquer.

Respirei fundo. O que eu poderia dizer? Que eu vinha sonhando com
uma garota misteriosa há meses, que ela apareceu na cidade e por acaso era a
sobrinha de Macon Ravenwood? Que, além dos apavorantes sonhos com essa
garota, eu tive uma visão de uma outra mulher, que eu certamente não
conhecia, que tinha vivido durante a Guerra Civil?

É, isso me tiraria da encrenca, ao mesmo tempo em que o sol explodisse
e o sistema solar morresse.

— Não é o que você pensa. As garotas na nossa turma estavam sendo
más com Lena, provocando-a sobre o tio, dizendo que ele carrega cadáveres
no rabecão, então ela se chateou e saiu correndo da aula.

— Estou esperando pela parte que explica o que isso tem a ver com você.

— Não é você que sempre me diz para "seguir o caminho de Nosso
Senhor"? Não acha que Ele ia querer que eu ficasse ao lado de alguém que
estava sendo maltratada? — Agora eu tinha passado do limite. Dava para ver


nos olhos dela.

— Não ouse usar o nome do Senhor para justificar ter quebrado as regras
da escola, ou juro que vou lá fora, pego uma vara e faço arder a razão de
volta às suas costas. Não me importa quantos anos tenha. Ouviu?

Amma nunca tinha batido em mim com nada na minha vida, apesar de,
ter me perseguido com uma vara algumas vezes para se fazer entender. Mas
esse não era o momento de mencionar isso.

A situação estava rapidamente indo de mal a pior; eu precisava de ali ma
coisa para mudar o foco. O medalhão ainda estava queimando no me bolso
de trás. Amma amava mistérios. Ela tinha me ensinado a ler quando eu tinha
4 anos usando livros policiais e as palavras cruzadas, que eu lia por cima de
seu ombro. Eu era a única criança no jardim de infância que conseguia ler
exame no quadro porque eu conhecia a expressão do exame médico-legista.
Quanto a mistérios, o medalhão era um dos bons. Eu apenas deixaria de fora
a parte em que toquei nele e tive uma visão da Guerra Civil.

— Você está certa, Amma. Desculpe. Eu não devia ter saído da escola.
Só estava querendo ter certeza de que Lena estava bem. Uma janela quebrou
na sala de aula bem atrás dela e ela estava sangrando. Só fui até a casa dela
para ver se estava tudo bem.

— Você foi até aquela casa?

— Fui, mas ela estava do lado de fora. O tio dela é muito tímido,
aparentemente.

— Você não precisa me contar sobre Macon Ravenwood, como se
soubesse alguma coisa que eu não sei. — O Olhar. — L-E-T-Á-R-G-I-C-O.

— O quê?

— Quero dizer que você não tem uma gota de juízo, Ethan Wate.

Peguei o medalhão do meu bolso e andei até onde ela estava, parada ao
lado do fogão.

— Estávamos atrás da casa e achamos uma coisa — eu disse, abrindo
minha mão para que ela pudesse ver. — Tem uma inscrição dentro.

A expressão no rosto de Amma me deixou paralisado. Parecia que
alguma coisa tinha tirado todo seu ar.

— Amma, você está bem?

Estiquei a mão para alcançar o cotovelo dela, para apoiá-la caso fosse
desmaiar. Mas ela puxou o braço antes que eu pudesse tocá-la, como se


tivesse queimado a mão ao mexer na panela.

— Onde pegou isso? — A voz dela era um sussurro.

— Achamos na terra, em Ravenwood.

— Você não achou isso na fazenda Ravenwood.

— De que a senhora está falando? Sabe a quem pertenceu?

— Fique bem aí. Não se mexa — instruiu ela, e saiu correndo da
cozinha.

Mas eu a ignorei e a segui até seu quarto. Sempre tinha parecido mais
com uma botica do que com um quarto, com uma cama de solteiro baixa
branca enfiada embaixo de fileiras de prateleiras. Nas prateleiras havia
jornais bem arrumados (Amma nunca jogava fora uma palavra cruzada
terminada) e potes de vidro cheios do estoque dela de ingredientes para fazer
amuletos. Alguns eram os tradicionais de sempre: sal, pedras coloridas, ervas.
E havia a coleção mais incomum, como um pote de raízes e outro de ninhos
de pássaro abandonados. A prateleira do alto era de garrafas de terra. Ela
estava agindo de forma esquisita, mesmo para seus padrões. Eu estava a
apenas alguns passos atrás dela, mas ela já estava revirando as gavetas
quando cheguei.

— Amma, o que a senhora está...

— Não mandei você ficar na cozinha? Não traga essa coisa aqui! — ela
gritou quando dei um passo a frente.

— Por que está tão nervosa? — Ela enfiou algumas coisas que não pude
ver no avental e saiu correndo do quarto. Eu a alcancei na cozinha. —
Amma, qual é o problema?

— Pegue isso. — Ela me deu um lenço esfarrapado, tomando o cuidado
para não deixar a mão dela tocar na minha. — Agora enrole essa coisa aí.
Agora, nesse segundo.

Isso era mais do que escurecer. Ela estava enlouquecendo.

— Amma...

— Faça o que eu digo, Ethan. — Ela nunca me chamava pelo meu nome
sem meu sobrenome.

Depois que o medalhão estava bem enrolado no lenço, ela se acalmou
um pouco. Remexeu nos bolsos de baixo do avental e tirou uma bolsinha de
couro e um vidrinho com um pó. Eu sabia o suficiente para reconhecer os
ingredientes de um amuleto quando os via. Sua mão tremeu ligeiramente


quando colocou um pouco do pó escuro na bolsinha de couro.

— Você amarrou bem?

— Aham — falei, esperando que ela me corrigisse por responder a ela de
maneira tão informal.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Agora coloque aqui dentro. — A bolsa de couro era quente e macia
ao toque da minha mão. — Vamos.

Coloquei o medalhão ofensivo na bolsinha.

— Amarre isso ao redor — ela instruiu, entregando-me um pedaço do
que parecia uma corda comum, mas eu sabia que nada do que Amma usava
em seus amuletos era comum e nem mesmo era o que parecia. — Agora leve
de volta para onde achou e o enterre. Leve imediatamente.

— Amma, o que está acontecendo?

Ela deu alguns passos para frente e segurou meu queixo, tirando uma
mecha de cabelo de cima dos meus olhos. Pela primeira vez desde que tirei o
medalhão do bolso, ela me olhou nos olhos. Ficamos desse jeito pelo que
pareceu ser o mais longo minuto da minha vida. A expressão dela não era
comum, estava confusa.

— Você não está pronto — sussurrou ela, afastando a mão.

— Não estou pronto para o quê?

— Faça como digo. Leve essa bolsinha de volta para onde você
encontrou o objeto e a enterre. Depois volte imediatamente para casa. Não
quero que se meta mais com aquela garota, você me ouviu?

Ela tinha dito tudo que planejou dizer, talvez mais. Mas eu nunca
saberia, porque tinha uma coisa em que Amma era melhor do que ler cartas e
decifrar palavras cruzadas: guardar um segredo.









— Ethan Wate, está acordado?

Que horas eram? Nove e meia. Sábado. Eu já devia ter acordado, mas
estava exausto. Na noite anterior, passei duas horas dando voltas para que
Amma acreditasse que voltei a Greenbrier para enterrar o medalhão.


Saí da cama e cambaleei pelo quarto, tropeçando em uma caixa de
biscoitos velhos. Meu quarto sempre era uma bagunça, cheio de tanta coisa,
que meu pai disse que havia perigo de incêndio e um dia eu ia incendiar a
casa toda, apesar de ele não ir lá há muito tempo. Além do meu mapa, as
paredes e o teto eram cobertos de pôsteres de lugares que eu esperava visitar
um dia: Atenas, Barcelona, Moscou, até o Alasca. O quarto estava repleto de
pilhas de caixas de sapato, algumas com um metro, até um metro e vinte de
altura. Apesar de as pilhas parecerem aleatórias, eu sabia a localização de
cada caixa, desde a caixa branca da Adidas com minha coleção de isqueiros
da minha época piro- maníaca no oitavo ano até a verde da New Balance
com os cartuchos de bala e pedaços rasgados de bandeira que achei em Fort
Sumter com minha mãe.

E a que eu estava procurando, a caixa amarela da Nike, com o medalhão
que tinha deixado Amma transtornada. Abri a caixa e peguei a macia
bolsinha de couro. Escondê-la tinha parecido ser uma boa ideia ontem à
noite, mas coloquei-a de volta no meu bolso só por precaução.

Amma gritou do pé da escada de novo.

— Desça aqui ou vai se atrasar.

— Desço em um minuto.

Todo sábado eu passava metade do dia com as três mulheres mais velhas
de Gatlin, minhas tias-avós Mercy, Prudence e Grace. Todos na cidade as
chamavam de As Irmãs, como se fossem uma entidade única, o que de certa
forma elas eram. Cada uma tinha mais ou menos uns 100 anos, e nem
mesmo elas conseguiam lembrar quem era a mais velha. Todas tinham sido
casadas várias vezes, mas tinham vivido mais tempo que os maridos e se
mudaram para a casa da tia Grace para morarem juntas. E eram ainda mais
malucas do que velhas.

Quando eu tinha uns 12 anos, minha mãe começou a me levar lá aos
sábados para ajudar, e eu sempre vou desde então. A pior parte era que eu
tinha que levá-las à igreja no sábado. As Irmãs eram batistas sulistas e iam à
igreja aos sábados e domingos, e na maioria dos outros dias também.

Mas hoje era diferente. Saí da cama e entrei no chuveiro antes que
Amma pudesse me chamar uma terceira vez. Mal podia esperar para chegar
lá. As Irmãs sabiam sobre todo mundo que já tinha morado em Gatlin; e
deviam mesmo saber, pois elas tinham se relacionado com metade da cidade


por casamento, em um momento ou outro. Depois da visão, era óbvio que o
G em GKD significava Genevieve. Mas se havia alguém que poderia saber o
significado das outras iniciais, seriam as três mulheres mais velhas da cidade.

Quando abri a gaveta de cima da minha cômoda para pegar meias,
reparei em uma pequena boneca que parecia com um macaco de meia
segurando um pequenino saco de sal e uma pedra azul, um dos amuletos de
Amma. Ela os fazia para afastar os maus espíritos ou o azar, e até mesmo um
resfriado. Tinha posto um sobre a porta do escritório do meu pai quando ele
começou a trabalhar aos domingos em vez de ir à igreja. Embora meu pai
nunca prestasse muita atenção quando estava lá, Amma dizia que o Bom
Deus ainda nos dava crédito por comparecer. Uns dois meses depois, meu pai
comprou para ela uma bruxa cozinheira pela internet e a pendurou sobre o
fogão. Amma ficou tão zangada que serviu canjica fria e café queimado por
uma semana para ele.

Normalmente eu não dava muita bola quando achava um dos
presentinhos de Amma. Mas havia alguma coisa sobre o medalhão. Alguma
coisa que ela não queria que eu descobrisse.









Havia só uma palavra para descrever a cena quando cheguei à casa das
Irmãs. Caos. Tia Mercy abriu a porta, o cabelo ainda com rolinhos.

— Graças a Deus você chegou, Ethan. Temos uma E-mergência nas,
mãos — ela disse, pronunciando o "E" como se fosse uma palavra por si só.
Metade do tempo eu não conseguia entender o que diziam, pois os sotaques
eram muito carregados e a gramática, ruim. Mas era assim em Gatlin; dava
para saber a idade de alguém pela forma como falava.

— Senhora?

— Harlon James está ferido, e não estou convencida de que não esteja
prestes a falecer. — Ela sussurrou as duas últimas palavras como se Deus Em
Pessoa pudesse estar ouvindo, e não quisesse dar ideias a Ele. Harlon James
era o yorkshire terrier de tia Prudence, batizado em homenagem ao mais
recente marido falecido.

— O que aconteceu?


— Vou contar o que aconteceu — disse tia Prudence, aparecendo do
nada com um kit de primeiros socorros na mão. — Grace tentou matar o
pobre Harlon James, e ele mal está aguentando.

— Eu não tentei matá-lo — gritou tia Grace da cozinha. — Não invente
histórias, Prudence Jane. Foi um acidente!

— Ethan, ligue para Dean Wilks e diga que temos uma E-mergência —
instruiu tia Prudence, tirando uma cápsula de sais aromáticos e dois bandaids
extragrandes do kit de primeiros socorros.

— Ele está morrendo! — Harlon James estava deitado no chão da
cozinha, parecendo traumatizado mas nada perto da morte. A perna de trás
estava enfiada embaixo dele, e se arrastava quando ele tentava ficar de pé. —
Grace, com o Senhor por testemunha, se Harlon James morrer...

— Ele não vai morrer, tia Prue. Acho que a perna está quebrada. O que
aconteceu?

— Grace tentou bater nele até matar com uma vassoura.

— Não é verdade. Já falei, não estava usando meus óculos e ele parecia
uma ratazana de cais do porto correndo pela cozinha.

— Como você saberia como é uma ratazana de cais do porto? Você
nunca foi a um cais do porto na vida.

Então levei as Irmãs, que estavam completamente histéricas, e Harlon
James, que provavelmente desejava estar morto, até a casa de Dean Wilks no
Cadillac 1964 delas. Dean Wilks era dono da loja de rações, mas era o que a
cidade tinha mais próximo de um veterinário. Felizmente, Harlon James
sofria apenas de uma perna quebrada, então Dean Wilks poderia resolver o
problema.

Quando voltamos para a casa, eu estava pensando se o louco não era eu
por pensar que conseguiria qualquer informação com as Irmãs. O carro de
Thelma estava na entrada da garagem. Meu pai tinha contratado Thelma
para ficar de olho nas Irmãs depois que tia Grace quase botou fogo m casa há
dez anos, ao colocar uma torta de limão com merengue no forno e deixá-la lá
a tarde toda quando estavam na igreja.

— Onde vocês estavam, meninas? — gritou Thelma da cozinha.

Elas se empurraram tentando chegar primeiro na cozinha para contar a
Thelma a aventura. Sentei em uma das cadeiras ao lado de tia Grace, que
parecia deprimida por ser a vilã da história novamente. Tirei o medalhão do


bolso, segurando a corrente no lenço, e o rodei algumas vezes.

— O que você tem aí, bonitão? — perguntou Thelma, pegando um
pouco de tabaco da lata que ficava no peitoril da janela e colocando no lábio
inferior, o que era ainda mais estranho do que parece, porque Thelma era
meio delicada e parecia com Dolly Parton.

— É só um medalhão que encontrei perto da fazenda Ravenwood.

— Ravenwood? Que diabos você estava fazendo lá?

— Minha amiga está morando lá.

— Está falando de Lena Duchannes? — perguntou tia Mercy. É claro
que ela sabia, a cidade inteira sabia. Estávamos em Gatlin.

— Sim, senhora. Estamos na mesma turma da escola. — Tinha
conseguido a atenção delas. — Encontramos esse medalhão no jardim atrás
casa grande. Não sabemos a quem pertenceu, mas parece muito velho.

— Aquela não é a propriedade de Macon Ravenwood. É parte de
Greenbrier — disse tia Prue, parecendo bastante segura.

— Me deixe dar uma olhada nisso — pediu tia Mercy, tirando os óculos
do bolso do casaco.

Passei a ela o medalhão, ainda enrolado no lenço.

— Tem uma inscrição.

— Não consigo ler isso. Grace, você consegue ler? — ela perguntou
passando o medalhão para tia Grace.

— Não vejo nada — disse tia Grace, apertando os olhos.

— Tem dois grupos de iniciais bem ali — falei, apontando para os
entalhes no metal — , ECW e GKD. E se virar o medalhão, tem uma data.
Onze de fevereiro de 1865.

— Essa data parece bastante familiar — disse tia Prudence. — Mercy, o
que aconteceu nessa data?

— Você não se casou nessa data, Grace?

— 1865, não 1965 — corrigiu tia Grace. A audição delas não era muito
melhor do que a visão. — 11 de fevereiro de 1865...

— Foi o ano em que os Federais quase incendiaram Gatlin
completamente — lembrou tia Grace. — Nosso bisavô perdeu tudo naquele
incêndio. Não se lembram da história, meninas? O general Sherman e o
exército da União marcharam direto pelo sul, queimando tudo no caminho,
incluindo Gatlin. Chamaram isso do Grande Incêndio. Pelo menos parte de


todas as fazendas de Gatlin foi destruída, exceto Ravenwood. Meu avô dizia
que Abraham Ravenwood deve ter feito um pacto com o diabo naquela noite.

— O que você quer dizer com isso?

— É o único jeito de aquele lugar ter sido deixado em pé. Os Federais
incendiaram todas as fazendas ao longo do rio, uma de cada vez, até
chegarem a Ravenwood. Então marcharam direto, como se ela não estivesse
lá.

— Pelo que vovô falou, não foi a única coisa estranha naquela noite —
disse tia Prue, dando um pedaço de bacon a Harlon James. — Abraham
tinha um irmão que morava com ele, e ele sumiu naquela noite. Ninguém
nunca o viu de novo.

— Isso não parece tão estranho. Talvez tenha sido morto pelos soldados
da União, ou tenha ficado preso em uma das casas em chamas — falei.

Tia Grace ergueu uma sobrancelha.

— Ou talvez tenha sido outra coisa. Nunca encontraram o corpo.

Eu me dei conta de que as pessoas falavam dos Ravenwood há gerações;
não tinha começado com Macon Ravenwood. Pensei no que mais as Irmãs
saberiam.

— E quanto a Macon Ravenwood? O que mais sabem sobre ele?

— Aquele menino nunca teve uma oportunidade por conta de ser I-
legítimo. — Em Gatlin, ser ilegítimo era como ser comunista ou ateu. — O
pai dele, Silas, conheceu a mãe de Macon depois que a primeira esposa dele o
deixou. Ela era uma garota bonita de Nova Orleans, eu acho. De qualquer
maneira, não muito depois, Macon e o irmão dele nasceram. Mas Silas nunca
se casou com ela, e depois ela o deixou também.

Tia Prue interrompeu:

— Grace Ann, você não sabe contar uma história. Silas Ravenwood era
E-xcêntrico, e tão cruel quanto o dia é longo. E havia coisas estranhas
acontecendo naquela casa. As luzes ficavam acesas a noite inteira, e de vez
um quando um homem de cartola preta era visto andando por lá.

— E um lobo. Conte para ele do lobo.

Eu não precisava que me contassem do cachorro, ou seja lá o que fosse
Tinha visto com meus olhos. Mas não podia ser o mesmo animal. Cachorros,
até mesmo lobos, não viviam tanto tempo.

— Havia um lobo na casa. Era como se fosse de estimação para Silas! —


Tia Mercy balançou a cabeça.

— Mas aqueles meninos, eles ficavam se mudando de um lugar a outro,
entre Silas e a mãe deles, e quando estavam com ele, Silas os tratava muito
mal. Batia neles o tempo todo e mal os deixava sair. Ele nem os deixava ir à
escola.

— Talvez seja por isso que Macon Ravenwood nunca sai de casa —
ponderei.

Tia Mercy balançou a mão no ar, como se fosse a coisa mais idiota que
ela já tivesse ouvido.

— Ele sai de casa. Já o vi várias vezes no prédio da FRA, depois da hora
do jantar.

Claro que tinha visto.

Esse era o problema com as Irmãs: metade do tempo elas estavam
ligadas à realidade, mas era só na metade do tempo. Eu nunca tinha ouvido
ninguém falar em ter visto Macon Ravenwood, então duvidava que ele
estivesse no prédio da FRA, olhando amostras de tintas e dando em cima dá
Sra. Lincoln.

Tia Grace observou o medalhão com mais cuidado, levando-o para perto
da luz.

— Posso dizer uma coisa. Esse lenço aqui pertenceu a Sulla Treadeau.
Sulla, a Profeta, era como a chamavam. As pessoas diziam que ela podia ver
o futuro nas cartas.

— Cartas de tarô? — perguntei.

— Que outro tipo de cartas existe?

— Bem, há cartas de baralho, cartas de correspondência... — falou tia
Mercy.

— Como sabe que o lenço pertenceu a ela?

— As iniciais dela estão bordadas bem aqui na ponta, e vê aquilo ali? —
perguntou, apontando para um pequeno pássaro bordado sob as iniciais. —
Era a marca dela.

— Marca?

— A maioria dos leitores de cartas tinha uma marca naquela época. Eles
marcavam as cartas para garantir que ninguém as trocasse. Um leitor só é
bom se tem boas cartas. Isso eu sei — disse Thelma, cuspindo no pequeno
vaso no canto do recinto com a precisão de um atirador.


Treadeau. Era o sobrenome de Amma.

— Ela era parente de Amma?

— É claro que era. Ela era tataravó de Amma.

— E as iniciais no medalhão? ECW e GKD? Sabem alguma coisa sobre
elas?

Era um tiro no escuro. Eu não lembrava a última vez que as Irmãs
tinham tido um momento de lucidez tão longo.

— Você está provocando uma velha, Ethan Wate?

— Não, senhora.

— ECW. Ethan Carter Wate. Ele foi seu tatara-tio, ou seria tatara-tatara-
tio?

— Você nunca foi boa em aritmética — interrompeu tia Prudence.

— De qualquer modo, ele era irmão do seu tatara-tataravô Ellis.

— O irmão de Ellis Wate se chamava Lawson, não Ethan. Foi daí que
ganhei meu nome do meio.

— Ellis Wate tinha dois irmãos, Ethan e Lawson. Você foi batizado em
homenagem aos dois. Ethan Lawson Wate.

Tentei visualizar minha arvore genealógica. Já a tinha visto muitas vezes.
E se havia alguma coisa que um sulista conhecia era sua árvore genealógica.
Não havia nenhum Ethan Carter Wate na cópia emoldurada em nossa sala
de jantar. Eu obviamente tinha superestimado a lucidez de tia Grace.

Devo ter aparentado não estar convencido, porque um segundo depois
tia Prue estava de pé, fora da cadeira.

— Tenho a árvore genealógica dos Wate no meu livro de genealogia.
Mantenho registros de toda linhagem para as Irmãs da Confederação.

As Irmãs de Confederação, a prima pobre do FRA, porém igualmente
horrenda, era um tipo de círculo de costura remanescente da Guerra. Hoje
em dia, os integrantes passavam a maior parte do tempo pesquisando suas
raízes da Guerra Civil para documentários e minisséries como The Blue and
the Gray.

— Aqui está. — Tia Prue estava de volta, carregando um enorme álbum
de capa de couro, com folhas amareladas e fotos velhas aparecendo nas
beiradas. Ela folheou as páginas, deixando cair pedaços de papel e recortes de
jornais velhos no chão.

— Olhe só isso... Burton Free, meu terceiro marido. Ele não foi o mais


bonito dos meus maridos? — perguntou ela, mostrando a fotografia rachada
para todos nós.

— Prudence Jane, continue procurando. Esse menino está testando nossa
memória. — Tia Grace estava claramente perturbada.

— Está bem aqui, depois da árvore dos Statham.

Olhei para os nomes que eu conhecia tão bem da árvore genealógica

sala de jantar da minha casa.

Lá estava o nome, o nome que faltava na árvore genealógica da
propriedade Wate: Ethan Carter Wate. Por que as Irmãs teriam uma versão
diferente da minha árvore genealógica? Era óbvio qual árvore era a
verdadeira. Eu estava com a prova na minha mão, enrolada no lenço da
profetisa de 150 anos atrás.

— Por que ele não está na minha árvore genealógica?

— A maioria das árvores genealógicas do sul é cheia de mentiras, ma
estou surpresa de ele ter chegado a alguma cópia da árvore genealógica d
família Wate — disse tia Grace, fechando o álbum e fazendo subir um nuvem
de poeira.

— É só devido a meus excelentes registros que ele chegou a esta. — Tia
Prue sorriu com orgulho, mostrando a dentadura.

Eu tinha que fazê-las se concentrarem.

— Por que ele não estaria na árvore genealógica, tia Prue?

— Por ser um desertor.



































































































Eu não estava entendendo.

— O que você quer dizer com desertor?

— Meu Deus, o que ensinam a vocês jovens naquela escola chique? —
Tia Grace estava ocupada catando os pretzels do Chex Mix.

— Desertores. Os Confederados que abandonaram o general Lee
durante a guerra. — Devo ter parecido confuso, porque tia Prue se sentiu
compelida a explicar. — Havia dois tipos de soldados confederados durante a
guerra. Os que apoiavam a causa da confederação e os que eram obrigados
pelas famílias a se alistar.

Tia Prue ficou de pé e foi até a bancada, andando de um lado para o
outro como uma verdadeira professora de História dando uma palestra.

— Em 1865, o exército de Lee estava cansado, com fome e em
desvantagem numérica. Alguns dizem que os rebeldes estavam perdendo a fé,
então simplesmente foram embora. Desertaram seus regimentos. Ethan
Carter Wate foi um deles. Ele foi um desertor.

Todas três abaixaram as cabeças como se a vergonha fosse demais para
elas.

— Está me dizendo que ele foi apagado da árvore genealógica porque
não queria morrer de fome lutando do lado errado em uma guerra perdida?

— E uma maneira de interpretar, acho.

— É a coisa mais idiota que já ouvi.

Tia Grace pulou da cadeira tão rápido quanto uma senhora de noventa e
poucos anos pode pular.

— Não seja insolente conosco, Ethan. A árvore foi mudada muito antes
de nós nascermos.

— Desculpe, senhora. — Ela esticou a saia e sentou novamente. — Por
que meus pais me batizariam em homenagem a um tatara-tio que
envergonhou a família?

— Bem, sua mãe e seu pai tinham opinião própria sobre tudo aquilo,
com todos aqueles livros que leram sobre a guerra. Você sabe que eles sempre
foram liberais. Quem sabe o que estavam pensando? Você tem que perguntar
a seu pai.

Como se houvesse alguma chance de ele me contar. Mas conhecendo a
sensibilidade dos meus pais, minha mãe provavelmente tinha tido orgulho de
Ethan Carter Wate. Eu tinha orgulho também. Passei a mão sobre a página


marrom desbotada do álbum de tia Prue.

— E as iniciais GKD? Acho que o G deve ser de Genevieve — falei, já
sabendo a resposta certa.

— GKD. Você não namorou um garoto com as iniciais GD uma vez,
Mercy?

— Não consigo lembrar. Você se lembra de um GD, Grace?

— GD... GD? Não, não posso dizer que lembre.

Eu as tinha perdido.

— Oh, meu Deus. Olhe a hora, garotas. Está na hora da igreja — disse
tia Mercy.

Tia Grace fez um gesto em direção à porta da garagem.

— Ethan, seja um bom menino e traga o Cadillac, está bem? Temos que
ajeitar a maquiagem.







Dirigi por quatro quadras para levá-las à missa da tarde na Igreja Batista
Evangélica Missionária e empurrei a cadeira de rodas de tia Mercy pela
entrada de cascalho. Isso levou mais tempo do que o deslocamento de carro,
porque a cada metro a cadeira atolava no cascalho e eu tinha que sacudi-la
para soltá-la, quase virando-a e derrubando minha tia-avó no chão. Quando
o pastor ouviu o terceiro testemunho, de uma senhora que jurou que Jesus
salvou as roseiras dela de besouros japoneses ou a mão de bordar dela da
artrite, eu já estava com a cabeça em outro lugar. Estava girando o medalhão
nos dedos, dentro do bolso da minha calça jeans. Por que ele nos mostrou
aquela visão? Por que de repente parou de funcionar?

Ethan. Pare. Você não sabe o que está fazendo.

Lena estava na minha cabeça de novo.

Guarde isso!

A igreja começou a desaparecer ao meu redor e eu podia sentir os dedos
de Lena segurando os meus, como se ela estivesse ali ao meu lado...





Nada poderia ter preparado Genevieve para a visão de Greenbrier
queimando. As chamas lambiam as laterais, consumindo as ripas de madeira


e engolindo a varanda. Soldados carregavam antiguidades e quadros para
fora da casa, pilhando como ladrões comuns. Onde estava todo mundo?
Estavam se escondendo no bosque como ela? Folhas estalaram. Ela sentiu
alguém atrás de si, mas antes que pudesse se virar, uma mão enlameada
cobriu-lhe a boca. Ela pegou o pulso da pessoa com as duas mãos, tentando
se soltar.

— Genevieve, sou eu. — A mão afrouxou o toque.

— O que está fazendo aqui? Você está bem? — Genevieve jogou os
braços ao redor do soldado, vestido com o que tinha restado do que havia
sido o uniforme cinza de Confederado que usara com orgulho.

— Estou, amor — disse Ethan, mas ela sabia que ele estava mentindo.

— Pensei que podia estar...

Genevieve só tinha tido notícias de Ethan por cartas na maior parte dos
últimos dois anos desde que ele tinha se alistado, e não tinha recebido
nenhuma carta desde a batalha em Wilderness. Genevieve sabia que muitos
dos homens que haviam seguido Lee naquela batalha nunca tinham saído da
Virgínia. Ela havia se resignado a morrer solteirona. Tinha tido muita certeza
de que tinha perdido Ethan. Era quase inimaginável que ele estava vivo,
parado ali, nesta noite.

— Onde estão os outros do seu regimento?

— Na última vez que os vi, estavam perto de Summit.

— O que quer dizer com a última vez que os viu? Estão todos mortos?

— Não sei. Quando parti, ainda estavam vivos.

— Não entendi.

— Eu desertei, Genevieve. Não podia lutar nem mais um dia por algo em
que não acredito. Não depois do que vi. A maioria dos rapazes lutando
comigo nem se dava conta do que se trata essa guerra, de que estão apenas
derramando sangue por causa de algodão.

Ethan tomou as mãos frias dela nas dele, ásperas com vários cortes.

— Entendo se não puder se casar mais comigo. Não tenho dinheiro e não
tenho honra.

— Não me importo que não tenha dinheiro, Ethan Carter Wate. Você é
o homem mais honrado que já conheci. E não ligo se meu pai pensa que
nossas diferenças são grandes demais para superar. Ele está errado. Você está
em casa agora e vamos nos casar.


Genevieve se agarrou a ele, com medo de que ele pudesse desaparecer no
ar se o soltasse. O cheiro a levou de volta ao momento. O cheiro rançoso de
limão queimando, da vida de ambos queimando.

— Temos que ir para o rio. Ê para onde mamãe iria. Ela iria para o sul,
na direção da casa de tia Marguerite.

Mas Ethan não teve tempo de responder. Alguém estava vindo. Galhos
estalavam como se alguém se debatesse pelos arbustos.

— Fique atrás de mim — ordenou Ethan, empurrando Genevieve para
trás de si com um braço e segurando o rifle com o outro. O arbusto se abriu e
Ivy, cozinheira de Greenbrier, saiu cambaleando. Ainda estava de camisola,
preta de fumaça. Ela gritou ao ver o uniforme, assustada demais para ver que
era cinza, não azul.

— Ivy, você está bem? — Genevieve correu para segurar a velha mulher,
que já estava começando a cair.

— Srta. Genevieve, o que está fazendo aqui?

— Estava tentando chegar a Greenbrier. Para avisar vocês.

— É tarde demais para isso, e não teria ajudado em nada. Aqueles azuis
quebraram as portas e entraram na casa como se fosse deles. Deram uma
olhada em tudo para decidir o que queriam levar e depois começaram a
botar fogo. — Era quase impossível entendê-la. Ela estava histérica, e a todo
momento era tomada de um ataque de tosse, engasgada com a fumaça e suas
próprias lágrimas.

— Em toda minha vida nunca vi ninguém como aqueles demônios.
Queimando uma casa com mulheres dentro. Cada um deles vai ter que
responder a Deus Todo-Poderoso em pessoa no fim da vida. — A voz de Ivy
falhou.

Levou um momento para que as palavras de Ivy fossem processadas.

— O que você quer dizer com queimar uma casa com mulheres dentro?

— Lamento, criança.

Genevieve sentiu as pernas amolecerem. Ajoelhou-se na lama, a chuva
escorrendo-lhe pela face, misturada com as lágrimas. A mãe, a irmã,
Greenbrier... não existiam mais.

Genevieve olhou para o céu.

— Deus terá que responder a mim.












O medalhão nos puxou de volta tão rápido quanto nos tinha levado para a
visão. Eu estava olhando para o pastor de novo, e Lena não estava lá. Eu
conseguia senti-la escapando. Lena?

Ela não respondeu. Fiquei sentado na igreja suando frio, preso entre tia
Mercy e tia Grace, que estavam revirando as bolsas atrás de trocados para a
cesta de doações.

Queimar uma casa com mulheres dentro, uma casa cercada de
limoeiros. A casa onde, aposto, Genevieve perdeu o medalhão. Um medalhão
entalhado com o dia que Lena nasceu, mas mais de cem anos antes. Não era
surpresa que Lena não quisesse ter as visões. Eu estava começando a
concordar com ela.

Não existem coincidências.








































p 14 de setembro p

d



O verdadeiro Boo Radley















N



a noite de domingo, reli O Apanhador no Campo de Centeio até me
sentir cansado o bastante para dormir. Só que eu não ficava cansado o
bastante. E não conseguia ler, porque ler já não tinha o mesmo efeito.
Eu não conseguia desaparecer no personagem Holden Caulfield, porque não
era capaz de me perder na história, não do modo que precisamos para nos
tornarmos outra pessoa.

Eu não estava sozinho na minha cabeça. Ela estava cheia de medalhões,
incêndios e vozes. Pessoas que eu não conhecia e visões que eu não entendia.

E tinha mais uma outra coisa. Fechei o livro e coloquei as mãos atrás da
cabeça.

Lena? Você está aí, não está?

Eu olhava para o teto azul.

Não adianta. Sei que você está aí. Aqui. Sei lá.

Esperei até que ouvi. A voz dela, se desdobrando como uma lembrança
pequena e brilhante no canto mais escuro da minha mente.

Não. Não exatamente.

Você está. Esteve aí a noite toda.

Ethan, estou dormindo. Quero dizer, estava.

Sorri para mim mesmo.

Não estava não. Estava ouvindo.

Não estava.

Apenas admita que estava.

Homens. Vocês pensam que são o centro do universo. Talvez eu apenas
goste daquele livro.


Você pode vir aqui sempre que quiser, agora?

Houve uma longa pausa.

Normalmente não, mas esta noite meio que aconteceu. Eu ainda não
entendo como acontece.

Talvez possamos perguntar para alguém.

Tipo quem?

Não sei. Acho que nós vamos ter que descobrir sozinhos. Assim como fo-
das as outras coisas.

Outra pausa. Tentei não imaginar se o "nós" a tinha assustado, caso ela
pudesse me ouvir. Talvez fosse isso, ou talvez fosse outra coisa; ela não queria
que eu descobrisse nada que tivesse a ver com ela.

Não tente.

Sorri e senti meus olhos fechando. Mal conseguia mantê-los abertos.

