quinta-feira, 7 de março de 2013

Adormecida 1 - Anna Sheehan (Parte 1)


1





TENTEI ME AGARRAR AOS MEUS SONHOS ESTASES O MÁXIMO QUE PUDE.
ESSE ERA meu jogo, lutar para manter o rumo entre aquelas imagens nebulosas
onde era sempre tão fácil se perder. Tentei continuar em estase, mantendo meu
coração pulsando bem devagar, recusando-me a despertar meus pulmões. Uma
ou duas vezes consegui me conter por tanto tempo que minha mãe entrou em
pânico e ligou o ressuscitador.



Então, quando o vibrante azul da paisagem marinha que eu tentava
segurar foi interrompido, não por uma mão, mas pela sensação de lábios tocando
os meus, fiquei surpresa. Respirei fundo e me sentei ereta, batendo a cabeça
contra o meu suposto salvador.



Não conseguia ver nada. Estava tudo nebuloso e eu sentia muitas dores,
como se tivesse acabado de abrir os olhos para uma luminosidade intensa depois
de dias no escuro. Uma voz desconhecida gritou palavras desconhecidas.



— Santo capete! Você está viva!



Senti-me completamente perdida. Só me restou procurar por algo familiar.



— Onde está a mamãe? — aquela não parecia a minha voz; soou mais como
um grasnado. Tentei avaliar a situação. Meus músculos doíam e meus pulmões
pareciam cheios de líquido. Tossi, tentei forçar o ar para dentro das narinas


dormentes. Tentei ficar em pé. Dores dilacerantes como punhais se espalharam
por minhas pernas e braços. Sentia dor até nos ossos. Deslizei de volta para o
colchão macio e aconchegante do tubo de estase.



— Nossa!



Meu salvador se aproximou com um sobressalto enquanto eu caía. Braços
quentes me seguraram, e meus músculos gritaram enrijecidos.



— Não me toque! — ofeguei. Não entendi por que estava sentindo tanta dor.



Ele me soltou, mas a dor não cedeu.



— Capete! Você me assustou! — a voz soou muito agitada. — Você não
estava respirando, fiquei com medo de ter estragado o sistema e apagado você.



Não entendi metade do que o estranho estava dizendo.



— Quanto tempo? — sussurrei.



— Você pareceu estar morta durante um minuto apenas — ele disse, como
se quisesse me tranquilizar.



Eu queria saber há quanto tempo estivera em estase, mas desisti, não
importava. Sempre dizia para mim mesma, logo depois que despertava, que isso
não importava.



— Quem é você? — perguntei então.




— Meu nome é Brendan, moro no apartamento cinco. Você sabe onde está?



Franzi a testa, ou o teria feito se minha cabeça não começasse a doer. No
apartamento cinco havia um casal de velhinhos e sua coleção de peixes tropicais.
Pelos menos eram eles que moravam lá da última vez que eu estive acordada,
mas não fazia ideia de quanto tempo se passara.



— No Condomínio Unicórnio, é claro. O que você está fazendo aqui? Acabou
de se mudar para cá?



Um longo momento de silêncio se seguiu.



— Não, eu sempre morei aqui. — A voz pareceu assustada agora.



Pisquei e voltei minha visão embaçada na direção em que eu tinha certeza
de que ele estava. Brendan era uma sombra escura, a vaga silhueta de um
homem. Um homem jovem, pela voz. Fiquei confusa.



— Por que você me acordou?



Ele teve um sobressalto, como se tivesse se surpreendido.



— Você queria continuar em estase?



— Não, perguntei por que você me acordou? Onde está a mamãe?



Um longo silêncio se seguiu.




— Hum ... — Ele respirou fundo. — Não sei onde a sua mãe está. Você
...você sabe quem você é?



— É claro que sei! — respondi, mas minha voz ainda estava débil e rouca.
Tossi outra vez, lutando contra a fadiga estase.



— Bem, eu não sei. Meu nome é Brendan, e o seu?



— Rose Samantha Fitzroy — eu disse pontualmente. Fiquei aborrecida.
Quem era esse garoto? Nunca tive de dizer para ninguém quem eu era.



Ele recuou um passo e então desapareceu de vista. Alarmada, tentei me
sentar outra vez. Meus braços gritaram e minhas costas pareciam fracas demais
para me sustentar. Qualquer indício de força que minha surpresa inicial havia
me dado desaparecera. Arrastei-me até a beirada do tubo de estase e tentei
encontrar o homem-sombra.



Ele tinha tropeçado e caído no chão, agora que eu estava sentada direito,
ele já não se parecia mais com uma sombra. Seus olhos eram duas manchas
brancas no círculo escuro da cabeça, arregalados para me encarar.



— O que foi? — perguntei em voz baixa e rouca.



Ele se arrastou de costas, como um caranguejo, até encontrar apoio em
uma caixa e conseguir se levantar com dificuldade. Uma caixa? Onde diabos eu
estava? Este definitivamente não era o meu confortável closet, forrado de carpete
rosa e com a última moda pendurada em ordem nos cabides. O lugar mais
parecia um enorme depósito bagunçado e cheio de eco, Prateleiras altas
abarrotadas de formas escuras que se erguiam sobre nossas cabeças.




— Você disse Fitzroy? — Brendan perguntou. — Rose Fitzroy?



— Sim — respondi. — Por quê?



— Preciso buscar ajuda. — Ele me deu as costas e se foi.



— Não! — gritei, ou emiti um som o mais próximo de um grito que meus
pulmões paralisados e minha garganta seca conseguiram. Eu nem sabia por que
tinha gritado. Estases químicas causam uma variedade de estados emocionais,
por isso, às vezes, ficava difícil definir exatamente como me sentia. No minuto
seguinte, percebi que estava apavorada. Estava tudo errado, nada era como eu
esperava e tive a sensação de que algo realmente terrível tinha acontecido.



Brendan se virou de volta para mim.



— Já volto.



— Não! — sussurrei. — Não me deixe sozinha! Quero a minha mãe! O que
está acontecendo? Onde está Xavier?



Um momento de confusão hesitante se seguiu e, então, senti as mãos dele
sobre o meu ombro. Dessa vez elas foram gentis e meus músculos não gritaram
tão alto.



— Está tudo bem. De verdade. Só não posso... fazer isso sozinho.



— Fazer o quê sozinho? Diga o que está acontecendo? Onde está a minha
mãe?




— Senhorita... ah... Fitzroy...



— Rose — eu disse automaticamente.



— Rose — ele repetiu. — Só desci aqui para explorar. Eu não sabia que este
lugar existia. Tropecei no seu tubo de estase e iniciei a sequência de reanimação
por acidente. Ninguém desce neste canto do subsolo desde os Tempos Sombrios.



— Tempos Sombrios? — perguntei.



— Os Tempos Sombrios! — ele repetiu como se fosse óbvio. — Quando
o...Ah, Deus! — A voz dele se reduziu a um sussurro apavorado. — Isso foi há
mais ou menos sessenta anos.



— Sinto muito... — sussurrei, sem compreender direito o que ele estava
dizendo. — Sessenta... anos?



— Sim — Brendan confirmou baixinho. — E... se você realmente for Rose
Fitzroy... — Seja lá o que ele ainda tivesse para dizer, teve de esperar. O oceano
do meu sonho retornou na forma de uma onda estrondosa que bloqueou todos os
sons e cessou minha respiração. Sessenta anos. Papai e mamãe, mortos. Åsa,
morta. Xavier... meu Xavier...



Acho que gritei. A última coisa que senti quando as sombras embaçaram
minha visão por completo foram os braços fortes de Brendan me segurando
enquanto eu caía.






2





ACORDEI EM UM AMBIENTE ESTRANHO, COM VOZES DESCONHECIDAS AOS
MEUS PÉS. Estava deitada de costas, mais reclinada do que reta. Havia um tecido
frio sob os meus dedos. Um odor familiar — antisséptico e doença. Os hospitais
têm sempre o mesmo cheiro. Acostumada a me agarrar aos sonhos estases,
continuei de olhos fechados e com a respiração suave.



— O que o médico disse? — Era uma voz masculina, trêmula devido à
idade. Ele parecia preocupado.



— Eles estão com dificuldade para encontrar um meio de dar a notícia
para... — Agora, era uma voz de mulher, áspera e gentil, mas da qual gostei de
imediato.



Outra voz a interrompeu.



— Para mim, é claro — Essa outra voz era forte e imperiosa, acostumada a
ser obedecida. — Quem mais?



— Ela não tem família — disse o homem mais velho.



— Ela tem a UniCorp, e isso significa a mim — disse o mais novo. —
Imagine despertar e descobrir que é a única herdeira viva de um império
interplanetário!




— Não somos um império. — Foi a resposta rude do homem mais velho. —
Francamente Reggie, acho que você tem mania de grandeza.



— Quem você acha que deve tomar conta dela, então? Você? — Na
ausência de uma resposta, o homem mais novo continuou. — De qualquer
maneira, tudo isso está acontecendo por culpa sua. Teria sido bem mais fácil se
você tivesse me deixado assumir tudo. Se tivesse permitido que eu a registrasse
no serviço social anominamente, não seria nem questionado. Não seria uma
questão de acreditarem na história dela. — Ele suspirou. — Nem sei por que
temos de contar ao conselho ou ao governo. Podemos dar uma nova identidade
para ela. Duvido que sua memória esteja tão boa.



— Porque isso não seria certo — disse o homem mais velho, com um tom
tão ferino que impediu até mesmo o autoritário de argumentar.



— Tudo isso é discutível — disse a mulher. — Papai, Reggie, acalmem-se,
os dois. Logo o juiz estará aqui... Acho que a sua proposta será aceita, Reggie.
Ninguém questiona que você é o presidente da UniCorp.



Abri os olhos nesse momento.



— Papai é o presidente da UniCorp — falei com voz baixa e rouca.



As três pessoas aos pés da minha cama se assustaram. A mulher se
aproximou de mim. Ela era eurasiática, elegante e bem-vestida, apesar de suas
roupas parecerem casuais. Os dois homens estavam de terno, e o corte da roupa
masculina me pareceu ter mudado. Eu não conseguia ver seus rostos com muita
clareza, pois minha visão ainda estava um pouco turva. O homem mais jovem


não passava de uma mancha dourada, enquanto o mais velho parecia uma
mancha branca, usando terno escuro.



Um dedo bateu na parede de vidro do meu quarto. A figura indistinta se
movimentou no corredor.



— O juiz chegou — disse o homem mais jovem. — Estamos de acordo.
Ronny, Annie, vou deixar isso com vocês. — Ele apontou para mim enquanto se
retirava. Aparentemente o juiz era alguém importante, e eu não passava de um
"isso".



— Quem são vocês? — perguntei aos dois que sobraram.



— Nós trabalhamos para a UniCorp, querida — disse a mulher, enquanto o
homem deu as costas para mim. — Meu nome é Roseanna Sabah e este é o meu
pai. Sou a mãe de Brendan. Você se lembra do Brendan?



Brendan. O homem-sombra.



— Aquele que me despertou?



— Sim. — A Sra. Sabah sorriu. — Ele encontrou-a ontem. Você passou
tanto tempo em estase que tivemos de trazê-la para o hospital.



Senti um nó no fundo da garganta, algo sombrio e assustador.



— Então é verdade o que ele disse? — murmurei. — Sessenta anos?




— Sessenta e dois — respondeu o senhor que estava no fundo do quarto.
Suas palavras caíram pesadas como chumbo.



— E meu pai, e minha mãe... e todas as pessoas que eu conhecia... —
minha visão desapareceu por completo quando comecei a chorar. Tentei conter as
lágrimas, como mamãe havia me ensinado, mas não consegui. As lágrimas
escorreram para dentro de minha boca, e elas tinham um gosto estranho, eram
muito salgadas e espessas.



— Temo que sim, querida — disse a amável senhora. — Mark e Jacqueline
Fitzroy morreram em um acidente de helicóptero enquanto você ainda estava em
estase. Mas você está viva, e vamos providenciar para que seja bem cuidada.



— Como? — consegui sussurrar.



— Sinto dizer que seus pais morreram sem deixar um testamento — disse a
mulher. — E, por conseguinte, a empresa deles caiu nas mãos dos acionistas e do
conselho de diretores. Mas agora que você voltou, toda a herança retornará para
você.



— Você quer dizer que... sou dona da UniCorp agora?



— Não — o homem mais velho respondeu de forma ríspida. Por alguma
razão, sua voz me assustou. — Infelizmente, você pertence à UniCorp. Pelo menos
até que atinja a maioridade.



— Papai, não assuste a menina.



— Ela deve saber qual é a sua posição! — ele estava quase gritando agora.




A mulher se afastou da minha cama.



— Papai, até que consiga se controlar, é melhor ficar lá fora! — ela ralhou.
— Sinto muito que sua empresa seja um campo de batalha, mas isso não
justifica...



— Esta empresa nunca foi minha — o homem esbravejou. — Ela pertencia
ao Fitzroy. E agora pertence ao Guillory. Passe esse sermão nele! — Ele respirou
fundo e se virou de costas. — Mas você tem razão. É melhor que você cuide dela.
Tenho algumas coisas para resolver.



Ele saiu e a Sra. Sabah voltou para o lado da minha cama.



— Sinto muito por aquilo — ela falou.



— Está tudo bem — menti. Agora que o efeito da estase química tinha
passado por completo, o medo ecoava em minha voz.



— Eu deveria deixar você dormir — ela disse, tocando com carinho na
minha mão. — Não se preocupe com nada. Neste exato momento você só deve
pensar na sua recuperação. Nós podemos cuidar de tudo depois que você estiver
mais forte. Voltarei amanhã cedo. Bren também gostaria de vê-la, se não tiver
problema.



Assenti com a cabeça, e isso fez com que meu pescoço doesse.



— Descanse, querida. Não se preocupe. Vamos resolver tudo.




* * *



Seis dias depois, eu estava empoleirada em frente a um cenário que tinha
como fundo o Condomínio Unicórnio, enquanto pelo menos uma centena de
repórteres tirava fotos da "miraculosa bela adormecida". Pelo menos era assim
que estavam me chamando. Eu não me sentia tão bela.



Apesar dos seis dias no hospital e mais vinte e quatro horas me
produzindo, dos monitores de saúde, injeções de vitalidade e um milhão de
outros tratamentos a que fui submetida, meu cabelo ainda estava liso e
quebradiço, minha pele inchada e sensível e meus ossos estavam tão
protuberantes que eu parecia um esqueleto dentro de um saco. Minha visão
estava turva, a respiração fraca e me sentia enjoada quando tentava comer. Eu
me sentia como uma velha. Tecnicamente, eu era.



Tinha quase oitenta anos com apenas dezesseis. Nunca passei tanto tempo
em estase. Ninguém havia passado. Até mesmo os astronautas e colonizadores,
quando estavam a caminho de outros planetas, eram ressuscitados uma vez por
mês, para evitar a fadiga estase.



O Sr. Guillory agora estava falando em uma tribuna, as costas eretas, os
cabelos tingidos de loiro perfeitamente no lugar. O Sr. Guillory "pode me chamar
de Reggie!" aparentemente era meu testamenteiro. Uma vez que eu não tinha
nenhum parente vivo, ele ficou responsável por arrumar um guardião e um lar
para mim. Ele devia estar na casa dos cinquenta anos e, como eu sabia que
deveria respeitá-lo, senti-me compelida a gostar dele. Seus olhos castanhos claros
não pareciam olhar diretamente para mim quando falava comigo e, na minha
opinião, ele parecia uma valiosa estátua dourada. Havia algo nele que me


assustava, mas, ao mesmo tempo, lembrava meu pai, por isso fui muito educada
com ele.



— A UniCorp está muito feliz por ter descoberto a jovem Rose — disse
Guillory. — Quando Mark e Jacqueline Fitzroy morreram sem deixar herdeiros,
foi uma grande tragédia. Ter um descendente deles de volta é uma alegria além
do que podíamos imaginar.



Uma das repórteres gritou uma pergunta:



— E quanto ao rumor de que o senhor tentou esconder que ela foi
descoberta?



Guillory nem se abalou.



— Há seis dias Rose estava sofrendo de uma intensa fadiga estase, além de
ter sido submetida a um tremendo golpe psicológico. Pensamos que seria melhor
para ela passar alguns dias se adaptando à situação antes de a impressa
aparecer em peso para acompanhar cada passo seu. Nunca tivemos a intenção de
omitir a verdade além do tempo necessário que imaginamos que fosse melhor
para a saúde física e mental de Rose.



— Qual é, então, a posição da organização UniCorp, e qual será o futuro do
espólio da corporação?



— Claro que Rose é a única herdeira dos negócios de seus pais. No entanto,
até que ela atinja a maioridade, seu patrimônio será administrado por nossa
companhia. Um advogado já foi nomeado para representá-la na UniCorp e ela
será assistida da melhor maneira possível.




O rosto da repórter mostrava uma profunda descrença. Ela tentou seguir
adiante:



— Mas e quanto à propriedade da companhia em si?



Na verdade, acho que nem mesmo eu sabia responder àquela pergunta e
fiquei observando com interesse a parte de trás da cabeça de Guillory. Mas a
repórter foi ignorada quando Guillory apontou para outro.



— Como Rose foi esquecida em estase?



Guillory saiu pela tangente.



— Como você sabe, os Fitzroy eram os gigantes financeiros do seu tempo.
Com o considerável poderio que tinham, compraram o tubo de estase para uso
pessoal da família antes dos Tempos Sombrios. Suponho que o tubo tenha se
perdido durante a agitação que se seguiu. Próximo?



— Rose é menor de idade — alguém gritou. — Quem irá adotá-la?



— Os advogados de Rose já encontraram uma família adotiva adequada. A
família que estava morando no antigo apartamento dela generosamente
concordou em se mudar para um apartamento semelhante não muito distante.
Por conseguinte, Rose poderá retomar ao lar que lhe era familiar. A família
adotiva passou por um exame minucioso e é perfeita. Próximo?



— Como ela foi descoberta? Os rumores não são claros.




Guillory sorriu.



— Para responder a essa pergunta, vou chamar meu jovem amigo Brendan
Sabah, responsável pela surpreendente descoberta. Ele é o filho de um dos
nossos melhores executivos e é um jovem fora do comum. Bren, você poderia vir
até o microfone?



Observei enquanto Bren se aproximava da tribuna. Ele esbanjava
confiança, não havia nenhum sinal de tremor ou medo do palco. Percebi, então,
que Bren não se intimidava com quase nada. Durante a minha semana no
hospital, eu havia descoberto um pouco mais sobre ele. Ele tinha a minha idade,
um corpo atlético, e se movia como uma pantera. A Sra. Sabah me contou que ele
participava de campeonatos de tênis. Sua pele morena era herança do pai, que
tinha emigrado diretamente da Comunidade da Costa do Marfim. Ele se parecia
mais com um astro do cinema ou um príncipe encantado do que com um
estudante do ensino médio.



— Meus pais compraram o Condomínio Unicórnio há apenas seis meses,
quando ele foi colocado à venda, e foi então que comecei a explorar tudo para
ajudar — Bren contou a todos. — Acabei descobrindo várias salas e um depósito
que ninguém sabia que existia. Um jogo de cartões biométricos foi entregue junto
com a escritura. Um desses velhos cartões abriu as salas dos depósitos no
subsolo e foi em uma dessas salas que encontrei o tubo de estase de Rose.



— O que você fez quando percebeu que havia uma garota dentro do tubo?



— Não percebi de imediato que era um tubo de estase — Bren disse. Seus
olhos brilharam sob as luzes dos flashes. Ele herdara os belos olhos da mãe, que
se destacavam esverdeados na pele morena do rosto.




— O tubo estava coberto de pó, mas havia uma luz piscando. Tentei limpar
por cima da luz para ver o que era, mas acabei descobrindo que a luz era um
botão e, quando o apertei, ele iniciou a sequência de reanimação.



— Em seguida, o tubo se abriu e você encontrou Rose?



Bren encolheu os ombros. Ele pareceu um pouco sem jeito.



— Sim.



Eu sabia por que ele parecia sem jeito. Quando percebeu que eu não estava
acordando, ficou com medo de ter estragado o sistema de reanimação, por isso,
começou a fazer respiração boca a boca, mas ficou um pouco envergonhado
quando descobriu que era completamente desnecessário.



— Quando você descobriu quem Rose era?



— Ela me contou — Bren respondeu. — Meu avô confirmou no hospital.



Nesse momento, Guillory avançou e tirou Bren do caminho.



— Bren entrou em contato com o avô dele, um dos nossos diretores mais
importantes, e ele me colocou a par do acontecimento. Mais alguma pergunta?



Uma repórter que estava ao lado ergueu a mão.



— Eu tenho uma pergunta para Rose!




Guillory se virou para mim e gesticulou para que eu me levantasse. Lancei
um olhar apavorado para Bren. Seu rosto se suavizou em um sorriso solidário.



— Vá em frente — ele murmurou.



Respirei fundo. Não nasci para as câmeras. Até mesmo a ideia de que
estavam me filmando, sentada atrás de Guillory, já me assustava. Eu não queria
ir até a tribuna, mas era o que todos esperavam de mim... A voz da minha mãe
ecoou na minha memória: "Nem sempre importa o que você quer querida. O
importante é parecer bem para os outros." Eu não precisava gostar daquilo tudo.
Só tinha de fazê-lo. Forcei-me a levantar da cadeira.



Quando me levantei, ainda mais flashes dispararam. Um passo. Dois
passos. Três. E, então, eu estava na tribuna e a mão firme de Guillory segurou a
minha para impedir que eu fugisse.



— Srta. Fitzroy, qual é a sensação de despertar em um novo século?



Engoli em seco outra vez. Eu sentia dor o tempo todo e parecia fraca um
gatinho, sempre cansada, mas não imaginei que fosse a isso que a repórter
tivesse se referido. Na verdade, eu ainda não sabia como me sentia. E não queria
saber. Entre o choque emocional, a dor e a estase química, minhas emoções
pareciam distantes, como se não me pertencessem.



— É bom estar de volta — eu disse, entregando a frase de efeito que eles
queriam ouvir. Mais flashes dispararam. Era mentira, mas não importava. Era
isso que eles queriam ouvir.



* * *




Ele estava coberto de pó, mas isso não parecia afetá-lo. Estava muito
ultrapassado para perceber tais coisas. Então, o nome passou pela internet e
cutucou sua programação. "Rose Fitzroy"



Eletrodos que estavam adormecidos havia muito tempo dispararam. Os
sistemas entraram em módulo de atividade. Ele acessou o arquivo que tinha
disparado a resposta do programa.



“Esta manhã o mundo ficou surpreso ao descobrir a filha de Mark e
Jacqueline Fitzroy, os fundadores da corporação interplanetária UniCorp.
Aparentemente mantida em estase por mais de sessenta anos, Rose Fitzroy foi
descoberta no subsolo do Condomínio Unicórnio. Hoje, vimos Rose pela primeira
vez quando a UniCorp..."



A programação leu o arquivo. Se tivesse sido apenas o nome, ele teria
entrado em modo de descanso novamente. Mas, então, a voz registrada confirmou
a compatibilidade.



— É bom estar de volta.



ALVO IDENTIFICADO: ROSE SAMANTHA FITZROY.



Ele costumava responder instantaneamente, mas agora seus processadores
estavam ultrapassados. Lentamente, lentamente, depois de uma eternidade de
segundos, sua diretiva primária filtrou os dados e trouxe-o de volta à consciência.



DIRETIVA: RETORNAR ALVO PARA O PRINCÍPIO.




Sua diretiva foi ativada, ele executou na rede uma busca pelo princípio.



BUSCANDO... BUSCANDO... BUSCANDO... BUSCANDO...



Foi preciso vinte e quatro horas para que seu programa retornasse com o
resultado inevitável.



PRINCÍPIO INDISPONÍVEL.



O programa vagou durante outra eternidade e, alguns minutos depois, ele
encontrou uma diretiva secundária.



DIRETIVA SECUNDÁRIA: EXTERMINAR ALVO.



Essa foi difícil. Instruções que nunca haviam sido executadas, de repente,
foram colocadas em prática. A recuperação das instruções de sua diretiva
primária estava sempre disponível, mas a diretiva secundária nunca havia sido
necessária. Ele colocou a diretiva secundária em modo de espera, aguardando
por uma segunda varredura. O princípio estaria disponível quando o alvo fosse
alcançado.



Só então seu sistema começou a verificação do status solicitado.



RELATÓRIO DE STATUS: 0,03% DE EFICIÊNCIA, BATERIA FRACA, MODO
DE ESPERA.



O relatório recomendou um reparo e, depois de alguns dolorosos momentos
de espera, o processador concordou. O cabo do carregador já estava conectado,
mas ele precisou de mais de cinco horas para ligar outra vez.




RECARREGANDO. PREVISÃO DE 100% DE EFICIÊNCIA DENTRO DE
687,4 HORAS.



O fato de que ele provavelmente demoraria quase um mês para alcançar
um índice de eficiência confiável não o abalou nem um pouco. Tempo não
significava nada para ele.



Sistemas chiando. Nanorrobôs foram acionados um a um e percorreram
todo o sistema, limpando as veias empoeiradas e lubrificando as engrenagens.
Sua visão foi clareando à medida em que os nanos executavam uma varredura
por seus globos oculares, removendo uma espessa camada de poeira.



Enquanto esperava a conclusão do recarregamento, ele executou outra
busca pelo princípio, uma varredura que ele repetiria várias vezes durante o
período em que sua diretiva estava sendo carregada. A diretiva secundária não
era seu programa principal. Se ele tivesse sentimentos, teria dito que a parada
causara certo desconforto.



Mas ele não tinha sentimentos. Tudo o que possuía eram atualizações.



RECARGA STANDBY.



STANDBY...



STANDBY...



STANDBY...




3





O MÊS SEGUINTE PASSOU MEIO NEBULOSO. TUDO ERA MUITO GRANDE,
MUITO sombrio, muito assustador. Fui arrancada do meu tempo, e meu mundo
tinha morrido ao meu redor. Nada pertencia a mim. Nada no mundo, nem a
minha vida, nem mesmo meus próprios sentimentos.



Meus novos pais não eram meus pais de verdade. Barry e Patty Pipher, um
casal de contadores da UniCorp da Flórida, tinham sido recrutados por Guillory
Eles foram transferidos para a ComUnidade e eu fui colocada como uma
substituta para os dois filhos deles, que, aparentemente, estavam fazendo
faculdade fora. Eu ainda não os conhecia. Os Pipher não haviam colocado nem
porta-retratos com fotos deles. Apesar de serem meus novos pais, filhos não
pareciam ocupar o topo da lista de prioridade dos Pipher. Barry era amigável,
mas distraído e parecia ser incapaz de pensar em outra coisa que não fosse
trabalho. Sorria com facilidade para tudo, mas aquilo parecia mais um hábito do
que prazer verdadeiro. Patty era assustadoramente bem-arrumada, conseguia ser
ainda mais austera do que a minha mãe, com uma pele que parecia ter sido
pintada com aerógrafo e cabelos que pareciam moldados em plástico. Ela fazia
com que eu me sentisse com doze anos de idade.



Meu lar não era meu lar. O Condomínio Unicórnio não tinha mudado
muito, claro. Algumas coisas perduram, por décadas, exatamente como foram
feitas, e o Condomínio Unicórnio era assim. Mas nunca tive a sensação de que o
Unicórnio fosse meu. Era mais um lugar que não "pertencia" a ninguém. Por


definição, o Unicórnio era um condomínio, mas do tipo que fazia os condomínios
normais chorarem de inveja. Meus pais o construíram quando eu tinha sete anos,
logo depois de o Edifício UniCorp ter ficado pronto e de a cidade da ComUnidade
ter começado a se espalhar em seus arredores. Na verdade, era mais uma
mansão com vários apartamentos grandes e espaçosos do que um condomínio.



O alto crescimento populacional que ocorreu durante a minha infância fez
com que o governo proibisse a aquisição de mansões particulares. O espaço físico
era muito valioso e controlado pelo governo. Mas os ricos ainda desejavam
possuir suas mansões, por isso, apesar de cada apartamento ter sua autonomia,
luxos como chefs de cozinha, piscinas cobertas e ao ar livre, banheiras de
hidromassagem, saunas, salões de bilhar, salões de baile, estábulos, quadras de
tênis, ginásio de esportes, teatro privativo e tudo o mais, podiam ser desfrutados
no Unicórnio, sem que os condôminos tivessem de se preocupar com a
manutenção. Os pais de Bren administravam tudo agora. Antes de eu entrar em
estase era a minha mãe que cuidava de tudo, enquanto meu pai passava seu
tempo na UniCorp. Tudo aquilo sempre me foi muito familiar.



Apesar de estar no meu antigo apartamento, não parecia ser a mesma
coisa. Barry e Patty não tinham visto nenhum motivo para redecorá-lo, mas o
apartamento tinha mudado de dono várias vezes desde que minha mãe tinha
cuidado de sua decoração. Mamãe favorecera os tons pastéis e apagados,
deixando meu lar muito parecido com uma tela em branco onde eu poderia pintar
o que desejasse ver. Agora, a maior parte do apartamento estava pintada em tons
terra, as quinas, antes formais, tinham sido arredondadas para tornar o
ambiente mais calmo e aconchegante. Sejam lá quem fossem os proprietários
anteriores, eles gostavam muito do estilo surrealista das paisagens de Dali e de
pequenos retratos de personagens históricos marcantes, como Nehru e Van Gogh.


Aquilo me lembrou um pouco meu próprio trabalho. Gostei, mas não parecia o
mesmo lugar que eu tinha vivido com meu pai e minha mãe.



No entanto, a primeira vez que entrei no meu quarto, quase rompi em
lágrimas. Se a minha vida ia ser diferente, se o meu mundo estava morto, eu
queria que tudo tivesse mudado. Talvez eu pudesse descartar tudo, ou quem quer
que eu fosse antes, e me transformar em uma pessoa completamente nova. Pelo
menos, era isso que eu dizia para mim mesma.



Mas, quando Barry e Patty abriram a porta daquele que um dia tinha sido o
meu quarto, dei de cara com uma vida que eu tinha cuidadosamente deixado
para trás. De repente, fui forçada a me lembrar de quem eu era. E isso doeu.



Meu quarto era o mesmo. Quase exatamente. Fiquei imaginando se eles
haviam conseguido encontrar uma fotografia em algum arquivo de computador,
pois a decoração era quase a mesma de sessenta anos atrás. Havia algumas
mudanças sutis — a estampa do tapete não era a mesma, o formato dos móveis
tinha mudado um pouco, a maioria dos tecidos era diferente —, mas a cama que
ficava no canto tinha uma colcha com estampa de botões de rosa, exatamente
como a minha antiga colcha. Havia até um quadro do ciclo das ninféias, de
Monet, apesar de ser diferente do que eu tinha.



Na verdade, doeu ver tudo aquilo, doeu estar ali, pisando no meu carpete
rosa, olhando para as ninféias do Monet, e saber que, quando eu me virasse, não
seria minha mãe, ou meu pai, ou Xavier que iam estar parados atrás de mim,
mas sim Patty, Barry e Guillory, todos me observando como se eu fosse algum
programa sobre a vida selvagem. Então, o sol penetrou através das nuvens e
meus olhos capturaram uma diferença sutil, mas fabulosa, algo que não estava
no meu quarto antes. Havia um prisma em formato de lágrima pendurado na


janela. Ele capturava a luz do fim de tarde e refletia milhares de pequenos arcos-
íris por todo o quarto. Minhas lágrimas morreram antes mesmo de nascer.
Caminhei até o prisma e toquei nele, permitindo que o arco-íris dançasse ao meu
redor.



A dor atenuou-se um pouco. Alguém pendurara aquilo para mim, só para
mim. Suspeitei que tivesse sido a Sra. Sabah. A atitude me pareceu tão sincera
quanto um beijo. Aquele quarto não era apenas um corpo da minha vida passada
que tinha sido exumado. Ele era um presente. De Guillory, da Sra. Sabah, ou até
mesmo dos decoradores, não importava. Só a gentileza importava. O que
significava que... que eu não estava sozinha?



Havia outra surpresa do outro lado do corredor, algo que eu jamais
esperaria. Um sonho de outra vida que se tornava realidade nesta.



Era um estúdio.



Não apenas um estúdio. Mas um estúdio de arte completo, com uma pia e
copos cheios de pincéis. Havia uma estante, que ia do chão ao teto, repleta de
livros de arte. Volumes sobre técnicas, estilos, história, abordando desde
esculturas do antigo Egito ao neodadaísmo. Próximo à estante de livros estava
um cavalete para secar as pinturas, seguido por uma bancada de linhas
geométricas perfeitas, com ferramentas que me ajudariam a colar, emoldurar ou
esticar minhas próprias telas. As gavetas embaixo da janela estavam cheias de
gizes de várias cores, carvão para desenhar e ferramentas para matizar, um vasto
conjunto de lápis de cor intocados, e resmas e mais resmas, desde papéis pretos
para os meus gizes até papéis ásperos para as aquarelas. Havia um completo
espectro de cores de tubos de tinta aquarela. Um número considerável de
potinhos de tinta acrílica. E o melhor de tudo: havia uma gaveta enorme com


tintas a óleo, novinhas em folha e intocadas, só esperando pelas minhas mãos.
Outra gaveta encerrava mais pincéis, faquinhas de pintura, palhetas e tudo o que
eu pudesse desejar.



Eu poderia produzir verdadeiras obras-primas naquele lugar. Havia dois
cavaletes e uma prancheta com uma luminária afixada, para trabalhos noturnos.
Atrás deles, contra a parede, um imenso aquário com peixes tropicais
transpunha para a vida real as cores das tintas. Aquilo era um sonho.Uma visão.
A alma de todos os desejos mais secretos, a única coisa que eu sempre soube que
nunca poderia ter. Mas, ao contemplar tudo aquilo, até mesmo meu futuro
sombrio pareceu um pouco mais iluminado...



As coisas ficavam mais difíceis quando eu me lembrava da minha outra
vida. Quando lembrava de quando mamãe me levava para almoçar, de como
papai bagunçava meu cabelo quando passava por mim a caminho do seu
escritório — o mesmo quarto que agora era ocupado pelo meu estúdio. Eu sentia
saudade da Åsa, que me preparava chá inglês e fazia elogios gentis, de uma
palavra apenas, com seu leve sotaque sueco, sobre a minha última pintura ou
sobre as notas das minhas provas.



E eu sentia saudade de Xavier sempre com um zumbido dolorido, como o
som do oceano, que vez ou outra banhava meu corpo e me deixava atordoada. Eu
não fazia a menor ideia de como ia conseguir sobreviver sem ele. No fundo, eu
sabia que só superaria a perda da minha mãe, do meu pai e do mundo onde
nasci se pudesse ter Xavier de volta, do mesmo jeitinho que ele era.



Tentei buscar seu nome na internet, enquanto ainda estava no hospital, só
para ver se, por algum milagre, ele ainda estava vivo. Mas não me surpreendi
quando o nome não apareceu nos arquivos da população atual. Afinal, se Xavier


ainda estivesse vivo, ele teria me tirado da estase décadas atrás. Não continuei
procurando, não queria saber como ele morreu. Assim como também não queria
saber detalhes sobre a morte de meus pais. Eles provavelmente morreram
durante os tais Tempos Sombrios, que eu ainda não tinha entendido muito bem.
E, se não soubesse como tudo aconteceu, era como se eles ainda estivessem
vivos, pelo menos na minha cabeça.



O fato de ter perdido todos eles doía, mas meu amor por Xavier ainda era
cortante e agonizante como uma lâmina, e eu era dilacerada por ele. Claro, minha
amizade com Xavier foi um problema que sempre me machucou muito. Mesmo
quando ele não passava de uma criança, já era capaz de dilacerar meu coração.



Lembrei de quando ele tinha cinco anos e eu acabara de acordar de um
retiro de alguns meses. Eu não devia ter mais do que dez anos. Apareci nos
jardins e Xavier estava lá, acompanhado da mãe; ela trabalhava em algum
projeto, ele brincava com uma pilha de gravetos. Estava muito claro e eu acabara
de sair do meu tubo de estase. Meus olhos ainda não tinham se habituado à
luminosidade. Estava pensando em voltar quando fui surpreendida por oitenta
centímetros de pura energia.



— Rose!



Olhei admirada para o tornado de cabelos loiros e sardas que, antes de
entrar em estase, não passava de uma criancinha aprendendo a falar, com quem
eu brincava.



— Xavy?




— Rose, Rose, Rose, Rose, Rose! — Xavier começou a dançar ao meu redor,
cantando meu nome sem parar. — Rose, Rose, Rose!



A Sra. Zellwegger, que estava trabalhando na mesa de piquenique, ergueu
os olhos da tela de seu computador portátil.



— Parece que você arrumou um fã — ela comentou distraidamente antes de
retomar o trabalho.



Xavier estava tão crescido que até fiquei surpresa por ele ainda se lembrar
de mim.



— Olhe para você — eu disse para o garotinho. — Como você cresceu!



— Tenho cinco anos — ele falou orgulhosamente.



— É mesmo? — não fazia a menor ideia de quanto tempo eu passara em
estase dessa vez, mas sabia que Xavier tinha quatro anos da última vez em que
brincamos. Ele não sabia falar muito bem, era difícil entender sua conversa e
suas digressões, eu nunca conseguia acompanhá-las. Brinquei com ele do mesmo
jeito que teria brincado com um cachorro, rolando na grama e me escondendo
atrás das árvores.



— Fiz aniversário em junho, agora tenho cinco anos e vou para a escola em
setembro!



— Ah, é? — respondi.




— Veja o que eu ganhei! Veja o que eu ganhei! — ele insistiu, puxando meu
braço. Eu o segui, confusa, enquanto me conduzia pelo gramado até pequena
pilha de brinquedos sob uma árvore. — Ganhei isso tudo de aniversário. Esta é
minha caixa de tesouro. — Sobre a grama havia um baú de pirata de brinquedo,
feito de plástico imitando madeira, com uma caveira no lugar da fechadura. Ele
abriu o baú e começou a brincar com seus tesouros.



Xavier colocara todos os seus pertences mais preciosos dentro da caixa. Ele
me fez sentar no chão e começou a empilhar tudo no meu colo, exibindo seu novo
jogo de computador de alfabeto e o monstro de brinquedo com “Cinco dentes
afiados! Ele tem cinco, como eu". Havia ainda uma caixa de giz cera, um graveto
com formato estranho, uma pena e o celular velho de sua mãe, quebrado, mas
que ele fingia que ainda funcionava, um peixe de brinquedo, e...



— Rose? Por que você está chorando?



Pisquei.



— Não estou chorando de verdade — eu disse, enxugando meus olhos
lacrimejantes. — É que o brilho do sol está muito forte para mim. Meus olhos
estão ardendo um pouquinho e isso faz com que eles fiquem cheios de lágrimas.



Xavier ficou me encarando durante um bom tempo, seu rostinho animado
tinha se tornado sério. Ele franziu a testa.



— Aqui — disse. Ele vasculhou o baú de tesouro e, do fundo, tirou um par
de óculos de sol de brinquedo. — Pode ficar com eles.




Os óculos eram de plástico e pelo menos duas vezes menor que o meu
rosto, mas ele os estendeu com tanto entusiasmo que não pude recusar. Com
dificuldade, consegui ajustá-los sobre os meus olhos. As hastes nem alcançavam
as orelhas e ficaram abertas sobre as minhas têmporas, quase caindo do meu
rosto, mas o gesto foi muito gentil.



— Obrigada, Xavy.