Estou tentando.

Apaguei a luz.

Boa-noite, Lena.

Boa-noite, Ethan.

Eu esperava que ela não pudesse ler todos os meus pensamentos.

Basquete. Eu realmente precisaria passar mais tempo pensando em
basquete. E enquanto pensava em todas as técnicas e regras que tinha na
mente, senti meus olhos fechando, me senti afundando, perdendo controle...











Afogando.

Eu estava me afogando. Me debatendo na água verde, as ondas
quebrando sobre minha cabeça; Meus pés procuravam o fundo lamacento de
um rio, talvez o Santee, mas não havia nada. Eu conseguia ver algum tipo de
luz brilhando na superfície, mas não conseguia chegar lá.

Eu estava afundando.

— É o meu aniversário, Ethan. Está acontecendo.

Estiquei o braço. Ela tentou pegar a minha mão, e eu me virei para
alcançá-la, mas ela se afastou e eu não conseguia mais segurar. Tentei gritar


ao ver sua mão pálida sumir em direção à escuridão, mas minha boca se
encheu de água e não consegui emitir som. Podia sentir que estava sufocando.
Estava começando a perder a consciência.

— Tentei avisar você. Você tem que me deixar ir!

Sentei na cama. Minha camiseta estava encharcada. Meu travesseiro
estava molhado. Meu cabelo estava molhado. E o quarto estava quente e
úmido. Achei que tinha deixado a janela aberta de novo.

— Ethan Wate! Você está me ouvindo? É melhor descer aqui antes de
ontem ou não vai tomar mais café esta semana.

Sentei na cadeira ao mesmo tempo em que três ovos moles deslizaram
para meu prato de torrada e geleia.

— Bom-dia, Amma.

Ela virou de costas para mim sem nem me olhar.

— Você sabe que não tem nada de bom nele. Não cuspa nas minhas
costas e diga que está chovendo.

Ela ainda estava irritada comigo, mas eu não tinha certeza se era porque
saí da sala de aula ou trouxe o medalhão para casa. Provavelmente os dois.
Mas não podia culpá-la; eu não costumava arrumar problemas na escola.
Aquilo era novidade.

— Amma, desculpe por ter saído da aula na sexta-feira. Não vai
acontecer de novo. Tudo vai voltar ao normal.

A expressão dela se suavizou apenas um pouco, e ela se sentou na minha
frente.

— Acho que não. Todos fazemos escolhas, e essas escolhas têm
consequências. Acho que você passará por um inferno para pagar pelas suas
quando chegar à escola. Talvez comece a me ouvir agora. Fique longe de
Lena Duchannes e daquela casa.

Não era do feitio de Amma ficar do lado de todo mundo da cidade,
considerando que esse normalmente era o lado errado das coisas. Eu via que
ela estava preocupada pelo modo como ficava mexendo o café, bem depois
do leite já ter desaparecido. Amma sempre se preocupava comigo e eu a
amava por isso, mas alguma coisa parecia diferente desde que mostrei o
medalhão a ela. Andei ao redor da mesa e dei um abraço nela. Ela tinha
cheiro de grafite de lápis e balinha de canela, como sempre.

Ela balançou a cabeça, murmurando:


— Não quero ouvir falar em olhos verdes e cabelos pretos. Está armando
uma nuvem negra hoje, então tenha cuidado.

Amma não estava apenas escurecendo. Estava ficando completamente
escura. Eu também conseguia sentir a chegada da nuvem negra.











Link encostou o Lata-Velha que tocava umas músicas horríveis, como
sempre. Abaixou o volume quando entrei, o que sempre era um mau sinal.

— Temos problemas.

— Eu sei.

— Jackson arrumou sua própria multidão linchadora hoje.

— O que você soube?

— Está rolando desde sexta à noite. Ouvi minha mãe falando e tentei
ligar pra você. Onde estava, afinal?

— Estava fingindo enterrar um medalhão enfeitiçado em Greenbrier
para que Amma me deixasse entrar de novo em casa.

Link riu. Ele estava acostumado a conversas sobre encantos, amuletos e
mau-olhado quando se tratava de Amma.

— Pelo menos ela não está fazendo você usar aquele saco fedido de
cebola em volta do pescoço. Aquilo foi nojento.

— Era alho. Para o enterro da minha mãe.

— Foi nojento.

O lance com Link era que éramos amigos desde o dia em que ele me deu
aquele Twinkie no ônibus, e ele não liga muito para o que eu digo ou não
digo. Mesmo naquela época, a gente sabia quem eram nossos amigos. Gatlin
era assim. Tudo já tinha acontecido há dez anos. Para nossos pais, tudo já
tinha acontecido há vinte ou trinta anos. E para a cidade em si, parecia que
nada acontecia há mais de cem anos. Nada que acarretasse consequências,
quero dizer.

Eu tinha a sensação de que isso estava prestes a mudar.

Minha mãe teria dito que já era hora. Se havia uma coisa de que minha
mãe gostava era mudança. Ao contrário da mãe de Link. A Sra. Lincoln era


uma pessoa raivosa, tinha uma missão e contatos, uma combinação perigosa.
Quando estávamos no oitavo ano, a Sra. Lincoln arrancou o transmissor de
TV a cabo da parede porque pegou Link vendo um filme de Harry Potter,
uma série que ela tinha feito campanha para banir da Biblioteca de Gatlin
porque achava que incentivava a bruxaria. Felizmente, Link conseguia fugir
para a casa de Earl Petty para ver MTV, senão a Quem Matou Lincoln
jamais teria se tornado a mais importante (e quando digo mais importante,
quero dizer a única) banda de rock da Jackson High.

Nunca entendi a Sra. Lincoln. Quando minha mãe estava viva, ela
revirava os olhos e dizia: "Link pode ser seu melhor amigo, mas não espere
que eu me junte ao FRA e comece a usar saias com armação para fazer
encenações." Depois nós dois caíamos na gargalhada, imaginando minha
mãe, que andava quilômetros de campos de batalha lamacentos procurando
velhos cartuchos de bala, que cortava o próprio cabelo com tesouras de
jardim, participando do FRA, organizando vendas de tortas e dizendo para
todo mundo como deviam decorar suas casas.

Era fácil de imaginar a Sra. Lincoln no FRA. Ela era a secretária de
registros, e até eu sabia disso. Estava no Conselho com as mães de Savannah
Snow e Emily Asher, enquanto minha mãe passa a maior parte do seu tempo
enfiada na biblioteca olhando uma microficha.

Passava.











Link ainda estava falando e logo eu já tinha ouvido o bastante para começar a
prestar atenção.

— Minha mãe, a mãe de Emily e de Savannah... Elas andavam
congestionando as linhas telefônicas nas últimas duas noites. Ouvi minha mãe
falando sobre a janela quebrada na aula de Inglês e que ela ouviu dizer que a
sobrinha do Velho Ravenwood estava com sangue nas mãos.

Ele dobrou uma esquina sem nem parar para respirar.

— E que tal saber que sua namorada acabou de sair de uma instituição
para doentes mentais na Virgínia e que ela é órfã e tem bi-esquizo-mania


alguma coisa.

— Ela não é minha namorada. Só somos amigos — respondi
automaticamente.

— Cala a boca. Você está tão de quatro que eu devia comprar uma sela
pra você. — Ele teria dito aquilo sobre qualquer garota com quem eu
conversasse, sobre quem eu falasse ou mesmo olhasse no corredor.

— Não é mesmo. Não aconteceu nada. Só conversamos.

— Você fala tanta merda que podia passar por uma privada. Você gosta
dela, Wate. Admita.

Link não era muito de sutilezas, e acho que ele não conseguia imaginar
estar com uma garota por um motivo que não fosse o fato de ela tocar
guitarra, além dos óbvios.

— Não estou dizendo que não gosto dela. Somos apenas amigos. — O
que era verdade, quer eu quisesse ou não. Mas essa era uma questão
diferente. De qualquer modo, devo ter sorrido um pouco. Gesto errado.

Link fingiu vomitar no colo e deu uma guinada, tirando um fino de um
caminhão. Mas ele só estava brincando. Link não ligava para quem eu
gostasse, desde que fosse motivo para ele pegar no meu pé.

— Bem? É verdade? Ela fez mesmo?

— Fez o quê?

— Você sabe. Caiu da árvore dos doidos e bateu em todos os galhos
enquanto caía?

— A janela quebrou, foi só isso que aconteceu. Não tem nenhum
mistério.

— A Sra. Asher está dizendo que ela deu um soco ou jogou alguma coisa
nela.

— Engraçado, considerando que a Sra. Asher não é da minha turma de
inglês, pelo menos da última vez que prestei atenção.

— É, minha mãe também não é, mas ela me disse que vai até a escola
hoje.

— Ótimo. Guarde um lugar pra ela na nossa mesa no almoço.

— Talvez ela tenha feito a mesma coisa nas outras escolas e por isso foi
pra algum tipo de instituição. — Link falava sério, o que significava que tinha
ouvido muita coisa desde o incidente da janela.

Por um segundo, me lembrei do que Lena tinha dito sobre sua vida.


Complicada. Talvez essa fosse uma das complicações, ou apenas uma das 26
mil outras coisas sobre as quais ela não podia falar. E se todas as Emily Asher
do mundo estivessem certas? E se eu tivesse escolhido o lado errado, afinal?

— Tome cuidado, cara. Talvez ela tenha lugar marcado na Cidade dos
Loucos.

— Se você acredita mesmo nisso, é um idiota.

Entramos no estacionamento da escola sem falar nada. Eu estava
irritado, apesar de saber que Link só estava preocupado comigo. Mas eu não
conseguia evitar. Tudo parecia diferente hoje. Saí do carro e bati a porta.

Link me chamou:

— Estou preocupado com você, cara. Você tem agido de um jeito ,
estranho.

— Qual é, eu e você somos um casal agora? Talvez você devesse passar
um pouco mais de tempo se preocupando com o motivo de nem conseguir
que uma garota converse com você, seja ela louca ou não.

Ele saiu do carro e olhou para o prédio da administração.

— De qualquer jeito, talvez você devesse dizer para sua "amiga", seja lá o
que isso signifique, para tomar cuidado hoje. Veja.

A Sra. Lincoln e a Sra. Asher conversavam com o diretor Harper na
escada da frente. Emily estava aninhada ao lado da mãe, tentando parecer
arrasada. A Sra. Lincoln estava dando um sermão no diretor Harper, que
estava assentindo como se estivesse decorando cada palavra. O diretor
Harper podia mandar na Jackson High, mas ele sabia quem mandava na
cidade. Estava olhando para duas delas.

Quando a mãe de Link terminou, Emily iniciou uma versão
particularmente animada do incidente da janela quebrada. A Sra. Lincoln
esticou braço e colocou a mão no ombro de Emily, solidária. O diretor
Harper apenas concordava a cabeça.

Era, com certeza, um dia muito cheio de nuvens.









Lena estava sentada no rabecão, escrevendo em seu caderno surrado. O
motor estava ligado. Bati na janela e ela pulou. Olhou na direção do prédio


da administração. Tinha visto as mães também.

Gesticulei para que ela abrisse a porta, mas Lena balançou a cabeça.
Andei até o lado do passageiro. As portas estavam trancadas, mas ela não ia
se livrar de mim tão facilmente. Sentei no capô do carro e deixei minha
mochila cair no chão de cascalho ao meu lado. Eu não ia a lugar algum.

O que está fazendo?

Esperando.

Vai ser uma longa espera.

Tenho tempo.

Ela olhou para mim pelo para-brisa. Ouvi as portas sendo destrancadas.

— Alguém já disse que você é maluco? — Ela andou até onde eu estava
sentado, com os braços cruzados como Amma pronta para dar bronca.

— Não tão maluco quanto você, pelo que ouvi dizer.

O cabelo dela estava preso atrás com um lenço de seda preto que tinha
desenhos de flores de cerejeira cor-de-rosa espalhadas. Eu podia imaginá-la se
olhando no espelho, sentindo-se como se estivesse indo para o próprio enterro
e amarrando-o para tentar parecer mais animada. Um cruzamento entre, sei
lá, uma camiseta e um vestido preto caía sobre seus jeans e All Star preto. Ela
franziu a testa e olhou para o prédio da administração. As mães
provavelmente estavam sentadas no escritório do diretor Harper agora.

— Você consegue ouvi-las?

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu não consigo ler a mente das pessoas, Ethan.

— Consegue ler a minha.

— Não é verdade.

— E ontem à noite?

— Já falei, não sei por que acontece. Nós simplesmente parecemos... nos
conectar. — Até mesmo a palavra parecia difícil para ela dizer essa manhã.
Ela não me olhava nos olhos. — Nunca foi assim com ninguém.

Eu queria dizer para ela que sabia como se sentia. Queria dizer que
quando estávamos juntos daquele jeito em nossas mentes, mesmo com nossos
corpos a milhões de quilômetros de distância, eu me sentia mais próximo dela
do que jamais me senti de alguém.

Não consegui. Não conseguia nem pensar. Pensei sobre basquete, o
menu do refeitório, o corredor verde cor de sopa de ervilha por onde eu


estava prestes a andar. Pensei em tudo. Em vez de falar disso, inclinei minha
cabeça para o lado.

— É. As garotas dizem isso pra mim sempre. — Idiota. Quanto mais
nervoso eu ficava, piores eram as minhas piadas.

Ela deu um sorriso hesitante e torto.

— Não tente me animar. Não vai funcionar. — Mas estava funcionando.

Olhei de novo para a escada.

— Se você quer saber o que elas estão dizendo, posso contar pra você.

Ela olhou para mim com ceticismo.

— Como?

— Estamos em Gatlin. Não há nada sequer próximo a um segredo aqui.

— É muito ruim? — Ela olhou para o outro lado. — Elas acham que
sou louca?

— Basicamente.

— Um perigo para a escola?

— Provavelmente. Não recebemos bem estranhos por aqui. E nada é
mais estranho do que Macon Ravenwood, sem querer ofender. — Sorri para
ela.

O primeiro sinal soou. Ela puxou minha manga, ansiosa.

— Ontem à noite. Tive um sonho. Você...?

Assenti. Ela nem precisava dizer. Eu sabia que ela tinha estado no sonho
comigo.

— Fiquei até de cabelo molhado — ela disse.

— Eu também.

Ela esticou o braço. Havia uma marca no seu pulso onde eu tinha
tentado segurar. Antes que ela mergulhasse na escuridão. Eu esperava que ela
não tivesse visto aquela parte. A julgar pela expressão do seu rosto, eu tinha
certeza de que tinha visto.

— Desculpe, Lena.

— Não é sua culpa.

— Gostaria de saber por que os sonhos são tão reais.

— Tentei te avisar. Você devia ficar longe de mim.

— Tudo bem. Vou me considerar avisado.

De alguma forma eu sabia que não podia fazer isso, ficar longe dela.
Apesar de eu estar prestes a entrar na escola e encarar um monte enorme de


merda, eu não ligava. Eu me sentia bem em ter alguém com quem podia
conversar sem ter que editar tudo que dizia. E eu podia conversar com Lena;
em Greenbrier senti que poderia ter ficado lá sentado no mato conversando
com ela por dias. Por mais tempo. Por tanto tempo quanto ela estivesse lá.

— O que tem no seu aniversário? Por que você disse que pode não estar
aqui depois?

Ela rapidamente mudou o assunto.

— E o medalhão? Você viu o que eu vi? O incêndio? A outra visão?

— Vi. Eu estava sentado na igreja e quase caí do banco. Mas descobri
algumas coisas com as Irmãs. As iniciais ECW são de Ethan Carter Wate. Ele
foi meu tatara-tio, e minhas três tias malucas dizem que recebi meu nome em
homenagem a ele.

— Então por que você não reconheceu as iniciais no medalhão?

— Essa é a parte estranha. Eu nunca tinha ouvido falar nele, e ele está
convenientemente omitido na árvore genealógica da minha casa.

— E GKD? É Genevieve, certo?

— Elas não pareciam saber, mas tem que ser. É ela que aparece nas
visões, e o D deve ser de Duchannes. Eu ia perguntar a Amma, mas quando
mostrei o medalhão a ela, seus olhos quase pularam fora da cabeça. Como se
eu tivesse sido triplamente amaldiçoado, encharcado por um balde de vodu e
enrolado com uma praga para garantir. E o escritório do meu pai é território
proibido, mas é onde ele guarda todos os livros antigos da minha mãe sobre
Gatlin e a guerra. — Eu estava divagando. — Você podia falar com seu tio.

— Meu tio não vai saber de nada. Onde está o medalhão agora?

— No meu bolso, dentro de uma bolsinha cheia de pó que Amma jogou
sobre ele quando o viu. Ela acha que o levei de volta para Greenbrier e o
enterrei.

— Ela deve me odiar.

— Não mais do que a qualquer outra das minhas amigas. Quero dizer,
amigas garotas. — Não conseguia acreditar no quanto eu parecia um idiota.
— Acho que é melhor irmos pra aula antes que a gente arrume mais
problema.

— Na verdade, eu estava pensando em ir pra casa. Sei que vou ter que
lidar com eles em algum momento, mas gostaria de viver em negação por
mais um dia.


— Você não vai ter problemas?

Ela riu.

— Com meu tio, o notório Macon Ravenwood, que acha que a escola é
uma perda de tempo e os bons cidadãos de Gatlin devem ser evitados a todo
custo? Ele vai ficar feliz.

— Então por que você vem? — Eu tinha certeza que Link nunca
apareceria na escola de novo se a mãe dele não o expulsasse de casa todo dia
de manhã.

Ela mexeu em um dos pingentes do colar que usava, uma estrela de sete
pontas.

— Acho que pensei que seria diferente aqui. Talvez eu pudesse fazer
alguns amigos, trabalhar no jornal ou algo assim. Não sei.

— No nosso jornal? The Jackson Stonewaller?

— Tentei entrar para o jornal na minha antiga escola, mas eles disseram
que todas as vagas estavam ocupadas, apesar de nunca terem gente o
suficiente pra escrever pra publicar o jornal na data certa. — Ela olhou para
o outro lado, sem jeito. — Eu devia ir.

Abri a porta para ela.

— Acho que você devia falar com seu tio sobre o medalhão. Ele pode
saber mais do que você pensa.

— Acredite em mim, ele não sabe.

Bati a porta. Por mais que eu quisesse que ela ficasse, parte de mim
estava aliviada que ela ia para casa. Eu teria o bastante para lidar hoje.

— Quer que eu entregue isso pra você? — Apontei para o caderno no
assento do passageiro.

— Não, não é dever de casa. — Ela abriu o porta-luvas e enfiou o
caderno lá dentro. — Não é nada.

Nada que ela fosse me contar, pelo menos.

— É melhor você ir antes que Fatty comece a patrulhar o
estacionamento.

Ela ligou o carro antes que eu pudesse dizer alguma coisa mais e acenou
quando se afastou do meio-fio.

Ouvi um latido. Me virei e vi o enorme cachorro preto de Ravenwood a
apenas alguns metros, e vi para quem ele estava latindo.

A Sra. Lincoln sorriu para mim. O cachorro rosnou, o pelo das costa


eriçado. A Sra. Lincoln olhou para ele com tanta repulsa que parecia que
estava olhando para o próprio Macon Ravenwood. Em uma briga, não se ao
certo qual deles ganharia.

— Cachorros selvagens têm raiva. Alguém devia avisar o condado.

É, alguém.

— Sim, senhora.

— Quem foi aquela que vi saindo no carro preto estranho? Vocês
pareciam estar tendo uma boa conversa. — Ela já sabia a resposta. Não era
uma pergunta. Era uma acusação.

— Sim, senhora.

— Falando em estranho, o diretor Harper estava me contando que está
planejando oferecer para a garota Ravenwood uma transferência
ocupacional. Ela pode escolher, qualquer escola em três condados. Desde que
não seja a Jackson.

Não falei nada. Nem olhei para ela.

— É nossa responsabilidade, Ethan. Do diretor Harper, minha... de todos
os pais em Gatlin. Temos que garantir que os jovens dessa cidade fiquem
longe do perigo. E longe do tipo errado de pessoas. — O que queria dizer
qualquer um que não fosse como ela.

Ela esticou a mão e tocou no meu ombro, do mesmo jeito que tinha feito
com Emily há menos de dez minutos.

— Tenho certeza de que entende o que quero dizer. Afinal, você é um de
nós. Seu pai nasceu aqui e sua mãe foi enterrada aqui Você faz parte de
Gatlin. Nem todo mundo faz.

Olhei para ela. Mas ela entrou na van antes que eu pudesse dizer outra
palavra.

Dessa vez, a Sra. Lincoln queria mais do que queimar alguns livros.









Depois que cheguei à aula, o dia ficou anormalmente normal, estranhamente
normal. Não vi nenhuma outra mãe, apesar de suspeitar que estivessem
enfiadas na diretoria. No almoço, comi três tigelas de pudim de chocolate
com os caras, como sempre, apesar de estar claro sobre o quê e sobre quem


não íamos falar. Até mesmo a visão de Emily digitando mensagens de texto
loucamente durante a aula de inglês e de química parecia uma espécie de
verdade universal reconfortante. Exceto pelo sentimento de que eu sabia
sobre o quê, ou melhor, sobre quem ela estava escrevendo. Como eu disse,
anormalmente normal.

Até que Link me deixou em casa depois do treino de basquete e decidi
fazer uma coisa completamente insana.







Amma estava de pé na varanda da frente, um claro sinal de problema.

— Você a viu?

Eu devia saber que ela diria isso.

— Ela não foi à escola hoje. — Tecnicamente, era verdade.

— Talvez seja melhor assim. Os problemas vão atrás daquela garota
como o cachorro de Macon Ravenwood. Eu não quero problemas vindo
atrás de você para esta casa.

— Vou tomar um banho. O jantar vai ficar pronto logo? Link e eu temos
um trabalho pra fazer mais tarde — gritei da escada, tentando parecer
normal.

— Trabalho? Que tipo de trabalho?

— De história.

— Para onde vocês vão e quando estão pretendendo voltar?

Bati a porta do banheiro antes de responder. Eu tinha um plano, mas
precisava de uma história, e ela tinha que ser boa.

Dez minutos depois, sentado à mesa de jantar, eu tinha achado uma
história. Não era perfeita, mas foi a melhor que consegui inventar naquele
curto espaço de tempo. Agora eu só precisava fazê-la acreditar. Eu não era i o
melhor mentiroso, e Amma não era boba.

— Link vai me pegar depois do jantar e vamos ficar na biblioteca até a
hora de fechar. Acho que é por volta das nove ou dez horas.

Derramei Carolina Gold sobre minha carne de porco grelhada. Carolina
Gold, uma mistura grudenta de molho barbecue com mostarda, era a única
coisa pela qual o condado de Gatlin era famoso que não tinha nada a ver
com a Guerra Civil.


— Biblioteca?

Mentir para Amma sempre me deixava nervoso, então eu tentava não
fazê-lo com frequência. E hoje eu estava sentindo o nervosismo,
principalmente no meu estômago. A última coisa que eu queria era comer
três pratos de carne de porco, mas não tinha escolha. Ela sabia exatamente o
quanto eu aguentava. Dois pratos e eu despertaria suspeita. Um prato e ela
me mandaria para o meu quarto com um termômetro e um refrigerante.
Assenti e me dediquei a trabalhar na limpeza do meu segundo prato.

— Você não põe os pés na biblioteca desde...

— Eu sei. — Desde que minha mãe morreu.

A biblioteca era o segundo lar da minha mãe e da minha família.
Passávamos todas as tardes de domingo lá desde que eu era pequeno e
andava no meio das prateleiras, puxando cada livro com desenho de navio
pirata, cavaleiro, soldado ou astronauta. Minha mãe costumava dizer: ‘Aqui é
minha igreja, Ethan. É assim que mantemos sagrado o dia de descanso na
nossa família.’

A bibliotecária-chefe do condado de Gatlin, Marian Ashcroft, era a
amiga mais antiga de minha mãe, a segunda historiadora mais inteligente de
Gatlin depois da minha mãe e, até ano passado, parceira de pesquisas dela.
Elas estudaram juntas em Duke, e quando Marian terminou seu PhD em
estudos afro-americanos, seguiu minha mãe até Gatlin para terminarem seu
primeiro livro juntas. Elas estavam no meio do quinto livro quando o
acidente aconteceu.

Eu não tinha posto o pé na biblioteca desde então, e ainda não estava
pronto. Mas também sabia que nada faria Amma me impedir de ir lá. Ela
nem ligaria para verificar. Marian Ashcroft era da família. E Amma, que
tinha amado minha mãe do mesmo jeito que Marian a tinha amado,
respeitava a família acima de tudo,

— Bem, comporte-se bem e não eleve a voz. Você sabe o que sua mãe
dizia. Qualquer livro é um Livro Sagrado, e o lugar onde preservam o Livro
Sagrado também é a Casa de Deus. — Como eu disse, minha mãe jamais
teria entrado no FRA.

Link buzinou. Ele ia me dar uma carona no caminho do ensaio da
banda. Saí correndo da cozinha, me sentindo tão culpado que tive que lutar
contra o impulso de me jogar nos braços de Amma e confessar tudo, como se


eu fosse um menino de 6 anos de novo, comendo todo o pó de gelatina da
despensa. Talvez Amma estivesse certa. Talvez eu tenha feito um buraco no
céu e o universo estivesse prestes a cair sobre mim.













Enquanto eu andava até a porta de Ravenwood, minha mão apertava a pasta
azul brilhante, minha desculpa por aparecer na casa de Lena sem ter sido
convidado. Eu estava passando lá para entregar o trabalho de inglês do dia —
era o que eu planejava dizer, pelo menos. Tinha parecido convincente na
minha cabeça quando eu ainda estava na minha varanda. Mas agora que eu
estava na varanda de Ravenwood, não tinha tanta certeza.

Eu normalmente não era o tipo de cara que faria uma coisa dessas, mas
era óbvio que não tinha a menor chance de Lena me convidar para ir lá. E eu
tinha a sensação de que seu tio podia nos ajudar, de que ele talvez soubesse de
alguma coisa.

Ou talvez fosse outra coisa. Eu queria vê-la. Tinha sido um dia longo e
chato na Jackson sem o Furacão Lena, e eu estava começando a tentar
entender como aguentei oito tempos sem todos os problemas que ela causava
para mim. Sem todos os problemas que ela me fazia querer causar a mim
mesmo.





* * *







Eu podia ver luz passando pelas janelas cobertas de hera. Ouvi barulho de
música no fundo, músicas antigas de Savannah, daquele compositor da
Geórgia que minha mãe amava. "In the cool cool cool ofthe evening..."

Ouvi latidos do outro lado da porta antes que tivesse batido, e em
segundos a porta foi aberta. Lena estava lá descalça, e ela parecia diferente,


arrumada, com um vestido preto com pequenos pássaros bordados, como se
fosse jantar em um restaurante chique. Eu parecia que ia para o Dar-ee Keen
com minha camiseta furada escrito Atari e jeans. Ela saiu para a varanda,
fechando a porta atrás de si.

— Ethan, o que está fazendo aqui?

Levantei a pasta de forma nada convincente.

— Trouxe seu dever de casa.

— Não acredito que você veio sem avisar. Falei que meu tio não gosta de
estranhos. — Ela já estava me empurrando para descer a escada. — Você
tem que ir. Agora.

— Pensei que podíamos conversar com ele.

Atrás de nós, ouvi alguém limpando a garganta. Olhei e vi o cachorro de
Macon Ravenwood, e atrás dele, o próprio Macon Ravenwood. Tentei não
parecer surpreso, mas tenho certeza de que me entreguei quando quase dei
um pulo.

— Bem, isso é algo que não ouço com frequência. E odeio desapontar,
pois não sou nada além de um cavalheiro sulista. — Ele falava com um
sotaque sulista controlado, mas com perfeita pronúncia. — É um prazer
finalmente conhecê-lo, Sr. Wate.

Eu não conseguia acreditar que estava parado em frente dele. O
misterioso Macon Ravenwood. Só que eu estava mesmo esperando encontrar
Boo Radley, um cara que se arrastava pela casa de macacão, resmungando
em uma espécie de linguagem monossilábica como um neandertal, talvez até
babando um pouco nos cantos da boca.

Ele não era Boo Radley. Estava mais para Atticus Finch.

Macon Ravenwood estava vestido impecavelmente, como se fosse, sei lá,
1942. A camisa branca engomada estava fechada com antiquados botões de
prata em vez de botões comuns. O paletó do smoking estava perfeito, sem um
amassado. Os olhos dele eram escuros e brilhantes; pareciam quase pretos.
Eram enevoados, escurecidos, como as janelas do rabecão que Lena dirigia
pela cidade. Não havia como ver dentro daqueles olhos, não havia reflexo.
Eles se destacavam no rosto pálido, que era branco como neve, branco como
mármore, branco como, bem, como era esperado do recluso da cidade. O
cabelo dele era grisalho, mais cinza perto do rosto, preto como o de Lena no
alto.


Ele poderia ser algum tipo de astro do cinema americano da época antes
do Technicolor, ou talvez da realeza de algum pequeno país do qual ninguém
nunca tinha ouvido falar por aqui. Mas Macon Ravenwood era daqui. Essa
era a parte confusa. O Velho Ravenwood era o bicho-papão de Gatlin, uma
história que eu ouvia desde o jardim de infância. Mas agora ele parecia
pertencer à cidade ainda menos do que eu.

Ele fechou o livro que estava segurando, nunca tirando os olhos de mim.
Estava olhando para mim, mas era quase como se estivesse olhando através
de mim, procurando por alguma coisa. Talvez ele tivesse visão raio-X.
Levando em consideração a semana anterior, tudo era possível.

Meu coração batia tão alto que eu tinha certeza de que ele podia escutar.
Macon Ravenwood tinha me abalado e sabia disso. Nenhum de nós sorriu. O
cachorro dele estava tenso e rígido ao seu lado, como se esperando a ordem
de ataque.

— Onde estão meus modos? Entre, Sr. Wate. Estávamos prestes a nos
sentarmos para jantar. Você deve se juntar a nós. O jantar é o ponto alto aqui
em Ravenwood.

Olhei para Lena, esperando alguma dica.

Diga que não quer ficar.

Acredite, não quero.

— Não, está tudo bem, senhor. Não quero atrapalhar. Só vim deixar o
dever de casa de Lena. — Levantei a pasta azul brilhante pela segunda vez.

— Bobagem, você tem que ficar. Vamos apreciar alguns cubanos na
estufa depois do jantar, ou você é um homem de cigarrilhas? A não ser, é
claro, que se sinta pouco à vontade para entrar na casa, e nesse caso eu
entendo perfeitamente. — Eu não conseguia saber se ele estava brincando.

 Lena passou o braço pela cintura dele, e eu pude ver seu rosto muda
instantaneamente. Como o sol aparecendo entre nuvens negras em um dia
cinzento.

— Tio M, não provoque Ethan. Ele é o único amigo que tenho aqui, e se
você o espantar, terei que ir morar com tia Del, e assim não terá ninguém
para torturar.

— Ainda terei Boo.

O cachorro olhou para Macon com expressão de dúvida.

— Vou levá-lo comigo. É a mim que ele segue pela cidade, não você.


Eu tinha que perguntar:

— Boo? O nome do cachorro é Boo Radley?

Macon deu um sorriso mínimo.

— Melhor ele do que eu. — Ele jogou a cabeça para trás e riu, o que me
assustou, pois não havia como eu ter imaginado as feições dele formando ao
menos um sorriso. Ele abriu bem a porta. — De verdade, Sr. Wate, junte-se a
nós. Eu adoro companhia, e faz séculos que Ravenwood teve o prazer de
receber um convidado do nosso deiicioso pequeno condado de Gatlin.

Lena sorriu sem jeito.

— Não seja esnobe, tio M. Não é culpa deles que você nunca fala com
ninguém.

— E não é minha culpa que tenho uma queda por boa educação,
inteligência razoável e higiene pessoal satisfatória, não necessariamente nessa
ordem.

— Ignore-o. Ele está de mau humor. — Lena parecia sem graça.

— Deixe-me adivinhar. Tem alguma coisa a ver com o diretor Harper?

Lena assentiu.

— A escola ligou. Enquanto o incidente está sendo investigado, estou em
observação. — Ela revirou os olhos. — Mais uma "infração" e vão me
suspender.

Macon riu com desprezo, como se estivéssemos falando de uma coisa
completamente sem consequências.

— Observação? Que divertido. Observação implicaria uma fonte de
autoridade. — Ele nos empurrou para o hall na frente dele. — Um diretor
de escola de ensino médio acima do peso que mal terminou a faculdade e um
bando de donas de casa raivosas com pedigrees piores que o de Boo Radley
não se encaixam nessa categoria.

Passei pela porta e fiquei paralisado. O hall de entrada era grande e
majestoso, não o modelo de lar de classe média no qual havia entrado há
poucos dias. Uma pintura a óleo gigantesca, o retrato de uma mulher
incrivelmente bela com olhos dourados brilhantes, ficava sobre a escadaria,
que não era mais moderna, mas uma escadaria clássica que parecia apoiada
apenas no ar. Scarlett O'Hara podia ter descido por ela em uma saia armada
e não pareceria nada deslocada. Lustres de cristal em camadas estavam
pendurados no teto. O hall estava cheio de mobília vitoriana antiga,


pequenos grupos de cadeiras bordadas cheias de detalhes, tampos de mesa de
mármore e samambaias graciosas. Uma vela brilhava em cada superfície.
Portas altas e cobertas de persianas estavam abertas; a brisa trazia o aroma de
gardênias, que estavam arrumadas em altos vasos de prata, posicionados nos
tampos de mesa.

Por um segundo, quase pensei estar de volta em uma das visões, só que o
medalhão estava seguramente envolvido no lenço em meu bolso. Eu sabia
porque verifiquei. E aquele cachorro assustador ficava me olhando da
escadaria.

Mas não fazia sentido. Ravenwood tinha se transformado em uma coisa
completamente diferente desde a última vez que estive lá. Parecia impossível,
como se eu tivesse voltado no tempo. Mesmo se não fosse real, queria que
minha mãe tivesse visto isso. Ela teria amado esse lugar. Só que agora parecia
real, e eu sabia que a casa grande era assim a maior parte do tempo. Parecia
com Lena, com o jardim murado, com Greenbrier.

Por que não era assim antes?

Do que você está falando?

Acho que você sabe.

Macon andava na nossa frente. Viramos no que tinha sido uma sala de
estar aconchegante semana passada. Agora era um grandioso salão de baile,
com uma longa mesa com pés em forma de garra posta para três, como se
eles estivessem me esperando.

O piano continuou a tocar sozinho no canto. Deduzi que era um
daqueles automáticos. A cena era assustadora, como se a sala devesse estar
tomada pelo barulho de copos e risadas. Ravenwood estava dando a festa do
ano, mas eu era o único convidado.