— Rose? — ele perguntou, todo ansioso. — Onde você estava?



Balancei a cabeça.



— É difícil explicar. Estava dormindo um pouco, mas agora estou acordada.



— Você não pode vir morar comigo? — ele perguntou. — Você pode dormir
no meu quarto.



Sorri.



— Tenho meu próprio quarto — respondi.



— Mas aí eu poderia ter acordado você, e você não teria dormido por tanto
tempo e não teria perdido meu aniversário.



— Sinto muito por ter perdido seu aniversário — eu disse. — Não vou
dormir desse jeito por uns tempos.



— Promete?




— Prometo.



Xavier empurrou os brinquedos do meu colo e ocupou o lugar deles. Seu
bracinho se enroscou ao redor da minha cintura e ele enterrou a cabeça no meu
ombro.



— Nunca mais durma, Rose — disse ele. — Fique comigo para todo o
sempre.



— Claro — falei, acariciando seu rostinho macio de criança. — Para todo o
sempre.



Eu também era uma criança e não compreendia a dimensão da mentira
que estava dizendo. Agora eu passara os últimos sessenta e dois anos dormindo e
perdera todos os aniversários de Xavier.





Barry e Patty mal me viram ao longo daquelas primeiras semanas. Eu não
estava lá de verdade. Meu mundo se resumia entre a minha cama e o meu
estúdio. Eu desenhava rostos conhecidos — especialmente o de Xavier — e
pintava paisagens intrincadas. A fadiga estase me deixou mais lenta e eu me
cansava com facilidade, mas rapidamente percebi que as minhas habilidades, na
verdade, tinham melhorado enquanto dormia. A arte era a única coisa que me
importava. Eu aparecia nas horas das refeições quando Barry e Patty me
chamavam, saí para comprar roupas íntimas quando Patty mandou, e colocava a
minha roupa suja para lavar, pois era o que esperavam de mim. E, quando Barry
me contou que eu tinha uma consulta marcada com uma psicóloga, entrei
desconfiada em uma limobarca e deixei que ele me levasse até um prédio de
escritórios na cidade.




— Esta primeira sessão é algo informal — disse a minha psicóloga depois
que me sentei em um sofá confortável. — Só para nos conhecermos um pouco.
Seus pais adotivos falaram algo sobre mim?



Neguei com um aceno de cabeça.



— Não — respondi. — Só me disseram que eu tinha uma consulta.



— Sei. — A Dra. Bija voltou-se para a tela de seu supertablet e tocou em
alguns ícones. Eu ainda estava tentando lidar com o meu próprio supertablet.
Conhecia muito bem os computadores com monitores touchscreen, mas esses
aparelhinhos portáteis que se pareciam com um notebook eram novidade para
mim. Era legal poder largá-los por aí, sentar neles sem querer, colocar sob uma
pilha de livros e, ainda assim, conseguir entrar na internet para acessar as notas
da escola. Mas, na verdade, eles não eram notebooks, não até onde eu sabia.



Minha psicóloga estava na casa dos quarenta anos, tinha fartos cabelos
negros, com alguns fios grisalhos ao redor das têmporas, e pele morena. Ela
vestia um elegante terninho, e seu nome era Mina Bija.



— Mii-na Bii-já — foi assim que Barry falou. Ele me deixou em frente a um
dos milhares de prédios que foram erguidos na ComUnidade ao longo dos
sessenta e dois anos em que estive em estase. Eu não queria uma psicóloga, mas
Barry me assegurou de que era apenas para ajudar na minha adaptação. Tinha
certeza de que Guillory queria me vigiar, mas não estava em posição de
questionar a decisão.



— Então seu nome é Rose.




— Isso mesmo.



— Sinta-se à vontade para me chamar de Mina — disse a Dra. Bija. — Seu
caso me foi encaminhado pelo Sr. Guillory, é isso mesmo?



— Creio que sim.



— É claro que a vi nos noticiários, há mais ou menos um mês. Você já se
consultou com um psicólogo antes?



Balancei a cabeça.



— Não. Estou indo em um fisioterapeuta, mas nunca fui a um psicólogo.



— Então é a sua primeira vez? — ela perguntou. Em seguida lançou um
sorriso com um tom de pedido de desculpas que me ajudou a baixar a guarda. —
Bem, só para deixar tudo claro, gostaria que você soubesse que eu trabalho para
a UniCorp, aqui dentro do Preparatório Uni. — Dei mais uma olhada na sala dela.
Não percebera que o consultório ficava dentro de uma escola. — Eu soube que
em breve você passará a frequentar a nossa escola.



— Só na segunda-feira — eu disse.



— Tão rápido? Isso deve ser assustador.



Encolhi os ombros.



— Não é mais assustador do que o resto.




Seu rosto pareceu preocupado.



— Sim, você passou por um choque emocional e tanto.



Eu me remexi, desconfortável.



— Não tenho certeza se quero falar sobre isso.



— É claro. Vamos falar sobre a escola. O que você acha de ter sido
matriculada no Preparatório Uni? Você está pronta para voltar para a escola?



Balancei a cabeça.



— Não sei. Acho que sim.



— Não está nem um pouco preocupada? — Mina pressionou. — Você tem
sessenta anos de tecnologia e história para pôr em dia.



— Duvido que eu vá notar alguma diferença — respondi com pesar.



— É mesmo? Espero que tenha facilidade para assimilar, isso tornaria tudo
muito mais prazeroso para você.



— Não foi isso que eu quis dizer — falei. — É que... nunca fui muito boa na
escola. Não consigo imaginar que as coisas serão muito piores, mesmo com todas
as novidades. — Baixei os olhos para meus joelhos. Eles estavam cobertos pelo
tecido cinza da saia do uniforme escolar do Preparatório Uni. Eu podia ter
escolhido a saia xadrez com as cores verde, azul e dourado da Uni, ou no mesmo


tom cinza ou verde-escuro dos blazers do uniforme. Guillory mandou entregarem
para mim no Unicórnio a coleção completa de cores do Preparatório Uni e cuidou
das várias trocas. O que foi um alívio, pois isso significava que eu não precisaria
sair para comprar roupas. Patty me levara para comprar pijamas e roupas
íntimas e achei isso um pesadelo. Eu estava acostumada às mudanças da moda,
mas não a ter de escolher o que ia vestir. Desejei que o Preparatório Uni tivesse
algum tipo de norma com relação aos pijamas.



— Você não vai muito bem na escola? — Mina perguntou.



Balancei a cabeça.



— Nunca fui.



Ela franziu o cenho.



— Você sabe que o Preparatório Uni prima pelo bom desempenho em todas
as áreas.



— Você acha que eu deveria pedir para ser enviada para outro colégio? —
perguntei, com certo receio de que ela dissesse sim. Afinal, sua lealdade com a
escola vinha em primeiro lugar. Eu não queria ir para outro colégio. Em primeiro
lugar, porque teria de abrir mão do conforto do uniforme. Em segundo, o
Preparatório Uni era como uma extensão da proteção de meus pais, o mais
próximo que eu tinha do tipo de vida que eles me dariam se estivessem vivos. E
eu não queria ficar longe disso.



— Não — ela disse —, mas acho que deveríamos conversar com o
orientador da escola, talvez arrumar alguns professores particulares.




Agora foi a minha vez de franzir a testa.



— Você não é a orientadora da escola?



— Não — Mina respondeu. — Sou a psicóloga residente. Os registros do
orientador fazem parte dos registros da escola. Os meus são privados. Presto
serviço para a escola, pois assim o acesso para os alunos internos fica mais fácil.
Muitos estão longe de casa pela primeira vez e precisam de ajuda. Mas também
tenho pacientes fora da escola e da ComUnidade.



Eu me senti melhor.



— Já tive professores particulares. Mas acho que talvez isso não ajude
muito. Não sou muito inteligente — admiti. — Eu costumava tentar, mas nunca
deu certo, por isso não me dou mais ao trabalho.



— Isso foi antes de sua estada no hospital?



— Foi antes de eu entrar em estase — esclareci, pensando por que ela tinha
evitado a palavra. — Às vezes eu ficava tão atrasada que acabávamos desistindo e
eu começava tudo de novo em outra escola.



Não consegui decifrar a fisionomia de Mina, mas ela hesitou por um
momento antes de perguntar:



— E isso ajudava?



Ninguém nunca me perguntara isso.




— Na verdade, não — admiti.



Mina era legal, mas eu não me sentia muito confortável falando com ela.
Acabei me esquivando para responder suas outras perguntas. Ela fazia parte
deste mundo, e eu não me sentia à vontade nele. Eu era uma criança de outra
época. Nada parecia fazer sentido. Eu não sabia como programar o holovídeo, e
não consegui descobrir como o fogão funcionava. O que era irônico, uma vez que
a geladeira e o fogão eram fabricados por uma das subsidiárias da UniCorp com
as suas pequenas etiquetas da NeoFusion estampadas na frente.



A quase eterna fonte de energia dessa bateria tinha sido o carro-chefe das
patentes da UniCorp, o primeiro passo que tornou possível todo o restante da
corporação interplanetária. Antes de eu ter sido colocada em estase, as baterias
eram usadas apenas em aparelhos caros e importantes, em centrais de energia
elétrica, em ônibus espaciais e em raras unidades autônomas, tais como o meu
tubo de estase. Agora, aparentemente, as mesmas baterias NeoFusion que
alimentaram o meu tubo estavam em toda parte. Assim como, infelizmente,
estavam por toda parte os sensíveis controles SubTouch, que eram ativados
apenas com o calor do corpo, e pareciam reagir antes mesmo de serem tocados.
Teoricamente, eles evitavam contágio, algo que as pessoas pareciam estar muito
mais preocupadas depois dos Tempos Sombrios. A verdade é que não consegui
fazer o fogão funcionar e, para completar, quase coloquei fogo no prédio todo.



Tudo o que eu queria era mergulhar nos meus desenhos. E tinha toda
certeza de que não queria ir para a escola.



Mas que escolha eu tinha, presa em um mundo que não era meu, com a
minha vida nas mãos de outros? Jantar, falar com uma psicóloga, preparar-me


para as aulas. Fiz tudo o que me disseram para fazer. Pois era tudo o que eu
podia fazer.






























































4





O PRÉDIO ERA ALTO, SOMBRIO E EM ESTILO ANTIGO, UMA CONSTRUÇÃO DE
PEDRA entralhada, janelas em arco e cumeeiras altas. Parecia uma casa de filme
de terror, o lar dos mortos-vivos, uma masmorra escura e sombria. Essa era a
minha escola.



O Preparatório Uni era considerado a melhor escola do sistema solar. A
maioria dos filhos de funcionários dos altos escalões que moravam nas colônias
estudavam ali. Os alunos que não eram internos, como eu e Bren, faziam parte
da mimada nova geração da ComUnidade.



Eu já tinha visto o prédio antes, claro — o consultório da Dra. Bija ficava
próximo da ala oeste, — mas ainda não tinha estado diante da imponente
fachada. Todo o lugar tinha sido construído em um estilo conhecido como
revivalismo gótico, anos depois do período que Bren chamava de Tempos
Sombrios. O Preparatório Uni parecia mais um imenso mausoléu, com alguns
toques inteiramente destoantes de arte moderna ao redor da construção, que me
lembraram fungos. Eu meio que esperava que Nosferatus saltasse da porta mais
próxima e pulasse no meu pescoço. As pessoas devem ter ficado realmente
deprimidas durante os Tempos Sombrios.



Arrastei-me pelos degraus da masmorra e cruzei o saguão de entrada que
levava até o pátio central, onde Bren tinha meio que prometido que iria me
encontrar. Supus que o interior da escola seria bem mais agradável. As janelas


arqueadas permitiam, de fato, que a luz do sol penetrasse. Havia dúzias de
alunos andando de um lado para o outro, supertablets fechados sob o braço,
gargalhando e rindo como se não estivessem em uma cripta. Mas o ritmo e o
sotaque deles eram levemente diferentes e comecei a ouvir coisas não faziam
sentido. "Noide, isso é das alturas!" "Seu escangalhado!"

“Já peguei!”



Estremeci.



— Bem-vinda ao Preparatório Uni — Bren disse atrás de mim. Dei meia-
volta. Senti-me tão aliviada em vê-lo que quase chorei. — Desculpe, mas isso é
tudo — ele disse, apontando tristemente para o pátio. O pátio central era um tipo
de arena de cimento, no centro da escola, que tinha pretensões de se passar por
um jardim com árvores cansadas, balançando tristemente, plantadas em vasos.
Bren começou a apontar as coisas para mim tão rápido que quase perdi o
equilíbrio. — Naquela direção ficam as quadras gravitacionais onde são
disputados os jogos interplanetários. Elas têm as gravidades de Marte, da Lua, de
Titã, Calisto e Europa1. Está vendo aquelas meninas logo adiante? — Ele apontou
para um grupo de cinco meninas atarracadas, retas e robustas como tartarugas
que, ao mesmo tempo, moviam-se tão graciosamente quanto bailarinas. — Elas
são do time de vôlei do Uni. Elas se acham das alturas. Quase todas são internas
e elas são unha e carne. Irrite uma delas e você não vai sobreviver à próxima aula
de educação física, além de, provavelmente, ter a maioria de seus trabalhos de
classe hackeados. Ele me virou para outra direção.

1 N.T.: Europe também é o nome dado a uma das quatro luas de Júpiter.



— Logo adiante estão os alunos bolsistas. — Um grupo de estudantes
conversava sob uma das árvores tristonhas. Para mim eles pareciam garotos
perfeitamente comuns. — Eles costumam ficar juntos para se protegerem. São


inofensivos e até que são legais, mas não ande com eles ou você será rotulada
para sempre. E isso nunca mais terá fim. Sei que é ruim, mas é assim que as
coisas são.



Ele apontou para um corredor estreito que saía do pátio e seguia até um
par de prédios que se erguiam nos fundos da escola como se fossem guarda-
costas. Assim como guarda-costas, eles eram atarracados e volumosos se
comparados à opulência do revivalismo gótico característico da escola, apesar de
eu ter detectado alguns traços da mesma arquitetura sombria.



— Aqueles são os dormitórios dos internos. A segurança é insana. Todos
passam por um escâner no momento em que pisam no prédio, e as regras são
muito rígidas no que diz respeito a meninos e meninas. Entre sempre
acompanhada de um interno ou você receberá uma advertência. Existe certa
rivalidade entre os alunos internos e os que não são internos. Não é nada com
que tenha de se preocupar, mas ocorreram alguns vandalismos, por isso não
deixe que as pessoas imaginem que você está disposta a cometer tal ato.



Ele deu mais uma olhada ao redor do pátio.



— Não vejo mais nada com que você tenha de se preocupar. Pegou tudo? —
achei que ele quis dizer "você entendeu?", mas ainda não tinha me familiarizado
muito bem com as novas gírias. Ensaiei um aceno, o que pareceu funcionar. —
Preciso ir para a aula, você já tem o seu horário?

— Não — respondi. Ele tinha feito tudo tão rapidamente e de um modo tão
atordoante que eu estava começando a desconfiar que ele estava querendo se




livrar de mim. Essa ideia me deixou triste. Bren era o mais perto que eu
tinha de um amigo naquele novo mundo insano. — Onde fica a secretaria? —
perguntei.



Ele apontou para uma pesada porta, logo atrás de mim.



— Entre por aquela porta e vire à direita. Você quer que eu lhe mostre o
caminho?



Sorri. Mesmo que estivesse sob algum tipo de coação, ele estava cuidando
muito bem de mim.



— Não. Acho que posso me virar sozinha. Não se atrase.



— Certo. A gente se vê na hora do almoço, então.



Deixei escapar um suspiro de alívio, um pouco trêmulo.



— Obrigada. — Sempre que eu começava em uma escola nova era um
verdadeiro inferno tentar arrumar um lugar para me sentar na hora do almoço.
Mas, com Bren tomando conta de mim, sabia que tudo daria certo.



Para minha surpresa, o Sr. Guillory estava na secretaria esperando por
mim.



— Ah! Rose, eu estava justamente conversando com sua orientadora aqui,
só para me certificar de que você irá estudar as matérias adequadas. Estamos
colocando você na aula de história do segundo ano, pois eles vão começar a


estudar o século em que você... ah... parou. Achei que seria interessante você
saber um pouco sobre o que perdeu.



Engoli em seco. Não estava certa se queria saber o que eu tinha perdido.



— Obrigada, Sr. Guillory.



— Por favor, pode me chamar de Reggie — ele disse, mais uma vez. — Bem,
creio que você conseguirá acompanhar a matemática do ponto em que parou,
ainda tem inglês e mandarim, certo? Achei o seu... é... o seu último boletim
escolar nos arquivos da prefeitura. Você estava estudando mandarim, não
estava?



Eu estava estudando mandarim porque meus pais achavam que seria bom
para mim, uma vez que era a segunda língua comercial mais usada, depois do
inglês. Eles me matricularam nas aulas de mandarim em todas as escolas por
onde passei. Eu não era muito boa no idioma.



— Sim, obrigada.



— Eu estava justamente discutindo com a Srta. Legree sobre em quais
matérias científicas matricular você. O que acha de psicologia social, que está
ligada à astrofísica básica?



Havia mesmo uma coisa chamada astro física 'básica"?



— Está ótimo — eu disse, apanhando uma cópia do meu horário das mãos
da mulher chamada Srta. Legree, apesar de saber que tudo iria aparecer no meu
supertablet.




— Imaginei que astrofísica poderia ser útil para você, considerando o
império que você vai herdar, não acha? — Guillory e a Srta. Legree riram, e eu
forcei um sorriso para ser gentil.



— Vou acompanhá-la à sua primeira aula — Guillory disse, pousando a
mão dourada sobre o meu ombro antes de arrancar o horário da minha mão. —
Sua primeira aula será psicologia social. Acho que a sala é por ali.



A maioria dos alunos estava correndo pelos corredores, com receio de se
atrasar para a aula, mas, quando me viram caminhando com o Sr. Guillory,
pareceu que tinham trombado contra uma parede de tijolos. Se havia alguma
dúvida sobre quem eu era, a presença do Sr. Guillory aniquilou-a. Criei um mar
de silêncio por onde passei, com todos os olhares fixos em mim. Pude ouvir as
pessoas murmurando às minhas costas.



— Aquela que é a Bela Adormecida?



— Noide, ela não é tão bela assim!



— Ouvi dizer que ela se colocou em estase porque queria preservar sua
longevidade.



— Acho que ela é uma fraude. A UniCorp quer um testa de ferro.



— Olhe para ela com o Guillory, bajuladora.



— Já é um maldito fantoche!




Mantive a cabeça baixa, recusando-me a olhar nos olhos de qualquer
pessoa que estivesse me encarando. Quaisquer esperanças que eu tinha de me
enturmar foram esmaga das pela postura arrogante de Guillory. Ele, é claro,
continuou caminhando, absorto.



— Chegamos — disse o Sr. Guillory. — Você gostaria que eu falasse com a
professora e a ajudasse a encontrar um lugar?



— Não, está tudo bem — iniciei, mas Guillory seguiu direto na direção da
professora, sua pele dourada reluzindo de eficiência.



— Esta é Rose Fitzroy Creio que a senhora já deve ter sido brevemente
informada sobre o tratamento que ela merece — ele disse, de um modo discreto.



Fiquei vermelha e tentei me esconder atrás de meus cabelos. Desejei não
ser loira e não ter uma tez tão alva que, com a maior facilidade, ficava rubra
como uma rosa, cujo nome servira de inspiração para o meu. Minha pele era
praticamente translúcida. Papai costumava me chamar de "minha pequena rosa".
Os alunos, que já estavam sentados, ficaram olhando diretamente para mim,
alguns admirados, outros incapazes de esconder a curiosidade, uns poucos com
aversão ostensiva. Desejei poder desaparecer.