Macon ainda estava falando. Tudo que ele dizia ecoava nas paredes
gigantes com afrescos e tetos abobadados e esculpidos.

— Acho que sou um esnobe. Abomino cidades pequenas. Abomino
cidadãos de cidades pequenas. Eles têm mentes estreitas e traseiros enormes.
Isso quer dizer que aquilo que falta neles por dentro existe em excesso por
fora. São como porcarias alimentares. Engordam e não levam a satisfação
nenhuma. — Ele sorriu, mas não foi um sorriso simpático.

— Então por que não se muda daqui?

Senti uma onda de irritação que me levou de volta à realidade, fosse qual


fosse a realidade onde eu estava. Uma coisa era eu fazer piada de Gatlin. Era
diferente vindo de Macon Ravenwood. Vinha de um lugar diferente.

— Não seja absurdo. Ravenwood é meu lar, não Gatlin. — Ele cuspiu a
palavra como se ela fosse tóxica. — Quando eu me for dos limites dessa vida,
terei que encontrar alguém para cuidar de Ravenwood no meu lugar, já que
não tenho filhos. Sempre foi meu grande e terrível objetivo manter
Ravenwood viva. Gosto de pensar sobre mim mesmo como o curador de um
museu vivo.

— Não seja tão dramático, tio M.

— Não seja tão diplomática, Lena. Por que você quer interagir com
aquelas pessoas limitadas da cidade, jamais entenderei.

O cara está certo.

Está dizendo que não quer que eu vá à escola?

Não... Só quis dizer...

Macon olhou para mim.

— Exceto nossa companhia atual, é claro.

Quanto mais ele falava, mais curioso eu ficava. Quem diria que o Velho
Ravenwood era a terceira pessoa mais inteligente da cidade, depois de minha
mãe e Marian Ashcroft? Ou talvez a quarta, caso meu pai voltasse a aparecer
algum dia.

Tentei ver o nome do livro que Macon estava segurando.

— O que é isso, Shakespeare?

— Betty Crocker, uma mulher fascinante. Eu estava tentando me
lembrar o que os cidadãos locais consideravam uma refeição noturna. Estava
no clima para uma receita regional esta noite. Decidi fazer carne de porco
grelhada. — Mais carne de porco grelhada. Me senti enjoado só de pensar.

Macon puxou a cadeira de Lena com um floreio.

— Falando em hospitalidade, Lena, seus primos vêm para os Dias de
Reunião. Lembremos de dizer para a Casa e Cozinha que teremos cinco
pessoas a mais.

Lena parecia irritada.

— Direi para a equipe da cozinha e para os empregados da casa, se é isso
que quer dizer, tio M.

— O que são os Dias de Reunião?

— Minha família é muito estranha. A Reunião é só um festival antigo de


colheita, como um Dia de Ação de Graças antecipado. Deixa pra lá.

Eu nunca soube de ninguém que visitasse Ravenwood, familiar ou não.
Nunca tinha visto um único carro virar naquela bifurcação da estrada.

Macon parecia divertido.

— Como quiser. Falando em Cozinha, estou completamente faminto.
Vou ver o que ela preparou para nós.

Enquanto ele falava, ouvi panelas e potes batendo em algum recinto
distante do salão.

— Não exagera, tio M. Por favor.

Observei Macon Ravenwood desaparecer por uma sala. Eu ainda ouvia
o barulho dos seus sapatos elegantes no chão polido. Essa casa era ridícula,
azia a Casa Branca parecer uma cabana de fundo de roça.

— Lena, o que está acontecendo?

— O que você quer dizer?

— Como ele sabia que devia arrumar o lugar para mim?

— Ele deve ter feito isso quando nos viu na varanda,

— E quanto a esse lugar? Entrei na sua casa no dia que achamos o
medalhão. Não era nada desse jeito.

Conte para mim. Pode confiar.

Ela brincou com a barra do vestido. Teimosa.

— Meu tio gosta de antiguidades. A casa muda o tempo todo. Isso é
mesmo importante?

Seja lá o que fosse que estivesse acontecendo, ela não ia me contar agora.

— Tudo bem então. Você se importa se eu der uma olhada?

Ela franziu a testa, mas não disse nada. Levantei da cadeira e andei até a
sala ao lado. Estava arrumada como um pequeno escritório, com sofás, uma
lareira e algumas pequenas mesas de escrever. Boo Radley estava deitado em
frente ao fogo. Ele começou a rosnar no momento que botei o pé na sala.

— Bom cachorrinho.

Ele rosnou mais alto. Andei de costas para fora da sala. Ele parou de
rosnar e deitou a cabeça perto da lareira.

Sobre a mesa de escrever mais próxima havia um pacote, embrulhado
em papel pardo e amarrado com um barbante. Eu o peguei. Boo Radley
começou a rosnar de novo. Estava carimbado Biblioteca do Condado de
Gatlin. Eu conhecia o carimbo. Minha mãe tinha recebido centenas de


pacotes como aquele. Só Marian Ashcroft se daria ao trabalho de embrulhar
um livro daquele jeito.

— Você se interessa por bibliotecas, Sr. Wate? Conhece Marian
Ashcroft? — Macon apareceu do meu lado, pegando o pacote da minha mão
e olhando para ele com prazer.

— Sim, senhor. Marian, a Dra. Ashcroft, era a melhor amiga da minha
mãe. Elas trabalhavam juntas.

Os olhos de Macon brilharam momentaneamente, e depois nada. O
momento passou.

— É claro. Que grande burrice minha. Ethan Wate. Eu conhecia sua
mãe.

Congelei. Como Macon Ravenwood podia ter conhecido minha mãe?

Uma expressão estranha passou por seu rosto, como se estivesse
relembrando algo que tinha esquecido.

— Através do trabalho dela, é claro. Li tudo que ela escreveu. Na
verdade, se você olhar de perto as notas de rodapé de Fazendas e Plantações:
Um Jardim Dividido, verá que várias das fontes primárias de seu estudo
vieram da minha coleção pessoal. Sua mãe era brilhante, uma grande perda.

Consegui dar um sorriso.

— Obrigado.

— Eu ficaria honrado em mostrar minha biblioteca a você,
naturalmente. Seria um grande prazer compartilhar minha coleção com o
único filho de Lila Evers.

Olhei para ele, aturdido pelo som do nome da minha mãe saindo da
boca de Macon Ravenwood.

— Wate. Lila Evers Wate.

Ele sorriu mais abertamente.

— É claro. Mas cada coisa no seu tempo. Acredito, pela ausência de
ruídos na Cozinha, que o jantar foi servido. — Ele deu um tapinha no meu
ombro e andamos de volta para o grande salão.

Lena estava esperando por nós à mesa, acendendo uma vela que tinha
apagado com a brisa da noite. A mesa estava coberta com um banquete
elaborado, embora eu não conseguisse imaginar como tinha chegado ali. Eu
não tinha visto uma única pessoa na casa, além de nós três. Agora havia uma
nova casa, um cachorro-lobo e tudo isso. E eu tinha esperado que Macon


Ravenwood fosse a parte mais esquisita da noite.

Havia comida o bastante para alimentar o FRA, todas as igrejas da
cidade e o time de basquete reunidos. Só que não era o tipo de comida que já
tivesse sido servido em Gatlin. Havia uma coisa que parecia um porco assado
inteiro, com uma maçã enfiada na boca. Um assado de costela com papel-
alumínio embrulhando a ponta de cada costela estava ao lado de um ganso
desfigurado coberto de castanhas. Havia tigelas de molho de carne e outros
molhos e cremes, pães de vários tipos, repolho e beterraba e pastas que eu
não sabia identificar. E, é claro, sanduíches de carne de porco grelhada, que
pareciam bastante deslocados no meio dos outros pratos. Olhei para Lena,
enjoado ao pensar o quanto eu teria que comer para ser educado.

— Tio M. Isso é muita coisa.

Boo, enrolado ao redor das pernas da cadeira de Lena, balançou o rabo
de expectativa.

— Bobagem. Isso é uma comemoração. Você fez um amigo. A Cozinha
vai ficar ofendida.

Lena olhou para mim com ansiedade, como se tivesse medo de que eu
fosse levantar para ir ao banheiro e fugisse. Dei de ombros e comecei a
encher meu prato. Talvez Amma me deixasse ficar sem café amanhã.

Quando Macon estava servindo seu terceiro copo de uísque, pareceu ser
um bom momento para falar no medalhão. Pensando bem, eu o tinha visto
encher o prato de comida, mas não o vi comer nada. As coisas pareciam
desaparecer de seu prato com apenas uma ou duas garfadas. Talvez Boo
Radley fosse o cachorro mais sortudo da cidade.

Dobrei meu guardanapo.

— O senhor se importa se eu perguntar uma coisa? Já que o senhor
parece saber tanto sobre História e, bem, não posso perguntar para minha
mãe.

O que você está fazendo?

Só estou fazendo uma pergunta.

Ele não sabe de nada.

Lena, temos que tentar.

— É claro.

Macon tomou um gole do copo.

Enfiei a mão no bolso e peguei o medalhão da bolsinha que Amma tinha


me dado, tomando cuidado para mantê-lo embrulhado no lenço. Todas as
velas se apagaram. As luzes ficaram fracas e depois também se apagaram. Até
a música do piano parou.

Ethan, o que você está fazendo?

Não fiz nada.

Ouvi a voz de Macon na escuridão,

— O que é isso na sua mão, filho?

— É um medalhão, senhor.

— Incomodaria muito botá-lo de volta no bolso? — A voz dele estava
calma, mas eu sabia que ele não estava. Eu podia perceber que estava se
esforçando muito para se controlar. A atitude falastrona dele tinha sumido. A
voz estava meio aguda, tinha uma sensação de urgência que ele estava
tentando muito disfarçar.

Enfiei o medalhão de volta na bolsinha e a coloquei no meu bolso. Na
outra ponta da mesa, Macon tocou os dedos nos candelabros. Um a um, as
velas na mesa acenderam de novo. O banquete todo tinha desaparecido.

À luz de velas, Macon parecia sinistro. E também estava em silêncio pela
primeira vez desde que o conheci, como se pesasse suas opções em uma
balança invisível que de alguma forma tinha nosso destino nela. Era hora de
ir. Lena estava certa, isso era uma péssima ideia. Talvez houvesse uma razão
para que Macon Ravenwood nunca saísse de casa.

— Desculpe, senhor. Eu não sabia que isso ia acontecer. Minha
governanta, Amma, agiu como... como se o medalhão fosse realmente
poderoso quando o mostrei a ela. Mas quando Lena e eu o achamos, nada de
ruim aconteceu.

Não conte mais nada a ele. Não mencione as visões.

Não contarei. Só queria descobrir se eu estava certo sobre Genevieve.

Ela não precisava se preocupar; eu não queria contar nada a Macon
Ravenwood. Só queria sair dali. Comecei a me levantar.

— Acho que preciso ir para casa, senhor. Está ficando tarde.

— Você se importa de descrever o medalhão para mim? — Foi mais
uma ordem do que um pedido.

Não falei uma palavra.

Foi Lena que finalmente falou.

— Ê velho e está danificado, com um camafeu na frente. Achamos em


Greenbrier.

Macon girou o anel de prata, agitado.

— Você devia ter me contado que foi a Greenbrier. Não é parte de
Ravenwood. Não posso mantê-la segura lá.

— Eu estava segura lá. Dava pra sentir.

Segura de quê? Isso era mais do que um pouco superprotetor.

— Não estava. É além dos limites. Não pode ser controlado, por
ninguém. Há muita coisa que você não sabe. E ele... — Macon gesticulou em
minha direção na outra ponta da mesa. — Ele não sabe de nada. Não pode
proteger você. Você não devia tê-lo envolvido nisso.

Eu falei. Tinha que falar. Ele estava falando sobre mim como se eu nem
estivesse lá.

— Isso se trata de mim também, senhor. Há iniciais na parte de trás do
medalhão. ECW. ECW era Ethan Carter Wate, meu tatara-tio. E as outras
iniciais eram GKD, e estamos bastante certos de que o D representa
Duchannes.

Ethan, pare.

Mas eu não podia.

— Não há motivo para esconder nada de nós porque seja lá o que for que
esteja acontecendo, está acontecendo com nós dois. E goste ou não, parece
estar acontecendo agora.

Um vaso de gardênias voou pela sala e quebrou contra a parede. Esse era
o Macon Ravenwood do qual falávamos desde que éramos crianças.

— Você não tem ideia do que está falando, rapazinho.

Ele me olhou bem nos olhos, com uma intensidade sombria que fez pelos
do meu pescoço se eriçarem. Estava tendo dificuldade em se controlar. Eu
tinha passado dos limites. Boo Radley levantou e andava atrás de Macon
como se estivesse vigiando a presa, os olhos assombrosamente redondos e
familiares.

Não diga mais nada.

Os olhos dele se apertaram. O glamour de astro de cinema tinha sumido,
substituído por algo bem mais sinistro. Eu queria correr, mas estava preso ao
chão. Paralisado.

Eu estava errado sobre a casa e Macon Ravenwood. Estava com medo
dos dois.


Quando ele finalmente falou, era como se estivesse falando consiga
mesmo.

— Cinco meses. Você sabe até onde irei para mantê-la segura por cinco
meses? O que vai custar a mim? Como vai me esgotar, talvez me destruir?

Sem uma palavra, Lena andou até o lado dele e colocou a mão em seu
ombro. E então a tempestade nos olhos dele sumiu tão rapidamente quanto
chegara, e ele recuperou a compostura.

— Amma parece uma mulher sábia. Eu consideraria seguir seus
conselhos. Devolveria o objeto ao lugar onde o encontrou. Por favor, não o
traga à minha casa de novo. — Macon ficou de pé e jogou o guardanapo
sobre a mesa. — Acho que nossa pequena visita à biblioteca vai ter que
esperar, você não acha? Lena, pode ajudar seu amigo a encontrar o caminho
de casa? É claro que foi uma noite extraordinária. Extremamente instrutiva.
Por favor, volte, Sr. Wate.

E então a sala ficou escura e ele sumiu.



* * *



Eu mal podia esperar para sair daquela casa. Eu queria me afastar do tio
assustador de Lena e de sua casa de horrores. Que diabos tinha acabado de
acontecer? Lena me apressou até a porta, como se tivesse medo do que podia
acontecer se não me tirasse de lá. Mas quando passamos pelo hall principal,
reparei uma coisa que não tinha reparado antes.

O medalhão. A mulher com os assombrosos olhos dourados na pintura a
óleo estava usando o medalhão. Agarrei o braço de Lena. Ela viu e ficou
paralisada.

Não estava aí antes.

O que você quer dizer?

Esse quadro está pendurado aí desde que eu era criança. Passei por ele
milhares de vezes. Ela nunca esteve de medalhão.














p 15 de setembro p

d



Uma bifurcação na estrada















 N



ós mal nos falamos enquanto íamos de carro para a minha casa. Eu
não sabia o que dizer, e Lena parecia agradecida por eu estar calado.
Ela me deixou dirigir, o que era bom porque eu precisava de algo
para me distrair até que minha pulsação desacelerasse. Passamos pela minha
rua, mas eu não me importei. Não estava pronto para ir para casa. Não sabia
o que estava se passando com Lena nem com sua casa e nem com seu tio,
mas ela ia me contar.

— Você passou direto pela sua rua. — Foi a primeira coisa que ela disse .
desde que saímos de Ravenwood.

— Eu sei.

— Você acha que meu tio é louco, como todo mundo. Apenas diga.
Velho Ravenwood. — A voz dela estava amarga. — Preciso voltar para casa.

Não falei uma palavra enquanto circulamos General’s Green, o pedaço
redondo de grama desbotada que rodeava a única coisa em Gatlin que
chegou a livros de guias turísticos: o general, uma estátua do general da
Guerra Civil Jubal A. Early. O general marcava seu território, como sempre
tinha feito, o que agora me parecia meio errado. Tudo tinha mudado; tudo
continuava mudando. Eu estava diferente, vendo coisas e sentindo coisas e
fazendo coisas que mesmo uma semana atrás pareceriam impossíveis. Eu
sentia como se o general devesse ter mudado também.

Desci a Dove Street e encostei o rabecão no meio fio, bem embaixo da
placa que dizia BEM-VINDOS A GATLIN, LAR DAS FAZENDAS
HISTÓRICAS MAIS PECULIARES DO SUL E DA MELHOR TORTA


DE CREME DO MUNDO. Eu não tinha certeza sobre a torta, mas o resto
era verdade.

— O que você está fazendo?

Desliguei o carro.

— Precisamos conversar.

— Não fico dentro de um carro estacionado com rapazes. — Era uma
piada, mas eu podia perceber em sua voz. Ela estava apavorada.

— Comece a falar.

— Sobre o quê?

— Está brincando, certo? — Eu estava tentando não gritar.

Ela puxou o cordão, remexendo no anel da lata de refrigerante.

— Não sei o que você quer que eu diga.

— Que tal me explicar o que aconteceu na casa?

Ela olhava a escuridão pela janela.

— Ele estava zangado. Às vezes ele perde a cabeça.

— Perde a cabeça? Você quer dizer lançar coisas pela sala sem tocar
nelas e acender velas sem fósforos?

— Ethan, desculpa. — A voz dela estava baixa.

Mas a minha não estava. Quanto mais ela evitava minhas perguntas,
mais irritado eu ficava.

— Não quero que peça desculpa. Quero que me conte o que está
acontecendo.

— Sobre o quê?

— Seu tio e a casa esquisita dele, que ele de alguma forma conseguiu
redecorar em dois dias. A comida que aparece e desaparece. Todo o papo
sobre limites e proteger você. Escolha um.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não posso falar sobre isso. E você não entenderia de qualquer jeito.

— Como sabe se não me dá uma chance?

— Minha família é diferente de outras famílias. Acredite em mim, você
não vai conseguir lidar com isso.

— O que isso quer dizer?

— Encare, Ethan. Você diz que não é como eles, mas é. Você quer que
eu seja diferente, mas só um pouco. Não diferente de verdade.

— Sabe de uma coisa? Você é tão doida quanto seu tio.


— Você foi à minha casa sem ser convidado e agora está irritado porque
não gostou do que viu.

Não respondi. Eu não conseguia ver nada pela janela e não consegui
pensar claramente também.

— E está irritado porque está com medo. Todos estão. No fundo, você
são todos iguais. — Lena soava cansada agora, como se já tivesse desistido.

— Não. — Olhei para ela. — Você está com medo.

Ela riu com amargura.

— Tá certo. As coisas das quais tenho medo você não consegue nem
imaginar.

— Está com medo de confiar em mim.

Ela não disse nada.

— Está com medo de conhecer alguém bem o bastante a ponto de
perceber se ele foi ou não à escola.

Ela passou o dedo pelo embaçado na janela. Fez uma linha tremida
como um ziguezague.

— Está com medo de ficar e ver o que acontece.

O ziguezague virou uma coisa que parecia um raio.

— Você não é daqui. Está certa. E não é só um pouco diferente.

Ela ainda olhava pela janela, para o nada, porque ainda não dava para
ver lá fora. Mas eu podia vê-la. Eu podia ver tudo.

— Você é incrivelmente, absolutamente, extremamente,
inacreditavelmente diferente. — Toquei o braço dela com a ponta dos dedos,
e imediatamente senti o calor da eletricidade. — Sei disso porque lá no fundo
eu acho que também sou. Então me diga. Por favor. Diferente como?

— Não quero contar pra você.

Uma lágrima escorreu por sua bochecha. Peguei-a com meu dedo, e ela
também era quente.

— Por que não?

— Porque essa pode ser minha última chance de ser uma garota normal,
mesmo que seja em Gatlin. Porque você é meu único amigo aqui. Porque se
eu contar, você não vai acreditar em mim. Ou pior, vai acreditar. — Ela
abriu os olhos e olhou dentro dos meus. — De qualquer modo, você nunca
mais vai querer falar comigo.

Houve uma batida na janela, e nós dois pulamos. Uma lanterna brilhou


pela janela embaçada. Baixei a mão e desci a janela, xingando baixinho.

— Crianças, se perderam indo pra casa? — Fatty. Ele estava sorrindo
como se tivesse dado de cara com dois donuts na rua.

— Não, senhor. Estamos a caminho de casa agora.

— Esse carro não é seu, Sr. Wate.

— Não, senhor.

Ele jogou o facho da lanterna em direção a Lena, deixando-a iluminada
por um longo tempo.

— Então vão em frente, vão pra casa. Você não quer deixar Amma
esperando.

— Sim, senhor.

Virei a chave na ignição. Quando olhei pelo retrovisor, pude ver a
namorada dele, Amanda, no banco da frente do carro de polícia, rindo.













Bati a porta do carro. Eu podia ver Lena pela janela do motorista agora
enquanto ela esperava em frente à minha casa.

— Te vejo amanhã.

— Claro.

Mas eu sabia que não nos veríamos de novo no dia seguinte. Sabia que se
ela dirigisse até o fim da minha rua, era o fim. Era um caminho, como a
bifurcação que levava a Ravenwood ou Gatlin. A gente tinha que escolher
um. Se ela não pegasse esse agora, o rabecão continuaria seguindo pelo outro
caminho na bifurcação, passando direto por mim. Assim como na primeira
manhã que o vi.

Se ela não me escolhesse.

Ninguém podia pegar dois caminhos. E depois de escolher um, não era
possível voltar. Ouvi a marcha sendo engrenada, mas continuei andando até
minha porta. O rabecão foi embora.

Ela não me escolheu.












Estava deitado na minha cama, de frente para a janela. A luz da lua entrava
por ela, o que era irritante, pois me impedia de adormecer quando tudo que
eu queria era que aquele dia terminasse.

Ethan. A voz era tão suave que quase não consegui ouvir.

Olhei para a janela. Estava trancada, eu tinha me assegurado disso.

Ethan. Por favor.

Fechei meus olhos. A tranca na janela tremeu.

Me deixe entrar.

A janela de madeira abriu de repente. Eu diria que foi o vento, mas é
claro que não havia nem uma brisa. Saí da cama e olhei para fora.

Ela estava no meu jardim — de pijama. Os vizinhos teriam assunto para
um dia inteiro, e Amma teria um ataque cardíaco.

— Você desce ou eu vou subir.

Um ataque cardíaco e depois um derrame.









Sentamos na escada da varanda. Eu estava de jeans, porque eu não dormia
de pijama, e se Amma saísse e me visse de cueca com uma garota, eu seria
enterrado no quintal antes do amanhecer.

Lena se encostou nos degraus, olhando para a tinta branca descascando
na varanda.

— Eu quase fiz a volta no final da sua rua, mas estava com medo demais
para isso.

Sob a luz da lua, eu podia ver que o pijama dela era verde e roxo e meio
num estilo chinês.

— Quando cheguei em casa, estava com medo demais para não voltar
aqui. — Ela estava mexendo no esmalte dos pés descalços, e era assim que eu
sabia que ela tinha alguma coisa a dizer. — Eu não sei fazer isso. Nunca tive
que dizer antes, então não sei como vai sair.


Passei uma das mãos no meu cabelo descabelado.

— Seja lá o que for, pode me contar. Sei como é ter uma família maluca.

— Você acha que sabe o que é maluquice. Mas não tem ideia.

Ela respirou fundo. Seja lá o que ela fosse falar, era difícil para ela. Eu
podia vê-la lutando para encontrar as palavras.

— As pessoas na minha família e eu, nós temos poderes. Conseguimos
fazer coisas que pessoas normais não conseguem. Nascemos assim, não
podemos evitar. Somos o que somos.

Levei um segundo para entender do que ela estava falando, ou ao menos
do que eu achava que ela estava falando.

Magia.

Onde estava Amma quando eu precisava dela?

Fiquei com medo de perguntar, mas precisava saber.

— E o que exatamente vocês são? — Parecia tão louco que eu quase não
consegui pronunciar as palavras.

— Conjuradores — ela disse baixinho.

— Conjuradores?

Ela assentiu.

— Tipo, conjuradores de feitiços?

Ela assentiu de novo.

Eu a encarei. Talvez ela fosse louca.

— Tipo, bruxas?

— Ethan. Não seja ridículo.

Expirei, momentaneamente aliviado. É claro, eu era um idiota. O que eu
estava pensando.

— Essa palavra é muito idiota. É como chamar alguém de "o atleta". Ou
"nerd". É só um estereótipo imbecil.

Meu estômago revirou. Parte de mim queria sair correndo escada acima,
trancar a porta e me esconder na cama. Mas outra parte, uma parte maior,
queria ficar. Porque, afinal, uma parte de mim não só não sabia? Eu posso
não ter entendido o que ela era, mas eu sabia que havia algo nela, algo maior
que apenas o cordão cheio de tralhas e o All Star velho. O que eu esperava de
alguém que podia fazer cair uma tempestade? Que podia alar comigo sem
nem estar no mesmo recinto? Que podia controlar a direção na qual as
nuvens flutuavam no céu? Que podia abrir a janela do meu quarto estando


no jardim?

— Você consegue dar um nome melhor?

— Não há uma palavra que descreva todas as pessoas na minha família.
Há uma que descreva todas as pessoas da sua?

Eu queria quebrar a tensão, fingir que ela era apenas uma garota
qualquer. Para me convencer de que isso podia ficar bem.

— Há. Lunáticos.

— Somos Conjuradores. Essa é a definição ampla. Todos nós temos
poderes. Temos um dom, assim como algumas famílias são inteligentes e
outras são ricas, bonitas ou atléticas.

Eu sabia qual era a pergunta seguinte, mas não queria fazê-la. Eu já
sabia que ela podia quebrar uma janela com sua mente apenas. Não sabia se
eu estava pronto para saber o que mais ela podia quebrar.

De qualquer modo, estava começando a parecer que estávamos falando
de uma família louca do sul qualquer, como as Irmãs. Os Ravenwood
estavam aqui há tanto tempo quanto qualquer família de Gatlin. Por que a
família deles seria menos maluca? Ou pelo menos foi o que tentei dizer a mim
mesmo.

Lena encarou o silêncio como um sinal ruim.

— Eu sabia que não devia ter dito nada. Falei para você me deixar em
paz. Agora provavelmente pensa que sou uma aberração.

— Acho que você é talentosa.

— Você acha que minha casa é esquisita. Já admitiu isso.

— E daí que vocês redecoram, e muito. — Eu estava tentando entender.
Estava tentando mantê-la sorrindo. Sabia o quanto devia ter custado a ela me
dizer a verdade. Não podia abandoná-la agora. Me virei e apontei para o
escritório aceso sobre os arbustos de azaleia, escondido atrás de grossas
janelas de madeira.

— Olhe. Vê aquela janela ali? É o escritório do meu pai. Ele trabalha a
noite toda e dorme o dia todo. Desde que minha mãe morreu, ele não sai de
casa. Nem me mostra o que está escrevendo.

— Isso é muito romântico — disse ela baixinho,

— Não, é loucura. Mas ninguém fala sobre isso, porque não sobrou
ninguém com quem falar. Exceto Amma, que esconde amuletos no meu
quarto e grita comigo por trazer joias velhas para casa.


Eu podia ver que ela estava quase sorrindo.

— Talvez você seja uma aberração.

— Eu sou uma aberração, você é uma aberração. Sua casa faz recintos
desaparecerem, a minha faz pessoas desaparecerem. Seu tio recluso é doido e
meu pai recluso é lunático, então não sei o que você acha que nos torna tão
diferentes.

Lena sorriu, aliviada.

— Estou tentando achar um jeito de ver isso como um elogio.

— É um elogio.

Olhei para ela sorrindo sob a luz da lua, um sorriso real. Havia algo no
jeito dela naquele momento. Eu me imaginei me inclinando um pouco para
beijá-la. Me forcei para longe, um degrau acima de onde ela estava.

— Você está bem?

— Estou bem, sim. Só estou cansado.

Mas não estava.











Ficamos daquele jeito, conversando nos degraus, durante horas. Me deitei no
degrau de cima; ela se deitou no degrau de baixo. Observamos o céu escuro
noturno, depois o céu escuro da madrugada, até que pudemos ouvir os
pássaros.

Quando o rabecão finalmente se afastou, o sol começava a nascer.
Observei Boo Radley saltitar lentamente na direção de casa atrás dele. Na
velocidade em que ele ia, seria hora do sol se pôr quando chegasse em casa.
Às vezes eu pensava em por que ele se dava ao trabalho.

Cachorro burro.

Coloquei a mão na maçaneta de metal da minha porta, mas quase não
consegui abri-la. Tudo estava de cabeça para baixo, e nada lá dentro poderia
mudar aquilo. Minha mente estava confusa, misturada como numa grande
frigideira de ovos de Amma, do jeito que minhas entranhas já estavam há
dias.

A-C-O-V-A-R-D-A-D-O. É assim que Amma me chamaria. Dez


horizontal, o mesmo que covarde. Eu estava com medo. Eu tinha dito para
Lena que não era nada demais que ela e a família dela... eram o quê? Bruxos?
Conjuradores?

É, nada demais.

Eu era um grande mentiroso. Aposto que até aquele cachorro burro
podia perceber isso.




























































p 24 de setembro p

d



As últimas três fileiras















S



abe aquela expressão, "caiu sobre mim como uma bomba"? É verdade.
No minuto que ela virou o carro e acabou na minha porta de pijama
roxo, foi assim que me senti em relação à Lena.

Eu sabia que ia acontecer. Só não sabia que a sensação seria aquela.

Desde então, havia dois lugares onde eu queria estar: com Lena ou
sozinho, para que eu pudesse organizar tudo em minha mente. Eu não tinha
palavras para o que nós éramos. Ela não era minha namorada; não
estávamos nem ficando. Até a semana anterior, ela nem admitia que éramos
amigos. Eu não tinha ideia de como ela se sentia em relação a mim, e não
podia mandar Savannah descobrir. Não queria arriscar o que nós tínhamos,
fosse o que fosse. Então por que eu pensava nela a cada segundo? Por que eu
ficava tão mais feliz quando a via? Eu sentia que talvez soubesse a resposta,
mas como podia ter certeza? Eu não sabia, e não tinha nenhum jeito de
descobrir.

Homens não falam de coisas assim. Apenas ficamos deitados debaixo dos
escombros.







— O que você está escrevendo?

Ela fechou o caderno espiral que parecia carregar para todo lugar. O
time de basquete não tinha treino às quartas-feiras, então Lena e eu
estávamos sentados no jardim de Greenbrier, que eu meio que tinha
nomeado como o nosso lugar especial, apesar de isso ser uma coisa que eu


jamais admitiria, nem mesmo para ela. Era onde tínhamos encontrado o
medalhão. Era um lugar onde podíamos ficar sem todo mundo olhar e
cochichar. Deveríamos estar estudando, mas Lena estava escrevendo no
caderno e eu tinha lido o mesmo parágrafo sobre a estrutura interna dos
átomos nove vezes. Nossos ombros encostavam um no outro, mas estávamos
de frente para lados opostos. Eu estava esparramado no sol poente; ela estava
sob a crescente sombra do carvalho coberto de musgo.

— Nada demais. Só estou escrevendo.

— Tudo bem, não precisa me contar. — Tentei não parecer
desapontado.

— É que... é uma bobagem.

— Então me conta.

Por um minuto ela não falou nada e ficou rabiscando na parte de
borracha do tênis com a caneta preta.

— É que eu escrevo poemas às vezes. Desde que eu era criança. Sei que é
esquisito.

— Não acho esquisito. Minha mãe era escritora. Meu pai é escritor. —
Eu podia senti-la sorrindo, apesar de não estar olhando para ela. — Tudo
bem, é um exemplo ruim, porque meu pai é esquisito, mas isso não é culpa da
escrita.

Esperei para ver se ela ia me passar o caderno e pedir para ler um. Não
tive essa sorte.

— Talvez eu possa ler um qualquer hora dessas.

— Duvido.

Ouvi o caderno ser aberto de novo e a caneta dela se movendo pela
página. Olhei para meu livro de Química, pensando na frase que tinha
ensaiado mentalmente cem vezes. Estávamos sozinhos. O sol estava indo
embora; ela estava escrevendo poesia. Se eu ia fazer aquilo, agora era a hora.

— Então, você quer, sabe, ficar junto? — Tentei parecer casual.

— Não é o que estamos fazendo?

Mastiguei a ponta de uma colher velha de plástico que eu tinha achado
na minha mochila, provavelmente de um pote de pudim.

— É. Não. Quero dizer, você quer, sei lá, ir a algum lugar?

— Agora?

Ela deu uma mordida em uma barra de cereal aberta e mudou as pernas


de posição de modo a ficar ao meu lado, estendendo-as até onde eu estava.
Balancei com a cabeça.

— Não agora. Na sexta, ou algum outro dia. Podíamos ir ao cinema.

Enfiei a colher no livro de Química, fechando-o.

— Isso é nojento. — Ela fez uma careta e virou a página.

— O que quer dizer? — Eu podia sentir meu rosto ficando vermelho.

Eu só estava falando de um filme.

Seu idiota.

Ela apontou para meu marcador de livros/colher suja.

— Eu estava falando disso.

Sorri aliviado.

— E. Um mau hábito que peguei da minha mãe.

— Ela gostava de talheres?

— Não, de livros. Ela lia uns vinte ao mesmo tempo, e os deixava
espalhados pela casa; na mesa da cozinha, ao lado da cama, no banheiro, no
carro, nas bolsas dela, uma pequena pilha na beirada de cada escada. E usava
qualquer coisa que encontrasse para marcar. Uma meia minha, um miolo de
maçã, os óculos de leitura dela, outro livro, um garfo.

— Uma colher velha e suja?

— Exatamente.

— Aposto que isso deixava Amma maluca.

— Ela enlouquecia. Não, espere. Ela ficava... — Cavei bem fundo. — P-
E-R-T-U-R-B-A-D-A.

— Dez vertical? — Ela riu.

— Provavelmente.

— Isso era da minha mãe. — Ela mostrou um dos pingentes pendurados
na longa corrente de prata que parecia nunca tirar. Era um pequeno pássaro
dourado. — É um corvo.

— Por causa de Ravenwood?

— Não. Corvos são os pássaros mais poderosos no mundo dos
Conjuradores. A lenda diz que eles conseguem atrair energia para si e soltá-la
em outras formas. Às vezes são até temidos pelos seus poderes.

Observei enquanto ela desvencilhava o corvo dos outros pingentes e ele
caiu de volta no lugar, entre um disco com uma escrita estranha entalhada e
uma conta de vidro preta.


— Você tem muitos pingentes.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e olhou para o cordão.

— Não são exatamente pingentes, só coisas que têm algum significado
pra mim. — Ela mostrou o anel de metal de lata de refrigerante. — Isso é da
primeira lata de refrigerante de laranja que bebi, sentada na varanda da
minha velha casa em Savannah. Minha avó comprou pra mim quando voltei
da escola chorando porque ninguém botou nada na minha caixa de presentes
de dia dos namorados.

— Que fofo.

— Se fofo significar trágico...

— Eu quis dizer o fato de você ter guardado.

— Guardo tudo.

— O que é isso? — Apontei para a conta preta.

— Minha tia Twyla me deu. É feita daquelas pedras de áreas bem
remotas em Barbados. Ela disse que me traria sorte.

— É um cordão legal. — Eu podia ver o quanto ele significava para ela
pelo modo como ela segurava cada coisa, com tanto cuidado.

— Sei que parece um monte de lixo. Mas nunca morei em nenhum lugar
por muito tempo. Nunca tive a mesma casa ou o mesmo quarto por mais de
alguns anos, e algumas vezes sinto que nessa corrente estão pedaços de mim,
e eles são tudo que tenho.

Suspirei e puxei um pedaço de capim.

— Queria ter morado em um desses lugares.

— Mas você tem raízes aqui. Um melhor amigo de vida inteira, uma casa
com um quarto que sempre foi seu. Você provavelmente até tem sua altura a
cada idade marcada na moldura da porta.

Eu tinha.

Você tem, não tem?

Eu a empurrei com o ombro.

— Posso medir você na moldura da minha porta se quiser. Você pode
ser imortalizada pela eternidade na propriedade Wate.

Ela sorriu para o caderno e empurrou o ombro contra o meu. Do canto
do olho, eu podia ver o sol da tarde batendo em um lado do seu rosto, uma
página do caderno, a ponta cacheada do cabelo e a ponta do Ali Star preta

Quanto ao filme, sexta está bom.


Então ela enfiou a barra de cereal no meio do caderno e o fechou.

As pontas dos nossos tênis surrados se tocaram.









Quanto mais eu pensava sobre sexta à noite, mais nervoso eu ficava. Não era
um encontro, não oficialmente, eu sabia disso. Mas aquela era apenas parte
do problema. Eu queria que fosse. O que você faz quando se dá conta de que
tem sentimentos por uma garota que mal admite ser sua amiga? Uma garota
cujo tio o chutou da casa deles e que não é bem-vinda na sua também? Uma
garota que quase todo mundo que você conhece Odeia? Uma garota que
compartilha dos seus sonhos, mas talvez não dos seus sentimentos?

Eu não tinha ideia, e é por isso que não fiz nada. Mas isso não me
impediu de pensar em Lena e quase dirigir até a casa dela na quinta à noite se
a casa dela não fosse fora da cidade, se eu tivesse um carro. Se o tio de não
fosse Macon Ravenwood. Esses eram "se" que me impediam de fazer papel de
bobo.

Todo dia era como um dia na vida de outra pessoa. Nada nunca
acontecia comigo, e agora tudo estava acontecendo — e quando eu digo tudo
estou querendo dizer Lena. Uma hora passava mais rápido e ao mesmo
tempo mais devagar. Eu sentia como se tivesse sugado o ar de um balão
gigante, como se meu cérebro não estivesse recebendo oxigênio suficiente. As
nuvens eram mais interessantes, o refeitório era menos nojento, a música
soava melhor, as mesmas velhas piadas eram mais engraçadas, e Jackson
passou de um amontoado de prédios industriais verdes acinzentados a um
mapa de momentos e locais onde eu poderia encontrar com ela. Eu me via
sorrindo sem motivo, usando fones de ouvido e repetindo nossas conversas
em minha mente só para poder ouvir sua voz de novo. Eu já tinha visto esse
tipo de coisa antes.

Só nunca tinha sentido.







Quando a sexta à noite finalmente chegou, eu tinha passado o dia de ótimo


humor, o que queria dizer que fui pior do que todo mundo na aula e melhor
do que todo mundo no treino. Eu tinha que gastar aquela energia acumulada
em algum lugar. Até o treinador notou e me mandou ficar para
conversarmos.

— Continue assim, Wate, e você pode ser visto por algum olheiro ano
que vem.

Link me deu uma carona até Summerville depois do treino. Os caras
estavam planejando ir ao cinema também, algo em que eu devia ter pensado
antes, já que o Cineplex só tinha uma sala. Mas era tarde demais, e eu já
passara do ponto de me preocupar.

Quando estacionamos o Lata-Velha, Lena estava parada, na escuridão,
em frente ao cinema iluminado. Ela usava uma camiseta roxa e um vestido
reto preto por cima que fazia a gente lembrar o quanto ela era uma garota, e
botas pretas detonadas que faziam a gente esquecer.

Do lado de dentro do cinema, além do grupo de sempre de alunos da
Faculdade Comunitária de Summerville, a equipe de líderes de torcida estava
reunida em formação, esperando no saguão junto com os caras do time. Meu
bom humor começou a evaporar.

— Oi.

— Você está atrasado. Comprei os ingressos.

Os olhos de Lena estavam ilegíveis na escuridão. Segui-a para dentro.
Estávamos a caminho de um ótimo começo.

— Wate! Venha aqui! — A voz de Emory soou no saguão, acima das
pessoas e da música dos anos 1980 que tocava.

— Wate, você está com uma garota? — Agora Billy estava pegando no
meu pé. Earl não disse nada, mas só porque Earl quase nunca dizia alguma
coisa.

Lena os ignorou. Ela esfregava a cabeça, andando na minha frente como
se não quisesse olhar para mim.

— Isso se chama ter uma vida — gritei acima da multidão. Eu pagaria
por ter dito aquilo na segunda-feira. Alcancei Lena. — Ei, desculpa por
aquilo.

Ela se virou para olhar para mim.

— Isso não vai dar certo se você for do tipo de pessoa que não quer ver os
trailers.


Esperei por você.

Eu sorri.

— Trailers e créditos, e o cara da pipoca dançando.

Ela olhou para além de mim, para os meus amigos, ou ao menos para as
pessoas que eram conhecidas dessa maneira.

Ignore-os.

— Com manteiga ou sem manteiga?

Ela estava irritada. Eu tinha me atrasado, e ela tinha encarado a brigada
social da Jackson sozinha. Agora era minha vez.

— Com manteiga — confessei, sabendo que seria a resposta errada.
Lena fez uma careta. — Mas troco a manteiga por sal extra — falei.

Os olhos dela seguiram para trás de mim, depois voltaram. Dava para
ouvir a risada de Emily se aproximando. Eu não me importava.

Ê só dizer que sairemos daqui, Lena.

— Sem manteiga, com sal e uns caramelos de chocolate misturados.
Você vai gostar — ela disse, os ombros relaxando um pouco.

Já gosto.

A equipe de torcida e os caras passaram por nós. Emily fez questão de
não olhar para mim, enquanto Savannah andou por Lena como se ela
estivesse infectada com algum vírus transmitido pelo ar, Eu só podia imaginar
o que elas diriam para as mães quando chegassem em casa.

Peguei a mão de Lena. Uma corrente percorreu meu corpo, mas dessa
vez não foi como o choque que senti aquela noite na chuva. Era mais como
uma confusão de sentidos. Como ser atingido por uma onda na praia e entrar
debaixo de um cobertor elétrico em uma noite de chuva, tudo ao mesmo
tempo. Deixei que se espalhasse. Savannah notou e cutucou Emily.

Você não precisa fazer isso.

Apertei a mão dela.

Fazer o quê?

— Ei, crianças. Vocês viram os caras? — Link deu um tapinha no meu
ombro, carregando um pote de pipoca com manteiga e um refrigerante
gigantesco.





No Cineplex passava um filme de assassinato e mistério, do tipo que Amma


teria gostado, considerando a queda dela por mistérios e cadáveres. Link
tinha ido sentar na frente com os caras, examinando no percurso as fileiras à
procura de garotas de faculdade. Não porque ele não quisesse sentar com
Lena, mas porque supôs que quiséssemos ficar sozinhos. Nós queríamos. Ou,
pelo menos, eu queria.

— Onde você quer sentar? Lá perto, no meio? — Esperei que ela
decidisse.

— Aqui atrás.

Segui-a pela última fileira de cadeiras.

A principal razão para os adolescentes de Gatlin irem ao Cineplex era
para ficar, já que qualquer filme que passava lá já tinha saído em DVD. Mas,
principalmente, era a única razão para sentar nas três últimas fileiras. O
Cineplex, a torre de água, e no verão, o lago. Fora isso, havia alguns
banheiros e porões, mas não muitas outras opções. Eu sabia que não íamos
ficar, mas mesmo se as coisas estivessem assim entre nós, eu não a teria
trazido aqui para isso. Lena não era uma garota qualquer que a gente levava
para ás três últimas fileiras do Cineplex. Ela era mais do que isso.

Ainda assim, a escolha foi dela, e eu sabia por que ela tinha escolhido.
Não havia lugar mais longe de Emily Asher do que a última fileira.

Talvez eu devesse ter avisado. Antes da abertura do filme, as pessoas já
estavam começando a se agarrar. Nós dois olhávamos para a pipoca, já que
não havia outro lugar seguro para olhar.

Por que você não disse nada?

Eu não sabia.

Mentiroso.

Serei um cavalheiro perfeito. Prometo.

Afastei as imagens para o fundo da minha mente e pensei sobre qualquer
coisa — o tempo, basquete — , e enfiei a mão no pote de pipoca. Lena fez o
mesmo ao mesmo tempo, e nossas mãos se tocaram por um segundo,
causando um arrepio que subiu pelo meu braço, quente e frio misturado.
Pick'n'Roll. Picket Fences. Down the Lane. Não havia jogadas o bastante no
manual de estratégias de basquete da Jackson. Isso ia ser mais difícil do que
eu tinha pensado.

O filme era péssimo. Depois de dez minutos, eu já sabia o final.

— Foi ele — sussurrei.


— O quê?

— Aquele cara. Ele é o assassino. Não sei quem ele mata, mas é ele. Esse
era o outro motivo pelo qual Link não queria sentar do meu lado: eu sempre
sabia o final logo no começo e não conseguia não compartilhar. Era minha
versão das palavras cruzadas. Por isso que eu era bom em videogames, jogos
de parque de diversão e damas com meu pai. Eu conseguia concluir coisas,
desde o primeiro momento.

— Como você sabe?

— Apenas sei.

Como isso termina?

Eu sabia o que ela queria dizer. Mas pela primeira vez, não sabia a
resposta.

Bem. Muito, muito bem.

Mentiroso. Agora me dê os caramelos.

Ela enfiou a mão no bolso do meu casaco de moletom, procurando por
eles. Só que foi do lado errado, e ela achou a última coisa que esperava achar.
Lá estava a bolsinha com o troço duro dentro que sabíamos ser o medalhão.
Lena sentou ereta de repente, puxando a bolsinha e segurando-a como se
fosse um rato morto.

— Por que você ainda carrega isso por aí no bolso?

— Shh.

Estávamos irritando as pessoas a nossa volta, o que era engraçado,
considerando que elas não estavam sequer assistindo ao filme. — Não posso
deixar em casa. Amma acha que o enterrei.

— Talvez devesse ter enterrado.

— Não importa, a coisa tem vontade própria. Quase nunca funciona.
Você viu todas as vezes que funcionou.

— Podem calar a boca?

O casal em frente a nós parou para respirar. Lena deu um pulo,
deixando o medalhão cair. Nós dois o pegamos. Vi o lenço caindo como se
fosse em câmera lenta. Eu mal conseguia ver o quadrado branco no escuro. A
tela grande se contorceu até virar um brilho de luz inconsequente, e nós já
sentiríamos o cheiro da fumaça...






Queimar uma casa com mulheres dentro.

Não podia ser verdade. Mamãe. Evangeline. A mente de Genevieve
estava a mil. Talvez não fosse tarde demais. Ela saiu correndo, ignorando as
garras que eram os arbustos, incitando-a a voltar, e as vozes de Ethan e Ivy
gritando por ela. Os arbustos se abriram, e havia dois Federais em frente ao
que tinha sobrado da casa que o avô de Genevieve tinha construído. Dois
Federais jogando uma bandeja de prata em uma mochila do governo.
Genevieve era um emaranhado de tecido preto ondulado que voava com as
lufadas vindas do fogo.

— Mas que...

— Pegue-a, Emmett — disse um dos adolescentes para o outro.

Genevieve subiu as escadas dois degraus de cada vez, engasgando com a
fumaça que saía da abertura onde havia sido a porta. Estava fora de si.
Mamãe. Evangeline. Os pulmões dela ardiam. Ela se sentiu caindo. Seria a
fumaça? Ela ia desmaiar? Não, era outra coisa. Uma mão no seu pulso,
puxando-a para baixo.

— Onde pensa que vai, garota?

— Solte-me! — gritou ela, a voz rouca por causa da fumaça. Suas costas
bateram nos degraus, um por um, enquanto, ele a arrastava; uma mancha
azul e dourada. A cabeça bateu em seguida. Calor, e depois algo quente
escorrendo pelo colarinho do seu vestido. Tontura e confusão misturadas com
desespero.

Um tiro. O som foi tão alto que afez voltar a si, partindo a escuridão. A
mão segurando o pulso dela relaxou. Ela tentou forçar os olhos a se focarem.

Dois tiros mais soaram.

Deus, por favor, poupe Mamãe e Evangeline. Mas no final, era demais
para pedir, ou talvez tivesse sido o pedido errado. Porque quando ela ouviu o
som do terceiro corpo caindo, seus olhos se focaram por tempo suficiente
para ver a jaqueta de lã cinza de Ethan suja de sangue. Alvejado pelos
mesmos soldados contra quem ele tinha se recusado a lutar.

E o cheiro de sangue misturado com pólvora e limões queimando.





Os créditos estavam subindo, e as luzes estavam se acendendo. Os olhos de
Lena ainda estavam fechados, e ela estava recostada no assento. Seu cabelo


estava emaranhado, e nenhum de nós dois conseguia recuperar o fôlego. —
Lena? Você está bem?

Ela abriu os olhos e empurrou para trás o descanso de braço que havia
entre nós. Sem uma palavra, encostou a cabeça no meu ombro. Eu podia
senti-la tremendo tanto que nem conseguia falar.

Eu sei. Eu estava lá também.

Ainda estávamos sentados assim quando Link e os outros passaram. Link
piscou para mim e ergueu um punho quando passou, como se fosse encostar
no meu do jeito que fazia quando eu tinha feito um bom arremesso na
quadra.

Mas ele entendeu errado, todos entenderam. Podíamos estar na última
fileira, mas não estávamos nos beijando. Eu podia sentir o cheiro de sangue e
os tiros ainda soavam nos meus ouvidos.

Tínhamos acabado de ver um homem morrer.












































p 9 de outubro p

d



Dia de reunião











D



epois do Cineplex, não demorou muito. O boato de que a sobrinha do
Velho Ravenwood estava saindo com Ethan Wate se espalhou. Se eu
não fosse o Ethan Wate Cuja Mãe Tinha Acabado de Morrer no Ano
Passado, o boato poderia ter se espalhado com mais velocidade ou com mais
crueldade. Até mesmo os caras do time tinham alguma coisa a dizer. Só
levaram mais tempo que o normal para dizer, porque eu não dei a eles a
chance.

Para um cara que não conseguia sobreviver sem três almoços, eu vinha
pulando metade deles desde o Cineplex — pelo menos pulando os com o
time. Mas eu não conseguia sobreviver muitos dias com meio sanduíche na
arquibancada, e não havia muitos lugares para me esconder.

Porque, na verdade, não era possível se esconder. Jackson High era
apenas uma versão menor de Gatlin; não havia para onde ir. Meu ato de
desaparecimento não tinha passado despercebido pelos caras. Como eu disse,
a gente tinha que marcar presença, e se deixássemos uma garota interferir
nisso, principalmente uma que não estava na lista das aprovadas (quero dizer,
aprovada por Savannah e Emily), as coisas ficavam complicadas.

Quando a garota era uma Ravenwood, o que Lena sempre seria para
eles, as coisas ficavam simplesmente impossíveis.

Eu tinha que ser corajoso. Era hora de encarar o refeitório. Não
importava que nós nem fôssemos um casal de verdade. Na Jackson, dava na
mesma estacionar o carro escondido atrás da torre de água ou almoçar
juntos. Todos sempre supunham o pior, ou pelo menos a maioria. A primeira
vez que Lena e eu entramos no refeitório juntos, ela quase se virou e foi
embora. Eu tive que segurar a alça de sua bolsa.

Não seja louca. Ê só um almoço.


— Acho que esqueci uma coisa no meu armário. — Ela se virou, mas eu
continuei segurando a alça.

Amigos almoçam juntos.

Não almoçam. Nós não. Quero dizer, não aí.

Peguei duas bandejas de plástico laranja.

— Bandeja?

Empurrei a bandeja para a frente dela e coloquei um triângulo brilhante
de fatia de pizza sobre ela.

Comemos agora. Covarde.

Você pensa que não tentei isso antes?

Não tentou comigo. Achei que você queria que as coisas aqui fossem
diferentes do que foram na sua velha escola.

Lena olhou ao redor, com dúvidas. Respirou fundo e colocou um prato
com cenouras e aipo na minha bandeja.

Se comer isso, eu me sento onde você quiser.

Olhei para as cenouras, depois para o refeitório. Os caras já estavam na
nossa mesa.

Onde eu quiser?









Se isso fosse um filme, nós teríamos sentado à mesa com os caras, e eles
teriam aprendido alguma lição valiosa, como a de não julgar as pessoas pela
aparência, ou que não tinha nada demais ser diferente. E Lena teria
aprendido que nem todos os atletas eram burros e superficiais. Sempre
parecia dar certo nos filmes, mas isso não era um filme. Aqui era Gatlin, o
que limitava severamente o que podia acontecer. Link encontrou meu olhar
quando me virei em direção à mesa e começou a balançar a cabeça, como se
dissesse "de jeito nenhum, cara". Lena estava alguns passos atrás de mim,
pronta para sair correndo. Eu estava começando a ver como isso ia se
desenrolar, e vamos apenas dizer que ninguém ia aprender uma lição valiosa.
Quase me virei quando Earl olhou para mim.

Aquele olhar dizia tudo. Dizia que se eu a levasse lá, seria o meu fim.
Lena deve ter visto também, porque quando me virei para ela, ela havia


sumido.









Naquele dia depois do treino, Earl foi escolhido para ter uma conversa
comigo, o que era bem engraçado, já que conversar nunca tinha sido seu
forte. Ele sentou no banco em frente ao meu armário do vestiário. Eu sabia
que era planejado porque ele estava sozinho, e Earl Petty quase nunca ficava
sozinho. Ele não perdeu tempo algum.

— Não faça isso, Wate.

— Não estou fazendo nada. — Não tirei os olhos do meu armário.

— Seja sensato. Esse não é você.

— É? E se for? — Vesti minha camiseta dos Transformers.

— Os caras não estão gostando. Se você seguir esse caminho, não tem
volta.

Se Lena não tivesse sumido no refeitório, Earl saberia que não ligo para
o que eles pensam. Já não ligava há um tempo. Bati a porta do armário, e ele
saiu antes que eu pudesse falar o que pensava sobre ele e o caminho sem
volta.

Tive a sensação de que era meu último aviso. Eu não culpava Earl. Pela
primeira vez, concordava com ele. Os caras seguiam um caminho, e eu seguia
outro. Quem podia discutir sobre aquilo?









Ainda assim, Link se recusava a me abandonar. E eu ia aos treinos; as pessoas
até me passavam a bola. Eu estava jogando melhor do que nunca,
independentemente do que eles diziam, ou melhor, não diziam no vestiário.
Quando estava com os caras, eu tentava não mostrar que meu universo
estava partido ao meio, que até mesmo o céu parecia diferente para mim,
agora que eu não ligava se íamos chegar às finais estaduais. Lena estava no
fundo da minha mente, não importava onde eu estivesse ou com quem
estivesse.


Não que eu tenha mencionado isso no treino, e nem hoje, depois do
treino, quando Link e eu fomos ao Pare & Roube para reabastecer no
caminho de casa. O resto dos caras estava lá também, e eu estava tentando
agir como parte do time, pelo bem de Link. Minha boca estava cheia de
donut açucarado, com o qual quase engasguei quando entrei pelas portas
automáticas.

Lá estava ela. A segunda garota mais bonita que já vi.

Ela era provavelmente um pouco mais velha do que eu porque, apesar
de parecer vagamente familiar, nunca tinha frequentado a Jackson enquanto
eu estivera lá. Eu tinha certeza disso. Ela era o tipo de garota de quem um
cara se lembraria. Estava ouvindo uma música que eu nunca tinha ouvido, e
descansava atrás do volante do Mini Cooper conversível preto e branco que
estava estacionado de qualquer jeito em duas vagas do estacionamento. Ela
não pareceu perceber as linhas, ou não ligava. Chupava um pirulito como se
fosse um cigarro, e os lábios carnudos e vermelhos estavam ainda mais
vermelhos por causa do corante.

Ela olhou para nós e aumentou a música. Em um segundo, duas pernas
vieram voando até a lateral da porta, e ela estava de pé em frente a nós, ainda
chupando o pirulito.

— Frank Zappa. "Drowning Witch", Um pouco anterior à época de
vocês, meninos.

Chegou mais perto, lentamente, como se estivesse nos dando tempo para
olhar bem para ela, coisa que admito, estávamos fazendo.

Tinha cabelos longos e louros, com uma mecha grossa rosa em um dos
lados do rosto, junto à franja repicada. Estava usando óculos de sol pretos
gigantescos e uma saia preta pregueada curta, como algum tipo de líder de
torcida gótica. A camiseta branca cortada era tão fina que dava para ver
parte do que poderia ser um sutiã preto, e a maior parte de tudo mais. E
havia muito para se ver. Botas pretas de motociclista, um piercing no umbigo
e uma tatuagem. Era preta e parecia ser tribal, em torno do seu umbigo, mas
de onde eu estava não conseguia identificar, e eu estava tentando não ficar
olhando.

— Ethan? Ethan Wate?

Fiquei paralisado. Metade do time de basquete colidiu com as minhas
costas.


— Não é possível. — Shawn ficou tão surpreso quanto eu quando meu
nome saiu dos lábios dela. Ele era o tipo de cara que atraía as meninas.

— Quente. — Link só ficou encarando de boca aberta. — Quente
QTG. — Queimadura de terceiro grau. O maior elogio que Link pode fazer
a uma garota, ainda maior do que gostosa tipo Savannah Snow.

— Tem cara de ser problema.

— Garotas gostosas são problema. Esse é o ponto.

Ela andou direto em minha direção, chupando o pirulito.

— Qual dos sortudos é Ethan Wate?

Link me empurrou para a frente.

— Ethan! — Ela jogou os braços ao redor do meu pescoço. As mãos dela
estavam surpreendentemente frias, como se tivesse acabado de largar um saco
de gelo. Eu tremi e me afastei.

— Conheço você?

— Nem um pouco. Sou Ridley, prima de Lena. Mas eu queria que você
tivesse me conhecido antes...

Com a menção de Lena, os caras me deram olhares esquisitos e,
relutantes, foram para seus carros. Em sequência à minha conversa com Earl,
nós tínhamos chegado a um entendimento mútuo sobre Lena, do único tipo
que caras chegam. Quero dizer, eu não falei sobre o assunto, e eles também
não falaram, e entre nós, meio que concordamos em seguir assim
indefinidamente. Não pergunte, não fale. O que não ia durar muito tempo,
principalmente se parentes estranhos de Lena começassem a aparecer na
cidade.

— Prima?

Lena tinha mencionado uma Ridley?

— Para o feriado. Tia Del. Rima com fel. Lembra?

Ela estava certa; Macon tinha mencionado no jantar.

Eu sorri, aliviado, só que meu estômago ainda estava apertado em um
nó, então eu não devo ter parecido tão aliviado.

— Certo. Desculpe, esqueci. Os primos.

— Querido, você está olhando para a Prima. O resto são apenas crianças
que minha mãe por acaso teve depois de mim.

Ridley pulou de volta no Mini Cooper. E quando digo isso, quero dizer
que ela literalmente pulou a lateral do carro e caiu sentada no banco do


motorista do Mini. Eu não estava brincando sobre o lance de líder de torcida.
A garota tinha pernas poderosas.

Eu podia ver Link ainda olhando parado ao lado do Lata-Velha.

Ridley bateu no banco ao lado dela.

— Pule aqui, Namorado, vamos nos atrasar.

— Eu não sou... Quero dizer, não somos...

— Você é uma graça. Agora entre. Não quer que a gente se atrase, né?

— Se atrase para quê?

— Jantar da família. As Grandes Festividades. A Reunião. Por que acha
que me mandaram aqui para esse lixo para encontrar você?

— Não sei. Lena nunca me convidou.

— Bem, vamos dizer que não há como impedir que tia Del examine o
primeiro cara que Lena já levou em casa. Então você foi convocado, e já que
Lena está ocupada com o jantar e Macon ainda está, você sabe, "dormindo",
fui eu que puxei o palitinho menor.

— Ela não me levou. Eu passei lá uma noite para levar o dever de casa.

Ridley abriu a porta do carro por dentro.

— Entre, Palitinho.

— Lena teria me ligado se quisesse que eu fosse.

Por algum motivo, eu sabia que ia entrar mesmo enquanto ainda dizia
isso. Hesitei.

— Você é sempre assim? Ou está flertando comigo? Porque se você
estiver bancando o difícil, diga logo, que podemos estacionar no pântano e ir
direto ao que interessa.

Entrei no carro.

— Tudo bem. Vamos.

Ela esticou o braço e tirou o cabelo dos meus olhos com a mão fria.

— Você tem olhos bonitos, Namorado. Não devia deixá-los cobertos.





Quando chegamos a Ravenwood, eu não sabia o que tinha acontecido. Ela
continuou ouvindo músicas que eu nunca tinha ouvido, e comecei a falar e
continuei falando até contar a ela coisas que nunca tinha contado a ninguém,
exceto Lena. Não consigo explicar. Era como se eu tivesse perdido o controle
da minha língua.


Contei sobre minha mãe, sobre como ela morreu, apesar de eu quase
nunca falar sobre isso com ninguém. Contei sobre Amma, sobre como ela lia
cartas e como ela era tipo minha mãe agora que eu não tinha uma, exceto
pelos amuletos e bonecos e sua natureza geralmente desagradável. Contei
sobre Link, sobre a mãe dele e sobre como ela tinha mudado ultimamente e
passava todo o tempo tentando convencer todo mundo de que Lena era tão
louca quanto Macon Ravenwood e um perigo para todos os alunos da
Jackson.

Contei sobre meu pai, sobre como ele ficava enfiado no escritório, com
seus livros e uma pintura secreta que nunca tive permissão de ver, e como eu
sentia que precisava protegê-lo, apesar de ser de algo que já tinha acontecido.

Contei sobre Lena, sobre como nos conhecemos na chuva, como parecia
que já nos conhecíamos mesmo antes de nos conhecermos e sobre a cena
confusa com a janela.

Quase parecia que ela estava sugando isso tudo de mim, como ela sugava
aquele pirulito vermelho grudento, que, aliás, ela continuava lambendo
enquanto dirigia. Precisei de toda minha força para não contar a ela sobre o
medalhão e os sonhos. Talvez o fato de ela ser prima de Lena tenha tornado
tudo um pouco mais fácil entre nós. Talvez fosse outra coisa.

Quando eu estava começando a me questionar, entramos em
Ravenwood e ela desligou o rádio. O sol tinha se posto, o pirulito acabou e eu
finalmente calei a boca. Quando foi que isso aconteceu?

Ridley se inclinou em minha direção, bem perto. Eu conseguia ver meu
rosto refletido nos óculos de sol dela. Inspirei fundo a atmosfera dela. Tinha
um cheiro doce e meio úmido, nada parecido com o de Lena, mas ainda
assim um tanto familiar.

— Você não precisa ficar preocupado, Palitinho.

— É? por que não?

— Você é pra valer.

Ela sorriu para mim, e seus olhos brilharam. Por trás dos óculos, eu
conseguia ver um brilho dourado, como peixes dourados nadando em um
lago escuro. Eles eram hipnóticos, mesmo através das lentes escuras. Talvez
fosse por isso que ela os usava. Então os óculos ficaram escuros e ela mexeu
no meu cabelo.

— Pena que provavelmente ela jamais volte a vê-lo depois que você


conhecer o resto de nós. Nossa família é um pouco pirada.

Ela saiu do carro e eu a segui.

— Mais pirada do que você?

— Infinitamente.

Que ótimo.

Ela colocou a mão gelada no meu braço mais uma vez quando chegamos
ao primeiro degrau em frente à casa.

— Mais uma coisa, Namorado. Quando Lena te der o fora, o que ela
fará em uns cinco meses, me dá uma ligada. Você saberá como me encontrar.
— Ela passou o braço pelo meu, estranhamente formal de repente. — Posso?

Gesticulei com minha mão livre.

— Claro. Depois de você.

Enquanto subíamos a escada, os degraus gemeram sob nosso peso. Levei
Ridley até a porta da frente sem saber se a escada ia aguentar nosso peso ou
não.

Bati na porta, mas não houve resposta. Estiquei o braço e tateei em
busca da lua. A porta se abriu, lentamente...

Ridley parecia hesitante. E enquanto cruzávamos o portal, eu quase
podia sentir a casa se ajustando, como se o clima lá dentro tivesse mudado
quase imperceptivelmente.

— Olá, mãe.

Uma mulher gorducha, ocupada arrumando abóboras e folhas douradas
sobre a lareira, levou um susto e deixou cair uma pequena abóbora branca,
que explodiu no chão, Ela se segurou na prateleira acima da lareira para se
equilibrar. Parecia estranha, como se usasse um vestido de cem anos atrás.

— Julia! Quero dizer, Ridley. O que você está fazendo aqui? Devo estar
confusa. Pensei, pensei...

Eu sabia que alguma coisa estava errada. Isso não parecia um
cumprimento normal entre mãe e filha.

— Jules? É você? — Uma versão mais nova de Ridley, de uns 10 anos,
entrou andando na sala da frente com Boo Radley, que usava uma capa azul
brilhante sobre as costas. Fantasiavam o lobo da família como se nada de
incomum estivesse acontecendo. Tudo na garota era claro e luminoso; ela
tinha cabelos louros e olhos azuis radiantes, como se tivessem pequenos
pedacinhos do céu em uma tarde ensolarada. A garota sorriu e depois franziu


a testa. — Pensei que você tinha ido embora.

Boo começou a rosnar.

Ridley abriu os braços, esperando que a garotinha corresse até eles, mas
ela nem se moveu. Então Ridley esticou as mãos e abriu cada uma. Um
pirulito vermelho surgiu na primeira e, para não ser superada, um ratinho
cinzento usando uma capa azul brilhante que combinava com a de Boo
farejava o ar na outra, como um truque barato de parque de diversões,

A garotinha deu um passo à frente, hesitante, como se a irmã tivesse o
poder de puxá-la pela sala sem nem um toque, como a lua com as marés. Eu
tinha sentido a mesma coisa.

Quando Ridley falou, a voz estava grave, mas macia como mel.

— Venha, Ryan. Mamãe só estava provocando você pra ver se
reclamava. Não fui a lugar nenhum. Não mesmo. Sua irmã mais velha
favorita abandonaria você?

Ryan sorriu e correu para Ridley, pulando como se fosse saltar em seus
braços abertos. Boo latiu. Por um momento, Ryan ficou suspensa no ar, como
um daqueles personagens de desenho que acidentalmente pula de um
precipício e fica lá no ar por alguns segundos antes de cair. E então ela caiu e
bateu abruptamente no chão, como se tivesse batido numa parede invisível.
As luzes dentro da casa ficaram mais intensas, todas de uma vez, como se a
casa fosse um palco e a iluminação estivesse mudando para indicar o final de
um ato. Sob a luz, as feições de Ridley tinham sombras cruéis.

A luz mudava as coisas. Ridley colocou uma mão sobre os olhos,
gritando para a casa:

— Ah, por favor, tio Macon. Isso é mesmo necessário?

Boo deu um salto para a frente, se posicionando entre Ryan e Ridley.
Rosnando, o cachorro foi chegando cada vez mais perto, o pelo nas costas
eriçado, fazendo-o parecer ainda mais com um lobo. Aparentemente, o
charme de Ridley não tinha efeito sobre Boo.


Ridley enroscou o braço no meu com força, e riu e rosnou ao mesmo
tempo, ou algo assim. Não era um som amigável, tentei manter o controle,
mas minha garganta estava muito seca.

Com uma das mãos sobre meu braço, ela levantou a outra sobre a
cabeça e a moveu em direção ao teto.


— Bem, se você vai ser rude...

Todas as luzes da casa se apagaram. A casa inteira parecia em curto.

A voz de Macon surgiu calmamente do alto da escuridão.

— Ridley, minha querida, que surpresa. Não estávamos esperando você.

Não a estavam esperando? De que ele estava falando?

— Eu não perderia a Reunião por nada no mundo. E veja, trouxe um
convidado. Ou acho que você poderia dizer que sou a convidada dele.

Macon desceu a escadaria sem tirar os olhos de Ridley. Eu estava vendo
dois leões se cercando e estava parado no meio. Ridley tinha me enganado, e
eu tinha caído direitinho, como um otário, manipulado como o pirulito que
ela continuava chupando.

— Não acho que seja uma boa ideia. Tenho certeza de que você é
esperada em algum outro lugar.

Ela tirou o pirulito da boca com um estalo.

— Como eu disse, não perderia isso por nada. Além do mais, você não ia
querer que eu levasse Ethan de carro até a casa dele. Sobre o que a gente
conversaria?

Eu queria sugerir que fôssemos embora, mas não conseguia fazer as
palavras saírem. Todos ficaram parados na sala, olhando uns para os outros.
Ridley se apoiou em uma das colunas.

Macon rompeu o silêncio.

— Por que você não leva Ethan até a sala de jantar? Tenho certeza que
você se lembra onde é.

— Mas Macon... — A mulher que eu supus ser tia Del parecia em
pânico, e também confusa, como se não soubesse bem o que estava
acontecendo.

— Está tudo bem, Delphine.

Eu podia ver no rosto de Macon que ele estava improvisando, dando um
passo de cada vez, um passo a frente de todos nós. Sem saber em que eu tinha
me metido, acabava sendo um alívio saber que ele estava lá.

O último lugar onde eu queria ir era a sala de jantar. Queria sair
correndo dali, mas não conseguia fazer nada. Ridley não soltava meu braço, e
enquanto ela estava tocando em mim, eu sentia como se estivesse no piloto
automático. Ela me levou até a sala de jantar formal onde eu tinha ofendido
Macon pela primeira vez. Olhei para Ridley, pendurada no meu braço. Essa


ofensa era muito pior.

A sala estava iluminada por centenas de pequenas velas votivas pretas e
pedaços de cordão com contas pretas pendurados no lustre. Havia uma
enorme coroa, toda feita de penas pretas, na porta que levava à cozinha. A
mesa estava posta com pratos prateados e branco-perolados, que, na minha
opinião, eram feitos mesmo de pérola.