Quando o Sr. Guillory finalmente se foi (levando com ele uma cópia do meu
horário), tentei prestar atenção na aula. Se tivessem me consultado, eu teria
pedido a eles que me colocassem junto dos calouros e que me arrumassem uma
dúzia de professores particulares. Mas isso daria muito trabalho. Se a Dra. Bija
realmente falara com a orientadora da escola, conforme ela disse que faria, suas
recomendações tinham sido ignoradas por completo. Passado um tempo, desisti e
comecei a desenhar um jardim no meu supertablet. Era o jardim de um de meus


sonhos estases, repleto de árvores com galhos retorcidos e horizontes derretendo.
Mas a tela do computador não se comparava a um bloco de desenho. Apesar da
imensa variedade de cores e tons disponíveis, o desenho não me pareceu uma
obra de arte de verdade.



Quando o sinal tocou, indicando o término da aula, copiei por obrigação a
lição de casa, mas eu sabia que não conseguiria ir muito longe com aquilo.



Na aula de literatura inglesa, iríamos estudar os autores da virada do
século, conteúdo que o Sr. Guillory imaginou que seria coisa do passado para
mim. Não tive coragem de dizer para a professora que eu nunca tinha ouvido
falar de metade dos autores e que nunca tinha lido um único livro que constava
na lista. Os autores que eles consideravam clássicos provavelmente não
passavam de autores obscuros quando surgiram.



A aula de mandarim pareceu grego para mim.



Tive educação física pouco antes do almoço e fiquei horrorizada quando
descobri que faríamos uma trilha. Corri quase vinte metros antes de o professor
colocar-me de fora. Eu estava ofegando e tremendo, e teria vomitado. Mas eu
comera tão pouco que tudo o que fiz foi sentir ânsia. A fadiga estase ainda
dominava a maioria das minhas funções motoras. O professor disse que poderia
tentar arrumar uma dispensa da educação física para aquele semestre.



— Isso... não... é necessário... — ofeguei.



— É necessário sim — ele disse. — Ordens do Sr. Guillory. É minha
obrigação garantir que você esteja sendo bem tratada.




Fiquei extremamente mortificada quando descobri que, depois de ter me
deixado na aula de psicologia social, o Sr. Guillory tinha dado uma passadinha
na classe de cada um dos professores e interrompido suas aulas para informá-los
sobre o tratamento especial que eu merecia receber. Se até então a maioria dos
alunos ainda não estava com raiva de mim, agora com certeza todos estariam. Eu
pediria para a Dra. Bija verificar se minhas sessões de fisioterapia poderiam
contar como aulas de educação física. Eu poderia fazer alguns exercícios
recomendados pelos médicos, enquanto os demais alunos corriam ou jogavam
basquete.



Quando finalmente fiquei livre, corri para a cafeteria na esperança de
encontrar Bren, mas fui vencida por uma multidão de corpos. Encontrar um
garoto bonito em uma escola com dois mil membros da elite era quase impossível.
Entrei na fila e cuidadosamente escolhi os alimentos mais comuns.



Durante quase o dia todo as pessoas abriram caminho para eu passar
como Moisés fez com o Mar Vermelho; suas expressões variavam de curiosidade
egoísta a verdadeira aversão, e tive de me acostumar a ser o elefante branco para
o qual todos olhavam, mas para quem nunca dirigiam a palavra. Mas, quando saí
da fila, fui abordada por um garoto bem-vestido, que me pareceu uma versão
asiática do Sr. Guillory.



— Então você é a Bela Adormecida — ele disse com um tom bajulador. —
Meu nome é Soun Ling. É um prazer conhecê-la. — Seu tom sugeriu que o oposto
era verdadeiro. Mesmo assim, ele gentilmente estendeu a mão macia para mim.
Eu não sabia ao certo como conseguiria trocar um aperto de mão sem deixar cair
a minha bandeja e o supertablet, assim, acabei deixando a mão dele suspensa no
ar. Ele ignorou o desprezo. — Você gostaria de se sentar conosco?




Um grupinho, composto por meninas e meninos que estava atrás dele, riu.
Eu não sabia ao certo do que eles estavam rindo, mas eles fizeram com que me
sentisse extremamente desconfortável. Eu já tinha sido "a nova garota da escola"
por vezes o suficiente para saber bem que as coisas poderiam se tornar
extremamente desagradáveis, e muito rápido, caso eu me aliasse ao grupo errado
de pessoas. Ou você se livra dos outros ou, mais frequentemente, acaba virando
alvo de algum tipo de conspiração terrível. Era por isso que eu valorizava tanto a
minha amizade com Xavier. Eu não sabia ao certo por que, mas sabia, sem sobra
de dúvida, que Soun Ling não era exatamente a pessoa certa a quem me ligar.
Permaneci parada sem saber o que fazer, tentando imaginar uma maneira de sair
daquela sem me tornar inimiga de Soun, ou de qualquer outra pessoa.



— Rose!



Meu nome se destacou entre o murmurinho da cafeteria e virei a cabeça na
direção do meu salvador. A mão de Bren se agitava sobre a cabeça dos alunos e
suspirei aliviada.



— Meu amigo está esperando por mim — eu disse. Eu não tinha certeza se
Bren me considerava sua amiga, mas acho que era algo bem próximo disso.



Soun Ling lançou um olhar penetrante na direção de Bren.



— Já está bajulando a diretoria, é? Eu deveria ter imaginado. — Ele me deu
as costas.



Engoli em seco, aliviada, mas ainda nervosa. O que ele quis dizer?




Bren tinha guardado um lugar na mesa dele. Quando me aproximei, ele
tirou seu supertablet do lugar e apontou para a cadeira vaga.



— Obrigada — eu disse, ocupando o assento.



— Não foi nada. — Ele apontou para cada uma das pessoas que estavam
sentadas à mesa. — Esta é Molly, Anastásia, Jamal, Wilhelm, Nabiki e Otto.
Pessoal, esta é a Rose.



Eles olharam para mim confusos, como se não fizessem a menor ideia de
por que Bren tinha me arrastado para a mesa deles, mas não iam discutir se ele
achava que era a coisa certa a ser feita.



— Oi — eles disseram quase em coro e, parecendo ter se esquecido de que
eu estava lá, continuaram sua conversa. Eu esperava não ter de lembrar os
nomes de todos eles. Eram bem diferentes uns dos outros, mas todos tinham
cortes de cabelo que pareciam ter custado caro, e os telefones celulares que
carregavam pendurados ao pescoço eram de primeira. Seus supertablets também
eram top de linha — reconheci o mesmo logo tipo que havia na tela do meu
luxuoso tablet.



Fiquei calada, olhando para a comida. Eu ainda não conseguia comer sem
sentir enjoo. O médico me disse que provavelmente levaria alguns anos para que
eu voltasse a me alimentar normalmente. Os outros conversavam, fazendo piadas
e se provocando. Normalmente, no meu primeiro dia de aula em uma escola nova,
as pessoas me faziam perguntas e eu respondia. Mas, dessa vez, todas as
perguntas foram respondidas para os repórteres, e eles tinham ouvido as
repostas nos noticiários. Por conta disso, aparentemente, não tinham nada a me
dizer, e eu não sabia o que dizer a eles.




Depois de eu ter beliscado um pouco a comida em silêncio, Bren limpou a
garganta.



— E aí, como está sendo o seu dia?



Encolhi os ombros.



—Tudo bem.



— Vi você conversando com os chacais — ele disse.



— Chacais?



— Sim, Soun e sua gangue. Um bando de escangalhados. Os pais deles são
o que chamamos de "alpinistas sociais". Eles gostam de se misturar com as
pessoas ricas de verdade e ficam bajulando-as para ganhar presentes. Desculpe,
eu deveria ter lhe avisado sobre eles, nesta manhã.



— Está tudo bem — sussurrei.



— Não, pensei que você estaria a salvo. Não estamos na mesma série que
eles. Subestimei sua fama.



Balancei a cabeça.



— Não sou famosa.




— Eu não disse que você é um ídolo ou algo assim, mas todo mundo sabe
quem é você.



Suspirei, sem conseguir olhar para a bandeja praticamente intocada.



Senti náuseas.



— Bren? Soun me disse...que eu já estava bajulando a diretoria. O que ele
quis dizer com isso?



Bren sorriu, meio constrangido.



— Meu avô está apenas um degrau abaixo de Guillory. Ele é diretor-
executivo, quase um conselheiro, realmente muito poderoso. Meu pai faz parte do
Conselho, está uns quatro degraus abaixo, e minha mãe é a chefe de pesquisa do
Departamento Central de Dados. — Ele, então, começou a apontar para os
alunos ao redor da mesa. Percebi que a maioria tinha parado de falar no
momento em que Bren abriu a boca. Aquilo me lembrou um pouco o modo como
as pessoas reverenciavam meu pai nos piquiniques da empresa. Fiquei
imaginando se Bren fazia ideia do poder que tinha, ou se percebia. — O pai da
Nabiki é o chefe e fundador do Departamento de Pesquisa em Neurolinguística.



— Minha mãe é vice-presidente da Agência Comercial de Pesquisa e
Desenvolvimento Humano — disse um dos meninos, um loiro nórdico e alto com
um forte sotaque alemão. Ele só podia ser Wilhelm. — Meu pai mora na
Alemanha, e controla a Uni de lá.




— Meus pais são chefes da equipe responsável pelo controle de qualidade
da agricultura bioquímica de Titã — disse a menina chamada Anastácia. Seu
sotaque era tão russo que mal pude compreender.



— E Jamal é dono de metade da Europa — disse a impetuosa ruivinha
sardenta.



Jamal inclinou a cabeça de cabelos escuros para trás e sorriu.



— Sou dono de apenas um terço.



Engoli em seco e perguntei à ruivinha:



— E quanto a você?



— Meu nome é Molly — disse ela, lembrando-me, e sorriu por detrás de
suas sardas. — Sou aluna bolsista. Meus pais fizeram parte do primeiro grupo de
colonizadores de Callisto, o que faz de mim meio que membro da realeza por aqui,
mas, no fundo, não passo de uma pessoa bem-vista na Terra.



— Não se deixe enganar por ela — disse Bren. — Ela tem uma mente
brilhante para economia e vai modificar a estrutura financeira de todo o planeta
assim que se formar. Meu avô já está pensando em convidá-la para as reuniões
do Conselho.



Senti-me um pouco desconfortável.



— Não tenho nada de especial — sussurrei.




Jamal e Wilhelm riram ao mesmo tempo. Alto como uma montanha,
Wilhelm teve de se inclinar para frente para poder olhar dentro dos meus olhos



— Você é dona de cada um de nós, liebchen — ele disse carinhosamente.



Eu sabia que tinha enrubescido outra vez, mas sussurrei.



— Não sou não.



— De certo modo, sim — disse Jamal. — Particularmente... — Mas, seja lá
o que ele tinha para dizer, foi interrompido por Nabiki, que o cutucou nas
costelas. Jamal lançou um olhar de relance na direção da única pessoa do grupo
que ainda não falara, e em seguida calou-se. Busquei entre os nomes que Bren
tinha dito. Otto, era isso.



Não dava para ver o rosto de Otto. Ele tinha uma vasta e longa cabeleira
escura, e não costumava puxá-la para trás, como os outros garotos. Ele também
não tinha erguido os olhos de seu prato.



— Qual é a família do Otto? — perguntei.



Um silêncio que beirava o desconforto se seguiu. Não entendi até Otto
finalmente olhar para mim. Gelei. Eu imaginara que ele fosse asiático ou
caucasiano. Mas ele não era nenhum dos dois. Seus olhos eram amarelos e sua
pele, depois que pude olhar mais de perto, era quase azul. Ele era bonito, tinha
um nariz marcante e traços delicados. Mas sua coloração simplesmente não era
humana.




— Otto não fala — disse Nabiki. Ela sorriu para Otto, cujo rosto
permaneceu totalmente inexpressivo. Ela tocou em seu ombro de um modo que
indicou que o relacionamento entre eles não era de todo platônico. — Ele meio
que não precisa.



— O-o que ele é? — depois que falei, percebi que tinha sido grosseira, mas
não pude evitar. Ele me deixou nervosa.



— Ele é geneticamente modificado a partir de DNA alienígena encontrado
em Europa — disse Anastásia. — Tecnicamente, você é dona dele. E da tecnologia
que o criou.



Levou um tempo para que as palavras fizessem sentindo. O sotaque dela
era muito carregado e as palavras pareciam impossíveis.



— Eu?



Bren pareceu irritado.



— Foi um dos projetos de estimação do Guillory. A maioria das
modificações genéticas foi extinta pouco depois dos Tempos Sombrios, mas
Guillory tem tentado anular as restrições há tempos. Otto é um das centenas de
embriões humanos que foram implantados com o micróbio de DNA da Europa.
Somente trinta e quatro deles sobreviveram à gestação completa e apenas uma
dúzia passou da puberdade, dentre eles, somente quatro parecem ter a
mentalidade de um adulto. A mortandade foi muito alta. Otto é um dos que mais
deram certo, mas ele não consegue falar.



— Por que não?




Otto abriu a boca, com um meio sorriso nos cantos dos lábios. Um
estranho barulho saiu de sua boca, como se alguém estivesse gritando por não
conseguir respirar. Era muito discreto e soou mais como um golfinho do que
como um humano.



Tive um sobressalto e todos riram.



— Ele adora provocar as pessoas — Nabiki disse. Ela o acariciou. — Otto,
seja bonzinho. Ela é quase tão esquisita quanto você. — Otto pareceu pensar
durante um longo momento, então, lentamente levantou uma mão de dedos
longos e azulados. Fiquei surpresa com o gesto, Nabiki pareceu incomodada. —
Vá em frente, pode tocar! — ela resmungou.



Com todo cuidado, pousei meus dedos na palma da mão dele e, com toda
delicadeza, os dedos de Otto se fecharam ao redor da minha mão.



— Boa tarde, princesa — pensei em uma voz que não era a minha. — Meu
nome é Otto Sextus. — O primeiro nome que chegou até mim foi o número oitenta
e seis e, imediatamente, eu soube, não sei como, que ele e os outros de sua
espécie, por alguma razão, tinham recebido números em vez de nomes. Um
pensamento não muito claro veio até mim, era quase como se, na ausência de
uma definição melhor, fosse inaudível. "Trate-nos bem, trate-nos bem, trate-nos
bem." Era um apelo, inesperado, um zumbido que sussurrava por trás de um
pensamento. Por uma fração de segundo, vi Otto e mais três adolescentes de pele
azul à frente de um cenário composto por meia dúzia de sombras de figuras
indefinidas.




Ofeguei. Eu tinha pensado aquelas palavras e imagens, mas elas não
tinham vindo de mim.



— Psiu — foi a palavra que pensei, mas a sensação ligada a ela soou mais
como "não se preocupe, não precisa ter medo".



Meus pensamentos pareceram vagar por um momento, até que eu já não
tinha mais certeza sobre o que estava pensando.



— Seu coração está confuso. Sua experiência... foi interrompida...



Foi a primeira expressão verdadeira que vi passando de relance pela face
peculiar de Otto.



— Sinto muito, princesa — ele pensou para mim. — Seus problemas são
muito maiores do que os meus.



Ele puxou a mão rapidamente e permaneceu me encarando por um
momento antes de olhar de volta para sua bandeja.



Todos olhavam para mim como se tivessem acabado de ver um alienígena.
O que era irônico, considerando as circunstâncias. Os olhos de Nabiki soltavam
faíscas.



— O que você disse para ele? — ela perguntou.



Eu estava tremendo por causa da experiência. Mal compreendera metade
do que tinha acabado de acontecer.




— Eu não disse nada.



Nabiki franziu o cenho e, então, gentilmente pousou a mão de volta no
pescoço de Otto. Ele suspirou e a preocupação pareceu desaparecer um pouco de
seus olhos. Nabiki franziu a testa novamente mas, dessa vez, parecia mais
aborrecida.



— Sinto muito — disse ela. — Pensei que você tivesse sido grosseira com
ele.



Balancei a cabeça.



— Jamais — falei com sinceridade. A condição dele me causava horror, mas
não ele.



Tentei encontrar as palavras certas para dizer.



— Se o que vocês disseram for verdade e, de algum modo, eu herdar você e
sua família... — Hesitei um momento e respirei. Era um pensamento tão
horrendo, parecia escravidão humana. — Juro para você que, no momento em
que colocar as mãos na minha herança, eu irei, sei lá, dar você a você mesmo ou
algo assim. Assinarei os seus direitos de liberdade. Não sei como isso funciona.
Mas eu realmente sinto muito.



Nabiki sorriu.



— Ele agradeceu. A culpa não é sua. — Ela hesitou, suas sobrancelhas se
contraíram. — Ele disse que sente muito, mas, ah, se você não se importar, ele
planeja não tocar em você novamente. — Ela se virou para Otto, confusa. — É


mesmo? — Nabiki perguntou. Otto ergueu levemente a mão, o que pareceu tanto
um sinal de indiferença quanto para que ela continuasse.



Nabiki jogou a cabeça para trás.



— Certo. — Ela se voltou para mim. — Ele disse que existem muitas...
"lacunas" na sua mente. Muito espaço. Ele quase se perdeu. — Ela encolheu os
ombros. — Sinto muito, o que ele pensa nem sempre dá para ser traduzido com
perfeição. O que ele quis dizer com "lacunas"?



Encolhi os ombros.



— Não sei — respondi, mas fiquei com medo do que fiz. A estase tinha
causado uma série de interrupções na minha vida. Encarei Nabiki. Ela parecia
uma garota comum, descendente de japoneses, com brincos caros, corte de
cabelo da moda, mas, qualquer que fosse o relacionamento que ela tinha com
esse estranho ser semi alienígena, parecia ser algo profundo para ela. — Vocês
dois estão...?



— Juntos? — Nabiki disse, deixando de lado o embaraço. — Bem, sim.



Otto virou a cabeça deliberadamente para ela e lançou-lhe seu quase
sorriso.



— O que você? — percebi que Otto não responderia. — O que ele está
fazendo quando... faz aquilo?



Nabiki deu de ombros.




— Ninguém sabe ao certo. De algum modo, ele é capaz de manipular os
impulsos eletrônicos de seu cérebro para que assim você pense o que ele quer.
Ele não pode controlar as suas ações ou os seus sentimentos ou qualquer outra
coisa. Ele só consegue atingir a superfície dos pensamentos. Aparentemente
aqueles pequenos micróbios da Europa tinham algum tipo de comunicação
rudimentar via impulso elétrico, provavelmente para se reproduzirem. O Otto
herdou isso.



— Todos na sua família são capazes de fazer isso? — perguntei.



Otto balançou a cabeça de leve, então, fitou Nabiki, que pegou na sua mão
novamente.



— Somente um dos... — Ela também pareceu achar o tema muito difícil. —
Dos quatro — ela terminou. — E mais três dos organismos simples, mas eles não
conseguem pensar com muita clareza, por isso essa habilidade é completamente
inútil para eles. — Ela olhou para a face inexpressiva de Otto. — O que corta o
coração dele.



— Certo, agora chega de drama — disse Bren. — Por falar nisso, Ani, você
vai fazer aula de teatro este ano?



Eu ainda estava bastante trêmula, por causa do meu encontro com Otto,
para conseguir me concentrar. Tentei mordiscar mais um pouco da minha
refeição antes do sinal tocar e me enviar de volta para a classe. Enquanto nos
levantávamos da mesa, peguei Otto olhando fixamente para mim. Tive a
assustadora sensação de que ele olhava através de mim, como se eu fosse uma
criatura mágica feita de vidro. Ele ficou sem jeito quando percebeu que eu estava


olhando para ele e se apressou para alcançar Nabiki. Ele se movia com uma
graciosidade notável.



O que ele vira em minha mente que o assustara tanto?




















































5





A MINHA PRIMEIRA TARDE NA ESCOLA NÃO FOI MELHOR DO QUE A MANHÃ.