A porta da cozinha se abriu. Lena passou por ela de costas, carregando
uma enorme bandeja de prata, cheia de frutas com aparência exótica que
definitivamente não eram da Carolina do Sul. Ela usava um casaco justo,
preto e longo até o chão, amarrado na cintura. Parecia estranhamente
atemporal, como nada que eu tivesse visto neste país ou mesmo neste século,
mas, quando olhei para baixo, vi que ela estava usando o All Star. Estava
ainda mais bonita do que quando eu tinha vindo jantar... Quando? Há
algumas semanas?

Minha mente parecia enevoada como se eu estivesse meio dormindo.
Respirei fundo, mas só conseguia sentir o cheiro de Ridley, um cheiro
almiscarado misturado com algo doce demais, como uma calda borbulhando
no fogão. Era forte e sufocante.

— Está quase pronto. Só falta um pouco... — Lena ficou paralisada, a
porta ainda entreaberta. Ela parecia ter visto um fantasma, ou algo muito
pior. Eu não tinha certeza se era apenas a visão de Ridley ou se era a de nós
dois ali parados de braços dados.

— Oi, prima. Quanto tempo. — Ridley deu alguns passos, me
arrastando junto. — Não vai me dar um beijo?

A bandeja que Lena carregava caiu no chão.

— O que você está fazendo aqui? — A voz de Lena mal chegava a um
sussurro.

— Ué, vim ver minha prima favorita, é claro, e trouxe um
acompanhante.

— Não sou seu acompanhante — eu disse com pouca convicção, mal
pronunciando as palavras, ainda grudado no braço. Ela tirou um cigarro do
maço enfiado na bota e o acendeu, tudo isso com a mão livre.

— Ridley, por favor, não fume dentro de casa — disse Macon, e o
cigarro instantaneamente se apagou. Ridley riu e o jogou em uma travessa
que parecia de purê de batata, mas que provavelmente não era.


— Tio Macon. Você sempre foi chato com as regras da casa.

— As regras foram impostas há muito tempo, Ridley. Não há nada que
você ou eu possamos fazer para mudá-las agora.

Eles se entreolhavam. Macon gesticulou, e uma cadeira se arrastou
sozinha da mesa.

— Por que não nos sentamos? Lena, pode dizer à Cozinha que teremos
duas pessoas mais para o jantar?

Lena apenas ficou parada, parecendo ferver.

— Ela não pode ficar.

— Está tudo bem. Nada pode te fazer mal aqui — disse Macon de forma
tranquilizante. Mas Lena não parecia assustada. Parecia furiosa.

Ridley sorriu.

— Tem certeza disso?

— O jantar está pronto, e você sabe o que a Cozinha acha sobre servir
comida fria.

Macon entrou na sala de jantar. Todos o seguiram, apesar de ele mal ter
falado alto o bastante para que nós quatro, que já estávamos na sala, o
ouvíssemos.

Boo entrou na frente, andando desajeitadamente ao lado de Ryan. Tia
Del veio em seguida, de braços dados com um homem grisalho da idade do
meu pai. Ele estava vestido como se tivesse saído de um dos livros do
escritório da minha mãe, com botas até os joelhos, uma camisa com babados
e uma capa esquisita de ópera. Os dois pareciam um item de exposição do
museu Smithsonian.

Uma garota mais velha entrou na sala. Ela parecia muito com Ridley, só
que usava mais roupas e não parecia tão perigosa. Tinha cabelos louros
longos e lisos com uma versão mais arrumadinha da franja repicada de
Ridley. Parecia o tipo de garota que podia ser vista carregando uma pilha de
livros em um velho campus de faculdade bacana no norte, tipo Yale ou
Harvard. A garota olhou nos olhos de Ridley, como se pudesse ver os olhos
dela pelos óculos escuros que ainda estavam em seu rosto.

— Ethan, gostaria de apresentar minha irmã mais velha, Annabel. Ah,
desculpe, eu quis dizer Reece.

Quem não sabe o nome da própria irmã?

Reece sorriu e falou lentamente, como se estivesse escolhendo as palavras


com cuidado.

— O que está fazendo aqui, Ridley? Pensei que você tinha outro
compromisso hoje.

— Os planos mudam.

— As famílias também.

Reece ergueu a mão e a balançou em frente ao rosto de Ridley, apenas
um simples floreio, como um mágico passando a mão sobre uma cartola. Eu
me encolhi; não sei o que estava pensando, mas por um segundo achei que
Ridley pudesse desaparecer. Ou, mais provavelmente, eu.

Mas ela não desapareceu, e dessa vez foi Ridley que se encolheu e olhou
para o outro lado, como se fosse fisicamente doloroso encarar Reece.

Reece examinou o rosto de Ridley como se fosse um espelho.

— Interessante. Por que, Rid, quando olho nos seus olhos, só vejo os
dela? Vocês duas são unha e carne, não são?

— Está tagarelando de novo, mana.

Reece fechou os olhos, se concentrando. Ridley se contorceu como uma
borboleta capturada. Reece fez o movimento com a mão de novo e, por um
momento, o rosto de Ridley se dissolveu na imagem turva de outra mulher. O
rosto da mulher era meio familiar, só que eu não consegui lembrar por quê.

Macon botou a mão com força no ombro de Ridley. Foi a única vez em
que vi alguém tocá-la além de mim. Ridley fez uma careta, e eu pude sentir
uma pontada de dor irradiando da mão dela para o meu braço. Macon
Ravenwood obviamente não era um homem para não ser levado a sério.

— Agora. Gostem ou não, a Reunião já começou. Não vou aceitar que
ninguém estrague as Grandes Festividades, não debaixo do meu teto. Ridley,
como ela mesma esclareceu, foi convidada para se juntar a nós. Nada mais
precisa ser dito. Por favor, sentem-se,

Lena sentou com os olhos grudados em nós dois.

Tia Del parecia ainda mais preocupada do que quando chegamos. O
homem de capa de ópera bateu na mão dela para acalmá-la. Um cara alto da
minha idade usando jeans preto, uma camisa preta gasta e botas surradas
entrou, parecendo entediado.

Ridley fez as apresentações.

— Você já conhece minha mãe. E este é meu pai, Barclay Kent, e meu
irmão, Larkin.


— É um prazer conhecê-lo, Ethan.

Barclay deu um passo como se fosse apertar minha mão, mas quando
reparou na mão de Ridley no meu braço, deu outro passo para trás. Larkin
passou o braço pelo meu ombro, mas quando olhei, o braço tinha virado uma
cobra, sacudindo a língua para fora da boca.

— Larkin! — sibilou Barclay. A cobra voltou a ser o braço de Larkin em
um instante.

— Nossa. Só estou tentando melhorar o humor aqui. Vocês são todos um
bando de resmungões. — Os olhos de Larkin ficaram amarelos, com uma
fenda vertical. Olhos de cobra.

— Larkin, eu disse que já foi o bastante. — O pai olhou para ele de um
jeito que só um pai pode olhar para um filho que sempre o desaponta. Os
olhos de Larkin voltaram a ficar verdes.

Macon se sentou na cabeceira da mesa.

— Por que não nos sentamos? A Cozinha preparou um de seus melhores
banquetes de festa. Lena e eu fomos sujeitados à barulheira por dias.

Cada um tomou seu lugar na enorme mesa retangular com pés em
formas de garra. Era de madeira escura, quase preta, e havia desenhos
intrincados, como vinhas, entalhados nas pernas. Enormes velas pretas
brilhavam no centro da mesa.

— Sente aqui ao meu lado, Palitinho.

Ridley me levou até uma cadeira vazia, em frente ao pássaro de prata
que trazia o marcador de lugar de Lena, como se eu tivesse escolha.

Tentei fazer contato visual com Lena, mas seus olhos estavam fixados em
Ridley. E pareciam ferozes. Eu só esperava que sua raiva fosse direcionada
somente a Ridley.

A mesa estava transbordando de comida, ainda mais do que a última vez
em que estive lá; cada vez que eu olhava para a mesa, havia mais. Costelas de
cordeiro assadas, um filé assado com alecrim, e mais pratos exóticos que eu
nunca tinha visto antes. Uma grande ave recheada com molho e peras estava
posta junto a penas de pavão arrumadas para parecerem a cauda aberta de
um pavão vivo. Eu esperava que não fosse um pavão de verdade, mas
considerando as penas da cauda, tinha quase certeza de que era. E doces
brilhosos, acho que no formato exato de cavalos-marinhos.

Mas ninguém estava comendo, ninguém exceto Ridley. Ela parecia estar


se divertindo.

— Adoro cavalos de açúcar. — Ela enfiou dois dos pequenos cavalos-
marinhos dourados na boca.

Tia Del tossiu algumas vezes enquanto enchia uma taça com um líquido
negro da consistência de vinho de um decantador sobre a mesa.

Ridley olhou para Lena, do outro lado da mesa.

— E então, prima, algum plano pro seu aniversário? — Ridley enfiou os
dedos em um molho marrom escuro em uma tigela ao lado da ave que eu
esperava que não fosse um pavão e o lambeu sugestivamente.

— Não vamos falar do aniversário de Lena esta noite — avisou Macon.

Ridley estava gostando da tensão. Colocou outro cavalo-marinho na
boca.

— Por que não?

Os olhos de Lena estavam selvagens.

— Você não precisa se preocupar com o meu aniversário. Não vai ser
convidada.

— Mas você deveria se preocupar. É um aniversário tão importante,
afinal. — Ridley riu.

O cabelo de Lena começou a se movimentar como se houvesse vento na
saía. Não havia.

— Ridley, eu já disse que basta.

Macon estava perdendo a paciência. Reconheci seu tom como sendo o
mesmo que usou quando eu tirei o medalhão do meu bolso durante minha
primeira visita.

— Por que está tomando o lado dela, tio M? Passei tanto tempo com
você quanto Lena quando eu era pequena. Como ela de repente virou sua
favorita? — Por um momento, ela quase soou magoada,

— Você sabe que não tem nada a ver com favoritas. Você foi Invocada.
Está fora do meu alcance.

Invocada? Pelo quê? De que ele estava falando? O nevoeiro ao meu
redor estava ficando mais grosso. Eu não tinha certeza se ouvia tudo
corretamente.

— Mas você e eu somos iguais — implorava ela para Macon, como uma
criança mimada.

A mesa começou a tremer quase imperceptivelmente, o líquido negro nos


copos de vinho gentilmente ondulando de um lado para o outro. Então ouvi
batidas rítmicas no telhado. Chuva.

Lena segurava a borda da mesa, as dobras dos dedos brancas.

— Você NÃO é igual — sibilou ela.

Senti o corpo de Ridley enrijecer contra meu braço, em torno do qual ela
ainda estava enrolada como uma cobra.

— Você se acha muito melhor do que eu, Lena... não é? Você nem sabe
seu nome real. Nem se dá conta de que essa sua relação está condenada.
Apenas espere até que seja Invocada e descobrirá como as coisas realmente
funcionam. — Ela riu, um som sinistro e doloroso. — Você não tem ideia se
somos iguais ou não. Em alguns meses, você pode acabar exatamente como
eu.

Lena olhou para mim, em pânico. A mesa começou a tremer com mais
intensidade, os pratos batendo na madeira. Houve um estalo de relâmpago lá
fora, e a chuva começou a despencar pelas janelas como lágrimas.

— Cale a boca!

— Conte para ele, Lena. Você não acha que o Palitinho aqui merece
saber de tudo? Que você não tem ideia se é da Luz ou das Trevas? Que você
não tem escolha?

Lena deu um salto e ficou de pé, e a cadeira atrás dela caiu no chão.

— Eu mandei calar a boca!

Ridley estava relaxada de novo, se divertindo.

— Conte para ele como morávamos juntas, dormíamos no mesmo
quarto, como irmãs, que eu era exatamente como você há um ano e agora...

Macon ficou de pé na cabeceira da mesa, apoiado nas duas mãos. Seu
rosto pálido parecia mais branco que o normal.

— Ridley, já chega! Vou Conjurar você para fora dessa casa se disser
mais uma palavra.

— Você não pode me Conjurar para fora, tio. Não é forte o bastante
para isso.

— Não superestime suas habilidades. Nenhuma Conjuradora das Trevas
desse planeta é poderosa o bastante para entrar em Ravenwood sozinha. Eu
mesmo enfeiticei a propriedade. Todos nós fizemos.

Conjuradora das Trevas? Isso não soava bem.

— Ah, tio Macon. Você está se esquecendo da famosa hospitalidade


sulista. Eu não invadi. Fui convidada, vim guiada pelo braço do cavalheiro
mais bonito de Gat-lixo.

Ridley se virou para mim e sorriu, tirando os óculos de cima dos olhos.
Eles estavam esquisitos, brilhando dourados como se estivessem em chamas.
Tinham o formato de olhos de gato, com fendas negras no meio. Luz
emanava de seus olhos, e sob aquela luz, tudo mudava.

Ela olhou para mim com aquele sorriso sinistro, e seu rosto estava
contorcido em trevas e sombras. As feições que tinham sido tão femininas e
atraentes agora estavam ficando exageradas e duras, se modificando em
frente aos meus olhos. A pele parecia se apertar sobre os ossos, acentuando
cada veia até tal ponto que era quase possível ver o sangue que pulsava nelas.
Ela parecia um monstro.

Eu tinha levado um monstro para dentro de casa, para a casa de Lena.

Quase imediatamente, a casa começou a tremer violentamente. Os
lustres de cristal balançavam e as luzes piscavam. As janelas da fazenda
abriam e fechavam com força, enquanto a chuva batia no telhado. O som era
tão alto que era quase impossível ouvir qualquer outra coisa, como na noite
em que quase atropelei Lena quando ela estava parada no meio da rua.

Ridley segurou meu braço com mais força gelada. Tentei me soltar dela,
mas mal conseguia me mover. O frio estava se espalhando; todo meu braço
estava começando a ficar dormente.

Lena olhou para mim horrorizada.

— Ethan!

Tia Del bateu o pé com força no chão. As tábuas do piso pareceram
rolar sob seus pés.

O frio tinha se espalhado pelo meu corpo. Minha garganta estava
congelada. Minhas pernas estavam paralisadas; eu não conseguia me mover.
Não conseguia me soltar do braço de Ridley, e não conseguia dizer para
ninguém o que estava acontecendo. Em alguns poucos minutos, eu não
conseguiria respirar.

Uma voz de mulher veio por sobre a mesa. Tia Del.

— Ridley. Mandei você ficar longe, criança. Não há nada que possamos
fazer por você agora. Lamento muito.

A voz de Macon estava dura.

— Ridley, um ano pode fazer toda a diferença do mundo. Você foi


Invocada. Encontrou seu ligar na Ordem das Coisas. Não pertence mais a
este lugar. Você tem que ir.

Um segundo depois, ele estava parado bem na frente dela. Era isso, ou
eu estava perdendo a noção do que estava acontecendo. As vozes e rostos
começaram a girar ao meu redor. Eu mal conseguia respirar. Estava com
tanto frio, mas meu maxilar congelado nem se movia para que eu batesse o
queixo.

— Vá! — ele gritou.

— Não!

— Ridley! Se comporte! Você tem que sair daqui. Ravenwood não é um
lugar para magia Negra. Este é um lugar Enfeitiçado, um lugar de Luz. Você
não consegue sobreviver aqui, não por muito tempo. — A voz de tia Del era
firme.

Ridley respondeu com um grunhido.

— Não vou sair, mãe, e você não pode me obrigar.

A voz de Macon interrompeu o ataque de raiva dela.

— Você sabe que isso não é verdade.

— Estou mais forte agora, tio Macon. Você não pode me controlar.

— É verdade, sua força está crescendo, mas você não está pronta para
me enfrentar, e vou fazer o que for necessário para proteger Lena. Mesmo se
isso significar machucar você, ou pior.

O peso da ameaça dele foi demais para Ridley.

— Você faria isso comigo? Ravenwood é um lugar Negro de poder.
Sempre foi, desde Abraham. Ele era um de nós. Ravenwood devia ser nossa.
Por que você a Enfeitiça com a Luz?

— Ravenwood é o lar de Lena agora.

— Seu lugar é comigo, tio M. Com Ela.

Ridley ficou de pé, me puxando junto. Os três estavam de pé agora,
Lena, Macon e Ridley, os três vértices de um triângulo verdadeiramente
assustador.

— Não tenho medo da sua espécie.

— Pode até ser, mas você não tem poder aqui. Não contra todos nós e
uma Natural.

Ridley gargalhou.

— Lena, uma Natural? É a coisa mais engraçada que você disse a noite


toda. Já vi o que um Natural consegue fazer. Lena jamais poderia ser uma.

— Um Cataclista e um Natural não são a mesma coisa.

— Mas como não são? Um Cataclista é um Natural que foi para as
Trevas, dois lados da mesma moeda.

De que ela estava falando? Eu não fazia a menor ideia do que estava
acontecendo.

E então senti meu corpo ficar paralisado e soube que estava desmaiando
— que provavelmente ia morrer. Era como se toda a vida tivesse sido sugada
de meu corpo, junto com o calor do meu sangue. Eu consegui ouvir o som de
trovão. Um — depois relâmpago e o barulho de um galho de árvore caindo
do lado da janela. A tempestade tinha chegado. Estava bem sobre nós.

— Você está errado, tio M. Não vale a pena proteger Lena, e ela
certamente não é uma Natural. Você não saberá o destino dela até o
aniversário. Acha que só porque ela é doce e inocente agora, ela será
Invocada pela Luz? Isso não significa nada. Não foi igual há um ano? E pelo
que o Palitinho aqui andou me contando, ela está mais perto de ir para as
Trevas do que para a Luz. Tempestades com relâmpagos? Aterrorizando a
escola?

O vento ficou mais forte, e Lena estava ficando mais irritada. Eu podia
ver a fúria em seus olhos. Uma janela se quebrou, exatamente como na aula
de Inglês. Eu sabia onde isso ia parar.

— Cale a boca! Você não sabe de que está falando!

A chuva caiu com tudo na sala de jantar. O vento veio em seguida,
fazendo voar copos e pratos para o chão, líquido negro se espalhando pelo
piso em longos filetes. Ninguém se moveu.

Ridley se virou de novo para Macon.

— Você sempre deu crédito demais a ela. Ela não é nada.

Eu queria me soltar do toque de Ridley, pegá-la e arrastá-la para fora da
casa eu mesmo, mas não conseguia me mover.

Uma segunda janela se quebrou, depois outra e mais outra. Havia vidro
quebrando em toda parte. Porcelana, copos de vinho, os vidros em cada
porta-retratos. A mobília batia contra a parede. E o vento; parecia que um
tornado tinha sido sugado para a sala conosco. O som era tão alto que eu não
conseguia ouvir mais nada. A toalha saiu voando de cima da mesa, com velas,
travessa e pratos ainda em cima, jogando tudo contra a parede. A sala girava,


eu acho. Tudo estava sendo sugado para o corredor, em direção à porta da
frente. Boo Radley gritou, um horrível grito humano. O aperto de Ridley
pareceu afrouxar em meu braço. Pisquei com força, tentando não desmaiar.

E ali, de pé no meio de tudo, estava Lena. Estava perfeitamente imóvel,
os cabelos sacudidos pelo vento em torno dela. O que estava acontecendo?

Senti minhas pernas fraquejarem. Quando eu estava perdendo a
consciência, senti o vento, uma onda de poder que literalmente arrancou meu
braço da mão de Ridley quando ela foi sugada para fora da sala, em direção à
porta da frente. Caí no chão enquanto ouvia a voz de Lena, ou pensei ouvir.

— Saia de perto do meu namorado, bruxa.

Namorado.

Era isso que eu era?

Tentei sorrir. Em vez disso, apaguei.




















































p 9 de outubro p

d



Uma rachadura no gesso











Q



uando acordei, não tinha ideia de onde estava. Tentei focalizar o olhar
nas primeiras coisas que estavam à vista. Palavras. Expressões escritas à
mão no que pareceu ser caneta permanente, bem no teto acima da cama.

Momentos sangram juntos, sem dimensão de tempo.

Havia centenas de outras também, escritas em toda parte, partes de
frases, partes de versos, grupos aleatórios de palavras. Na porta de um
armário estava escrito o destino decide. Em outra, havia desafiada pelos
destinados. Para cima e para baixo na porta, eu via as palavras desesperada/
inexorável/ condenada/ apoderada. O espelho dizia abra seus olhos as
vidraças da janela diziam e veja.

Até a pálida cúpula do abajur trazia escritas as palavras
ilumineaescuridãoilu-mineaescuridão várias vezes, em um padrão de
repetição infinito.

A poesia de Lena. Eu finalmente estava lendo alguma coisa escrita por
ela. Mesmo ignorando a distinta escrita, esse quarto não se parecia com o
resto da casa. Era pequeno e aconchegante, bem debaixo do telhado. Um
ventilador de teto girava lentamente sobre minha cabeça, cortando as
palavras. Havia pilhas de cadernos espiral em todas as superfícies, e uma
pilha de livros na mesa de cabeceira. Livros de poesia. Plath, Eliot, Bukowski,
Frost, Cummings — pelo menos eu reconhecia os nomes.

Eu estava deitado em uma pequena cama de ferro branca, minhas
pernas ultrapassando a beirada. Este era o quarto de Lena, e eu estava
deitado na cama dela. Lena estava encolhida em uma cadeira no pé da cama,


a cabeça descansando sobre o braço.

Eu me sentei, grogue.

— Ei. O que houve?

Eu tinha certeza de que tinha desmaiado, mas os detalhes me fugiam. A
última coisa de que eu lembrava era do frio congelante se deslocando pelo
meu corpo, minha garganta fechando e a voz de Lena. Achava que ela tinha
dito qualquer coisa sobre eu ser seu namorado, mas como eu estava prestes a
desmaiar naquele momento e nada tinha acontecido entre nós, achei que
deveria duvidar. Manifestação dos meus desejos, eu acho.

— Ethan! — Ela pulou da cadeira e subiu na cama ao meu lado, apesar
de parecer tomar o cuidado de não me tocar. — Você está bem? Ridley não
soltava você, e eu não sabia o que fazer. Você parecia estar com tanta dor,
então eu só reagi.

— Está falando do tornado no meio da sua sala de jantar?

Ela olhou para o outro lado, infeliz.

— É isso que acontece. Eu sinto coisas, fico com raiva ou com medo e
então... as coisas apenas acontecem.

Estiquei o braço e coloquei a mão sobre a dela, sentindo o calor subir.

— Coisas como janelas quebrarem?

Ela olhou para mim e fechei meus dedos sobre a mão dela até que
estivesse toda dentro da minha. Uma rachadura no gesso velho no canto atrás
dela pareceu aumentar, até cruzar o teto, circundar o velho candelabro e
descer de novo. Parecia um coração. Um coração gigante, enroscado e
feminino tinha acabado de aparecer no gesso rachado do teto do quarto dela.

— Lena.

— O quê?

— Seu teto vai cair na nossa cabeça?

Ela se virou e olhou para a rachadura. Quando viu, mordeu o lábio e
ficou com as bochechas rosadas.

— Acho que não. É só uma rachadura no gesso.

— Você fez isso de propósito?

— Não. — Um rubor rosado se espalhou no nariz e nas bochechas dela.
Lena olhou para o outro lado.

Eu queria perguntar em que ela estava pensando, mas não queria deixá-
la sem graça. Apenas esperava que tivesse alguma coisa a ver comigo, com a


mão dela aninhada na minha. Com a palavra que eu tinha pensado ouvi-la
dizer logo antes de eu desmaiar.

Olhei com dúvida para a rachadura. Havia muita coisa naquela
rachadura no gesso.

— Você pode desfazê-las? Essas coisas que apenas... acontecem?

Lena suspirou, aliviada por falar de outra coisa.

— Às vezes. Depende. Às vezes tico tão sobrecarregada que não consigo
controlar nem consertar, nem mesmo depois. Acho que não conseguiria
colocar o vidro de volta na janela da escola. Acho que não conseguiria
impedir a chegada da tempestade no dia que nos conhecemos.

— Acho que aquela não foi sua culpa. Você não pode se culpar por cada
tempestade que cai sobre o condado de Gatlin. A temporada de furacões nem
terminou ainda.

Ela se virou de barriga para baixo e me olhou nos olhos. Não soltou
minha mão, e nem eu soltei a dela. Meu corpo todo vibrava com o calor do
seu toque.

— Você não viu o que aconteceu hoje?

— Às vezes um furacão pode ser apenas um furacão, Lena.

— Enquanto eu estiver por aqui, sou a temporada de furacões do
condado de Gatlin. — Ela tentou puxar a mão, mas isso só me fez segurar
com mais força.

— Isso é engraçado. Pra mim, você parece mais uma garota.

— É? Pois bem, não sou. Sou um alerta meteorológico, fora de controle.
A maioria dos Conjuradores consegue controlar seus dons quando chegam à
minha idade, mas na metade das vezes parece que o meu me controla. — Ela
apontou para seu próprio reflexo no espelho da parede. O texto de caneta
permanente se escreveu sozinho sobre o reflexo enquanto olhávamos. Quem
é essa garota? — Ainda estou tentando entender tudo, mas às vezes parece
que nunca vou conseguir.

— Todos os Conjuradores têm os mesmos poderes, dons, sei lá?

— Não. Conseguimos fazer coisas simples como mover objetos, mas cada
Conjurador também tem habilidades mais específicas relacionadas ao seu
dom.

Nesse momento, desejei que houvesse algum tipo de aula que eu pudesse
frequentar para conseguir acompanhar essas conversas, Introdução à


Conjuradores, sei lá, porque eu ficava sempre meio perdido. A única pessoa
que eu conhecia que tinha alguma habilidade especial era Amma. Ler o
futuro e afastar espíritos do mal tinha que contar para alguma coisa, certo? E
por tudo que eu sabia, Amma conseguia fazer eu me mexer; ela conseguia
botar meu rabo em movimento com apenas um olhar.

— E quanto à tia Del? O que ela consegue fazer?

— Ela é uma Palimpsesta. Lê o tempo.

— Lê o tempo?

— É assim: eu e você entramos em uma sala e vemos o presente. A tia
Del vê diferentes pontos no passado e no presente, tudo de uma vez. Ela
consegue entrar em uma sala e ver como ela é hoje e como era há dez anos,
há vinte, há cinquenta, tudo ao mesmo tempo. É meio como quando tocamos
no medalhão. É por isso que ela fica sempre tão confusa. Nunca sabe
exatamente quando ou onde está.

Pensei em como me senti depois de uma das visões, e de como seria me
sentir daquele jeito o tempo todo.

— Caramba. E Ridley?

— Ridley é uma Sirena. O dom dela é o Poder da Persuasão. Ela
consegue enfiar qualquer ideia na cabeça de qualquer pessoa, fazer com que
contem a ela qualquer coisa, com que façam qualquer coisa. Se ela usasse o
poder dela em você e mandasse você pular de um penhasco, você pularia.

Eu me lembrei de como me senti no carro com Ridley, como se pudesse
contar a ela quase qualquer coisa.

— Eu não pularia.

— Pularia. Você teria que pular. Um homem Mortal não é páreo para
uma Sirena.

— Eu não pularia. — Olhei para ela. O cabelo esvoaçava em torno do
seu rosto com a brisa, apesar de não haver nenhuma janela aberta no quarto.
Procurei nos olhos dela algum sinal de que ela estivesse se sentindo do mesmo
jeito que eu. — Não se pode pular de um penhasco quando já se caiu de
outro maior.

Ouvi as palavras saindo da minha boca e desejei não tê-las dito assim que
as disse. Tinham soado muito melhor na minha cabeça. Ela olhou para mim,
tentando ver se eu estava falando sério. Eu estava, mas não consegui dizer
isso. Em vez disso, mudei o assunto.


— E qual é o superpoder de Reece?

— Ela é uma Sibila, lê rostos. Consegue ver o que você viu, quando você
viu e o que você fez só de olhar nos seus olhos. Consegue abrir seu rosto e
literalmente lê-lo como um livro.

Lena ainda avaliava meu rosto.

— É, quem era aquela? Aquela outra mulher em quem Ridley se
transformou por um segundo, quando Reece ficou olhando para ela? Você
viu isso?

Lena assentiu.

— Macon não queria me dizer, mas tem que ser alguém das Trevas.
Alguma mulher poderosa.

Continuei perguntando. Precisava saber. Era como descobrir que eu
tinha acabado de jantar com um bando de aliens.

— O que Larkin consegue fazer? Encantar cobras?

— Larkin é um Ilusionista. É como um Mutador. Mas tio Barclay é o
único Mutador na família.

— Qual é a diferença?

— Larkin sabe Iludir, ou fazer qualquer coisa parecer com o que ele
quiser, por um tempo: pessoas, coisas, lugares. Ele cria ilusões, mas elas não
são reais. Tio Barclay sabe Mutar, o que significa que ele consegue fazer um
objeto virar outro, pelo tempo que ele desejar.

— Então seu primo muda a aparência das coisas e seu tio muda o que
elas são?

— É. De um modo geral, a vovó diz que os poderes deles são parecidos.
Acontece às vezes entre pais e filhos. São muito parecidos, então estão sempre
brigando.

Eu sabia o que ela estava pensando, que ela jamais conheceria isso de
perto. Seu rosto se fechou e eu fiz uma tentativa idiota de aliviar a tensão.

— Ryan? Qual é o poder dela? Estilista de cachorros?

— É cedo demais para saber. Ela só tem 10 anos.

— E Macon?

— Ele é apenas... o tio Macon. Não há nada que tio Macon não saiba
fazer, ou que não faria por mim. Passei muito tempo com ele na infância. —
Ela olhou para o outro lado, evitando a pergunta. Não estava contando
alguma coisa, mas se tratando de Lena, era impossível saber o quê. — Ele é


como meu pai, ou como imagino meu pai. — Ela não disse mais nada. Eu
sabia como era perder alguém. Imaginei se seria pior nunca ter tido essa
pessoa.

— E você? Qual é o seu dom?

Como se ela tivesse só um. Como se eu não os tivesse visto em ação
desde o primeiro dia de aula. Como se eu não tivesse andado tentando juntar
coragem para fazer essa pergunta desde a noite em que ela se sentou em
minha varanda de pijama roxo.

Ela fez uma pausa por um minuto, refletindo, ou decidindo se ia me
contar; era impossível saber qual dos dois. Então seus infinitos olhos verdes
me encararam.

— Sou uma Natural. Pelo menos tio Macon e tia Del acham que sou.

Uma Natural. Fiquei aliviado. Pelo menos não soava tão mal quanto
Sirena. Acho que não conseguiria lidar com algo assim.

— O que exatamente isso significa?

— Eu nem sei. Não é apenas uma coisa. Quero dizer, supostamente uma
Natural consegue fazer muito mais do que outros Conjuradores. — Ela disse
isso rapidamente, quase como se tivesse esperança de que eu não ouviria, mas
ouvi.

Mais do que outros Conjuradores.

Mais. Eu não tinha certeza de como me sentia em relação a mais. Com
menos eu conseguiria ter lidado. Menos teria sido bom.

— Mas, como você viu hoje, nem sei o que consigo fazer.

Ela puxou a colcha entre nós, nervosa. Eu puxei sua mão até que ela
estivesse deitada na cama ao meu lado, apoiada em um cotovelo.

— Não ligo pra nada disso. Gosto de você como você é.

— Ethan, você mal sabe qualquer coisa sobre mim.

Um calor sonolento estava se espalhando pelo meu corpo e, para ser
honesto, eu não dava a menor bola para o que ela estava dizendo. Era tão
bom só estar perto dela, segurando sua mão, com apenas a colcha branca
entre nós.

— Isso não é verdade. Sei que você escreve poesia e sei sobre o corvo em
seu cordão e sei que você adora refrigerante de laranja e sua avó, e caramelos
de chocolate misturados à pipoca.

Por um segundo, achei que ela poderia sorrir.


— Isso não é quase nada.

— É um começo.

Ela olhou bem nos meus olhos, os verdes dela examinando os meus azuis.

— Você nem sabe meu nome,

— Seu nome é Lena Duchannes.

— Bem, pra começar, não é.

Eu me ergui e soltei da mão dela.

— De que você está falando?

— Não é meu nome. Ridley não estava mentindo sobre isso.

Parte da conversa de antes começou a voltar à minha mente. Me lembrei
de Ridley dizendo alguma coisa sobre Lena não saber seu verdadeiro nome
mas não achei que ela estivesse falando literalmente.

— Bem, qual é então?

— Não sei.

— Isso é alguma coisa de Conjuradores?

— Na verdade, não. A maioria dos Conjuradores sabe seu nome
verdadeiro, mas minha família é diferente. Na minha família, não sabemos
nosso nome de batismo até fazermos 16 anos. Até então, temos outros nomes.
O de Ridley era Julia. O de Reece era Annabel. O meu é Lena.

— Então quem é Lena Duchannes?

— Sou uma Duchannes, isso eu sei. Mas Lena é apenas um nome que
minha avó começou a usar para me chamar.

Não falei nada por um segundo. Estava tentando absorver tudo.

— Certo, então você não sabe seu primeiro nome. Saberá em alguns
meses.

— Não é tão simples. Não sei nada sobre mim mesma. É por isso que sou
tão louca o tempo todo. Não sei meu nome e não sei o que aconteceu com
meus pais.

— Morreram em um acidente, não foi?

— É o que me disseram, mas ninguém fala sobre isso. Não consigo achar
nenhum registro do acidente, e nunca vi os túmulos deles nem nada. Como
vou saber se é verdade?

— Quem mentiria sobre algo tão horrível assim?

— Conheceu minha família?

— Certo.


— E aquela monstra lá embaixo, aquela bruxa que quase matou você?
Acredite se quiser, ela era minha melhor amiga. Ridley e eu crescemos juntas
morando com minha avó. Nos mudamos tanto que compartilhávamos a
mesma mala.

— É por isso que vocês não têm sotaque. A maioria das pessoas jamais
acreditaria que já moraram no sul.

— Qual é a sua desculpa?

— Pais professores e uma jarra cheia de moedas cada vez que eu
pronunciava o G direito. — Revirei os olhos. — Então Ridley não morava
com tia Del?

— Não. Tia Del só visita nas férias. Na minha família, não se mora com
os pais. É perigoso demais. — Obriguei a mim mesmo a não fazer as
próximas cinquenta perguntas enquanto Lena continuava disparada, como se
tivesse esperado uns cem anos para contar essa história. — Ridley e eu
éramos como irmãs. Dormíamos no mesmo quarto e tínhamos aulas em casa
juntas. Quando nos mudamos pra Virgínia, convencemos minha avó a nos
deixar ir pra escola normal. Queríamos fazer amigos, ser normais. As únicas
vezes em que falávamos com Mortais era quando vovó ia a museus, óperas ou
para almoçar no Olde Pink House e decidia nos levar.

— O que aconteceu quando vocês foram pra escola?

— Foi um desastre. Nossas roupas eram as roupas erradas, não tínhamos
TV, entregávamos todos os deveres de casa. Éramos umas tremendas
perdedoras.

— Mas pelo menos esteve na companhia de Mortais.

Ela não olhava para mim.

— Nunca tive um amigo Mortal até conhecer você.

— É mesmo?

— Eu só tinha Ridley. As coisas eram bem ruins pra ela também, mas ela
não ligava. Estava ocupada demais se certificando de que ninguém me
incomodaria.

Tive dificuldade em imaginar Ridley protegendo alguém.

As pessoas mudam, Ethan.

Não muito. Nem mesmo Conjuradores.

Principalmente Conjuradores. É isso que estou tentando dizer a você.

Ela afastou a mão de mim.


— Ridley começou a agir de um modo estranho, e então os mesmos caras
que a ignoravam começaram a segui-la para todos os lados, e esperar por ela
depois da aula, e brigar pra ver quem a acompanharia até nossa casa.

— Ah, bem. Algumas garotas, simplesmente, são assim.

— Ridley não é uma garota qualquer. Eu falei, ela é uma Sirena.
Conseguia fazer com que as pessoas fizessem coisas, coisas que normalmente
não iam querer fazer. E aqueles garotos estavam pulando do penhasco, um
por um. — Ela torceu o cordão nos dedos e continuou falando. — Na noite
anterior ao seu aniversário de 16 anos, eu segui Ridley até a estação de trem.
Ela estava apavorada. Disse que conseguia perceber que estava indo para as
Trevas, e tinha que ir embora antes que ferisse alguém que amava. Antes que
me ferisse. Sou a única pessoa que Ridley já amou. Ela desapareceu naquela
noite, e jamais tornei a vê-la, até hoje. Acho que depois do que você viu hoje,
está bem óbvio que ela foi para as Trevas.

— Espere um segundo, de que você está falando? O que quer dizer com
ir para as Trevas?

Lena respirou fundo e hesitou, como se não tivesse certeza se queria me
dizer a resposta.

— Você tem que me contar, Lena.

— Na minha família, quando você faz 16 anos, é Invocado. Seu destino é
escolhido, e você se torna da Luz, como tia Del e Reece, ou se torna das
Trevas, como Ridley. Trevas ou Luz, Preto ou Branco. Não há cinza em
minha família. Não podemos escolher, e não podemos desfazer depois que
somos Invocados.

— Como assim, não pode escolher?

— Não podemos escolher se queremos ser da Luz ou das Trevas, bom ou
mau, como Mortais e outros Conjuradores podem. Na minha família, não há
livre arbítrio. Tudo é decidido no nosso décimo-sexto aniversário.

Tentei entender o que ela estava dizendo, mas era louco demais. Eu
tinha morado com Amma tempo o bastante para saber que havia magia
Branca e Negra, mas era difícil acreditar que Lena não tinha escolha sobre
qual das duas era a sua.

Sobre quem ela era.

Ela ainda estava falando.

— É por isso que não podemos morar com nossos pais.


— O que isso tem a ver?

— Não era assim. Mas quando Althea, a irmã da minha avó, foi para as
Trevas, a mãe não conseguiu mandar Althea embora. Naquela época,
quando um Conjurador ia para as Trevas, tinha que abandonar o lar e a
família, por motivos óbvios. A mãe de Althea achou que podia ajudá-la a
combater isso, mas não podia, e coisas terríveis começaram a acontecer na
cidade onde elas moravam.

— Que tipo de coisas?

— Althea era uma Evo. Eles são incrivelmente poderosos. Conseguem
influenciar pessoas como Ridley consegue, mas também conseguem Mudar,
se transformar em outras pessoas, em qualquer pessoa. Quando ela se
Transformou, acidentes inexplicáveis começaram a acontecer na cidade.
Pessoas se feriram e, em um certo momento, uma garota se afogou. Foi
quando a mãe de Althea finalmente a mandou embora.

E eu achava que a gente tinha problemas em Gatlin. Não conseguia
imaginar uma versão mais poderosa de Ridley o tempo todo nas redondezas.

— Então agora nenhum de vocês pode morar com os pais?

— Todos decidiram que seria difícil demais para os pais virar as costas
para os filhos se eles fossem para as Trevas. E desde então, as crianças moram
com outros familiares até serem Invocadas.

— Então por que Ryan mora com os pais dela?

— Ryan é... Ryan. Ela é um caso especial. — Ela deu de ombros. —
Pelo menos, é o que tio Macon diz toda vez que pergunto.

Tudo parecia surreal demais, a ideia de que todo mundo na família dela
possuía poderes sobrenaturais. Tinham a mesma aparência que eu, que todo
mundo em Gatlin; bem, talvez não todo mundo, mas eram completamente
diferentes. Não eram? Até mesmo Ridley, esperando na saída do Pare &
Roube. Nenhum dos caras suspeitou que ela fosse qualquer coisa além de
uma garota incrivelmente gostosa, que estava obviamente bem confusa se
estava procurando por mim. Como acontecia? Como se era um Conjurador
em vez de um adolescente comum?

— Seus pais tinham dons? — Eu odiava falar sobre os pais dela. Sabia
como era falar sobre um ente morto, mas precisava saber.

— Tinham. Todo mundo na família tem.

— Quais eram os dons deles? Se pareciam com o seu?


— Não sei. Vovó nunca disse nada. Eu falei, é como se eles nunca
tivessem existido. O que me faz pensar, sabe.

— Em quê?

— Talvez eles fossem das Trevas, e eu vá para as Trevas também.

— Não vai.

— Como você sabe?

— Como posso ter os mesmos sonhos que você? Como sei quando entro
em algum lugar se você esteve ou não lá?

Ethan.

É verdade.

Toquei na bochecha dela e disse baixinho:

— Não sei como sei. Apenas sei.

— Sei que você acredita nisso, mas não tem como saber. Nem eu sei o
que vai acontecer comigo.

— Essa é a maior merda que eu já ouvi. — Era como todo o resto esta
noite; eu não tinha a intenção de dizer aquilo, pelo menos não em voz alta,
mas fiquei feliz por ter dito.

— O quê?

— Essa idiotice sobre destino. Ninguém pode decidir o que acontece com
você. Ninguém além de você.

— Não se você é um Duchannes, Ethan. Outros Conjuradores podem
escolher, mas não nós, não na nossa família. Somos Invocados com 16 anos,
nos tornamos da Luz ou das Trevas. Não há livre arbítrio.

Levantei o queixo dela com minha mão.

— E daí que você é uma Natural. O que há de errado nisso?

Olhei nos olhos dela e sabia que ia beijá-la, e sabia que não havia nada
com que me preocupar desde que ficássemos juntos. E eu acreditava, naquele
um segundo, que sempre estaríamos juntos.

Parei de pensar no manual de estratégias de basquete da Jackson e
finalmente deixei que ela visse como eu me sentia, o que havia em minha
mente. O que eu estava prestes a fazer, e quanto tempo tinha demorado para
que eu tivesse coragem de fazer.

Oh.

Os olhos dela se arregalaram, ficaram maiores e mais verdes, se é que
isso era possível.


Ethan... Não sei...

Eu me inclinei e a beijei na boca. O gosto era salgado, como suas
lágrimas. Desta vez, não um calor, mas uma eletricidade irradiou da minha
boca aos meus dedos dos pés. Eu sentia as pontas dos dedos formigando. Era
como enfiar uma caneta em uma tomada, coisa que Link tinha duvidado que
eu faria aos 8 anos. Ela fechou os olhos e me puxou para ela, e por um
minuto, tudo ficou perfeito. Ela me beijou, os lábios sorrindo sob os meus, e
eu sabia que ela estava me esperando, talvez pelo mesmo tempo que eu
esperei por ela. Mas então, tão rapidamente quando tinha se aberto para
mim, ela me expulsou. Ou mais precisamente, me empurrou para longe.

Ethan, não podemos fazer isso.

Por quê? Pensei que sentíamos a mesma coisa um pelo outro.

Ou talvez não sentíssemos. Talvez ela não sentisse.

Eu a estava encarando, da extremidade de suas mãos esticadas que ainda
estavam pousadas sobre meu peito. Ela provavelmente sentia como meu
coração estava batendo rápido.

Não é isso...

Começou a se afastar, e eu tinha certeza de que ela iria fugir como tinha
fugido no dia em que achamos o medalhão em Greenbrier, como na noite em
que me deixou parado na varanda. Coloquei minha mão no pulso dela e
imediatamente senti o calor.

— Então o que é?

Ela me encarou de volta, e eu tentei ouvir seus pensamentos, mas não
aconteceu nada.

— Sei que você pensa que tenho escolha sobre o que vai acontecer
comigo, mas não tenho. E o que Ridley fez hoje não foi nada. Ela poderia ter
matado você, e talvez tivesse matado se eu não tivesse impedido. — Ela
respirou fundo, os olhos brilhando. — É nisso que posso me transformar, em
um monstro, quer você acredite ou não.

Passei meus braços pelo pescoço dela, ignorando-a. Mas ela prosseguiu.

— Não quero que você me veja assim.

— Não ligo. — Beijei a bochecha dela.

Ela saiu da cama, deslizando o braço pela minha mão.

— Você não entende. — Ela ergueu a mão. 122. Cento e vinte e dois
dias, ela tinha escrito em tinta azul, como se aquilo fosse tudo que tivéssemos.


— Entendo. Você está com medo. Mas pensaremos em alguma coisa.
Estamos destinados a ficar juntos.

— Não estamos. Você é um Mortal. Não consegue entender. Não quero
ver você se ferir, e é isso que vai acontecer se ficar próximo demais de mim.

— Tarde demais.

Eu tinha ouvido cada palavra que ela disse, mas sabia só de uma coisa.

Eu já estava envolvido.




























































p 9 de outubro p

d



Os grandes













T



inha feito sentido nas palavras de uma garota bonita. Agora que eu
estava de volta em casa, sozinho e na minha própria cama, percebi,
finalmente, que tinha ficado louco. Nem Link acreditaria em nada
disso. Tentei pensar sobre como seria a conversa: a garota de quem eu gosto,
cujo nome real eu não sei, é uma bruxa. Perdão, uma Conjuradora, de uma
família inteira de Conjuradores, e em cinco meses ela vai basicamente
descobrir se é boa ou má. E ela pode causar furacões em lugares fechados e
quebrar vidros de janelas. E eu consigo ver o passado quando toco naquele
medalhão doido que Amma e Macon Ravenwood, que não é um recluso em
absoluto, querem que eu enterre. Um medalhão que se materializou no
pescoço de uma mulher em um quadro em Ravenwood, que, aliás, não é uma
casa reformada à perfeição e que muda completamente a cada vez que entro
lá, para. ver uma garota que me queima e dá choque e me destrói com um
simples toque.

E eu a beijei. E ela retribuiu meu beijo.

Era inacreditável demais, até para mim. Rolei de lado.







Açoitando.

O vento estava açoitando meu corpo.

Eu me agarrava na árvore enquanto ele me açoitava, os sons dos seus
gritos ferindo meus ouvidos. Á minha volta, os ventos rodopiavam, lutando
uns contra os outros, a velocidade e força se multiplicando a cada segundo. O


granizo caía como se o próprio Céu tivesse se aberto. Eu tinha que sair dali.

Mas não havia para onde ir.

"Solte-me, Ethan. Salve-se!"

Eu não conseguia vê-la. O vento estava forte demais, mas eu conseguia
senti-la. Segurava em seu punho com força. Eu tinha certeza de que
quebraria. Mas eu não ligava, não ia soltar. O vento mudou de direção, me
levantando do chão. Segurei-me na árvore com mais força, segurei seu pulso
com mais força. Mas eu conseguia sentir a força do vento nos afastando.

Me puxando para longe da árvore, para longe dela. Senti o braço dela
escorregando pelos meus dedos.

Não conseguia mais segurar.









Acordei tossindo. Ainda conseguia sentir a dor do vento que açoitou minha
pele. Como se minha experiência de quase morte em Ravenwood não tivesse
sido o bastante, agora os sonhos estavam de volta. Era demais para uma só
noite, até para mim. A porta do meu quarto estava escancarada, o que era
estranho, considerando que eu a trancava à noite ultimamente. A última coisa
de que eu precisava era Amma colocando algum amuleto vodu em mim
enquanto eu dormia. Eu tinha certeza de que tinha fechado a porta.

Olhei para o teto. Não conseguiria dormir tão cedo. Suspirei e tateei
embaixo da cama. Acendi o velho abajur ao lado da cama e tirei o marcador
do ponto onde eu tinha parado em Nevasca quando ouvi alguma coisa.
Passos? Vinha da cozinha, baixinho, mas eu ainda assim conseguia ouvir.
Talvez meu pai estivesse dando uma pausa na escrita. Talvez isso nos desse a
chance de conversar. Talvez.

Mas quando cheguei ao pé da escada, soube que não era ele. A porta do
escritório estava fechada e havia luz na fenda embaixo da porta. Tinha que
ser Amma. Assim que passei embaixo do portal da cozinha, a vi andando
apressada pelo corredor até seu quarto, pelo menos o tanto que ela conseguia
andar rápido. Ouvi a porta de tela nos fundos da casa ranger e fechar.
Alguém estava vindo ou indo. Depois de tudo que tinha acontecido esta noite,
era uma diferença importante.


Andei até a frente da casa. Havia uma picape velha e malcuidada, uma
Studebaker dos anos 1950, parada no meio-fío. Amma estava inclinada pela
janela falando com o motorista. Ela entregou sua bolsa a ele e entrou na
picape. Para onde estava indo no meio da noite?

Eu tinha que segui-la. E seguir a mulher que podia muito bem ter sido
minha mãe quando ela tinha entrado em um carro à noite com um estranho
dirigindo era algo difícil de fazer pra alguém que não tinha carro. Eu não
tinha escolha. Tinha que pegar o Volvo. Era o carro que minha mãe dirigia
quando aconteceu o acidente; era a primeira coisa que eu pensava cada vez
que o via.

Sentei atrás do volante. Tinha cheiro de papel velho e limpador de
vidros, como sempre.









Dirigir sem ligar os faróis era mais difícil do que eu pensava, mas consegui
perceber que a picape ia na direção de Wader’s Creek. Amma devia estar
indo para casa. A picape saiu da autoestrada 9 em direção ao interior.
Quando finalmente diminuiu a velocidade e encostou fora da estrada,
desliguei o Volvo e o guiei até o acostamento.

Amma abriu a porta e a luz interna acendeu. Apertei os olhos na
escuridão. Reconheci o motorista; era Carlton Eaton, o diretor da agência do
correio. Por que Amma pediria carona a Carlton Eaton no meio da noite? Eu
nunca tinha visto eles se falarem.

Amma disse alguma coisa para Carlton e fechou a porta. A picape voltou
para a estrada sem ela. Saí do carro e a segui. Amma era uma criatura de
hábitos. Se alguma coisa mexeu tanto com ela a ponto de se esgueirar até o
pântano no meio da noite, eu podia adivinhar que envolvia mais do que um
de seus clientes habituais.

Ela desapareceu na vegetação, por um caminho de cascalho que alguém
teve um grande trabalho para fazer. Ela andou pelo caminho no escuro, o
cascalho estalando sob os pés. Andei na grama ao lado do caminho para
evitar esse barulho, que me entregaria com certeza. Falei para mim mesmo
que era porque eu queria ver o motivo de Amma se esgueirar para casa no


meio da noite, mas o principal era que eu estava com medo que ela me
pegasse seguindo-a.









Era fácil ver por que Wader’s Creek tinha aquele nome; você tinha mesmo
que cruzar com dificuldade córregos de água negra1 para chegar lá, pelo
menos por esse caminho que Amma estava seguindo. Se a lua não estivesse
cheia, eu teria quebrado meu pescoço tentando segui-la pelo labirinto de
carvalhos cobertos de musgo e arbustos. Estávamos próximos à água. Eu
sentia o pântano no ar, quente e grudento como uma segunda pele.

1 Wade: Cruzar com dificuldade. Creek: Córrego. (N.da T)

A extremidade do pântano estava repleta de plataformas de madeira
feitas de troncos de cipreste amarrados com corda; barcas de homens pobres.
Elas se alinhavam na margem como táxis esperando para transportar pessoas
pela água. Eu conseguia ver Amma sob a luz da lua, se equilibrando com
experiência em uma dessas plataformas, se afastando da margem com ajuda
de uma longa vara que ela usou como remo para ir até o outro lado.

Eu não ia à casa de Amma há anos, mas teria me lembrado disso.
Devíamos ter vindo por outro caminho naquela época, mas era impossível
saber no escuro. A única coisa que eu conseguia ver era o quanto os troncos
nas plataformas estavam apodrecidos; cada um parecia mais instável do que o
outro. Então eu escolhi uma.

Manobrar a plataforma era bem mais difícil do que Amma fazia parecer.
Em intervalos de poucos minutos, havia um som batida na água, quando o
rabo de um jacaré batia na água na hora em que ele deslizava para o
pântano. Eu estava feliz por não ter pensado em atravessar andando.

Empurrei contra o chão do pântano com minha vara comprida uma
última vez e a beirada da plataforma tocou na margem. Quando pulei na
areia, pude ver a casa de Amma, pequena e modesta, com uma única luz na
janela. As molduras das janelas estavam pintadas do mesmo tom de azul-
pálido que as da propriedade Wate. A casa era feita de cipreste, como se fosse
parte do pântano.

Havia mais alguma coisa, algo no ar. Forte e predominante, como limão


e alecrim. E tão improvável quanto, por duas razões. O jasmim-estrela não
floresce no outono, só na primavera, e não cresce no pântano. Ainda assim, lá
estava. O cheiro era inconfundível. Havia algo de impossível aquilo, assim
como todo o resto da noite.

Observei a casa. Nada. Talvez ela tenha apenas decidido ir para casa.
Talvez meu pai soubesse que ela tinha indo embora, e eu estava vagando por
aí no meio da noite, me arriscando a ser comido por crocodilos, à toa.

Eu estava prestes a voltar pelo pântano, desejando ter deixado migalhas
de pão no caminho, quando a porta se abriu de novo. Amma ficou embaixo
da luz da porta aberta, colocando coisas que eu não conseguia ver na
tradicional bolsinha de couro branca. Ela estava usando seu melhor vestido
lilás, de ir à igreja, luvas brancas e um chapéu elegante combinando, com
flores ao redor.

Ela começou a andar de novo, indo em direção ao pântano. Ia para o
pântano vestindo aquilo? Por mais que eu não tenha gostado da jornada até a
casa de Amma, andar de jeans pelo pântano era pior. A lama era tão grossa
que parecia que eu estava arrancando meus pés de cimento cada vez que
dava um passo. Eu não sabia como Amma conseguia passar, de vestido e na
idade dela.

Amma parecia saber direitinho para onde estava indo e parou em uma
clareira de grama alta e algas. Os galhos dos ciprestes se enrascavam com os
de salgueiros, criando um teto. Um tremor me subiu pelas costas, apesar de
ainda fazer uns 21 graus. Mesmo depois de tudo o que vi naquela noite, havia
algo de assustador nesse lugar. Tinha uma névoa vindo da água, subindo
pelos lados, como vapor empurrando a tampa de uma chaleira. Cheguei mais
perto. Ela estava tirando alguma coisa da bolsa, o couro branco brilhando
sob a luz da lua.

Ossos. Pareciam ossos de galinha.

Ela sussurrou alguma coisa perto dos ossos e os colocou em um saquinho,
não muito diferente do que me deu para neutralizar o poder do medalhão.
Procurou novamente alguma coisa na bolsa e tirou uma toalha de mão
elegante, do tipo que se encontra em lavabos, e a usou para limpar a lama da
saia. Havia suaves luzes brancas um pouco distantes, como vaga- lumes
piscando no escuro, e música, uma música lenta e sensual, e risadas. Em
algum lugar não muito longe, pessoas estavam bebendo e dançando ali no


pântano.

Ela olhou para a frente. Alguma coisa tinha chamado sua atenção, mas
eu não ouvi nada.

— Você pode perfeitamente se mostrar. Sei que está aí.

Fiquei paralisado, em pânico. Ela tinha me visto.

Mas ela não estava falando comigo. Da névoa abafada saiu Macon
Ravenwood, fumando um charuto. Ele parecia relaxado, como se tivesse
acabado de sair de um carro com motorista em vez de ter andado por água
negra imunda. Estava impecavelmente vestido, usando uma das suas camisas
brancas engomadas.

E ele estava imaculado. Amma e eu estávamos cobertos de lama e grama
do pântano até os joelhos, e Macon Ravenwood estava de pé ali sem vestígio
algum de sujeira.

— Já era hora. Você sabe que não tenho a noite toda, Melchizedek.
Tenho que voltar. E não vejo com simpatia ter sido chamada aqui, longe da
cidade. Achei rude. Sem mencionar inconveniente. — Ela fungou. —
Incômodo, pode-se dizer.

I-N-C-Ô-M-O-D-O. Oito vertical, soletrei na minha cabeça.

— Tive uma noite bem agitada, Amarie, mas este assunto requer nossa
imediata atenção. — Macon deu alguns passos a frente.

Amma se encolheu e apontou um dedo ossudo na direção dele.

— Fique onde está. Não gosto de estar aqui com a sua espécie numa
noite dessas. Não gosto nem um pouco. Fique aí que eu fico aqui.

Ele deu um passo para trás casualmente, soprando anéis de fumaça no
ar.

— Como eu estava dizendo, certos desenvolvimentos requerem nossa
imediata atenção. — Ele exalou, um suspiro enfumaçado. — "A lua, quando
está cheia, fica mais longe do sol." Estou citando nossos bons amigos, o Clero.

— Não fale com arrogância e presunção comigo, Melchizedek. O que é
tão importante que você precisa me tirar da cama no meio da noite?

— Entre outras coisas, o medalhão de Genevieve.

Amma quase uivou e colocou a echarpe sobre o nariz. Ela obviamente
não suportava nem ouvir a palavra medalhão.

— O que tem aquela coisa? Falei pra você que o Enfeiticei e mandei-o
levar de volta para Greenbrier e enterrá-lo. Não pode causar mal algum se


estiver de volta à terra.

— Errada na primeira conclusão. Errada na segunda. Ele ainda está com
o medalhão. Mostrou para mim em meu lar sagrado. Além disso, acho que
nada consegue Enfeitiçar um talismã tão terrível.

— Na sua casa... Quando ele foi à sua casa? Eu o mandei ficar longe de
Ravenwood. — Agora ela estava claramente nervosa. Ótimo, Amma
encontraria uma maneira de me fazer pagar por aquilo depois.

— Bem, talvez você deva considerar controlá-lo melhor. Ele obviamente
não é muito obediente. Eu avisei a você que essa amizade seria perigosa, que
poderia se desenvolver e virar algo mais. Um futuro entre os dois é uma
impossibilidade.

Amma estava murmurando baixinho como sempre fazia quando eu não
escutava o que ela dizia.

— Ele sempre me obedeceu até conhecer sua sobrinha. E não me culpe.
Não estaríamos nessa situação se você não a tivesse trazido para cá. Vou
cuidar disso. Vou dizer para ele que não pode mais vê-la.

— Não seja ridícula. São adolescentes. Quanto mais os separarmos, mais
vão tentar ficar juntos. Isso não será mais problema quando ela for Invocada,
se chegarmos a esse ponto. Até lá, controle o garoto, Amarie. É só por alguns
meses. As coisas são perigosas o bastante sem ele complicar ainda mais a
situação.

— Não fale comigo sobre complicar, Melchizedek Ravenwood. Minha
família limpa todas as complicações da sua há mais de cem anos. Guardo seus
segredos assim como você guarda os meus.

— Não sou eu a Vidente que falhou em prever que eles iam encontrar o
medalhão. Como você explica isso? Como seus amigos espíritos conseguiram
não ver isso? — Ele fez um gesto indicando o ar ao redor com um
movimento sarcástico do charuto.

Ela se mexeu, os olhos arregalados.

— Não insulte os Grandes. Não aqui, não neste lugar. Eles têm seus
motivos. Deve haver alguma razão para não terem revelado.

Ela se afastou de Macon,

— Não prestem atenção nele. Eu trouxe camarão com canjica e torta de
limão. — Ela claramente não estava mais falando com Macon. — Seus
prediletos — disse ela, tirando a comida de potes de plástico e a colocando


em um prato. Pôs o prato no chão. Havia uma pequena lápide ao lado do
prato, e muitas outras espalhadas nas redondezas.

"Essa é nossa Grande Casa, a grande casa da minha família, está
ouvindo? Minha tia-avó Sissy. Meu tio-bisavô Abner. Minha tataravó Sulla.
Não desrespeite os Grandes na Casa deles. Se quer respostas, mostre
respeito."

— Peço desculpas.

Ela esperou.

— Verdadeiramente.

Ela fungou.

— E cuidado com as cinzas. Não há cinzeiros nessa casa. É um hábito
nojento.

Ele jogou o cigarro no musgo.

— Agora vamos acabar com isso. Não temos muito tempo. Temos que
saber onde está Saraf...

— Shh — sibilou ela. — Não diga o nome dela, não hoje. Não devíamos
estar aqui. A meia-lua é para fazer magia Branca, e a lua cheia é para fazer
magia Negra. Estamos aqui na noite errada,

— Não temos escolha. Houve um episódio um tanto desagradável esta
noite, infelizmente. Minha sobrinha, que se Transformou nó Dia da
Invocação, apareceu na Reunião de hoje.

— A filha de Del? Aquela das Trevas, perigosa?

— Ridley. Sem ser convidada, claro. Ela adentrou minha porta com o
garoto. Preciso saber se foi coincidência.

— Nada bom. Nada bom. Isso não é nada bom. — Amma se balançava
para a frente e para trás sobre os saltos, furiosa.

— Bem?

— Não há coincidências. Você sabe.

— Pelo menos concordamos sobre isso.

Eu não conseguia entender nada daquilo. Macon Ravenwood nunca
botava os pés fora de casa, mas aqui estava ele, no meio do pântano,
discutindo com Amma, que eu nem tinha ideia de que ele conhecia, sobre
mim e Lena e o medalhão.

Amma mexeu na bolsa novamente.

— Você trouxe o uísque? Tio Abner ama Wild Turkey.


Macon exibiu a garrafa.

— Coloque ali — disse ela, apontando para o chão — e dê um passo
para trás.

— Vejo que você ainda tem medo de tocar em mim depois de todos esses
anos.

— Não tenho medo de nada. Fique aí mesmo. Não pergunto sobre suas
coisas e não quero saber nada sobre elas.

Ele colocou a garrafa no chão a alguns metros de Amma. Ela a pegou,
serviu uísque em um copo pequeno e o bebeu. Eu nunca tinha visto Amma
beber nada mais forte do que chá a minha vida inteira. Depois ela derramou
um pouco da bebida na grama, cobrindo o túmulo.

— Tio Abner, precisamos de sua intervenção. Chamo seu espírito a este
lugar.

Macon tossiu.

— Você está abusando da minha paciência, Melchizedek.

Amma fechou os olhos e abriu os braços para o céu, a cabeça jogada
para trás como se falasse com a própria lua. Ela se inclinou e sacudiu a
bolsinha que tinha tirado da bolsa. O que havia dentro caiu sobre o túmulo.
Pequenos ossos de galinha. Eu esperava que não fossem os ossos do frango
frito que eu havia comido naquela tarde, mas tinha a sensação de que podiam
ser.

— O que eles dizem? — perguntou Macon.

Ela passou os dedos sobre os ossos, espalhando-os sobre a grama.

— Não estou recebendo uma resposta.

A perfeita compostura dele estava começando a ruir.

— Não temos tempo para isso! De que serve uma Vidente se você não
consegue ver nada? Temos menos de cinco meses até ela fazer 16 anos. Caso
ela se Transforme, estamos todos condenados, Mortais e Conjuradores,
igualmente. Temos uma responsabilidade, uma que ambos aceitamos de bom
grado, há muito tempo. Você com seus Mortais, eu com meus Conjuradores.

— Não preciso que você me lembre de minhas responsabilidades. E
mantenha sua voz baixa, ouviu? Não preciso que nenhum de meus clientes
venha aqui e nos veja juntos. O que isso pareceria? Uma cidadã respeitada da
comunidade como eu? Não interfira meus negócios, Melchizedek.

— Se não descobrirmos onde Saraf... onde ela está e o que está


planejando, teremos problemas maiores em nossas mãos do que você
fracassar em seus negócios, Amarie.

— Ela é das Trevas. Nunca sabemos em que direção o vento vai soprar
com aquela ali. É como tentar ver onde um tufão vai surgir.

— Mesmo assim. Preciso saber se ela vai tentar fazer contato com Lena.

— Não "se". Quando.

Amma fechou os olhos de novo, tocando no amuleto pendurado no
cordão que ela nunca tirava. Era um disco, entalhado na forma do que
parecia um coração com algum tipo de cruz saindo de cima. A imagem
estava gasta pelas milhares de vezes que Amma deve tê-la esfregado, como
fazia agora. Estava sussurrando algum tipo de cântico em uma língua que eu
não entendia, mas já tinha ouvido em algum lugar antes.

Macon andava de um lado para o outro, impaciente. Eu me mexi no
mato, tentando não fazer barulho.

— Não estou conseguindo fazer uma leitura hoje. Está turvo. Acho que
tio Abner está de mau humor. Tenho certeza de que foi alguma coisa que
você disse.

Isso deve ter sido a gota d’ água, porque o rosto de Macon mudou, a pele
pálida brilhando nas sombras. Quando ele deu um passo à frente, os ângulos
de seu rosto ficaram assustadores sob a luz da lua.

— Cansei desses jogos. Uma Conjuradora das Trevas entrou na minha
casa esta noite; isso por si só é impossível. Ela chegou com seu garoto, Ethan,
o que pode significar apenas uma coisa. Ele tem poderes, e você tem
escondido isso de mim.

— Bobagem. Aquele garoto tem poder tanto quanto eu tenho uma
cauda.

— Você está errada, Amarie. Pergunte aos Grandes. Consulte os ossos.
Não há outra explicação. Tem que ter sido Ethan. Ravenwood é protegida.
Uma Conjuradora do Mal jamais poderia burlar aquele tipo de proteção, não
sem alguma forma poderosa de ajuda.

— Você enlouqueceu. Ele não tem nenhum tipo de poder. Eu criei
aquela criança. Não acha que eu saberia?

— Você está errada desta vez. É próxima demais dele; isso deturpa sua
visão. E há muito em jogo pra que se cometam erros. Nós dois temos nossos
talentos. Estou avisando você, há mais naquele garoto do que qualquer um de


nós percebeu.

— Vou perguntar aos Grandes. Se houver algo a saber, eles farão com
que eu saiba. Não esqueça, Melchizedek, que temos compromisso tanto com
os vivos quanto com os mortos, e isso não é tarefa fácil. — Ela mexeu na
bolsa e puxou um barbante de aparência suja com uma fileira de pequenas
contas.

— Osso de Cemitério. Leve. Os Grandes querem que fique com você.
Protege espíritos de espíritos, e mortos de mortos. Não tem utilidade para
Mortais. Dê para sua sobrinha, Macon. Não vai machucá-la, mas pode
manter um Conjurador das Trevas afastado.

Macon pegou o barbante, segurando-o displicentemente entre dois
dedos, e depois o colocou dentro do lenço, como se estivesse guardando
algum bicho nojento.

— Eu agradeço.

Amma tossiu.

— Por favor. Diga para eles que agradeço. Muito.

Ele olhou para a lua como se estivesse verificando o relógio. Depois se
virou e desapareceu. Se dissolveu na névoa do pântano como se tivesse voado
com a brisa.






































p 10 de outubro p

d



Suéter vermelho











E



u mal tinha chegado à minha cama quando o sol nasceu, e estava
cansado — cansado até os ossos, como Amma diria. Agora estava
esperando por Link na esquina. Apesar de ser um dia ensolarado, havia
uma nuvem negra sobre a minha cabeça. E estava faminto. Não consegui
encarar Amma na cozinha de manhã. Um vislumbre do meu rosto
denunciaria tudo que vira na noite anterior e tudo que sentia, e eu não podia
me arriscar tanto.

Eu não sabia o que pensar. Amma, em quem eu confiava mais do que
em qualquer outra pessoa, tanto quanto nos meus pais, talvez mais — estava
escondendo coisas de mim. Conhecia Macon, e os dois queriam manter Lena
e eu separados. Tinha alguma coisa a ver com o medalhão e com o
aniversário de Lena. E com perigo.

Eu não conseguia juntar as peças, não sozinho. Precisava falar com Lena.
Era só o que eu conseguia pensar. Então, quando o rabecão dobrou a esquina
em vez do Lata-Velha, eu não deveria ter ficado surpreso.

— Acho que você ouviu. — Deslizei no banco, colocando a mochila no
chão à minha frente.

— Ouvi o quê? — Ela sorriu, quase timidamente, empurrando um saco
pelo banco. — Que você gosta de donuts? Consegui ouvir seu estômago
roncando lá em Ravenwood.

Olhamos um para o outro com desconforto. Lena olhou para baixo, sem
graça, puxando um pedaço de lã de um suéter bordado macio e vermelho
que parecia o tipo de coisa que as Irmãs teriam em algum lugar do sótão. Eu
conhecia Lena e sabia que não vinha do shopping em Summerville.


Vermelho? Desde quando ela usava vermelho?

Ela não estava sob uma nuvem negra; tinha acabado de sair de debaixo
de uma. Não tinha ouvido meu pensamento. Não sabia sobre Amma e
Macon. Só queria me ver. Acho que algumas das coisas que eu disse na noite
anterior fizeram sentido. Sorri e abri o saco branco de papel.

— Espero que você esteja com fome. Tive que brigar com o policial
gordo por eles. — Ela manobrou o rabecão para longe do meio-fio.

— Então você só ficou com vontade de me dar carona para a escola? —
Isso era novidade.

— Não. — Ela abriu a janela, a brisa da manhã soprando os cachos do
cabelo dela. Hoje, era realmente o vento.

— Tem alguma coisa melhor em mente?

O rosto dela se iluminou.

— Como poderia haver algo melhor do que passar um dia assim na
Stonewall Jackson High?

Ela estava feliz. Quando girou o volante, reparei em sua mão. Nada de
tinta. Nada de número. Nada de aniversário. Ela não estava preocupada com
nada, não hoje.

Cento e vinte. Eu sabia, como se estivesse escrito em tinta invisível na
minha própria mão. Cento e vinte dias até que aquilo que Macon e Amma
tanto temiam acontecesse.

Olhei pela janela quando viramos na autoestrada 9, desejando que ela
pudesse continuar assim por mais um tempo. Fechei meus olhos, revendo o
manual de estratégias na minha mente. Picket Fences. Down the Lane. Full
Court Press.









Quando chegamos a Summerville, eu soube para onde estávamos indo. Só
havia um lugar para onde adolescentes como nós iam em Summerville se não
fosse para as três ultimas fileiras do Cineplex.