Astrofísica básica podia muito bem se chamar teorias avançadas e ser
ministrada no terceiro ano, de tão pouco sentido que fazia para mim. Uma hora
depois arrastei-me para a aula de matemática e, mais uma hora depois saí
correndo o mais rápido que pude, sem conseguir entender nada da aula.



Então, veio a aula de história. Minha professora iniciou um resumo sobre
os primeiros vinte anos que eu havia perdido e, de repente, fiquei muito feliz por
ter estado em estase durante esse período.



Os Tempos Sombrios ocorreram menos de dois anos depois de eu entrar em
estase. Eu achava que se tratasse de algum tipo de crise econômica, e até certo
ponto, eu estava certa. Mas os maiores problemas não estavam relacionados ao
dinheiro.



Passei a aula amarrando os fatos que a Srta. Holland foi narrando; as
estatísticas populacionais, mudanças climáticas e variações econômicas;
acontecimentos da minha prolongada infância. O quadro era repulsivo e não
pude evitar, mas senti que eu, ou pelo menos a estrutura da alta sociedade da
qual meus pais faziam parte, tinha sido profundamente responsável por muito do
que aconteceu. Claro que o objetivo da aula era alertar os filhos dos altos
escalões a evitar os erros do passado. Mas, para mim, era o meu presente, eram


os erros da minha geração. Revolta e culpa me golpearam durante a hora que se
seguiu.



O primeiro fator que desencadeou os Tempos Sombrios foi o aumento
populacional, que vinha acontecendo havia duzentos anos. Eu vi isso. Quando eu
era jovem, não havia espaço para ninguém. Até mesmo os ricos tiveram de
abandonar o conceito de amplas propriedades e se acomodar atrás dos portões
controlados dos condomínios, como a ComUnidade e o Condomínio Unicórnio.



O segundo foi um boom econômico, que resultou em um imenso abismo
entre ricos e pobres. Também testemunhei isso. Os pobres passavam fome
enquanto minha família comprava casacos de pele para mim quando eu tinha
três anos, e ainda adquiriram um tubo de estase de luxo, que valia o mesmo que
todo o Condomínio Unicórnio.



Alguns anos antes de eu entrar em estase tivemos algumas estações com
tempo ruim; essa mudança climática foi desencadeada por alguns vulcões que
entraram em atividade. Esse fator não teve nenhum culpado, de fato, mas houve
escassez de alimentos, o que resultou em muitas mortes, porém me recordo de
que a maioria aconteceu nos países marginalizados. Portanto, não afetou a nossa
família.



O primeiro sinal de que algo estava errado foi o ressurgimento da
tuberculose. O surto iniciou-se nas prisões, onde a saúde dos prisioneiros não
era cuidadosamente monitorada. Uma cepa resistente se desenvolveu em uma
prisão na região Sul, a isso se somou o grande número de transferências de
prisioneiros e os altos índices de reincidência; assim, não demorou muito para
que a maioria das prisões de metade dos países do mundo estivesse
contaminada. Países com altos índices de prisioneiros eram os mais vulneráveis.


A doença não foi detectada antes que muitos prisioneiros já tivessem sido soltos e
se misturado à população comum, sem tratamento médico adequado.



O surto se espalhou. Recém-nascidos, pobres desnutridos, qualquer um
com baixa imunidade estava suscetível. A eles se somavam os portadores do vírus
HIV que não tinham recebido a vacina a tempo, o que significava metade da
África. Os ricos também foram afetados, dentre eles um grupo formado por
milhões de pessoas que tinham recebido promessas de vida longa ao ter seus
órgãos regenerados a partir de células-tronco e transplantes. A tuberculose se
espalhou livremente durante alguns anos antes que alguém percebesse o que
estava acontecendo. A maioria das pessoas com tosse nem notou que se tratava
de algo sério e alguns dos portadores não apresentavam nenhum sintoma.



Quando fui colocada em estase, eles estavam impondo a obrigatoriedade de
instalação de uma série de ambulatórios para diagnóstico da tuberculose em todo
o planeta. A tuberculose parecia estar sob controle quando a próxima peste
surgiu.



Aquilo realmente foi a próxima peste e não apenas em linguagem figurada.
A peste bubônica ressurgiu em Nova York dois anos depois de eu ter entrado em
estase. Eu ainda estava tomada de horror devido às mortes por tuberculose na
África quando a Srta. Holland falou sobre os efeitos da praga seguinte, e juro que
meu coração parou. Quando o sinal bateu, a Srta. Holland disse que o restante
do resumo dos Tempos Sombrios podia esperar até a próxima aula.



Eu não estava ansiosa por isso.




Temia ouvir o que acontecera com aqueles que eu amava. Minha mãe e
meu pai, meu querido Xavier. O fato de saber que eles estavam mortos era uma
coisa. Saber os detalhes era de virar o estômago.



Felizmente, as aulas terminaram. Subi na limobarca que o Sr. Guillory
providenciara para mim. Eu preferia ir para a escola com Bren, que apanhava um
rasante solar público junto com outros alunos, mas não quis fazer pouco das
ofertas do Sr. Guillory. Afinal de contas, ele era meu testamenteiro e devia saber
o que era melhor para mim.



Levei alguns minutos para perceber que a limobarca tinha estacionado ao
lado do meu prédio. O passeio do hovercraft foi tão suave que nem notei que
havia parado.



Eu realmente gostava desses novos barcos flutuantes. Contaram-me que a
tecnologia tinha apenas trinta anos, mas já havia substituído quase todos os
automóveis do planeta. Eles tinham sido projetados para deslizar sobre a água
apoiados em um colchão de ar, e inicialmente foram usados em áreas
pantanosas, mas as pessoas gostaram tanto que continuaram a usá-los sobre a
terra. O veículo poupava as estradas do desgaste e, sem o atrito e a resistência
para sobrecarregar o motor, era barato e fácil recarregá-lo com energia solar.



O curioso é que eles eram de uma empresa que a UniCorp não controlava.
A UniCorp tentou comprá-los, mas a bateria solar que alimentava os veículos era
de domínio público. Eles tinham perdido a patente durante os Tempos Sombrios,
para que áreas isoladas pudessem criar a sua própria fonte de energia renovável.
De acordo com Guillory, as tentativas de usar a NeoFusion para abastecer os
veículos se mostraram muito perigosas. As baterias NeoFusion se tornavam
extremamente explosivas quando sua caixa protetora sofria alguma avaria.


Apesar de não serem radioativas ou propriamente mortais (a NeoFusion era uma
"alternativa, limpa e segura" de energia para quase todas as necessidades), caso
sofressem um acidente essas baterias quase sempre acabavam pegando fogo,
devido à grande quantidade de calor desprendido. O uso de baterias solares nos
hovercrafts tornava-os infinitamente mais seguros e eles eram tão práticos e
elegantes que a UniCorp não conseguiu sepultá-los com competidores
alternativos. Desse modo, ironicamente, eles ficaram livres das intrigas da
UniCorp.



Mas esses veículos tinham uma falha, apesar da potência e de poderem
transitar sobre qualquer coisa. A comissão de transporte teve de criar barreiras
magnéticas, a fim de evitar que os barcos saíssem das vias e passassem por cima
das áreas reservadas para os pedestres. Agora, todas as estradas contavam com
guias magnéticas vermelhas e amarelas e, sobre elas, a UniCorp tinha o
monopólio. Guillory até fizera uma brincadeira quando me explicou tudo isso, ele
disse: "Se você não pode se encaixar a eles, encaixote-os". A UniCorp controlava
todos os seus concorrentes, de um jeito ou de outro.



Arrastei-me para fora do barco, sobre a guia vermelha e amarela. Minha
limobarca acionou o seu colchão de ar e seguiu para a garagem. Caminhei
lentamente pelo corredor que levava à porta do meu apartamento, que um dia me
foi tão familiar. Encostei a mão no antiquado sistema de leitura e a porta se
abriu. Fiquei pensando se as impressões digitais de Xavier ainda podiam abrir a
porta do meu apartamento, como antes de eu entrar em estase. Aparentemente, a
maioria das portas agora se abria através da leitura da retina.



Quando abri a porta, ouvi um barulho. Patty e Barry só chegavam depois
das cinco: os dois trabalhavam no departamento de contabilidade no Edifício Uni.
Engoli em seco.




— Olá? — chamei, mas não houve resposta. Os treinamentos para
vigilância constante e a paranoia dos meus pais sussurraram de volta na minha
mente e dei uma olhada no corredor, pronta para correr na direção oposta, caso o
barulho se mostrasse uma ameaça.



Não era uma ameaça. Amarrada à maçaneta da porta do meu estúdio
encontrei uma correia que prendia um cachorro. Mas não era um cachorro
qualquer. Era um galgo afegão, alto e com o pelo sedoso do mesmo tom loiro
suave dos meus cabelos. Ele se levantou quando me viu, abanando o rabo. Caí de
joelhos, envolvendo meus braços ao redor do seu corpo. Com um ganido nobre, o
cão empurrou seu longo focinho contra as minhas bochechas e começou a
lamber meu rosto.



Meus olhos enfraquecidos pela estase se encheram de lágrimas, dessa vez
de alegria. Foi a melhor sensação do mundo chegar em casa e encontrar alguém
fofinho e amigável, alguém para me amar incondicionalmente. E não era apenas
um cão. Era um galgo afegão, o príncipe dos cães, o humano de quatro patas!
Entrelacei os dedos entre seus pelos macios e encontrei um papel preso com um
cordão à coleira. Peguei o papel, enxugando as lágrimas para poder ler. "PARA
ROSE, PELO SEU PRIMEIRO DIA DE AULA."



Solucei. O cachorro provavelmente fora um presente do Sr. Guillory. Ou
talvez Patty e Barry tinham mandado entregá-la. A Sra. Sabah? Eu não sabia. E
isso não importava.



— Você é lindo! — eu disse ao galgo. — É o cachorro mais lindo do mundo.
Por isso vou lhe dar o nome mais lindo, Zavier.




Zavier fungou e lambeu meu rosto novamente. A escola nem parecia mais
uma provação, não, contanto que eu pudesse ter o meu Zavier esperando por
mim em casa.



Eu sempre quis ter um cachorro, desde que eu era criança. O mais perto
que tive disso não era meu. Era do Xavier, e nem era um cachorro de verdade.



* * *



Eu tinha catorze anos e Xavier era meu melhor amigo. Ele me convidara
para ir até seu apartamento, para ver um brinquedo novo.



O brinquedo era uma caixinha preta. Assemelhava-se um pouco a um
celular. Não me pareceu ser algo capaz de despertar tanto brilho e entusiasmo
nos olhos verdes de Xavier, mas ele o mostrava com tanto orgulho, como se fosse
o portal para a iluminação.



— O que é isso?



Xavier apertou um botão em um dos lados e, de repente, um doberman
apareceu no meio da sala.



— Aqui, garoto! — Xavier disse, estalando os dedos. O cachorro, então,
caminhou obediente em sua direção e arfou, a cabeça inclinada para o lado.



— Ele não é ótimo? — Xavier falou. — É um cão holográfico. Havia muitos
desses na exposição de computadores. Chame e ele virá até você. Ele tem reações
programadas iguais às de um cachorro de verdade. Irá reagir a tudo o que você
disser e sabe milhares de truques. Fale, garoto!




O cachorro se sentou obediente e latiu duas vezes.



— Por que ele não foi programado para falar inglês? — perguntei.



— Porque aí ele não seria um cachorro — Xavier respondeu, como se isso
fosse óbvio.



— Mesmo assim, não é um cachorro. Qual é o propósito, se você não pode
acariciá-lo?



Xavier encolheu os ombros.



— Não sei. Mas ele é legal. O programa possui mais de cem raças e o
comportamento se ajusta a cada uma delas. — Xavier apertava os botões dos
controles na caixa. O doberman se transformou em um dálmata e então em um
bassê. — Que raça você quer que eu coloque?



— Quero um galgo afegão — eu disse sem hesitar. Ele apertou alguns
botões até que um magnífico galgo afegão de pelos sedosos apareceu no meio da
sala. Ele era a coisa mais linda, e eu suspirei. Eu adorava galgos afegãos. Eram
tão belos e carinhosos. De repente, ele latiu.



— Aqui — Xavier disse. — Acho que posso descobrir como programá-lo
para funcionar com o sensor digital da nossa porta. Posso fazê-lo latir para
qualquer um que entrar.



— Um cachorro de verdade também faria isso.




— Sim, mas a minha mãe é alérgica. Vamos lá! Você tem de admitir que a
tecnologia é legal.



Sentei em um banquinho e estalei os dedos. O cão holográfico olhou em
minha direção e então saltou para cima de mim, com suas orelhas empinadas.



— Vou ter de concordar com você — passei a mão através da cabeça do
cachorro e acenei para Xavier. — Mesmo assim, não seria melhor se você pudesse
acariciá-lo?



Xavier balançou a cabeça.



— Não entendo você. Pensei que gostasse de cachorros.



— Adoro. É por isso que digo que este não é de verdade.



— Se você gosta tanto assim de cachorros, por que não tem um? — Xavier
me perguntou.



Isso tinha sido um pequeno problema no passado, quando eu costumava
pegar os cachorros de outros moradores do Unicórnio e brincava com eles por
horas, impedindo que voltassem para seus donos.



— Não pude.



— Por que não?



Suspirei. Meus pais tinham sido convocados para supervisionar a
coordenação da colônia da Lua e ficariam fora durante meses.




— Você se lembra daquela gazela que eu tive quando tinha oito anos?



Xavier balançou a cabeça.



— Eu tinha dois anos, como poderia me lembrar?



— Ah. Bem, eu tive uma gazela. O pessoal que trabalhava nos estábulos
tomou conta dela para mim, mas ela morreu enquanto meus pais estavam de
férias, e eu não estava lá. Eu me senti péssima por causa disso. Odeio a ideia de
fazer isso com um cachorro.



— Eu poderia cuidar do seu cachorro enquanto você estivesse dormindo —
Xavier disse. — Tenho certeza de que a minha mãe não iria se importar, não se o
cachorro pertencesse ao Sr. Fitzroy.



Meneei a cabeça.



— Não. Eu odiaria se um dia fosse obrigada a ficar longe dos meus pais, e
seria isso que eu estaria fazendo. Eu não iria querer ficar surgindo e
desaparecendo da vida do cachorro. Ele não iria entender.



Xavier resmungou.



— Esqueça o cachorro, droga, sou humano e mal consigo entender, e você é
a minha melhor amiga.



Franzi a testa ao ouvi-lo.




— Você não tem amigos na escola?



— Claro que tenho, mas eles não são você. Além do mais, eles me provocam
por que eu me chamo Xavier, até mesmo aqueles que se dizem meus amigos. Eles
me chamam de "X-man" e dizem coisas como, "E-chatamente, Cha-vier!" e
"Você vai cursar alguma matéria e-chis-tra, Cha-vier?", Não pronuncio o maldito
"x" com som de ch, mas todos eles fazem.



— Bem, Zavier — eu disse, pronunciando o nome do modo que ele gostava.
— Diga para eles pararem.



Ele deu de ombros.



— Eles são garotos. É impossível fazê-los parar. Mas isso não tem
importância. Você nunca faria algo assim. Além do mais, nós sempre fomos
melhores amigos.



Aquilo nunca tinha me ocorrido. Sempre o vi como se ele fosse um irmão
mais novo, mas agora que as nossas idades estavam muito próximas, ele já não
parecia tanto um irmão mais novo para mim, mas um amigo.



— Você é o meu melhor amigo — eu disse. — Pensando melhor, você é o
meu único amigo.



Ele zombou.



— Isso eu sei que não é verdade.




— É sim, e você sabe — rebati. Eu não entendia por que me sentia triste
em relação a isso. Peguei meu banquinho e sentei junto de Xavier, à mesa.
Estiquei o braço para despentear seu cabelo. Contanto que soubesse que Xavier
estaria por perto, desmontando algum computador no apartamento ao lado, não
importava que eu não tivesse mais ninguém.



— Que é isso? — disse Xavier, esquivando-se do meu carinho maternal. —
Aposto que você tem vários amigos.



— Na verdade não. Você sabe que minha mãe não aprova ninguém da
escola e não gosta que eu saia sem ela. — Franzi a testa. — Nunca tive outros
amigos. Não desde a filha do zelador, quando eu era pequena.



— Quantos anos você tinha? — Xavier perguntou.



— Acho que três ou quatro anos. Isso foi na última casa em que moramos,
na cidade. — Eu não pensava em Sarah havia anos. — Ela era mais velha do que
eu, cheia de encanto e coragem. Passávamos o dia todo juntas. Costumávamos
nos vestir combinando.



— Com quatro anos?



— Sim. Acho que a ideia era dela. Mas além de Sarah, você é o único amigo
que tive de verdade.



— Você não foi convidada para dormir na casa de uma amiga outro dia?



— Polly só me convidou porque a mãe dela estava tentando conseguir uma
promoção.




— O quê?



— Os pais dela trabalham na UniCorp.



— Ah! — Xavier exclamou. — Os meus também.



— É verdade... mas somos amigos há uma eternidade. Quase desde que
você nasceu — eu o lembrei.



Xavier voltou os olhos para sua caixa.



— Você já pensou em como isso é estranho? — ele perguntou. — Digo, você
não cresceu do mesmo jeito que eu cresço. Eu me lembro de quando você era
mais alta do que eu e me contava histórias porque eu não sabia ler. Agora temos
a mesma altura e quase a mesma idade.



— Eu tenho catorze! — eu disse indignada e me endireitei, mas, mesmo
assim, fiquei só alguns centímetros mais alta que ele. — Você só tem onze anos.



Ele me olhou profundamente.



— Meu aniversário foi há três meses. Eu já tenho doze.



Fiquei surpresa. Permaneci em estase por mais de um mês, eu não tinha
me dado conta de que minha última ausência durara tanto tempo.



— Perdi o seu aniversário? Sério?




— Perdeu.



— Sinto muito. Vou comprar algo para compensar. O que você quer?



Os olhos de Xavier buscaram meu rosto. Ele hesitou por um longo
momento antes de dizer:



— Nada.



— Nada mesmo?



— Não, nada mesmo. Eu só queria que você estivesse lá. Esse teria sido o
melhor presente.



Sorri.



— Você é uma gracinha.



— Não conte para ninguém ou nunca mais terei sossego.



Dei um toque no seu ombro.



— Preciso ir embora — falei. — Minha mãe vai me levar na loja de artigos
de pintura e depois vamos a uma loja de decoração. Estou sem marrom-
avermelhado.



— Ah. — Ele pareceu desapontado. — Eu meio que esperava que você
pudesse ficar e me ajudar a conectar isto à fechadura eletrônica da porta.




Fiz uma cara de medo.



— Você quer começar um incêndio? Eu não seria capaz de entender uma
placa de circuito integrado nem que a minha vida dependesse disso!



— Mas o risco de explodir as tomadas é que dá mais emoção ao plano! —
ele riu.



Balancei a cabeça.



— Vou lhe dar azar. Além do mais, não posso deixar de opinar nas cores
dos móveis. Mamãe está redecorando o vestíbulo e quer a minha ajuda.



— Está bem — Xavier disse. Ele lançou um olhar tristonho para a placa de
circuito integrado de seu novo cachorro holográfico.



Eu estava chateada. Fiquei imaginando se Xavier sabia que logo eu entraria
em estase novamente.



— Ah... eu queria lhe contar. Papai e mamãe vão para a Lua na semana
que vem.



A cabeça de Xavier se voltou na minha direção, seus olhos estavam
arregalados.



— Por quanto tempo?



— Não sei.




Ele me encarou boquiaberto por um momento, antes de recompor a
fisionomia.



— Bom. Vê se não perde o meu próximo aniversário, hein?



Aproximei-me para tocar em seus cachos loiros.



— Por nada neste mundo, Xavy.



Ele corou.



— Gostaria que você parasse de me chamar assim. Não sou mais uma
criança.