O rabecão rodou pela poeira atrás da torre de água na extremidade do
campo.

— Vai estacionar? Estamos estacionando? Na torre de água? Agora? —


Link jamais acreditaria nisso.

O motor foi desligado. Nossas janelas estavam abertas, tudo estava
silencioso e a brisa entrava pela janela dela e saía pela minha.

Não é isso que as pessoas fazem aqui?

É, não. Não pessoas como nós. Não no meio do horário de aula.

Pelo menos uma vez não podemos ser como eles? Temos sempre que ser
nós?

Gosto de ser como somos.

Ela tirou o cinto de segurança e eu tirei o meu, puxando-a para meu
colo. Eu podia senti-la, quente e feliz, se espalhando em mim.

Então é isso que é estacionar?

Ela riu, esticando a mão para tirar o cabelo de cima dos meus olhos.

— O que é isso?

Peguei seu braço direito. Pendurada no punho estava a pulseira que
Amma tinha dado a Macon na noite anterior no pântano. Meu estômago se
contraiu, e eu sabia que o humor de Lena ia mudar. Eu tinha que contar a
ela.

— Meu tio me deu.

— Tire.

Girei a corda, procurando o nó.

— O quê? — O sorriso dela esmaeceu. — O que você quer dizer?

— Tire.

— Por quê? — Ela afastou o braço de mim.

— Aconteceu uma coisa ontem à noite.

— O que aconteceu?

— Depois que cheguei em casa, segui Amma a Wader’s Creek, onde ela
mora. Ela saiu da casa dela no meio da noite para encontrar uma pessoa no
pântano.

— Quem?

— Seu tio.

— O que eles estavam fazendo lá? — O rosto dela tinha ficado pálido
como giz, e eu sabia que a diversão no carro tinha acabado.

— Estavam falando sobre você, sobre nós. E sobre o medalhão.

Agora ela estava prestando atenção.

— O que sobre o medalhão?


— É algum tipo de talismã das Trevas, seja lá o que isso significa, e seu
tio contou pra Amma que eu não o enterrei. Estavam surtando por causa
disso.

— Como eles saberiam que é um talismã?

Eu estava começando a ficar irritado. Ela não parecia estar se
concentrando na coisa certa.

— Que tal como eles se conhecem? Você tinha alguma ideia de que seu
tio conhecia Amma?

— Não, mas não sei de todo mundo que ele conhece.

— Lena, eles estavam falando de nós. Sobre manter o medalhão longe de
nós, e sobre nos manter afastados. Fiquei com a sensação de que eles acham
que sou algum tipo de ameaça. Que estou atrapalhando alguma coisa. Seu tio
pensa...

— O quê?

— Ele acha que tenho algum tipo de poder.

Ela riu alto, o que me irritou ainda mais.

— Por que ele acharia isso?

— Porque levei Ridley para dentro de Ravenwood. Ele disse que eu teria
que ter poder para fazer isso.

Ela franziu a testa.

— Ele está certo.

Essa não era a resposta que eu esperava.

— Você está brincando, certo? Se eu tivesse poderes, não acha que eu
saberia?

— Não sei.

Talvez ela não soubesse, mas eu sabia. Meu pai era escritor e minha mãe
passava os dias lendo diários de generais mortos da Guerra Civil. Eu estava
tão distante de ser um Conjurador quanto possível, a não ser que irritar
Amma contasse como poder. Tinha obviamente havido alguma falha que
permitiu que Ridley entrasse. Um dos fios no sistema de segurança dos
Conjuradores tinha entrado em curto.

Lena devia estar pensando a mesma coisa.

— Relaxe. Tenho certeza de que há alguma explicação. Então Macon e
Amma se conhecem. Agora sabemos.

— Você não parece muito aborrecida com isso.


— O que você quer dizer?

— Eles têm mentido pra nós. Os dois. Se encontram secretamente,
tentam nos separar. Querem que nos livremos do medalhão.

— Nós nunca perguntamos se eles se conheciam.

Por que ela estava agindo assim? Por que não estava aborrecida, com
raiva, ou alguma outra coisa?

— Por que perguntaríamos? Você não acha esquisito que seu tio vá ao
pântano no meio da noite com Amma, para falar com espíritos e ler ossos de
galinha?

— É esquisito, mas tenho certeza de que só estão tentando nos proteger.

— De quê? Da verdade? Estavam falando sobre outra coisa também.
Estavam tentando encontrar alguém, Sara alguma coisa. E sobre como você
pode fazer mal a todos nós caso você se Transforme.

— Como assim?

— Não sei. Por que você não pergunta ao seu tio? Veja se pelo menos
essa vez ele vai contar a verdade.

Fui longe demais.

— Meu tio arrisca a vida dele pra me proteger. Sempre esteve ao meu
lado. Ele me acolheu mesmo sabendo que posso me tornar um monstro em
poucos meses.

— De que ele está protegendo você? Você ao menos sabe?

— De mim mesma! — retorquiu ela.

Foi o limite. Ela abriu a porta e saiu do meu colo, para o campo. A
sombra da enorme torre branca de água nos escondia de Summerville, mas o
dia não parecia mais tão ensolarado. Onde houvera um céu azul imaculado
há poucos minutos, agora havia traços de cinza.

A tempestade estava chegando. Ela não queria falar sobre o assunto, mas
eu não ligava.

— Isso não faz sentido. Por que ele encontra Amma no meio da noite
para dizer a ela que ainda temos o medalhão? Por que não quer que a gente
fique com ele? E o mais importante, por que não querem que a gente fique
junto?

Só havia nós dois gritando naquele campo. A brisa estava se
transformando em um vento forte. O cabelo de Lena começou a voar ao
redor do rosto. Ela gritou de volta:


— Não sei. Pais estão sempre tentando afastar adolescentes, é o que eles
fazem. Se quer saber por que, talvez devesse perguntar a Amma. É ela que
me Odeia. Eu nem posso pegar você em casa porque você tem medo de que
ela nos veja juntos.

O nó que estava crescendo na boca do meu estômago apertou. Eu estava
com raiva de Amma, com mais raiva do que jamais senti dela durante toda
minha vida, mas ainda a amava. Era ela quem tinha deixado as cartas da
Fada do Dente debaixo do meu travesseiro, feito curativos em cada joelho
ralado, feito milhares de arremessos para mim quando eu queria tentar jogar
beisebol na Little League. E desde que minha mãe morreu e meu pai se
isolou, Amma era a única que cuidava de mim, que se importava ou mesmo
percebia se eu matava aula ou perdia um jogo. Eu queria acreditar que ela
tinha uma explicação para tudo aquilo.

— Você só não a entende. Ela acha que está...

— O quê? Protegendo você? Como meu tio está tentando me proteger?
Você já pensou que talvez eles estejam ambos tentando nos proteger da
mesma coisa... eu?

— Por que você sempre fala isso?

Ela andou para longe de mim, como se fosse decolar se pudesse.

— O que mais há para falar? É disso que se trata. Estão com medo de
que eu vá machucar você ou alguma outra pessoa.

— Você está errada. Isso é sobre o medalhão. Tem alguma coisa que eles
não querem que a gente saiba. — Revirei meu bolso, procurando a forma
familiar sob o lenço. Depois da noite anterior, eu não ia deixá-lo longe de
mim de modo algum. Tinha certeza de que Amma ia procurá-lo hoje e, se ela
o encontrasse, jamais o veríamos de novo. Eu o coloquei sobre o capô do
carro. — Precisamos descobrir o que acontece depois.

— Agora?

— Por que não?

— Você nem sabe se vai dar certo.

Comecei a desembrulhá-lo.

— Só há um jeito de descobrir.

Peguei sua mão, mesmo com ela tentando puxá-la de mim. Toquei no
metal liso...

A luz da manhã ficou mais e mais intensa até ser a única coisa que eu


conseguia ver. Senti o movimento familiar que já tinha me levado 150 anos
para o passado. Depois um sacolejo. Abri meus olhos. Mas em vez do campo
lamacento e das chamas ao longe, tudo que vi foi a sombra da torre de água e
o rabecão. O medalhão não nos mostrou nada.

— Você sentiu? Começou e depois parou.

Ela assentiu, me empurrando para longe.

— Acho que estou enjoada do carro, ou sei lá de quê.

— Você bloqueou?

— Como assim? Não fiz nada.

— Jura? Não usou seus poderes de Conjuradora, nem nada assim?

— Não, estou ocupada demais tentando afastar seu Poder da Burrice.
Mas não acho que sou forte o bastante.

Não fazia sentido, começar a nos levar e depois nos bloquear da visão
desse jeito. O que havia de diferente? Lena esticou o braço, dobrando o lenço
sobre o medalhão. A pulseira de couro sujo que Amma tinha dado a Macon
chamou minha atenção.

— Tire isso. — Coloquei meu dedo sob o fio, erguendo a pulseira e o
braço dela até o nível dos olhos.

— Ethan, é para proteção. Você disse que Amma faz essas coisas o tempo
todo.

— Acho que não é.

— O que quer dizer?

— Que talvez tenha sido por causa disso que o medalhão não funcionou.

— Não funciona sempre, você sabe.

— Mas começou a funcionar, e algo impediu.

Ela sacudiu a cabeça, e os cachos selvagens roçaram seu ombro.

— Você acredita mesmo nisso.

— Prove que estou errado. Tire isso.

Ela olhou para mim como se eu fosse louco, mas estava pensando no
assunto. Eu conseguia perceber.

— Se eu estiver errado, você pode colocar de volta. Ela hesitou por um
segundo, depois me deu o braço para que eu desamarrasse. Afrouxei o nó e
coloquei o amuleto no meu bolso. Estiquei a mão para o medalhão, e ela
colocou a mão sobre a minha.

Fechei minha mão em torno dele, e giramos para o nada...






A chuva começou quase imediatamente. Chuva forte, um aguaceiro. Como
se o céu despencasse. Ivy sempre dizia que as gotas da chuva eram as
lágrimas de Deus. Hoje, Genevieve acreditava. Eram poucos metros, mas
Genevieve não conseguia chegar lá rápido o bastante. Ela se ajoelhou ao lado
de Ethan e aconchegou a cabeça dele nas mãos. A respiração dele estava
entrecortada. Ele estava vivo.

— Não, não, não o garoto também. Vocês tiram muita coisa. Muita. Não
esse garoto também. — A voz de Ivy chegou a um tom frenético e ela
começou a rezar.

— Ivy, chame ajuda. Preciso de água, uísque e alguma coisa para retirar
a bala.

Genevieve pressionou o material acolchoado da saia no buraco que tinha
sido o peito de Ethan até poucos momentos antes.

— Eu te amo. E teria me casado com você independente do que nossa
família pensa — sussurrou ele.

— Não diga isso, Ethan Carter Wate. Não fale como se fosse morrer.
Você vai ficar bem. Vai ficar bem — repetiu ela, tentando convencer a si
mesma tanto quanto a ele.

Genevieve fechou os olhos e se concentrou. Flores desabrochando. Bebês
recém-nascidos chorando. O sol nascendo. Nascimento, não morte.

Ela viu as imagens na cabeça, desejando que fosse assim. As imagens se
repetiam em sua mente. Nascimento, não morte.

Ethan engasgou. Ela abriu os olhos, e os olhos dos dois se encontraram.
Por um instante, o tempo pareceu parar. E então, os olhos de Ethan se
fecharam e a cabeça dele virou para o lado.

Genevieve fechou os olhos de novo, visualizando as imagens. Tinha que
ser um engano. Ele não podia estar morto. Ela tinha evocado seu poder.
Tinha feito isso um milhão de vezes antes, tinha movido objetos na cozinha
da mãe para dar sustos em Ivy, curado filhotes de pássaro que tinham caído
dos ninhos.

Por que não agora? Quando importava?

— Ethan, levante. Por favor, acorde.






Abri meus olhos. Estávamos parados no meio do campo, exatamente no
mesmo lugar de antes. Olhei para Lena. Os olhos dela brilhavam, prestes a
chorar.

— Oh, Deus.

Me abaixei e toquei na grama onde estávamos. Uma mancha vermelha
marcava as plantas e o chão ao redor de nós.

— É sangue.

— Sangue dele?

— Acho que sim.

— Você estava certo. A pulseira estava nos impedindo de ter a visão. Mas
por que tio Macon me diria que era para proteção?

— Talvez seja. Só que não só pra isso.

— Você não precisa tentar me fazer sentir melhor,

— Obviamente, tem alguma coisa que eles não querem que a gente
descubra, e envolve o medalhão, e estou disposto a apostar que envolve
Genevieve também. Temos que descobrir o máximo possível sobre os dois, e
temos que fazer isso antes do seu aniversário.

— Por que meu aniversário?

— Ontem à noite, Amma e seu tio estavam conversando. Seja lá o que
eles não querem que a gente saiba, tem a ver com seu aniversário.

Lena respirou fundo, como se tentasse se controlar.

— Eles sabem que vou para as Trevas. É disso que se trata.

— O que isso tem a ver com o medalhão?

— Não sei, mas não importa. Nada disso importa. Em quatro meses, não
serei mais eu. Você viu Ridley. Vou ficar daquele jeito, ou pior. Se meu tio
estiver certo e eu for uma Natural, então farei Ridley parecer uma voluntária
da Cruz Vermelha.

Eu a puxei para perto de mim e passei meus braços em torno dela como
se pudesse protegê-la de alguma coisa que nós dois sabíamos que eu não
podia.

— Você não pode pensar assim. Tem que haver um meio de impedir
isso, se for mesmo a verdade.

— Você não entende. Não tem como impedir. Apenas acontece. — A
voz dela estava ficando estridente. O vento começava a ficar mais forte.


— Tá, talvez você esteja certa. Talvez apenas aconteça. Mas vamos
descobrir um jeito de fazer com que não aconteça com você.

Os olhos dela estavam ficando nublados como o céu.

— Não podemos apenas aproveitar o tempo que temos?

Senti o peso das palavras pela primeira vez.

O tempo que temos.

Eu não podia perdê-la. Não queria. Só o pensamento de não poder mais
tocar nela me enlouquecia. Mais do que perder todos os meus amigos. Mais
do que ser o cara menos popular da escola. Mais do que Amma ficar
eternamente com raiva de mim. Perdê-la era a pior coisa que eu podia
imaginar. Como se eu estivesse caindo, mas dessa vez eu certamente ia bater
no chão.

Pensei em Ethan Carter Wate batendo no chão, o sangue vermelho no
campo. O vento começou a uivar. Era hora de ir.

— Não fale assim. Vamos descobrir um jeito.

Mas, mesmo enquanto eu falava isso, não sabia se acreditava.








































p 13 de outubro p

d



Marian, a bibliotecária















T



rês dias tinham se passado e eu ainda não conseguia parar de pensar no
assunto. Ethan Wate Carter tinha levado um tiro, e provavelmente
estava morto. Eu tinha visto com meus próprios olhos. Bem,
tecnicamente, todo mundo daquela época estava morto agora. Mas de um
Ethan Wate para outro, eu estava tendo dificuldade em superar a morte desse
soldado confederado em particular. Mais para desertor confederado. Meu
tatara-tio.

Pensei nisso durante a aula de Álgebra II, enquanto Savannah empacava
numa equação em frente à turma, mas o Sr. Bates estava ocupado demais
lendo a última edição da revista Guns and Ammo para reparar. Pensei nisso
durante a reunião dos Futuros Fazendeiros da América, onde não consegui
encontrar Lena e acabei sentando com a banda. Link estava sentado com os
caras algumas fileiras atrás de mim, mas não reparei até Shawn e Emory
começarem a fazer barulhos de animais. Depois de um tempo, eu já não os
ouvia mais. Minha mente ficava voltando para Ethan Wate Carter.

Não era por ele ser confederado. Todo mundo no condado de Gatlin era
descendente de pessoas do lado errado da Guerra entre os Estados. Já
estávamos acostumados com isso. Era como ter nascido na Alemanha depois
da 2a Guerra Mundial, ser japonês depois de Pearl Harbor ou ser dos Estados
Unidos depois de Hiroshima. A história era uma merda às vezes. A gente não
pode mudar de onde é. Mas ainda assim, a gente não precisa ficar lá. A gente
não precisa ficar preso ao passado, como as senhoras do FRA, a Sociedade
Histórica de Gatlin ou as Irmãs. E a gente não precisa aceitar que as coisas
tinham que ser do jeito que eram, como Lena. Ethan Carter Wate não


aceitou, e eu também não podia aceitar.

Tudo o que eu sabia era que, agora que sabíamos sobre o outro Ethan
Wate, tínhamos que descobrir mais sobre Genevieve. Talvez houvesse uma
razão para a gente ter encontrado aquele medalhão, afinal. Talvez houvesse
uma razão para a gente ter se esbarrado em um sonho, mesmo se ele estivesse
mais para um pesadeio.

Normalmente, eu teria perguntado à minha mãe o que fazer, isso na
época em que as coisas estavam normais e ela ainda estava viva. Mas ela não
estava mais aqui, meu pai vivia fora do ar e não poderia me ajudar e Amma
não ia nos ajudar em nada que tivesse a ver com o medalhão. Lena ainda
estava deprimida em relação a Macon; a chuva lá fora entregava o humor
dela. Eu deveria estar fazendo meu dever de casa, o que significava que eu
precisava de uns 2 litros de achocolatado e quantos cookies eu conseguisse
carregar na outra mão.

Andei pelo corredor vindo da cozinha e parei em frente ao escritório.
Meu pai estava no andar de cima tomando um banho, que era a única hora
em que ele saía do escritório atualmente, então a porta provavelmente estava
trancada. Sempre ficava, desde o incidente do manuscrito.

Olhei para a maçaneta, depois observei o corredor de um lado ao outro.
Apoiei os cookies precariamente sobre a caixa de leite e estiquei a mão. Antes
que tocasse na maçaneta, ouvi o clique dela abrindo. A porta se destrancou
sozinha, como se alguém abrisse a porta para mim por dentro. Os cookies
caíram no chão.

Um mês antes, eu não teria acreditado, mas agora eu sabia bem. Aqui
era Gatlin. Não a Gatlin que eu achava que conhecia, mas alguma outra
Gatlin que aparentemente tinha ficado escondida bem à minha vista o tempo
todo. Uma cidade onde a garota de quem eu gostava vinha de uma longa
linhagem de Conjuradores, minha governanta era uma Vidente que lia ossos
de galinha no pântano e evocava os espíritos dos ancestrais mortos e até meu
pai agia como um vampiro.

Parecia não haver nada inacreditável demais para esta Gatlin. É
engraçado como a gente pode morar em um lugar a vida toda e mesmo assim
não vê-lo de verdade.

Empurrei a porta, lentamente, hesitante. Conseguia ver só uma parte do
escritório, um canto das prateleiras embutidas, cheias dos livros da minha


mãe e dos restos da Guerra Civil que ela parecia pegar onde quer que fosse.
Respirei fundo e inspirei o ar do escritório. Não era difícil de entender por
que meu pai nunca saía de lá.

Eu podia quase vê-la, enrascada na velha cadeira de leitura perto da
janela. Ela estaria na máquina de escrever, do outro lado da porta. Se eu
abrisse a porta um pouco mais, ela podia muito bem estar lá agora. Só que eu
não ouvia o barulho das teclas, e sabia que ela não estava lá e nem jamais
estaria.

Os livros de que eu precisava estavam naquelas prateleiras. Se alguém
sabia mais sobre a história do condado de Gatlin do que as Irmãs, era minha
mãe. Dei um passo a frente, empurrando a porta apenas mais alguns
centímetros.

— Pelo amor do céu e da terra, Ethan Wate, se você pensa em botar um
pé nesse recinto, seu pai vai te espancar até a semana que vem.

Quase deixei cair o leite. Amma.

— Não estou fazendo nada. A porta só abriu.

— Que vergonha. Nenhum fantasma em Gatlin ousaria botar o pé no
escritório de sua mãe e seu pai, exceto se fosse a sua própria mãe. — Ela
olhou para mim desafiadoramente. Havia algo em seus olhos que me fez
imaginar se ela estava tentando me dizer alguma coisa, talvez até a verdade.
Talvez tivesse sido minha mãe a abrir a porta.

Porque uma coisa estava clara. Alguém, alguma coisa, queria que eu
entrasse naquele escritório, assim como uma outra pessoa queria me manter
fora.

Amma bateu a porta e tirou uma chave do bolso, trancando-a. Ouvi o
clique e soube que tinha perdido minha chance, tão rapidamente quanto
tinha sido encontrada. Ela cruzou os braços.

— Amanhã tem escola. Você não precisa estudar? Olhei para ela,
irritado.

— Vai voltar à biblioteca? Você e Link terminaram aquele trabalho? E
de repente me ocorreu.

— É, a biblioteca. Na verdade, é para lá que estou indo agora. — Beijei a
bochecha dela e saí correndo.

— Diga oi a Marian por mim, e não se atrase para o jantar.

A velha e boa Amma. Sempre tinha as respostas, soubesse ou não, e


estivesse ou não disposta a dá-las.









Lena estava me esperando no estacionamento na Biblioteca do Condado de
Gatlin. O concreto rachado ainda estava molhado da chuva. Apesar de a
biblioteca ainda ficar aberta por mais duas horas, o rabecão era o único carro
no estacionamento, fora uma familiar picape turquesa. Vamos apenas dizer
que essa não era uma cidade para bibliotecas. Não havia muito que a gente
quisesse saber sobre qualquer cidade além da nossa, e se nosso bisavô ou
tataravô não sabia contar, provavelmente a gente não precisava saber.

Lena estava acomodada na lateral do prédio, escrevendo em seu
caderno. Usava jeans surrado, botas de chuva enormes e uma camiseta preta.
Pequenas tranças estavam caídas ao redor de seu rosto, perdidas nos cachos.
Ela quase parecia uma garota comum. Eu não tinha certeza se queria que ela
fosse uma garota comum. Tinha certeza de que queria beijá-la de novo, mas
isso teria que esperar. Se Marian tivesse a resposta de que precisávamos, eu
teria mais chances de beijá-la.

Percorri meu manual de estratégias de novo. Pick'n'Roll bloqueio
seguido de passe para penetrar a área adversária.

— Você acha mesmo que há alguma coisa aqui que pode nos ajudar? —
Lena levantou os olhos do caderno e olhou para mim.

Eu a puxei pela mão.

— Não alguma coisa. Alguém.



***



A biblioteca em si era linda. Eu tinha passado tantas horas nela quando
criança que tinha herdado a crença da minha mãe de que uma biblioteca era
um tipo de templo. Essa biblioteca em particular era um dos poucos prédios
que tinha sobrevivido à Marcha de Sherman e ao Grande Incêndio. A
biblioteca e Sociedade Histórica eram os dois prédios mais velhos da cidade,
além de Ravenwood. Era uma construção vitoriana de dois andares,
impressionante, velha e desgastada com tinta branca descascando e décadas


de hera dormindo ao redor das portas e janelas. Cheirava a madeira
envelhecida e verniz, capas plásticas de livro e papel velho. Papel velho, que
minha mãe costumava dizer que era o cheiro do próprio tempo.

— Não entendo. Por que a biblioteca?

— Não é apenas a biblioteca. É Marian Ashcroft.

— A bibliotecária? Amiga de tio Macon?

— Marian era a melhor amiga da minha mãe e sua parceira de pesquisa.
É a única outra pessoa que sabe tanto sobre o condado de Gatlin quanto
minha mãe, e é a pessoa mais inteligente de Gatlin atualmente.

Lena olhou para mim com ceticismo.

— Mais inteligente do que tio Macon?

— Tá. Ela é a Mortal mais inteligente de Gatlin.







Nunca consegui entender o que alguém como Marian fazia em uma cidade
como Gatlin. "Só porque você mora no meio do nada", Marian diria para
mim enquanto comia um sanduíche de atum com minha mãe, "não significa
que você não pode conhecer o lugar onde mora." Eu não tinha ideia do que
ela queria dizer. Eu não tinha ideia do que ela estava falando na metade do
tempo. Provavelmente era por isso que Marian se dava tão bem com minha
mãe; eu também não sabia do que minha mãe estava falando metade do
tempo. Como eu disse, o maior cérebro na cidade, ou talvez, simplesmente, a
personalidade mais forte,

Quando entramos na biblioteca vazia, Marian estava andando entre as
estantes, de meias, gemendo sozinha como a louca de uma tragédia grega,
que ela gostava de recitar. Como a biblioteca era praticamente uma cidade
fantasma, exceto pela visita ocasional das senhoras do FRA para verificar
genealogias duvidosas, Marian tinha liberdade total.

— "Sabeis de alguma coisa?"

Segui a voz dela para o meio das estantes.

— "Vós ouvistes?"

Dobrei a esquina da parte de ficção. Lá estava ela, se balançando,
segurando uma pilha de livros nos braços, olhando através de mim.

— "Ou está escondido de vós..."


Lena saiu detrás de mim.

— "... que nossos amigos estão ameaçados..."

Marian olhou de mim para Lena sobre os óculos de leitura quadrados.

— "... com o destino dos nossos inimigos?"

Marian estava lá, mas não estava lá. Eu conhecia bem aquele olhar e
sabia que, apesar de ela ter uma citação para tudo, não as escolhia à toa. Que
destinos dos meus inimigos me ameaçavam, ou aos meus amigos? Se essa
amiga era Lena, eu não tinha certeza se queria saber.

Eu lia muito, mas não tragédias gregas.

— Édipo-Rei?

Abracei Marian por cima da pilha de livros. Ela me apertou com tanta
força que não consegui respirar, uma enorme biografia do General Sher- man
me pressionando as costelas.

— Antígona — falou Lena, novamente atrás de mim.

Exibida.

— Muito bem. — Marian sorriu sobre meu ombro.

Fiz uma careta para Lena, que deu de ombros.

— Fui educada em casa.

— É sempre impressionante encontrar uma pessoa jovem que conhece
Antígona.

— Só o que lembro era que ela queria enterrar os mortos.

Marian sorriu para nós dois. Jogou metade da pilha de livros nos meus
braços e a outra metade nos de Lena. Quando sorria, parecia que podia estar
na capa de uma revista. Tinha dentes brancos e uma bela pele morena, e
parecia mais com uma modeio do que com uma bibliotecária. Era muito
bonita e exótica, uma mistura de tantas linhagens que era como olhar para a
história do próprio sul, pessoas das Antilhas, do Caribe, da Inglaterra, da
Escócia e até dos Estados Unidos, todas se misturando até que seria
necessária uma floresta de árvores genealógicas para traçar o caminho.

Apesar de estarmos ao sul de Algum Lugar e ao norte de Nenhum Lugar,
como Amma costumava dizer, Marian Ashcroft se vestia como se estivesse
dando uma aula em Duke. Todas suas roupas, joias, coisas características e
echarpes com estampas exageradas pareciam vir de algum outro lugar e
complementar o cabelo curto simples e bacana.

Marian não era do condado de Gatlin, tanto quanto Lena, mas ainda


assim ela estava lá havia tanto tempo quando minha mãe. Agora até mais.

— Senti tanto sua falta, Ethan. E você... Você deve ser a sobrinha de
Macon, Lena. A famosa garota nova na cidade. A garota da janela. Ah, sim,
ouvi falar de você. As senhoras, elas andam falando.

Seguimos Marian até o balcão da frente e colocamos os livros no
carrinho para serem guardados.

— Não acredite em tudo que ouve, Dra. Ashcroft.

— Marian, por favor.

Quase deixei cair um livro. Fora minha família, Marian era Dra.
Ashcroft para quase todo mundo ali. Lena estava recebendo acesso
instantâneo ao nosso círculo fechado, e eu não tinha ideia do motivo.

— Marian. — Lena sorriu.

Fora Link e eu, essa era a primeira experiência de Lena com a famosa
hospitalidade sulista, e vinda de outra pessoa de fora.

— A única coisa que quero saber é se, quando você quebrou aquela
janela com sua vassoura, exterminou as futuras gerações da FRA? — Marian
começou a baixar as persianas, gesticulando para que a ajudássemos.

— Claro que não. Se eu tivesse feito isso, como teria essa publicidade
gratuita?

Marian jogou a cabeça para trás e gargalhou, passando um braço em
torno de Lena.

— Bom senso: de humor, Lena. É isso que você precisa para aguentar
essa cidade.

Lena suspirou.

— Ouvi muitas piadas. A maioria sobre mim.

— Ah, mas... "Os monumentos de humor sobrevivem aos monumentos
de poder."

— Isso é Shakespeare? — Eu estava me sentindo meio ignorando.

— Quase. Sir Francis Bacon. Mas se você for uma daquelas pessoas que
acha que ele escreveu as peças de Shakespeare, acho que acertou então.

— Desisto.

Marian bagunçou meu cabelo.

— Você cresceu meio metro desde a última vez que nos vimos, EW. O
que Amma dá pra você comer? Torta no café, almoço e jantar? Parece que
não vejo você há uns cem anos.


Olhei para ela.

— Eu sei, desculpe. Só não senti muita vontade de... ler.

Ela sabia que eu estava mentindo, mas sabia o que eu queria dizer.
Marian foi até a porta e trocou a plaqueta de "aberto" para "fechado". Fechou
a tranca com um estalo. Me fez lembrar do escritório.

— Achei que a biblioteca ficasse aberta até as 21 horas. — Se não ficasse,
eu perderia uma ótima desculpa para fugir até a casa de Lena.

— Não hoje. A bibliotecária-chefe acabou de declarar que hoje é feriado
na Biblioteca do Condado de Gatlin. Ela é espontânea. — Ela piscou. —
Para uma bibliotecária.

— Obrigada, tia Marian.

— Sei que você não estaria aqui se não tivesse um motivo, e suspeito que
a sobrinha de Macon Ravenwood é, se não for nenhuma outra coisa, um
motivo. Então por que não vamos todos para a sala de trás, fazemos um bule
de chá e tentamos ter motivação? — Marian adorava brincar com as
palavras.

— É mais uma pergunta, na verdade. — Apalpei meu bolso, onde o
medalhão ainda estava embrulhado no lenço de Sulla, a Profeta.

— "Pergunte tudo. Aprenda alguma coisa. Não responda nada."

— Homero?

— Eurípedes. É melhor você começar a acertar algumas dessas respostas,
EW, ou terei que ir às suas reuniões de pais.

— Mas você disse para não responder nada.

Ela destrancou a porta onde estava escrito ARQUIVO PARTICULAR.

— Eu disse isso?

Como Amma, Marian parecia sempre ter resposta. Como qualquer boa
bibliotecária. Como minha mãe.





Eu nunca tinha entrado no arquivo particular de Marian; a sala dos fundos.
Pensando bem, não conhecia ninguém que tivesse entrado lá além da minha
mãe. Era o espaço que elas compartilhavam, o lugar onde escreviam e
pesquisavam e quem sabe mais o quê. Nem meu pai podia entrar. Me lembro
de Marian o fazendo parar na entrada quando minha mãe estava
examinando um documento histórico lá dentro.


— Particular é particular.

— É uma biblioteca, Marian. Bibliotecas foram criadas para
democratizar o conhecimento e torná-lo público.

— Por aqui, as bibliotecas foram criadas para que os Alcoólicos
Anônimos tivessem um lugar para se reunir quando os batistas os
expulsassem.

— Marian, não seja ridícula. É só um arquivo.

— Não pense em mim como uma bibliotecária. Pense em mim como
uma cientista louca, e aqui é meu laboratório secreto.

— Você é maluca. Vocês duas só estão olhando uns papéis velhos caindo
aos pedaços.

— "Se você revela seus segredos ao vento, não deve culpar o vento por
revelá-los para as árvores."

— Khalil Gibran — rebateu ele.

— "Três pessoas conseguem guardar um segredo se duas delas estiverem
mortas."

— Benjamin Franklin.

Em certo momento, até meu pai desistiu de tentar entrar no arquivo
delas. Iamos para casa e comíamos sorvete de chocolate, e depois disso
sempre pensei em minha mãe e Marian como uma força imbatível da
natureza. Duas cientistas loucas, como Marian havia dito, acorrentada uma à
outra no laboratório. Elas escreveram livro após livro, e até chegaram uma
vez à pequena lista do Prêmio Voice ofthe South, o equivalente sulista ao
Prêmio

Pulitzer. Meu pai ficou incrivelmente orgulhoso da minha mãe, das duas,
mesmo se estivéssemos lá só para acompanhar. "Cheia de vida na mente." Era
assim que ele costumava descrever minha mãe, principalmente quando ela
estava no meio de um projeto. Era quando ela ficava mais ausente, mas ainda
assim, era quando ele parecia amá-la mais.

E agora aqui estava eu, no arquivo particular, sem meu pai nem minha
mãe, sem mesmo uma tigela de sorvete de chocolate à vista. As coisas
estavam mudando bem rápido por aqui, para uma cidade que nunca
mudava.

A sala era escura e coberta de lambris, a sala mais isolada, sem ar e sem
janelas do terceiro prédio mais velho de Gatlin. Havia quatro longas mesas de


carvalho alinhadas paralelamente no centro da sala. Cada centímetro de cada
parede era coberto de livros. Civil War Artillery and Munitions. King Cotton:
White Gold of the South. Estantes cheias de gavetas de metal guardavam
manuscritos e arquivos lotados preenchiam uma sala menor adjacente ao
final do arquivo.

Marian se ocupou com o bule de chá e o aquecedor. Lena andou até
uma parede com mapas emoldurados do condado de Gatlin, se
despedaçando atrás dos vidros, tão velhos quanto as Irmãs.

— Olhe, Ravenwood. — Lena passou o dedo pelo vidro. — E ali está
Greenbrier. Dá pra ver os limites da propriedade bem melhor nesse mapa.

Andei até a extremidade da sala, onde havia uma mesa solitária, coberta
com uma fina camada de poeira e uma ou outra teia de aranha. Um livro da
Sociedade Histórica estava aberto, com nomes circulados, um lápis ainda
enfiado na lombada. Havia um mapa feito de papel de seda, preso em um
mapa da Gatlin dos dias de hoje, parecendo que alguém estava tentando
mentalmente escavar a velha cidade por debaixo da nova. E, em cima disso
tudo, havia uma foto da pintura da entrada da casa de Macon Ravenwood.

A mulher com o medalhão.

Genevieve. Tem que ser Genevieve. Temos que contar para ela, L.
Temos que perguntar.

Não podemos. Não podemos confiar em ninguém. Nem sabemos por
que estamos tendo as visões.

Lena. Confie em mim.

— O que são todas essas coisas aqui, tia Marian?

Ela olhou para mim, o rosto ficando brevemente encoberto,

— É nosso último projeto. Da sua mãe e meu.

Por que minha mãe tinha uma foto da pintura de Ravenwood?

Não sei.

Lena andou até a mesa e pegou a foto da pintura.

— Marian, o que vocês estavam fazendo com esse quadro?