— Não, você não é — eu disse. — Mas você é meu melhor amigo.



O galgo holográfico latiu.



— Sou o melhor amigo de uma garota — Xavier disse e, então, latiu
também.



Agora, eu tinha um novo amigo. Ele não se parecia nada com Xavier, nem
era tão bom quanto, mas era o melhor que eu poderia ter na atual circunstância.



O verdadeiro nome de Zavier, de acordo com os papéis de registro que
encontrei na cozinha, era Pés Descalços das Estradas Desertas. Ele era um
campeão aposentado, pois, três anos antes, havia perdido por uma polegada um
dos mais conhecidos concursos de cães de raça. Ele era treinado para obedecer
aos principais comandos e tinha recebido noções básicas para ser um cão de


guarda. Ele tinha horário marcado no pet shop a cada duas semanas. Havia a
sugestão de que eu o escovasse uma vez ao dia com uma escova que encontrei
junto com os certificados. Perguntei a ele se preferia ser chamado de Estradas ou
de Deserto, tentei mais uma dúzia de combinações com o nome, mas ele não
ergueu as orelhas para nenhuma delas. Provavelmente o chamavam de um nome
completamente diferente, que não estava anotado em lugar algum, por isso,
Zavier foi um nome tão bom quanto qualquer outro.



Obviamente Patty e Barry já estavam esperando por Zavier, pois Barry
chegou em casa com um saco de comida para cachorro. Não tive coragem de
perguntar se eles tinham arrumado o cachorro para mim ou se fora o Sr.
Guillory. Mas isso não importava. Zavier era meu agora. Naquela noite, ele se
acomodou aos pés da minha cama e manteve meus pés quentinhos.



Infelizmente, ele não conseguiu afastar os pesadelos.










6





OS PESADELOS ERAM IMPLACÁVEIS. ELES VINHAM QUASE TODAS AS NOITES
DESDE que saí da estase. Nesses sonhos, eu caminhava por corredores longos e
vazios. A princípio eram os corredores do Condomínio Unicórnio, mas, na noite
em que ganhei Zavier, os corredores eram os do Preparatório Uni, com suas
janelas neogóticas e arcos de pedra. Havia sempre espelhos ao meu redor,
confundindo e assustando-me. Percebia um movimento, virava para ver o que era
e, então, descobria que era apenas eu, olhando de volta para mim mesma. Eu
não sabia ao certo o que procurava naqueles corredores vazios, mas estava com
medo do que iria encontrar.



Como sempre, despertei suando frio, gritando por minha mãe. Mas, no
momento em que acordei de verdade e percebi que ela não estava lá, fiquei feliz.
Ela teria sentido vergonha de mim, chamando por ela como se fosse uma criança
indisciplinada.



— Será que sua mãe realmente sentiria vergonha? — perguntou Dra. Bija,
na manhã seguinte. Tínhamos marcado uma consulta extra para a manhã do
meu segundo dia de aula, assim, eu poderia contar como tinha sido o meu
primeiro dia. Quando Mina me perguntou se eu dormira bem, não me segurei e
contei a ela sobre os meus sonhos.




— É bem provável — eu disse. — Mamãe sempre mantinha a compostura.
"O melhor que tem a fazer é se tornar uma pessoa refinada, pois assim as
pessoas só verão perfeição quando olharem para você." Era o que ela me dizia.



Mina franziu o semblante.



— Você acredita que uma pessoa pode realmente ser perfeita?



Encolhi os ombros.



— Acho que, como uma estátua, sim. Se você puder aparar as arestas,
eventualmente terá uma personalidade como a de Davi de Michelangelo.



Ela riu.



— Você realmente acha que tem o poder de se livrar de seus pesadelos do
mesmo jeito que pode aparar as suas unhas?



— Não sei. — Suspirei. Desejei poder.



— Como foi a escola ontem? — Mina instigou.



Encolhi os ombros.



— Não entendi nada.



— Foi apenas o seu primeiro dia. Mas eu não estava me referindo ao seu
desempenho acadêmico. Você tem algum amigo?




— Na verdade, não. Quer dizer, Bren, eu acho.



— Bren?



— Brendan Sabah. O avô dele aparentemente é o segundo no comando
depois de Guillory ou algo assim.



— Ah, sim. Eu me lembro da coletiva para a imprensa. Você gosta dele?



— Sim. Ele deixou que eu me sentasse ao seu lado no almoço.



— Isso deve ter sido um alívio — ela disse. — É bom ter amigos.



Encolhi os ombros. Não estava certa se o relacionamento que eu tinha Bren
era de fato amizade. Não era nada parecido com o que eu tinha com Xavier,
mesmo antes de começarmos a namorar, e eu não tinha nenhum amigo além de
Xavier, portanto, não tinha um parâmetro para comparação. Tudo o que eu sabia
era que precisava desesperadamente de Bren, embora não me sentisse tão à
vontade ao seu lado quanto me sentia com Xavier. O que também me deixava
uma sensação de confusão e de instabilidade da qual eu não estava certa se
gostava. Apesar de gostar do Bren. Muito.



Saí da consulta tentando definir o que exatamente eu tinha com Bren. Não
tinha certeza se sabia, mas Bren me tratava de um jeito amigável. Fiquei feliz,
pois precisei desesperadamente de um rosto amigo depois da minha segunda
aula de história.



Bren me pegou de surpresa no corredor enquanto eu corria, sem pedir
licença, dos horrores que ouvira naquela segunda aula. No dia anterior, eu já


tinha me sentido péssima só de ouvir as preliminares sobre os Tempos Sombrios.
Mas, naquele dia, à medida que os Tempos Sombrios foram ganhando proporções
cada vez maiores no telão da sala de aula, eu me sentia menor e menor até que
tive de sair correndo. Passei voando por Bren, sem vê-lo, não via mais nada.



— Rose! — Sua voz ecoou no corredor vazio. — Você está bem?



Virei-me.



— Ei, o que foi? Parece que você viu um fantasma.



Fantasmas. Foi somente isso que restou da minha família, dos meus
amigos, do meu Xavier. Segurei a bile e meus olhos buscaram desesperadamente
pelo corredor. Lá estava, um latão incinerador de lixo! Enfiei a cabeça no cesto e
vomitei, desperdiçando as poucas e preciosas porções de comida que eu
conseguira engolir no almoço.



Durante alguns segundos continuei sentindo ânsia e então percebi uma
mão quente sobre o meu ombro.



— Ei — disse Bren. — Devo levá-la para a enfermaria?



Cuspi um pouco da saliva com gosto de vômito.



— Não — respondi. Ergui o rosto do latão. — Não estou doente.



Comecei a procurar um lenço em meus bolsos.




Bren puxou um do dispenser de produtos de higiene que ficava pendurado
na parede. Assoei o nariz e joguei o lenço no lixo. Apertei o botão ao lado do cesto,
que desapareceu nas profundezas do incinerador, sendo substituído por um
novinho. Pude ouvir um zumbido surdo, indicando que o incinerador estava
destruindo todas as provas da minha fraqueza.



O enjoo passou e tudo o que eu sentia agora era uma tristeza opressora.



— Você quer me contar o que foi aquilo? — Bren perguntou. — Foi o
almoço? Você ainda não está comendo muito. Ainda está sofrendo da fadiga
estase?



— Não. Quero dizer, sim e não. — Fui tomada por outra onda de náusea,
mas consegui contê-la. — Por que ninguém me contou quão terríveis foram os
Tempos Sombrios?



— Não contamos? — Bren pareceu confuso. — Pensei que Reggie tivesse lhe
contado.



— Ele me contou um pouco — eu disse. — Mas acho que não registrei tudo.
— Entre os resíduos da estase e o choque emocional, parece que nada conseguiu
me atingir muito naqueles dias.



As histórias dessa tarde, de toda a cidade perecendo em agonia, das
pessoas andando perfeitamente saudáveis em uma manhã e caindo mortas ao fim
do dia, a perda da infraestrutura que tornou tudo ainda pior...



Bren ainda parecia confuso.




— O que trouxe tudo isso à tona?



— A aula de história — respondi. — Eles estão falando sobre como meus
pais morreram. Como todos os meus amigos morreram. O meu namorado.



Uma expressão de compreensão tomou conta da fisionomia de Bren.



— Ah! — ele exclamou. Ele pareceu um pouco sem jeito por um momento,
então disse: — Você quer falar sobre isso?



Suspirei.



— Não. Mas eu não...



— O quê?



Eu estava envergonhada, mas mesmo assim falei:



— Eu não quero ficar sozinha.



Bren franziu as sobrancelhas e pousou a mão sobre o meu ombro, era
como um lastro quente que me mantinha no chão.



— Você não está sozinha — disse. Sua voz aveludada era reconfortante. —
Vamos tomar um pouco de ar.



— Você não precisa voltar para a aula?



— Não tem problema.




Eu não ia discutir com ele. Com a mão sobre meu ombro, ele me conduziu
até o pátio, onde me colocou sentada em um banco sob uma cerejeira. As flores
tinham acabado de desabrochar, com a chegada da primavera. O perfume suave
e levemente frio espantou a náusea. Ele se sentou ao meu lado, observando-me
com aqueles seus olhos que pareciam folhas novas. Eu queria enterrar meu rosto
no peito dele e chorar durante um milhão de anos, mas não o fiz.



— Você quer que eu pegue algo para você? — ele perguntou. — Quer um
pouco de água ou qualquer outra coisa?



— Não.



Um silêncio desconfortável se seguiu.



— Tem algo que eu possa fazer?



Hesitei. Eu sabia o que ele poderia fazer, mas não tinha certeza se iria
querer fazê-lo.



— Qualquer coisa — ele ofereceu, ao perceber a minha indecisão.



— Conte-me sobre os Tempos Sombrios — pedi.



Ele franziu a testa.



— Er... tem certeza?




— Sim — sussurrei. — Prefiro ouvir de um amigo. — Então, percebi o que
eu tinha dito. — Você é um amigo, não é?



— Claro que sou — ele disse bruscamente. — Certo. — Ele coçou a cabeça.
— Por onde você quer que eu comece?



— A professora estava falando... falando sobre a peste que atingiu primeiro
a cidade de Nova York.



Bren assentiu.



— Aparentemente algum guru americano da moda decidiu que a última
tendência em termos de pele era a da marmota, então ele viajou para a China,
onde coletou o máximo de pele que conseguiu. Seu nome era Marcus Alexios. Ele
voltou da China carregando uma variante septicêmica da peste. Nova York estava
movimentada, como sempre, por isso, ele resolveu pegar o metrô para chegar ao
seu desfile e, então, caiu morto.



Supostamente as marmotas tinham a peste. Quem sabe? Normalmente o
contágio da peste bubônica se dá apenas por meio do contato com sangue
contaminado, mas duas proteinazinhas tinham se alterado. O que significa que
todos que trabalharam com Alexios na China, todos que estavam no avião que o
trouxe de volta aos Estados Unidos, todo mundo que estava naquela estação de
metrô lotada e a nata da sociedade presente no desfile foram expostos ao vírus.
Até que sua autópsia fosse realizada, todas aquelas pessoas já tinham se
misturado na multidão. Uma pessoa pegou um avião para Los Angeles, um
sujeito foi para um abrigo para sem-tetos no East Village, uma mulher pegou um
trem para Vermont, e você pode imaginar como a doença se espalhou.




Bren me observava e eu sabia que meu rosto empalidecera.



— Vou deixar os detalhes de lado — Bren falou, e eu fiquei grata. — Bem,
tínhamos remédios capazes de curar a peste, embora ela fosse resistente e nossos
estoques estivessem muito baixos. Mas o meio de transporte que seria usado
para o envio dos remédios estava inativo. Um terço da população já estava
contaminada e nada funcionava. Assim, quando o remédio foi entregue nas
cidades, a maioria das pessoas já estava morta. — Ele olhou com o canto dos
olhos para mim. — Parece que a doença era muito rápida — disse, tentando me
confortar. — Aparentemente assustadora, mas eles nem tiveram tempo de sofrer.



Cobri os olhos, tentando me recompor.



— Certo.



Ele respirou fundo. Aquilo tudo deveria ser história do passado para Bren,
mas, aparentemente, contá-la para mim pareceu deixá-lo desconfortável.



— O surto da peste durou um verão, mas ela continuou ressurgindo
depois. Os últimos surtos se espalharam menos, mas seu contágio ainda
continuou sendo pelo contato entre humanos, além das pulgas. Enquanto isso, a
tuberculose continuava se espalhando. Você soube da tuberculose?



— Sim — eu disse. — Eles tinham montado ambulatórios de controle
quando... antes.



Bren sorriu.




— Sim, todas aquelas imposições feitas às pessoas não ajudaram na
contenção da peste. As pessoas apareciam para fazer o teste da tuberculose e
voltavam para casa quase mortas, por causa da peste. Foi estranho. Todos
ficaram chocados ao saber que o problema não surgira de uma nova doença, mas
sim de doenças antigas, das quais todos já tinham se esquecido.



Ele suspirou.



— Então veio o golpe final.



Comecei a ficar horrorizada.



— Ainda tem mais? — Como ainda podia ter mais?



— Tem mais — Bren disse. — A infertilidade. Você ouviu falar da Iniciativa
Global em Prol do Alimento?



— Sim, isso foi antes de eu entrar em estase. Tratava-se da ampla
distribuição de sementes de alta qualidade para países que estavam sofrendo
escassez de alimento. Meu pai estava envolvido nisso.



Quando a proibição de alimentos geneticamente modificados, que durou
um século, foi suspensa, meus pais me levaram a um banquete em homenagem a
eles. A UniCorp tinha desenvolvido muitas daquelas sementes geneticamente
modificadas. Minha mãe e meu pai estavam animadíssimos por terem sido
incluídos na Iniciativa Global em Prol do Alimento e tinham feito muito lobby
para que desse certo.




— Foi o maior processo judicial com o qual a UniCorp teve de lidar - Bren
explicou. — A companhia quase afundou. Aparentemente, uma das sementes de
um tipo de milho era geneticamente modificada de acordo com o que chamam de
"semente terminal", o que significa que sua plantação não produziria sementes
viáveis para o próximo ano.



— Eu sei — disse. — Isso é bom para os negócios. E significava que os
agricultores tinham de voltar para comprar novas sementes da companhia. Papai
reestruturou as patentes depois que eles revogaram a proibição de 2087.



— E todos desejaram que ele não tivesse feito isso.



— Ficou muito difícil transportar sementes novas depois da redução da
população?



— Bem... a redução não ajudou, mas não, o problema ocorreu em uma
inesperada mutação. Esse foi o verdadeiro motivo para a modificação genética ter
sido proibida. No final, o risco ultrapassou os lucros. Ficou muito perigoso. O
gene terminal passou para a corrente sanguínea e afetou os humanos,
especialmente os homens. E o resultado foi a diminuição do tempo de vida dos
espermatozoides para algo em torno de uma ou duas horas de vida. O que
significa que, se um sujeito não ejaculasse regularmente, os espermatozoides
poderiam morrer dentro dele e ele estaria dando tiros sem bala. E mesmo que não
fosse o caso, se o óvulo da mulher não estivesse pronto e esperando ofegante no
colo do útero, os espermatozoides não teriam tempo nem mesmo de fazer uma
prece para alcançar o óvulo antes que este cantasse a marcha fúnebre e desse o
fora.




Aquilo era tão nojento e macabro que fiquei surpresa quando ri, mesmo
assim, eu ri. Estava certa, ouvir de um amigo tornava tudo bem mais fácil.



Bren encolheu os ombros.



— Ninguém notou isso antes da peste. As pessoas estavam adiando a
gravidez, não era de se surpreender que mulheres na faixa etária que ia dos trinta
e oito aos quarenta e cinco anos não conseguissem conceber uma criança, e
acabou acontecendo que a maioria das pessoas não conseguia. Tínhamos perdido
tantas pessoas e não conseguíamos reconstruir a população. Aquele milho
assassino era usado em quase todos os alimentos e era misturado a tudo, ou
seja, estava em toda parte. Ele também era usado para alimentar os animais para
abate, o que significou que estes também não conseguiam se reproduzir. Isso
resultou em mais escassez de alimento. — Bren balançou a cabeça. — Foi tudo
por água abaixo. Ocorreram motins, guerras por recursos naturais e guerras por
tecnologia. A tuberculose ainda estava se espalhando, e a peste continuava
voltando. Nada realmente deu certo durante uns vinte anos.



— Isso foi tudo?



— Sim, no geral, foi. A Guerra, a Fome, a Peste e a Morte deram as caras,
montados em seus cavalos, jogaram polo e, então, voltaram para o espaço
celestial para esperarem pelo próximo apocalipse. — Ele elevou os braços abertos
ao alto. — E nós ainda estamos aqui.



— Como? — perguntei. — Como a raça humana sobreviveu a tudo isso?



— Intervenção, preparação, aquele grupo de pessoas dentro de uma
população que é imune a uma doença ou outra. Depois que o pior já tinha


passado, as pessoas puderam se concentrar em como reparariam parte do
estrago. Minha mãe e o irmão dela, por exemplo, foram fertilizados in vitro e
parece que foi apenas na quarta tentativa que minha avó conseguiu segurar os
embriões. Estou feliz que eles tenham conseguido ou eu não estaria aqui. Mas
com um pouco de persistência, qualquer coisa pode voltar a crescer.



— Acho que tudo o que se tem de fazer é sobreviver — eu disse baixinho.
Meus pais não conseguiram. Åsa não conseguiu. Meu Xavier não conseguiu. —
Eu não conseguirei mais voltar para aquela aula — eu disse. — Hoje foi apenas
um panorama. Ela vai se aprofundar em cada erro e tragédia, e eu simplesmente
não poderei suportar.



— Bom... — Bren pensou por um momento. — E se eu conseguisse uma
transferência, para você vir para a minha turma de história? Acabamos de
terminar os Tempos Sombrios e agora vamos começar a Reconstrução. Não vai
fazer muito sentido se você não dominar todos os detalhes, mas a Reconstrução é
bem menos... deprimente do que os Tempos Sombrios. Você só vai aprender
sobre como nós reorganizamos o mundo novamente e tudo o mais.



Ergui os olhos para ele. Seus olhos mostravam sinceridade.



— Você faria isso?



— Claro que eu faria. Vou pedir para o meu avô. Ele pode fazer o que quiser
nesta escola.



— Você realmente faria isso por mim?



— Claro que sim.




Não pude evitar. Lancei os braços ao redor do corpo de Bren e enterrei o
nariz em seu pescoço. Ele cheirava a sabonete de sândalo.



— Obrigada!



Por um segundo, ele correspondeu ao abraço e então se afastou.



— Não precisa agradecer — ele falou. — Não é nada demais.



— É sim — eu disse.



Ele balançou a cabeça.



— Não, isso obviamente está incomodando você. Isto é das alturas! A gente
se vê hoje à noite.



Eu realmente esperava que aquilo fosse algo das alturas. Eu não
conseguiria suportar outra dose de Apocalipse.



O fato de saber que em breve eu poderia ser transferida da minha turma de
história não chegou a causar nenhuma influência em meus pesadelos. Naquela
noite eles foram ainda piores. Eu andava por corredores, mas eram corredores
formados por corpos humanos, inchados, vermelhos e doentes, imagens dos
horrores que a professora de história tinha descrito. Dessa vez, para meu horror,
eu sabia o que estava procurando. Eu procurava por algo, ou alguém, nas
paredes, um entre os milhões e milhões de mortos. E não tinha certeza se,
quando eu encontrasse o corpo, ele estaria realmente morto, ou se despertaria e


tentaria... Eu não sabia. E isso não importava. O que quer que ele tentasse fazer
comigo, seria horripilante.



No início, parecia que cada face poderia ser a da mamãe, do papai, do
Xavier, mas não era. Obriguei-me a olhar com atenção para o rosto angustiado e
encharcado dos corpos, o odor era horrível e comecei a correr entre eles, em
busca de um lugar para vomitar, mas só havia os corredores da morte. Eu sabia
que Xavier estava entre eles e que eu nunca conseguiria encontrá-la.



Dessa vez, quando acordei, estava chorando. Dos pés da cama, Zavier me
olhou e choramingou, e seus olhos mostravam preocupação.



— Está tudo bem, Zavy — eu disse a ele, fazendo um afago em sua cabeça.
— Bom menino.



Respirei fundo e levantei. Zavier rosnou, mas seguiu manso no meu
encalço. Era sempre inútil tentar dormir outra vez depois que os pesadelos
começavam. Eles sempre voltavam. Senti saudades dos meus sonhos estases.
Eles nunca se tornavam sombrios.



Saí do quarto e segui pelo corredor rumo ao meu estúdio. O aquário emitia
um brilho suave por todo o cômodo. Acendi a luminária acima da prancheta e
descobri o desenho de giz que tinha começado naquela tarde. Era um retrato do
Bren. Fitei os olhos verdes de Bren feitos de giz e sorri.

Talvez fossem os olhos o que realmente me atraiu nele. Os olhos de Xavier
eram verdes. Por outro lado, Bren não se parecia nem um pouco com Xavíer
desde o formato dos olhos, a textura dos cabelos e o tom da pele, tudo era
diferente. Mas os olhos de Bren me lembravam os do meu Xavier.




Eu estava ocupada desenhando Bren com uma camisa verde que
combinasse com seus olhos quando ouvi um barulho às minhas costas. Achei
que fosse Patty ou Barry, apesar de ter ficado um pouco surpresa por eles terem
se preocupado em ir atrás de mim. Era estranho, meus pais marcavam cada
passo meu, monitoravam cada atitude, para evitar que eu cometesse um erro,
mas Patty e Barry mal falavam comigo, a menos que eu os procurasse.



Os passos às minhas costas eram lentos e firmes. Eu estava prestes a me
virar quando uma voz masculina áspera e chiada disse:



— Você é Rose Samantha Fitzroy. Por favor, vire-se para confirmar
identificação.



Aquela voz não era a de Barry.


































7





MINHA MÃO DESLIZOU E BATEU CONTRA O RETRATO DE BREN. VIREI-ME
ASSUSTADA e derrubei meia dúzia de gizes. Todos se espatifaram no assoalho.



O homem de cabeleira preta que estava parado atrás de mim não parecia
ser de verdade. Sua pele brilhou sob a luz da luminária, como se ele fosse feito de
vidro. Ele estava ereto como uma vara. Uma das mãos segurava um estranho
aparelho redondo, com luzinhas piscando. Na outra, ele trazia um bastão preto,
com luzes de alerta vermelhas e amarelas na ponta.



Ele realmente me assustou, mas dei um jeito de recuperar a voz:



— O que você quer?



O homem virou a cabeça, mas nenhum fio de cabelo se moveu.



— Combinação de voz confirmada — disse. Ele parecia asiático, mas tinha
um leve sotaque alemão. Sua fala soou monótona, como se eu estivesse ouvindo
uma mistura de sílabas pré-gravadas em vez de um discurso normal. —
Permaneça parada para a identificação de retina.



Zavier começou a rosnar atrás de mim. O homem brilhante não reagiu. Em
vez disso, olhou fixamente em meu rosto e, por fim, disse:




— Combinação de retina confirmada. Alvo confirmado.



Ao som daquela voz, Zavier avançou, agarrando a perna do homem com um
rosnado feroz. Gritei. Achei que o homem fosse chutar Zavier para longe, mas ele
ignorou completamente os rosnados do galgo afegão.



— Rose Samantha Fitzroy. Tenho ordens para retê-la e levá-la de volta ao
princípio. Se o retorno se mostrar impossível de ser cumprido, minhas ordens são
para exterminá-la. Permaneça parada.



Exterminar? Recuei desajeitada e bati com força o quadril na ponta da
prancheta de desenho. Ele tentou me pegar, mas Zavier avançou, mordendo e
rosnando. Fiquei surpresa com a qualidade do treinamento que Zavier tinha
recebido. Eu ouvira dizer que galgos afegãos eram muito mansos. Os dentes de
Zavier não tinham efeito sobre a pele do homem, mas a perna de sua calça se
transformou em farrapos.



O homem olhou na direção de Zavier.



— Você está impedindo o meu processo de busca. Pare e desista ou terei de
eliminá-lo.



— Zavier! Senta! — gritei. Mas o pobre cachorro ainda não se acostumara
com seu novo nome. Meu comando não surtiu efeito.



— Você foi alertado — o homem disse e tocou em Zavier com seu bastão.



Zavier ganiu e ficou duro, caindo no chão totalmente sem vida, como se
tivesse sido empalhado.




— Você matou o meu cachorro! — gritei, horrorizada. Ao som da minha voz,
Zavier começou a ganir fraquinho, o que me deixou aliviada. Mas ele ainda
parecia incapaz de se mover.



Meu agressor veio para cima de mim, pisando em Zavier sem dar a menor
importância. O objeto circular que ele trazia em uma das mãos se abriu, e então a
coisa pareceu pronta para se fechar, como se fosse uma braçadeira. Dois
negócios horrendos que pareciam eletrodos projetaram-se da parte de trás do
círculo. De repente, reconheci aquilo. O aparelho era um colar controlador. O
colar desconectava as ligações das funções da parte inferior do cérebro e fazia
com que todos os movimentos passassem a ser conduzidos por uma força
externa, geralmente, um computador. Eles tinham sido inventados para uso
medicinal, para reabilitação física e para determinados procedimentos em que era
necessária a submissão do paciente. Se ele colocasse aquele negócio no meu
pescoço, eu seria forçada a segui-lo e nenhum treinamento de defesa pessoal iria
me ajudar. Assim, eu tinha de evitar aquele colar a qualquer custo.



Meus pais sempre se preocuparam com sequestros, por isso me fizeram
aprender defesa pessoal. Eu realmente corria risco; meus pais eram poderosos,
eram pessoas altamente visadas e a filha deles poderia ser o alvo principal.
Nunca fui muito boa nisso, não tinha nenhum talento para super heroína, mas
aprendi o básico. Corra, eles me ensinaram. Lute. Faça o máximo de barulho que
puder. Faça tudo o que puder para não se deixar capturar. Uma vez que a
pegarem, poderão fazer o que quiserem com você.



Então, corri. Ou tentei. Bati a cintura na prancheta. Perdi o equilíbrio e caí
para trás, apoiando quase todo o meu peso sobre o tampo da mesa. A prancheta
subiu como se fosse uma gangorra, fazendo com que a caixa de giz de cera voasse


contra a parede e derrubasse o relógio. Este caiu dentro aquário, espirrando água
para todos os lados. Cai e bati a cabeça contra o cavalete, que desmontou com o
peso.



Meio atordoada por causa da pancada, estiquei o braço para trás, enfiando
a mão em uma gaveta, na esperança de apanhar um estilete ou uma espátula de
pintura, mas só encontrei uma imensa bisnaga de tinta a óleo. Já foi um começo.



Espremi o tubo na cara do homem e espirrei em seus olhos um jato de tinta
a óleo verde grudenta. Ele hesitou por um segundo apenas, o suficiente para se
reorientar. Para meu horror, ele parecia não reagir à dor, apesar de seus olhos
estarem totalmente cobertos de tinta. Ele nem se mexeu para limpar. Quem era
aquele sujeito? Ou o quê era ele? Ele parecia totalmente não humano, e eu não
estava entendendo nada.



Mas também estava com muita sorte. A tinta a óleo se misturou à água que
estava no chão, criando uma mancha escorregadia de água e óleo. Sem nenhuma
dor, mas cego, meu agressor derrapou no óleo escorregadio quando tentou me
alcançar com a arma bastão. Ele escorregou para trás, caindo ruidosamente no
piso de madeira.



Não fiquei esperando. Saí correndo e fechei a porta com um estrondo.



Mas agora que eu estava fora da sala, não sabia para onde ir. Por que Paty
ou Barry não vieram correndo? E se o estranho tivesse matado os dois? Abri a
porta do quarto deles.



Escuridão total. A cama estava vazia. Eu sabia que eles tinham ido ao
teatro, mas não notara que ainda não haviam retornado.




Deixando a porta do quarto aberta, corri pelo corredor, desejando que
Zavier estivesse ao meu lado. Eu não sabia para onde ir, ou o que fazer. O que
aquele homem queria comigo? De onde ele viera?



Abri a porta da sala e corri pelo corredor até o elevador, lutando contra a
fadiga estase. Eu não iria conseguir correr muita mais, mas quando cheguei perto
do elevador, empaquei. E se o homem brilhante não estivesse sozinho?



Afastei-me do elevador e abri a porta da escada. Silêncio. Não havia
ninguém esperando por mim na austeridade de cimento da escada de serviço.
Desci do modo mais suave que pude, torcendo para que meus pés descalços não
fizessem barulho. No fim das contas, eu sabia que havia apenas um lugar onde
me sentiria segura.



Arrastei-me pelo subsolo, desviando dos entulhos, dos restos guardados da
vida de antigos moradores. Bati o dedo do pé contra um engradado da madeira e
quase gritei quando um mancebo empoeirado veio para cima de mim na
escuridão, e um casaco fora de moda havia uns quarenta anos se enroscou no
meu pescoço. Escapei desses perigos, encontrei o depósito e, tremendo, me
encolhi dentro do meu tubo de estase abandonado.



Por um segundo pensei em ligar o tubo e permitir que a ondas suaves dos
meus coloridos sonhos estases me afastassem dos pesadelos, do horror dos anos
que eu perdera, de quem quer que estivesse me assombrando. Mas o medo de ser
capturada enquanto estivesse em estase me impediu de apertar o botão de
acionamento. Em vez disso, me encolhi quietinha sobre o cetim do forro
acolchoado, enrolada no casaco empoeirado que pensei estar me atacando.




O frio penetrante do subsolo infiltrou-se em meus ossos. Esfreguei o rosto
contra a lateral macia e senti o perfume da estase química envelhecida. Acho que
me afetou um pouco. Após os primeiros minutos tremendo de pavor, mergulhei
em uma letargia semiconsciente, não a estase propriamente dita, mas os
primeiros estágios dela. O que me tirou daquela letargia confusa foi o meu
telefone celular, com seu toque agudo na escuridão. Puxei o telefone, que estava
preso ao meu pescoço e atendi.



Era Patty. Sua cabeça minuciosamente enfeitada surgiu em um holograma
diante de mim, sua boca estava retorcida em sinal de desagrado.



— Onde você está? — ela quis saber. — Você sabe o que o imprestável do
seu animal fez? Deixe aquela criatura no pet garden quando você sair, ou vou
mandá-lo de volta para o lugar de onde ele veio! Eu não queria aquele bicho
tonto!



— O que tem de errado com Zavier?



— Ele é uma ameaça! Comeu metade do tubo de tinta a óleo verde e
estraçalhou completamente o estúdio. Meu único consolo é que pelo menos ele
não estava na minha sala de estar. Venha para casa e limpe tudo antes de ir para
a escola. Senão, com ou sem contrato, vou encontrar um castigo para você.



— Já estou indo — eu disse, apertando o botão de desligar. Desvencilhei-
me do casaco e corri para o elevador. Meu medo tinha passado. O resíduo da
estase química ainda afetava meus receptores nervosos, se não estivesse, acho
que eu ainda estaria encolhida no subsolo, balbuciando coisas sem sentido.




Quando cheguei, Patty estava gritando com Zavier, que estava encolhido
embaixo da minha prancheta. Meu estúdio estava em ruínas. Realmente Zavier
tinha sido o responsável por parte daquilo. Havia pegadas de cachorro e manchas
por todo o cômodo, e o tubo de tinta que estava no chão tinha sido mastigado,
deixando os pelos dourados de Zavier rajados de verde. A água tinha se
misturado ao óleo da tinta, formando arquipélagos verdes oscilantes no piso de
madeira. Para finalizar, ainda havia vários pedaços de giz se dissolvendo que,
depois disso, ficariam inutilizáveis. Patty tomou todo cuidado para não pisar com
seus sapatos caros nos resíduos.



— Aí está você! — ela disse. — Limpe tudo antes de ir para a escola. E,
quando sair, leve aquele cachorro miserável com você. Por que você foi deixar
aquela coisa aqui?



— Está bem, Patty — respondi obediente. Abri a boca para contar sobre a
noite passada, mas ela já tinha saído. De qualquer maneira, eu não saberia como
abordar o assunto.



Depois que ela se foi, tentei convencer Zavier a sair de baixo da prancheta.
A princípio ele não quis se mexer. Quando viu que ninguém mais iria entrar no
quarto, ele se levantou lentamente e pulou em cima de mim, choramingando.
Estava claro que sentia dor.



Peguei meu celular e apertei o botão da informação.



— Meu nome é Hally e sou a sua operadora de informação. — O holograma
de uma bela mulher me perguntou educadamente o que ela poderia fazer por
mim hoje. Perguntei a ela o nome das clínicas veterinárias locais.




A operadora citou vários nomes, um deles era o mesmo do pet shop de
Zavier. Pedi para ela ligar para o lugar e, em um segundo, a imagem de uma
recepcionista chique surgiu diante de mim.



— Meu cachorro está... ferido — eu disse.



— Você gostaria de marcar uma consulta? — ela perguntou.



— Não sei — falei confusa. — Não tenho muito tempo antes da aula. Acho
que ele tem um horário fixo com um de seus tratadores. O nome do cachorro é
Pés Descalços das Estradas Desertas.



— Ah, sim — a recepcionista sorriu. — Estradas Desertas é um dos nossos
pacientes VIPs. Se você o deixar aqui a caminho da escola, nós cuidaremos do
resto.



— O que é um paciente VIP? — perguntei.



— Todas as consultas de Estradas Desertas já foram pagas e pré-
aprovadas. Basta deixá-lo aqui e ligaremos para o seu celular quando soubermos
o que ele tem.



— Obrigada — respondi, e desliguei.



Não tive tempo de limpar o estúdio antes de ir para a escola e ainda deixar
Zavier no veterinário. Depois de pescar o relógio de parede de dentro do aquário
(que miraculosamente não tinha eletrocutado nenhum dos meus peixes), tranquei
a porta do estúdio para que Patty não visse a bagunça. Vesti o uniforme e, com


todo cuidado, levei Zavier para a minha limobarca. Ordenei que nos levasse para
o pet shop e me sentei no assento de trás com o cachorro.



Ele espalhou tinta verde em todo o barco e no meu uniforme, mas não me
importei. Eu abracei seu pescoço. Ele gemeu e ganiu, mas me lambeu
carinhosamente.



Quando deixei Zavier no veterinário, contei-lhes sobre a tinta, mas omiti a
história do homem brilhante com o bastão estranho. Eles me garantiram que
iriam verificar se havia algum resíduo de toxina no organismo de Zavier e que
iriam lhe dar um bom banho. Segui para a escola me sentindo um pouco melhor
com relação ao Zavier. Eu tinha enterrado a lembrança do homem brilhante
firmemente sob o resíduo da estase e não ia pensar sobre aquilo o máximo que
conseguisse.



Brendan estava esperando por mim no pátio.



— Está tudo das alturas! — ele disse, pegando meu supertablet. Depois de
todo o horror da noite anterior e de tudo o que acontecera com Zavier, eu tinha
me esquecido do meu novo horário. Bren tocou na tela algumas vezes e então me
devolveu, mostrando meu novo horário. — Aí está: segundo período, história, Sr.
Collier. Tivemos de trocar as suas aulas de literatura inglesa por romantismo,
espero que você não se importe.



— Não, está ótimo — eu disse. Isso na verdade resolvia dois problemas de
uma só vez, pois tive de me segurar para não dizer à professora que aqueles
autores da virada do século, considerados famosos, não passavam de escritores
obscuros e desconhecidos para mim. Eu não queria ofendê-la.




A escola estava um pouquinho melhor agora que eu não tinha mais que
temer pela aula de história. Mas tinha muita sorte em estar na mesma classe de
Bren. Era uma delícia observá-lo durante a aula, sempre muito animado; ele
entrava em debates impressionantes com outros alunos, surpreendia o professor
com fatos desconhecidos que lera por acaso em algum lugar e chegava a
conclusões a partir de detalhes aparentemente desconexos. Ele fazia tudo o que
eu sempre desejei poder fazer na escola, mas nunca fui inteligente o bastante.



Eu realmente adorava observá-lo. Ver o modo como suas mãos se moviam
habilmente sobre a tela do supertablet. É verdade que ele usava o aparelho desde
o jardim da infância, enquanto os supertablets eram novidade para mim, mas,
mesmo assim, seus longos dedos morenos pareciam executar um balé
encantador. Eu me peguei imaginando como seria a sensação de sentir aqueles
dedos tocando a minha pele, me dando um abraço apertado.



Engoli em seco. De jeito nenhum. De jeito nenhum. Aquilo não era correto.
Eu não estava sentindo aquilo por Bren. Não podia pensar nele daquela maneira.
Eu amava Xavier. Esse negócio estranho que eu estava sentindo não era amor,
não era nem um pouco parecido com o que eu sentia Xavier. Mas...



Quando Bren percebeu para onde eu estava olhando, fiquei vermelha e
baixei os olhos para a minha tela. Não tive coragem de olhar em seus olhos. Não
conseguia pensar nele sem a estranha sensação de que havia um peixe nadando
dentro do meu estômago. Que droga!



Saí da aula de história entorpecida e acabei perdendo o caminho para a
aula de mandarim. A professora não brigou comigo quando entrei cinco minutos
atrasada. Comecei a suspeitar que o Sr. Guillory dera instruções sobre isso
também.




Eu continuava a achar a matéria sem pé nem cabeça. Aproximadamente
vinte minutos depois, meu celular apitou, dando-me uma chance para escapar
daquele vocabulário incompreensível. Voei para o corredor.



— Seu cachorro parece estar passando bem, mas ele se cansou — disse o
veterinário. — Verificamos se havia toxinas, mas a tinta parece ser relativamente
inofensiva. Você caminhou muito com ele ontem?



Neguei com um aceno de cabeça.



— Não.



— Bem, nossos aparelhos indicaram que toda a musculatura dele está
fatigada. Ele sofreu uma overdose de ácido láctico. Basicamente, os músculos do
seu cachorro estão muito enrijecidos. Ele ficará bem dentro de um ou dois dias,
mas deveria descansar. Tem certeza de que você não o sobrecarregou?



— Não que eu saiba — respondi. Eu não sabia exatamente como contar a
ele que meu cachorro tinha sido golpeado com um bastão por um estranho
homem brilhante que parecia um robô e queria me eliminar.



Odiei ter de voltar para a aula. Eu não queria pensar no homem brilhante,
não conseguia entender quase nada das aulas e, agora que eu sabia que Zavier
ficaria bem, era um peso a menos na minha cabeça. O que me deixou espaço
para pensar em Bren.



Eu não sabia exatamente o que estava sentindo. O único garoto que amei
foi Xavier e aconteceu gradualmente, ao longo de muitos anos e com muitas


mudanças, por isso, eu não sabia como lidar com esse tipo de sentimento
impetuoso. Meu coração doeu. Doeu mais porque eu não fazia ideia do que Bren
sentia.



Eu sempre soube o que Xavier sentia. Eu o conhecia havia tanto tempo,
todas as mudanças de humor, e tão bem, que era impossível interpretar suas
reações de maneira equivocada. De qualquer maneira, ele nunca esconderia nada
de mim. Ele era meu melhor amigo, meu irmão, meu amor. E agora estava morto
e eu sofria por ele. Eu me perguntava se era aquele sofrimento que me aproximou
de Bren ou se era algo mais do que isso.



Lembrei-me de que ele me salvara, pensei por que Bren, entre todas as
pessoas no mundo, tinha sido o único a trombar com o meu tubo de estase, tinha
sido o único a me despertar... despertar-me com um beijo, igual à Bela
Adormecida? Eu ainda não tinha pensado sobre aquele beijo. Tentei imaginar se
ele tinha.