Marian passou para cada um de nós uma xícara de chá com pires. Essa
era outra coisa sobre Gatlin. Sempre se usava pires, em todos os momentos,
independentemente da situação.

— Você devia conhecer esse quadro, Lena. Pertence ao seu tio Macon.
Na verdade, ele mesmo me mandou essa foto.


— Mas quem é essa mulher?

— Genevieve Duchannes, mas eu esperava que você soubesse disso.

— Na verdade, eu não sabia.

— Seu tio não ensinou nada a você sobre sua genealogia?

— Não falamos muito sobre meus parentes mortos. Ninguém quer falar
dos meus pais.

Marian andou até uma das estantes com gavetas, procurando alguma
coisa,

— Genevieve Duchannes foi sua tatara-tia. Era uma pessoa interessante
mesmo. Lila e eu estávamos traçando a árvore genealógica de toda família
Duchannes, para um projeto com o qual seu tio Macon estava nos ajudando,
até... — Ela olhou para baixo. — Ano passado.

Minha mãe tinha conhecido Macon Ravenwood? Pensei que ele tinha
dito que só a conhecia pelo trabalho dela.

— Você deveria conhecer sua genealogia.

Marian mexeu em algumas páginas amareladas de pergaminho. A
árvore genealógica de Lena apareceu, bem ao lado da de Macon.

Apontei para a árvore genealógica de Lena.

— Que estranho. Todas as garotas na sua família têm o sobrenome
Duchannes, mesmo as que se casaram.
















































































































































































— É uma coisa da minha família. As mulheres ficam com o sobrenome
mesmo depois de casadas. Sempre foi assim.

Marian virou a página e olhou para Lena.

— Ê comum no caso de linhagens em que as mulheres são consideradas
particularmente poderosas.

Eu queria mudar o assunto. Não queria ir muito a fundo com Marian
sobre as mulheres poderosas da família de Lena, principalmente
considerando que Lena certamente era uma delas.

— Por que você e mamãe estavam fazendo a árvore da família
Duchannes? Qual era o projeto?

Marian mexeu seu chá.

— Açúcar?

Ela olhou para o outro lado enquanto eu botava as colheradas na minha
xícara.

— Na verdade, estávamos mais interessadas nesse medalhão. — Ela
apontou para outra foto de Genevieve. Nessa, ela está usando o medalhão. —
Uma história em particular. Era uma historia bem simples, na verdade, uma
história de amor. — Ela sorriu tristemente. — Sua mãe era uma romântica,
Ethan.

Prendi meu olhar no de Lena. Nós dois sabíamos o que Marian ia dizer.

— O que é interessante para vocês dois é que essa história de amor
envolve um Wate e uma Duchannes. Um soldado Confederado e uma bela
dama de Greenbrier.

As visões do medalhão. O incêndio de Greenbrier. O último livro da
minha mãe era sobre tudo que tínhamos visto acontecer entre Genevieve e
Ethan. A tatara-tia de Lena e meu tatara-tio.

Minha mãe estava trabalhando naquele livro quando morreu. Minha
cabeça girava. Gatlin era assim. Nada aqui acontecia só uma vez.

Lena estava pálida. Ela se inclinou e tocou na minha mão, que estava
apoiada na mesa empoeirada. Instantaneamente senti o formigar elétrico.

— Aqui. Essa carta que chegou a nós fez com que começássemos o
projeto.

Marian colocou duas folhas de pergaminho na mesa de carvalho ao lado.
Secretamente, fiquei feliz por ela não ter mexido na mesa de trabalho da


minha mãe. Pensei na mesa como um monumento adequado, tinha mais a
ver com ela do que os cravos que todo mundo pôs sobre o caixão. Até mesmo
as senhoras do FRA foram ao enterro, colocando cravos lá como loucas, o
que minha mãe teria odiado. A cidade inteira — batistas, metodistas, até
pentecostais — aparecia em casos de mortes, nascimentos ou casamentos.

— Podem ler, só não toquem. É uma das coisas mais velhas de Gatlin.

Lena se inclinou sobre a carta, segurando o cabelo para impedir que
encostasse no velho pergaminho.

— Eles estão desesperadamente apaixonados, mas são diferentes demais.
— Ela passou os olhos pela carta. — "Separados por espécie" é como ele os
chama. A família dela está tentando mantê-los separados, e ele se alistou,
apesar de não acreditar na guerra, na esperança de que lutar pelo sul faça
com que ele conquiste a aprovação da família dela.

Marian fechou os olhos e recitou:

— "Eu podia muito bem ser macaco em vez de homem, pois não faria
diferença em Greenbrier. Apesar de meramente Mortal, meu coração se
parte com tamanha dor ao pensar em passar o resto da minha vida sem você,
Genevieve."

Era como poesia, como alguma coisa que eu imaginava que Lena
escreveria.

Marian abriu os olhos de novo.

— Como se fosse Atlas carregando o peso do mundo nas costas.

— É tão triste — disse Lena, olhando para mim.

— Estavam apaixonados. Havia uma guerra. Odeio dizer isso a vocês,
mas termina de uma maneira ruim, ao que parece. — Marian terminou o
chá.

— E esse medalhão? — Apontei para a foto, quase com medo de
perguntar.

— Supostamente, Ethan o deu a Genevieve como símbolo de um
noivado secreto. Jamais saberemos o que aconteceu com ele. Ninguém voltou
a vê-lo depois da noite em que Ethan morreu. O pai de Genevieve a forçou a
se casar com outra pessoa, mas a lenda diz que ela guardou o medalhão e que
ele foi enterrado com ela. Diziam que era um poderoso talismã, o elo partido
de um coração partido.

Tremi. O poderoso talismã não estava enterrado com Genevieve; estava


no meu bolso, e era um talismã das Trevas de acordo com Macon e Amma.
Eu podia senti-lo pulsando, como se tivesse estado sobre carvão quente.

Ethan, não.

Temos que fazer isso. Ela pode nos ajudar. Minha mãe teria nos
ajudado.

 Enfiei a mão no bolso, empurrando o lenço até tocar no camafeu
amassado. Em seguida segurei a mão de Marian, esperando que fosse uma
das vezes que o medalhão funcionaria. A xícara de chá dela caiu no chão e
quebrou. A sala começou a girar.

— Ethan! — gritou Marian.

Lena pegou a mão de Marian. A luz na sala se dissolvia até virar noite.

— Não se preocupe. Estaremos com você o tempo todo. — A voz de
Lena soava distante, e ouvi o som de tiros ao longe.

Em momentos, a biblioteca se encheu de chuva...





A chuva caía forte sobre eles. O vento diminuiu, começando a aplacar as
chamas, apesar de ser tarde demais.

Genevieve olhava para o que tinha sobrado da casa grande. Tinha
perdido tudo naquele dia. A mãe. Evangeline. Não podia perder Ethan
também.

Ivy correu pela lama na direção dela, usando a saia para carregar as
coisas que Genevieve tinha pedido.

— Cheguei tarde demais, meu Deus do céu, cheguei tarde demais. —
gritou Ivy. Ela olhou em volta, nervosa. — Vamos, Srta. Genevieve, não tem
nada mais que possamos fazer aqui.

Mas Ivy estava errada. Havia uma coisa.

— Não é tarde demais. Não é tarde demais. — Genevieve ficava
repetindo essas palavras.

— Você está falando uma loucura, criança. Ela olhou para Ivy,
desesperada.

— Preciso do livro.

Ivy andou para trás, sacudindo a cabeça.

— Não. Você não pode mexer naquele livro. Não sabe o que está
fazendo.


Yvy agarrou a velha mulher pelos ombros.

— Ivy, é o único jeito, Você tem que entregá-lo para mim.

— Você não sabe o que está pedindo. Não sabe nada daquele livro...

— Dê para mim ou vou encontrá-lo sozinha.

Fumaça negra subia atrás dela, o fogo ainda queimando enquanto
engolia o que tinha sobrado da casa.

Ivy cedeu, puxando as saias esfarrapadas e guiando Genevieve pelo que
costumava ser o pomar de limões da mãe dela. Genevieve nunca tinha
passado daquele ponto. Não havia nada lá além de campos de algodão, ou
pelo menos era isso que sempre tinham dito para ela. E ela nunca tinha tido
uma razão para ir até aqueles campos, exceto nas raras ocasiões em que ela e
Evangeline brincaram de esconde-esconde.

Mas o caminho de Ivy era certeiro. Ela sabia exatamente para onde
estava indo. Ao longe, Genevieve ainda podia ouvir o som de tiros e os gritos
agudos dos vizinhos ao verem suas casas arderem em chamas.

Ivy parou perto de um emaranhado de arbustos de vinhas selvagens,
alecrim e jasmim que subiam pela lateral de uma velha parede de pedra.
Havia um pequeno arco escondido por trás das plantas. Ivy se abaixou e
passou sob o arco. Genevieve foi atrás. O arco devia estar preso à parede,
porque a área era fechada. Um círculo perfeito, as paredes escondidas sob
anos de vinhas selvagens.

— Que lugar é esse?

— Um lugar sobre o qual sua mãe não queria que você soubesse nada,
ou você saberia o que é.

Ao longe, Genevieve podia ver pequenas pedras aparecendo no meio da
grama alta. Ê claro. O cemitério da família. Genevieve se lembrava de ter ido
lá uma vez quando era muito nova, quando a bisavó morreu. Lembrava que
o enterro tinha sido à noite, e que a mãe tinha ficado em cima da grama alta,
sob a luz da lua, sussurrando palavras em uma língua que Genevieve e a irmã
não reconheceram.

— O que estamos fazendo aqui?

— Você disse que queria aquele livro. Não disse?

— Está aqui?

Ivy parou e olhou para Genevieve, confusa.

— Onde mais estaria?


Mais ao longe havia outra estrutura sendo estrangulada pelas vinhas
selvagens. Uma cripta. Ivy parou na porta.

— Tem certeza de que quer...

— Não temos tempo para isso! — Genevieve esticou a mão em direção à
maçaneta, mas não havia nenhuma. — Como isso abre?

A mulher idosa ficou na ponta dos pés e esticou o braço para tocar acima
da porta. Lá, iluminada pela luz distante do fogo, Genevieve conseguia ver
um pequeno pedaço de pedra lisa, com uma lua crescente entalhada nela. Ivy
colocou a mão sobre a pequena lua e empurrou. A porta começou a se
mover, abrindo com o som de pedra arrastando sobre pedra. Ivy pegou
alguma coisa do outro lado do portal. Uma vela.

A luz da vela iluminou o pequeno recinto. Não podia ser maior do que
alguns poucos metros de largura. Mas havia velhas prateleiras de madeira de
cada lado, repletas de pequenos frascos e garrafas, cheias de flores de plantas,
pós e líquidos turvos. No centro do aposento havia uma mesa de pedra gasta,
com uma velha caixa de madeira sobre ela. A caixa era modesta vista por
qualquer padrão, o único adorno sendo uma pequenina lua crescente
entalhada na tampa. O mesmo entalhe da pedra acima da porta.

— Não vou tocar nisso — disse Ivy baixinho, como se achasse que a
própria caixa pudesse ouvi-la.

— Ivy, é só um livro.

— Não existe nada como só um livro, especialmente na sua família.

Genevieve levantou a tampa devagar. A capa do livro era de couro preto
rachado, agora mais cinza do que preto. Não havia título, só a mesma lua
crescente em alto relevo na frente. Genevieve ergueu o livro da caixa,
hesitante. Sabia que Ivy era supersticiosa. Apesar de ter zombado da mulher
idosa, também sabia que Ivy era sábia. Lia cartas e folhas de chá, e a mãe de
Genevieve consultava Ivy para quase tudo: o melhor dia para plantar os
legumes e verduras para evitar que congelassem, as er vas certas para curar
um resfriado.

O livro estava quente. Como se estivesse vivo, respirando.

— Por que não tem nome? — perguntou Genevieve.

— Só porque um livro não tem título, não significa que não tenha nome.
Esse aí é o Livro das Luas.

Não havia mais tempo a perder. Ela seguiu as chamas pela escuridão. De


volta ao que tinha sobrado de Greenbrier e de Ethan.

Folheou as páginas. Havia centenas de Conjuros. Como encontraria o
certo? Então ela o viu. Estava em Latim, uma língua que conhecia bem; a
mãe tinha trazido um tutor especial do norte para garantir que ela e
Evangeline aprendessem. A língua mais importante na opinião de sua família.

O Feitiço de Atar. Para Atar a Morte à Vida.

Genevieve colocou o livro no chão ao lado de Ethan, o dedo sob o
primeiro verso do encantamento.

Ivy segurou o próprio braço e o apertou com força.

— Não é em qualquer noite que se faz isso. Meia lua é para fazer magia
Branca, a lua cheia é para fazer magia Negra. Lua nenhuma é outra coisa.

Genevieve puxou o braço para soltá-lo.

— Não tenho escolha. Ê a única noite que temos.

— Srta. Genevieve, você precisa entender. Essas palavras são mais do
que um Conjuro. São uma troca. Você não pode usar o Livro das Luas sem
dar algo em troca.

— Não ligo para o preço. Estamos falando da vida de Ethan. Perdi todo
mundo.

— Aquele rapaz não tem mais vida. Foi tirada dele com um tiro. O que
você está tentando fazer não é natural. E isso não pode estar certo.

Genevieve sabia que Ivy estava certa. A mãe tinha avisado a ela e
Evangeline com frequência sobre as Leis Naturais. Ela estava cruzando um
limite que nenhum dos Conjuradores da família dela jamais ousaria.

Mas eles todos estavam mortos agora. Ela era a única que tinha sobrado.

E tinha que tentar.









— Não! — Lena soltou nossas mãos, quebrando o círculo. — Ela foi para as
Trevas, vocês não entendem? Genevieve estava usando magia Negra.

Segurei as mãos dela. Ela tentou se soltar. Normalmente tudo que eu
conseguia sentir de Lena era um calor meio ensolarado, mas dessa vez ela
parecia mais um tornado.

— Lena, ela não é você. Ele não sou eu. Isso aconteceu há mais de cem


anos.

Ela estava histérica.

— Ela sou eu, é por isso que o medalhão quer que eu veja isso. Está me
avisando para ficar longe de você. Para que eu não sofra por você depois que
for para as Trevas.

Marian abriu os olhos, que estavam maiores do que eu jamais os tinha
visto. O cabelo curto, normalmente arrumado e perfeitamente no lugar,
estava bagunçado e revirado. Ela parecia exausta, mas cheia de vida. Eu
conhecia aquele olhar. Era como se minha mãe estivesse ali, em seu rosto,
especialmente ao redor dos olhos.

— Você não foi Invocada, Lena. Não é boa nem ruim. O que você sente
é por ter 15 anos e meio na família Duchannes. Conheci muitos
Conjuradores na minha vida, e muitos Duchannes, tanto das Trevas quanto
da Luz.

Lena olhou para Marian, atônita.

Marian tentou recuperar o fôlego.

— Você não vai para as Trevas. Você é tão melodramática quanto
Macon. Agora se acalme.

Como ela sabia sobre o aniversário de Lena? Como ela sabia sobre
Conjuradores?

— Vocês dois têm o medalhão de Genevieve? Por que não me contaram?

— Não sabemos o que fazer. Cada um nos diz pra fazer uma coisa.

— Me deixe vê-lo.

Enfiei a mão no bolso. Lena colocou a mão no meu braço e hesitei.
Marian era a melhor amiga da minha mãe, e era como se fosse da família. Sei
que não devia questionar os motivos dela, mas segui Amma até o pântano
para se encontrar com Macon Ravenwood, coisa que eu jamais imaginaria
ver.

— Como vamos saber que podemos confiar em você? — perguntei, me
sentindo mal até mesmo por perguntar.

— "A melhor maneira de descobrir se podemos confiar em alguém é
confiando."

— Elton John?

— Quase. Ernest Hemingway. À maneira dele, foi como um rock star
daquela época.


Sorri, mas Lena não estava tão disposta a ter as dúvidas afastadas.

— Por que deveríamos confiar em você se todo mundo esconde coisas de
nós?

Marian ficou séria.

— Precisamente porque não sou Amma e não sou tio Macon. Não sou
sua avó e nem sua tia Delphine. Sou Mortal. Sou neutra. Entre magia Negra
e magia Branca, Luz e Trevas. Tem que haver alguma coisa intermediária,
alguma coisa para resistir à influência, e essa alguma coisa sou eu.

Lena se afastou dela. Era inconcebível, para nós dois. Como Marian
sabia tanto da família de Lena?

— O que você é? — Na família de Lena, aquela era uma pergunta
capciosa.

— Sou a bibliotecária-chefe do condado de Gatlin, como tenho sido
desde que me mudei para cá e como sempre serei. Não sou uma
Conjuradora. Apenas guardo as informações. Cuido dos livros. — Marian
ajeitou o cabelo. — Sou a Guardiã, apenas uma em uma longa linhagem de
Mortais a quem se confiou a história e os segredos de um mundo do qual
jamais poderemos fazer parte completamente. Sempre tem que haver um, e
agora sou eu.

— Tia Marian? De que você está falando? — Eu estava perdido.

— Vamos apenas dizer que há bibliotecas e bibliotecas. Sirvo a todos os
bons cidadãos de Gatlin, sejam Conjuradores ou Mortais. O que funciona
muito bem, já que o outro ramo é mais um trabalho noturno, na verdade.

— Quer dizer...?

— A Biblioteca de Conjuradores do Condado de Gatlin. Eu sou, é claro,
a Bibliotecária dos Conjuradores. A Bibliotecária-Chefe dos Conjuradores.

Encarei Marian com olhos arregalados, como se a visse pela primeira
vez. Ela olhou para mim com os mesmos olhos castanhos, o mesmo sorriso
sábio. Parecia a mesma, mas de alguma forma, estava completamente
diferente. Eu sempre tinha me perguntado por que Marian tinha ficado em
Gatlin todos esses anos. Achava que era por causa da minha mãe. Agora me
dei conta de que havia outra razão.

Eu não sabia o que estava sentindo, mas fosse o que fosse, Lena sentia o
oposto.

— Então você pode nos ajudar. Temos que descobrir o que aconteceu


com Ethan e Genevieve, e o que isso tem a ver comigo e com Ethan, e temos
que descobrir antes do meu aniversário. — Lena olhou para ela com
expectativa. — A Biblioteca de Conjuradores deve ter registros. Talvez o
Livro das Luas esteja aqui. Você acha que ele poderia ter as respostas?

Marian olhou para o outro lado.

— Talvez sim, talvez não. Sinto muito, mas não posso ajudá-los. Me
desculpem.

— O que você quer dizer? — Não fazia sentido. Eu nunca tinha visto
Marian recusar ajuda para ninguém, principalmente eu.

— Não posso me envolver, mesmo que eu queira. Faz parte da descrição
do meu trabalho. Não escrevo os livros, nem as regras, apenas os guardo.
Não posso interferir.

— Esse trabalho é mais importante do que nos ajudar? — Fique na sua
frente, de modo que ela tivesse que me olhar nos olhos quando respondesse.
— Mais importante do que eu?

— Não é tão simples, Ethan. Há um equilíbrio entre o mundo Mortal e o
mundo dos Conjuradores, entre a Luz e as Trevas. O Guardião é parte desse
equilíbrio, parte da Ordem das Coisas. Se eu desafiar as leis às quais fiz um
Juramento, esse equilíbrio fica ameaçado. — Ela olhou para mim e a voz
dela estava trêmula. — Não posso interferir nem que isso me mate. Mesmo
que machuque as pessoas que amo.

Eu não entendia o que ela estava falando, mas sabia que Marian me
amava, como havia amado minha mãe. Se ela não podia nos ajudar, tinha
que haver uma razão.

— Tudo bem. Você não pode nos ajudar. Só me leve até essa Biblioteca
de Conjuradores e vou descobrir sozinho.

— Você não é Conjurador, Ethan. Essa decisão não é sua.

Lena ficou do meu lado e segurou minha mão.

— E minha. E eu quero ir.

Marian assentiu.

— Tudo bem, vou levar vocês na próxima vez que abrir. A Biblioteca de
Conjuradores não opera nos mesmos horários que a Biblioteca do Condado
de Gatlin. É um pouco mais irregular.

E claro que era.




p 31 de outubro p

d



Hallow E’em















O



s únicos dias do ano em que a Biblioteca do Condado de Gatlin ficava
fechada eram os feriados nacionais — como Dia de Ação de Graças,
Natal, Ano-Novo, Páscoa. A consequência disso era que esses eram os
únicos dias em que a Biblioteca de Conjuradores do Condado de Gatlin
abria, o que pelo visto era uma coisa que Marian não controlava.

— É culpa do condado. Como eu disse, não faço as regras.

Fiquei pensando em qual era o condado do qual ela estava falando,
aquele no qual eu tinha morado minha vida inteira ou o que esteve escondido
de mim pelo mesmo tempo.

Ainda assim, Lena parecia quase esperançosa. Pela primeira vez, era
como se realmente acreditasse que talvez houvesse um jeito de evitar o que
havia considerado inevitável. Marian não podia nos dar resposta alguma, mas
era a nossa âncora na ausência das duas pessoas nas quais confiávamos mais,
que não tinham ido a lugar algum, mas que pareciam distantes ainda assim.
Não falei nada para Lena, mas sem Amma eu ficava perdido. E sem Macon,
eu sabia que Lena não conseguia nem achar o caminho para ficar perdida.

Marian nos deu uma coisa, as cartas de Ethan e Genevieve, tão velhas e
delicadas que eram quase transparentes, e cada coisa que ela e minha mãe
tinham guardado sobre os dois: uma pilha de papéis em uma caixa marrom
empoeirada, com o papelão pintado para parecer madeira nas laterais.
Apesar de Lena amar estudar o texto (“os dias sem você sangram até que o
tempo não é nada mais do que um obstáculo que temos que superar”), ele
parecia não passar de uma história de amor com um final bem ruim e Negro.
Mas era tudo que tínhamos.


Agora tudo o que tínhamos que fazer era descobrir o que estávamos
procurando. A agulha no palheiro, ou nesse caso, na caixa de papelão. Então
fizemos a única coisa que podíamos. Começamos a procurar.









Depois de duas semanas, eu já passara mais tempo com Lena olhando os
papéis do medalhão do que acharia possível. Quanto mais líamos as cartas,
mais parecia que estávamos lendo sobre nós mesmos. À noite, ficávamos
acordados tentando resolver o mistério de Ethan e Genevieve, um Mortal e
uma Conjuradora, desesperados para encontrarem um meio de ficarem
juntos mesmo contra todos os obstáculos. Na escola, também encaramos
algumas dificuldades extremas apenas para conseguir aguentar oito horas na
Jackson, e piorava cada vez mais. A cada dia havia outro esquema para
afastar Lena ou nos separar. Principalmente se esse dia fosse o Halloween.

Halloween era um evento bem carregado na Jackson. Para um garoto,
qualquer coisa que envolvesse fantasias era um perigo. E havia também o
estresse de saber se você tinha conseguido ou não entrar na lista de
convidados da festa de Savannah Snow. Mas o Halloween assumia um novo
nível de estresse quando a garota por quem você é louco é uma Conjuradora.

Eu não tinha ideia do que esperar quando Lena me buscou para irmos à
escola, a alguns quarteirões da minha casa, depois de dobrar a esquina e estar
longe dos olhos que Amma tinha na nuca.

— Você não está fantasiada — falei, surpreso.

— De que você está falando?

— Achei que você estaria usando uma fantasia, ou algo assim. — Eu
sabia que parecia um idiota no segundo em que as palavras saíram da minha
boca.

— Ah, você acha que os Conjuradores se arrumam no Halloween e voam
em suas vassouras? — Ela riu.

— Não era minha intenção...

— Desculpe desapontá-lo. Apenas nos arrumamos para o jantar, como
fazemos em qualquer outro dia especial.

— Então é um dia especial pra vocês também.


— É a noite mais sagrada do ano, e a mais perigosa. A mais importante
das Grandes Festividades. É nossa versão do Ano-Novo, o final do ano velho
e o começo do novo.

— O que você quer dizer com perigoso?

— Minha avó diz que é a noite em que o véu entre este mundo e o Outro
Mundo, o mundo dos espíritos, fica mais fino. E uma noite de poder e uma
noite de lembranças.

— O Outro Mundo? É como uma vida após a morte?

— Mais ou menos. É o reino dos espíritos.

— Então o Halloween na verdade se trata de espíritos e fantasmas.

Ela revirou os olhos.

— Nos lembramos dos Conjuradores que foram perseguidos por serem
diferentes. Homens e mulheres que foram queimados por usarem seus dons.

— Você está falando dos julgamentos das Bruxas de Salem?

— Acho que é assim que vocês os chamam. Houve julgamentos de
bruxas por toda a costa leste, não só em Salem. Em todo o mundo até. Os
julgamentos das Bruxas de Salem são apenas aqueles que os livros de vocês
mencionam. — Ela disse "vocês" como se fosse um palavrão, e hoje, dentre
todos os dias, talvez fosse.

Passamos na Pare & Roube. Boo estava sentado ao pé da placa de pare
da esquina. Esperando. Viu o rabecão e marchou lentamente atrás do carro.

— Devíamos dar uma carona a esse cachorro. Ele deve ficar cansado de
seguir você dia e noite.

Lena olhou pelo retrovisor.

— Ele jamais entraria.

Eu sabia que ela estava certa. Mas quando me virei para olhá-lo, poderia
jurar que ele assentiu com a cabeça.







Vi Link no estacionamento. Ele estava usando uma peruca loura e um suéter
azul com um emblema dos Wildcats costurado. Até carregava pompons.
Estava assustador e meio que parecia com a mãe dele, na verdade. O time de
basquete tinha decidido se fantasiar de líderes de torcida da Jackson esse ano.
Com tudo que estava acontecendo, eu tinha esquecido — pelo menos foi o


que eu disse para mim mesmo. Eu ia ouvir muita merda por causa disso, e
Earl estava só esperando por um motivo para cair em cima de mim. Desde
que comecei a passar meu tempo com Lena, eu estava com sorte na quadra.
Agora eu era o capitão em vez de Earl, e ele não estava muito feliz com isso.

Lena jurou que não havia nada de magia naquilo, pelo menos não magia
de Conjuradores. Ela foi a um jogo e eu acertei todos os arremesses. O lado
ruim era que ela estava na minha cabeça durante o jogo todo, me
perguntando sobre lances livres, assistência e a regra de três segundos.
Aparentemente, ela nunca tinha ido a um jogo. Era pior do que levar as
Irmãs à feira do condado. Depois disso, ela parou de ir aos jogos. Mas eu
sabia que ela estava ouvindo quando eu jogava. Eu podia senti-la.

Por outro lado, talvez ela fosse a razão pela qual a equipe de líderes de
torcida estava tendo um ano mais difícil do que o habitual. Emily estava
tendo dificuldade de ficar no topo da pirâmide dos Wildcats, mas não
perguntei a Lena sobre isso.

Hoje era difícil saber quem eram meus colegas de time até chegar perto o
bastante para ver as pernas cabeludas e os pelos no rosto. Link veio até nós. A
aparência dele era ainda pior de perto. Ele tinha tentado colocar maquiagem,
com batom rosa borrado e tudo. Subiu a saia e puxou a meia- calça apertada
que usava por baixo.

— Você é um babaca — disse ele, apontando para mim sobre os carros.
— Onde está sua fantasia?

— Desculpe, cara. Esqueci.

— Mentira. Você não queria vestir toda essa porcaria. Conheço você,
Wate. Você deu pra trás.

— Juro, eu só esqueci.

Lena sorriu para Link.

— Você está ótimo.

— Não sei como vocês garotas usam todo esse lixo no rosto. Coça pra
caramba.

Lena fez uma careta. Ela quase nunca usava maquiagem; não precisava.

— Sabe, nem todas nós assinamos um contrato com a Maybelline
quando fazemos 13 anos.

Link ajeitou a peruca e enfiou outra meia dentro do suéter.

— Diga isso para Savannah.


Andamos até os degraus de entrada, e Boo estava sentado no gramado,
ao lado do mastro da bandeira. Quase perguntei como aquele cachorro podia
ter chegado antes da gente na escola, mas a essa altura eu já sabia que nem
devia me dar ao trabalho.





Os corredores estavam lotados. Parecia que metade da escola tinha matado o
primeiro tempo. O resto do time de basquete estava de papo em frente ao
armário de Link, todos vestidos de mulher, e fazendo muito sucesso. Mas não
comigo.

— Onde estão seus pompons, Wate? — Emory sacudiu um no meu rosto.
— Qual é o problema? Essas suas pernas de galinha não ficavam bem de saia?

Shawn vestiu o suéter.

— Aposto que nenhuma das meninas da equipe quis emprestar uma saia
pra ele.

Alguns dos caras riram. Emory colocou o braço ao redor do meu ombro,
se inclinando em minha direção.

— Foi isso, Wate? Ou é Halloween todo dia quando você está com uma
garota que mora na mansão mal-assombrada?

Peguei-o pela parte de trás do suéter. Uma das meias enfiadas no sutiã
caiu no chão.

— Quer fazer isso agora, Em?

Ele deu de ombros.

— Você decide. Vai acontecer cedo ou tarde.

Link entrou entre nós.

— Senhoritas, senhoritas. Estamos aqui para festejar. E você não quer
estragar esse seu rostinho bonito, Em.

Earl sacudiu a cabeça, empurrando Emory pelo corredor na frente dele.
Como sempre, não disse nada, mas eu conhecia aquele olhar.

"Se você seguir esse caminho, Wate, não tem volta."





Parecia que o time de basquete era o assunto da escola, até eu ver a
verdadeira equipe de líderes de torcida. Meus colegas de time não foram os
únicos a escolherem uma fantasia em grupo. Lena e eu estávamos a caminho


da aula de inglês quando as vimos.

— Puta merda. — Link bateu no meu braço com as costas da mão.

— O quê?

Elas estavam marchando pelo corredor em fila. Emily, Savannah, Eden e
Charlotte, seguidas de cada membro da equipe de torcida da Jackson
Wildcats. Estavam vestidas de modo exatamente idêntico com vestidos pretos
ridiculamente curtos, é claro, botas pretas de bico fino e chapéus de bruxa
altos e com as pontas dobradas. Mas essa não era a pior parte. As perucas
longas e pretas estavam encaracoladas em cachos selvagens. E feitas com
maquiagem preta, bem embaixo dos olhos direitos, estavam detalhadamente
pintadas exageradas luas crescentes. A marca de nascença inconfundível de
Lena. Para completar o efeito, carregavam vassouras, fingindo varrer
freneticamente em torno dos pés das pessoas enquanto desciam o corredor
em procissão.

Bruxas? No Halloween? Que criativo.

Apertei a mão dela. A expressão de seu rosto não mudou, mas eu sentia a
mão tremendo.

Lamento, Lena.

Se elas soubessem.

Esperei que o prédio começasse a tremer, que as janelas quebrassem ou
algo assim. Mas nada aconteceu. Lena apenas ficou lá parada, fervendo.

A futura geração do FRA veio em nossa direção. Decidi encontrar com
elas no meio do caminho.

— Onde está sua fantasia, Emily? Esqueceu que era Halloween?

Emily pareceu confusa. Então sorriu para mim, o sorriso doce e grudento
de alguém que tem orgulho demais de si mesma.

— De que você está falando, Ethan? Não é disso que você gosta agora?

— Estávamos tentando fazer sua namorada se sentir em casa — disse
Savannah, fazendo uma bola de chiclete.

Lena me olhou.

Ethan, pare. Só vai piorar as coisas pra você.

Não ligo.

Posso lidar com isso.

0 que acontece com você acontece comigo.

Link andou até o meu lado, puxando a meia-calça.


— Ei, garotas, pensei que vínhamos de piranhas. Ah, espere, isso é como
vocês vêm todo dia.

Lena não conseguiu não sorrir para Link.

— Cale sua boca, Wesley Lincoln. Vou contar pra sua mãe que você está
andando com essa aberração e ela não vai deixar você sair de casa até o
Natal.

— Você sabe o que é aquela coisa no rosto dela, não sabe? — falou Emily
rindo, apontando da marca de nascença de Lena para a lua crescente que ela
tinha desenhado na própria bochecha. — É chamada de marca da bruxa.

— Você pesquisou isso na internet ontem? Você é mais idiota ainda do
que eu pensava. — Eu ri.

— Você é o idiota. Está saindo com ela.

Eu estava ficando vermelho, o que era a última coisa que eu queria. Essa
não era uma conversa que eu quisesse ter na frente de toda a escola, sem
mencionar o fato de que eu não tinha ideia se Lena e eu estávamos mesmo
saindo. Tínhamos dado um beijo uma vez. E estávamos sempre juntos, de um
modo ou de outro. Mas ela não era minha namorada, pelo menos eu não
achava que era, apesar de eu ter pensado que a ouvi dizer isso na Reunião. E
o que eu podia fazer, perguntar? Talvez fosse uma daquelas coisas que se
você precisasse perguntar, a resposta provavelmente seria não. Havia alguma
parte dela que ainda parecia se afastar de mim, uma parte dela que eu não
conseguia alcançar.

Emily me cutucou com a ponta da vassoura. Eu percebia que o conceito
de "estaca no coração" seria bem atrativo para ela nesse momento.

— Emily, por que vocês todas não vão pular de uma janela? Pra ver se
conseguem voar. Ou não.

Seus olhos se apertaram.

— Espero que se divirtam sentados em casa juntos à noite, enquanto o
resto da escola estiver na festa de Savannah. Será o último evento dela na
Jackson.

Emily deu meia-volta e voltou pelo corredor em direção a seu armário,
com Savannah e as seguidoras delas atrás.

Link estava brincando com Lena, tentando animá-la, o que não era
difícil, considerando o tanto que ele estava ridículo. Como eu disse, sempre
podia contar com Link.


— Elas me Odeiam mesmo. Nunca vai passar, vai? — Lena suspirou.
Link começou a fazer uma coreografia, pulando e balançando os pom-

pons.

— Elas Odeiam você, Odeiam sim. Odeiam todo mundo, e você?

— Eu ficaria mais preocupado se elas gostassem de você.

Eu me inclinei e passei meu braço em torno dela, meio sem jeito. Ou
tentei. Ela se virou, e minha mão mal tocou em ombro. Ótimo.

Aqui não.

Por que não?

Você só está piorando as coisas pra si mesmo.

Sou faminto por punição.

— Chega de agarração em público. — Link me deu uma cotovelada nas
costelas. — Você vai conseguir fazer com que eu me sinta mal agora que
estou fadado a mais um ano sem uma namorada. Vamos nos atrasar pra aula
de inglês, e eu preciso tirar essa meia-calça no caminho. Fica entrando na
minha bunda.

— Só preciso parar no meu armário pra pegar meu livro — disse Lena. O
cabelo dela começou a se movimentar ao redor dos ombros. Suspeitei de
alguma coisa, mas não falei nada.

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