Avistei Bren quando eu estava saindo da última aula, agora sobre os poetas
do romantismo. Meu coração disparou e me vi correndo na direção dele.



— Muito obrigada por tudo — agradeci a ele. — O romantismo é muito
melhor do que a literatura da virada do século. Eu estava... um pouco por fora
daquilo.



Ele sorriu.



— Sim, meu avô disse que você provavelmente iria gostar mais do
romantismo. Ele disse que se lembra de ter lido os livros da virada do século,


quando ainda eram novos, e não tinha se impressionado com nenhum deles. O
que você achou da aula de história? Você prefere a Reconstrução?



— O tema é fascinante. Como eles conseguiram manter as colônias fora do
planeta?



— Ainda não chegamos nesse ponto — Bren disse. — Mas sei que
abandonamos os postos de Ganymede e Ceres, e que tivemos de abortar os
planos de ter uma colônia em Enceladus. — Ele olhou por cima do ombro. Nabiki
e Otto estavam parados adiante, esperando por ele. — Ah, preciso ir, vou perder o
rasante.



Suspirei. O efeito da estase química tinha desaparecido por completo,
deixando-me assustada e apreensiva, e eu estava com medo de ficar sozinha.
Apesar de não ter conseguido contar para ninguém sobre meu encontro da noite
anterior, estava trêmula. Também queria ficar ao lado de Bren.



— Eu posso... levá-lo para casa na minha limobarca — ofereci, tentando
não transparecer meu desespero. — Quer dizer, nós dois vamos para o Unicórnio.



Bren hesitou, depois deu de ombros.



— Está certo — ele disse. Fez, então, um sinal com a cabeça para Nabiki e
Otto. Nabiki encolheu os ombros e seguiu rumo ao ponto do rasantesolar. Otto
permaneceu parado e me encarou por um momento, seus olhos amarelos
brilhavam ao sol.



Aquilo me deixou desconfortável.




— Será que ofendi Otto de alguma maneira? — perguntei.



Bren se virou para olhar para seu amigo alienesco e sorriu. Otto retornou
com aquele seu sorriso forçado, acenou e seguiu Nabiki.



— Não — Bren respondeu. — Ele acha você interessante. Mas,
tecnicamente, você é dona da patente dele, o que significa... bem, ele é humano o
bastante para ter os mesmo direitos dos humanos, mas é tudo muito complicado.
Ele está sempre com medo de que tentem outros experimentos. Depois que você
atingir a maioridade, então, a decisão será sua.



Parei de repente.



— Eu não faria algo como aquilo! Você não disse que a maioria deles
morreu?



— De modo horrível — Bren disse. — Não pense nisso. Acho que ele só
queria ousar falar com você, mas você o assusta.



Engoli em seco.



— Eu o assusto? - perguntei.



Bren olhou bem para mim, suas sobrancelhas escuras estavam contraídas.
Foi como ter um holofote apontado para mim. De repente, me dei conta do meu
estado. Eu não tinha ido a um cabeleireiro desde a coletiva com a imprensa.
Minhas roupas estavam amassadas e manchadas de tinta de quando levei Zavier
ao veterinário. Eu tinha roído as unhas durante as aulas, umas vezes de nervoso,


outras de tédio. Sob o olhar de Bren eu me transformei em uma órfã magricela,
cheia de ferimentos e perdida no tempo.



— Você tem de concordar que é estranha — ele finalmente disse, e a luz se
apagou. — Metade das frases que você usa está fora de moda, é como se eu
estivesse falando com a minha avó. Aí, então, você faz algo ou diz qualquer coisa
que parece... não leve isso a mal, mas parece muito infantil. Sem ofensa.



— Não estou ofendida.



— Então, você é diferente. Quase como se fosse alguém de outro país, mas
não é. Sei lá. — Ele encolheu os ombros, e pareceu nervoso. Senti um desejo
repentino de me aproximar e bagunçar seu cabelo. — Isso responde a sua
pergunta?



— Acho que sim. — Engoli em seco. — A limobarca me pega logo ali — falei
sem jeito. Ele me seguiu até o barco e subiu depois de mim. — Tenho de fazer
uma parada no caminho de casa. Você se incomoda com cachorros?



— Não. Eu tinha um até o ano passado. Mas ele finalmente se rendeu à
idade avançada. Pobre Jack.



— De que raça ele era? — perguntei.



— Era um retriever — Bren disse. — Ele era um ótimo gandula, pegava
todas as bolinhas de tênis que caíam fora da quadra.



Quando eu trouxe Zavier para a limobarca, ele inclinou a cabeça para Bren
e cheirou suas pernas.




— Olá, amigo — Bren disse, esfregando as orelhas de Zavier.



— Seja bonzinho com ele — pedi. — Ele teve uma noite difícil, engoliu um
pouco de tinta.



— Você comeu tinta? — Bren perguntou a Zavier em um tom amigável. Em
seguida, olhou para mim. — Onde ele arrumou tinta?



— No meu estúdio.



Bren me olhou com um novo respeito.



— Seu estúdio?



— Sim, é o meu... passatempo — respondi sem jeito.



— Os Pipher lhe deram um estúdio?



— Acho que foi Guillory — respondi. — Creio que estava em algum lugar
dos meus arquivos que eu gostava de arte.



Bren encolheu os ombros, voltando a atenção para Zavier.



— Eu não encontrei nada — ele falou. — E tentei buscar algo sobre você.



—Tentou?



Bren encolheu os ombros outra vez.




— Não consegui encontrar nada em lugar nenhum. Na verdade, não
encontrei nenhum registro sobre os seus pais terem tido uma filha. Acho que eles
prezavam pela privacidade. Havia uma foto sua com seus pais, escondida em um
dos arquivos da Uni, em que você tinha aproximadamente dez anos, mas seu
nome nem constava na foto. Você é quase um fantasma. Não tem rastros digitais.
Não consegui nem mesmo descobrir a data do seu aniversário.



— Como se eu nunca tivesse existido — falei. — Às vezes me sinto assim.
Todos que eu conhecia estão mortos.



Bren soltou Zavier e ficou desconcertado.



— Sinto muito.



Dei de ombros.



— Já estou me acostumando com a ideia.



— Mesmo assim, sinto muito.



A limobarca se moveu rapidamente. Nós já estávamos no condomínio e eu
ainda estava com medo de ficar sozinha.



— Você gostaria de conhecer o meu estúdio? — perguntei. — Está um
pouco bagunçado. Zavier esparramou algumas coisas, mas... Bem, preciso limpar
tudo antes que Patty e Barry voltem para casa.



— Você vai ficar sozinha até lá? — Bren perguntou.




Assenti.



— Sim. Exceto por Zavy.



Bren pareceu hesitar e então disse:



— Vou subir com você.



Quando abri a porta do estúdio, esperava ver tudo bagunçado do jeito que
eu tinha deixado de manhã. No entanto, aparentemente a faxineira tinha a chave
e não tinha ouvido as ordens que Patty dera. Ela limpou o cômodo todo, deixando
muito mais arrumado do que eu faria.



— Uau! — Bren exclamou ao entrar. Ele olhou as pinturas espalhadas ao
redor. Fiquei feliz que o desenho a giz que eu fizera dele no dia anterior tinha sido
destruído. Pude ver as pontas amassadas do desenho escapando do cesto de lixo
incinerador. Se ele tivesse visto meu desenho no dia anterior, eu não teria me
incomodado. Teria lhe dito a verdade, que costumava desenhar as pessoas ao
meu redor. Já tinha até feito alguns esboços de Patty e Barry, e um desenho a
lápis do Sr. Guillory. Mas, naquele momento, com aquela sensação estranha que
ele despertava em mim... bem, eu ficaria sem jeito.



Estava louca para pintar um retrato de Bren. Eu o colocaria sentado em
um banquinho no canto, com a estante como cenário de fundo. Ou talvez o
deixasse diante da janela, especialmente se conseguisse convencê-lo a abrir a
camisa, só um pouquinho. Talvez um pouco mais. Talvez tirar a camisa
completamente e deixar o sol reluzir sobre a sua pele, realçando os contornos do


seu peito musculoso. E, então, pintaria seus olhos no mesmo tom das plantas ao
fundo, e...



Percebi que ele tinha acabado de me fazer uma pergunta. Balancei a cabeça
para limpar as visões de Bren seminu no meu estúdio.



— O que foi que você perguntou?



— Por que você não está frequentando as aulas de arte na escola?



— Não sei. Imagino que o Sr. Guillory achou que eu não precisava. —
Apontei o estúdio ao redor. — Não me importo, tenho tudo isso.



Bren se aproximou da parede onde o maior quadro que eu tinha pintado
ainda estava secando. Era a paisagem de um dos meus sonhos estases, uma
pintura a óleo com montanhas ondulando em cores vibrantes e nuvens
sarapintadas de raios que despontavam mais alegres do que ameaçadores. Eu
dera à pintura o nome Dunas Azuis.



— Você pintou tudo isso?



— É apenas um passatempo.



Bren olhou para mim.



— São muito bons — ele disse. — Não se menospreze. — Ele inclinou a
cabeça para o lado e ficou admirando o meu quadro. — Noide, isso é das alturas!
— ele disse, assombrado. — Tem algo muito... visceral nessas paisagens.




Olhei para ele.



— Você realmente acabou de usar a palavra visceral? — perguntei. Eu não
escutava aquela palavra desde que tinha sido esquecida em estase.



Bren encolheu os ombros.



— Meus avós sempre me arrastaram para galerias de arte. Aprendi o
vocabulário de arte.



— Paisagens sempre foram o meu forte — contei a ele. — Ganhei um
prêmio por um quadro de paisagem.



— É mesmo? — Ele ergueu uma sobrancelha, olhando ainda mais de perto
a tela. Após um momento, ele assentiu. — Posso perceber. — Então, virou-se
para ver os outros quadros. — Este seria de uns sessenta anos atrás?



— Sessenta e dois — falei. — Foi um pouco antes de eu entrar em estase.



— Que nome você deu a ele?



— Sob o Céu.



— Meu, merecia um prêmio! — ele disse, sorrindo.



— O Prêmio Jovens Talentos. Era para eu ter ganhado um tour de arte de
um mês pela Europa. — E uma bolsa de estudos, mas provavelmente eu não
poderia aceitar.




— Você não foi? — Bren perguntou.



— Bem, eu estava... indisposta quando chegou o dia da viagem — expliquei.
Entrei em estase na véspera da viagem. De qualquer maneira, não teria ido
mesmo.



— Ah, claro. Sinto muito.



— Está tudo bem — falei. — Sei que parece estranho.



Ele encolheu os ombros.



— Só um pouquinho. — Ele passeou por alguns desenhos inacabados que
estavam sobre a bancada. — Esta é a minha mãe? — Ele pegou um desenho que
eu fizera a lápis em uma folha de sulfite.



— Sim — eu disse, olhando por cima de seu ombro. — Eu fiz no hospital. —
Foi fácil desenhar a Sra. Sabah. Seus traços tinham linhas limpas e uma fluidez
natural. Só não consegui transpor o mesmo brilho de seus olhos verdes.



— Eu poderia tirar uma cópia deste? Ela iria adorar ver.



— Pode levar para ela — respondi.



— Você está falando sério?



Encolhi os ombros.



— É só um rascunho.




Ele olhou para mim, quase emocionado.



— Você poderia assinar?



Franzi a testa, mas apanhei um lápis em uma gaveta.



— Por quê?



Bren riu.



— Porque com o seu talento, você será uma artista famosa e este desenho
provavelmente vai valer o peso da minha mãe em ouro.



Cocei o nariz.



— Não vou não — eu disse. — O Sr. Guillory precisa de mim na UniCorp.



Bren zombou.



— Todos dizem isso. — Ele se virou para os desenhos. — Isso me deixa
louco. Você deveria fazer o que quer.



— Não sei o que quero — falei. Mas assinei "Rose Firzroy" no cantinho do
desenho da mãe de Bren, e batizei o retrado de Annie.



— Você desenhou todo mundo. Noide, olhe para este! — Ele pegou o
desenho do Sr. Guillory. — Você o desenhou como se ele fosse um troll!




Inclinei a cabeça encabulada.



— Quem, eu? — disse inocentemente.



Bren riu. Em seguida, pegou outro desenho.



— Quem é este? Acho que o reconheço. É algum garoto da escola?



Franzi o cenho.



— Não — eu disse. E me virei de costas.



Só então Bren notou que havia mais cinco desenhos de Xavier pendurados
nas paredes. Havia muito mais, é claro, mas duvido que ele ligasse os desenhos
do bebê aos retratos de Xavier adolescente. Seu tom se tornou ainda mais sério e
ele perguntou:



— Quem é ele?



Eu não queria falar sobre aquilo com Bren. Mas o fiz mesmo assim. Eu
queria que Bren me abraçasse e dissesse que sentia muito por mim, que beijasse
carinhosamente minha testa, minhas pálpebras e me dissesse que tudo ia ficar
bem. Voltei-me na direção da prancheta e fiquei observando o aquário atrás dela.



— Era o meu namorado.



— Ah! — Bren exclamou. Então, disse metade do que eu desejei: — Sinto
muito.




Encolhi os ombros.



Um silêncio desconfortável se seguiu. Pude sentir o calor dele às minhas
costas, atraindo-me em sua direção.



— Bem, ah... obrigado pelo desenho. A minha mãe vai adorar.



— Não há de quê — respondi.



— Acho que nos vemos na escola.



Quando dei as costas para o aquário, Bren já tinha saído.




































8





NAQUELA NOITE, NÃO DORMI NADA. ENCOLHI-ME NO MEU QUARTO, MINHA
MÃO segurava firmemente a coleira de Zavier, meu telefone celular ficou ao meu
alcance. Cada ruído, cada vez que Zavier mudava de posição, cada farol de
veículo que passava e refletia nas paredes aumentava a minha certeza de que
seria atacada novamente. Durante o jantar, considerei a possibilidade de contar
para Patty e Barry sobre o ataque que eu sofrera, mas não tive coragem. Eles me
tratavam com tanta indiferença que me pareceu impossível. Eu não era boba.
Verifiquei os registros do sistema de segurança e não havia nenhum sinal de
violação. Uma perícia policial iria indicar que não tinha acontecido nada. Aquilo
não fazia o menor sentido.



Quando os primeiros raios de sol começaram a penetrar através da janela.
apanhei meu celular.



— Consultório da Dra. Bija — disse a imagem holográfica da secretária do
consultório.



— Gostaria de marcar um horário — eu disse. — Para esta manhã, se
possível.



A secretária respondeu brusca e desdenhosamente.



— É urgente?




Pensei na pergunta. Meu impulso natural quando alguém me fazia esse tipo
de pergunta era responder não.



— É — eu disse, sentindo um pouco de vergonha.



— Você é aluna da escola?



Assenti,



— Nome?



— Rose Fitzroy



— Ah! — De repente, a conduta da secretária mudou e seus olhos
começaram a se desviar dos meus, como se ela estivesse olhando acima da sua
tela. — Bem, não posso arrumar um horário para você antes da aula, mas posso
marcar um para às dez, no início da terceira aula. A dra. Bija pode assinar um
pedido de dispensa para você e enviar pelo correio eletrônico.



— Obrigada — murmurei.



— De nada, Srta. Fitzroy. — Ela desapareceu e parecia aliviada por
encerrar a ligação.



Dormi durante a aula de psicologia social. Permaneci acordada na aula de
história, para observar Bren, mas, depois do intervalo, fiquei feliz com a desculpa
para escapar da aula de mandarim.




A Dra. Bija me pareceu preocupada quando entrei em seu consultório.



— Algum problema, Rose? — ela perguntou. — A minha secretária me disse
que você marcou uma sessão extra.



— Sei que só nos encontraríamos novamente na segunda-feira, mas não
consigo dormir.



— Os pesadelos pioraram?



— Não exatamente — respondi, mas eu vinha me perguntando isso desde
que chegara em casa no dia anterior. Não havia nenhum rastro da existência do
homem brilhante além do cansaço de Zavier, o que pode ter ocorrido devido à
bagunça que ele fez no meu estúdio enquanto eu dormia. — Acho que mais ou
menos. — Sentei-me no sofá, sentindo-me confusa e exausta.



— O que a está incomodando? — Mina perguntou.



— Eu... acho que fui atacada na noite retrasada — eu disse. — Por um
homem brilhante de olhar morto que queria colocar um colar controlador em
mim... — contei a ela tudo o que tinha acontecido, incluindo como eu tinha
corrido para o subsolo e adormecido no meu tubo de estase. — E quando voltei
para casa, meu estúdio estava todo bagunçado — terminei.



— Você falou com Patty e Barry sobre essa... experiência? — Mina
perguntou.




— Não — respondi. — Patty estava tão brava quando cheguei, o estúdio
estava todo bagunçado e eu precisava ir para a escola. Quando voltei para casa,
no fim da tarde de ontem, tudo isso me pareceu muito estranho.



Dra. Bija assentiu.



— Você sabe que o seu prédio conta com um forte sistema de segurança,
não é? Pessoas sem autorização não podem nem andar nas proximidades, muito
menos pelos corredores do seu prédio, sem que um milhão de alarmes dispare.



— Eu sei — respondi. — Verifiquei os registros do sistema de segurança.
Ele não apareceu. Na maioria dos meus sonhos sou perseguida por alguma coisa,
mas esse parecia muito mais real. E o meu estúdio ficou de pernas para o ar.



— Será que não foi o seu cachorro que fez isso? — Mina perguntou.



— Talvez. Mas como eu poderia ter sonhado que o meu estúdio foi
bagunçado e depois acordado e constatado que, de fato, isso aconteceu?



— Isso costuma acontecer com muita frequência — Mina me contou. —
Ouvimos coisas enquanto estamos inconscientes e incorporamos isso aos nossos
sonhos. Estou mais preocupada com a possibilidade de você ter sofrido um
ataque de sonambulismo. Isso já lhe aconteceu antes?



Neguei com um aceno de cabeça.



— Não. Na verdade, nunca tive pesadelos antes. Mas, na noite passada,
estava tão assustada que simplesmente passei a noite toda sentada.




Dra. Bija assentiu.



— Vou arrumar uma receita de remédios para ajudá-la a dormir. Algo
fraquinho — ela me garantiu —, nada que irá deixá-la viciada. Tome-os apenas se
você realmente tiver problemas para dormir, como na noite passada. Você sabe o
nome do seu médico? Vou pedir a ele que faça a prescrição.



— Não — eu disse.



— Vou entrar em contato com o Sr. Guillory. Ele deve saber.



— Você tem mesmo de falar com Guillory? — Ele fazia com que eu me
sentisse muito desconfortável.



— Não vou contar a ele nada sobre isso — Mina assegurou. — Mas não
posso prescrever a medicação a você.



Suspirei.



— Certo. Rose "a esquisita" se torna ainda mais esquisita.



Mina riu.



— Você realmente se considera esquisita?



— De que outra maneira você pode chamar uma adolescente que tem cem
anos de idade?




— Acho que são apenas setenta e oito — Mina disse, e percebi que eu havia
falado demais. Alguns dias antes eu tinha me dado conta de que, quando Bren
me acordou, havia se passado um século desde o dia do meu nascimento. Um
século e sete semanas. Havia algumas coisas que era melhor a Dra. Bija não
saber.



Não sonhei mais com o homem brilhante, nem tive crises de
sonambulismo. As pílulas que a Dra. Bija tinha arrumado para mim me
ajudaram um pouco com os pesadelos. Ou melhor, elas me ajudavam a voltar a
dormir depois que eu despertava de algum pesadelo.



Continuei indo à escola que, por sua vez, continuou assustadora. Continuei
com a fisioterapia, e finalmente ela começou a surtir efeito. Cheguei ao ponto de
poder levar Zavier para um bom passeio depois da escola sem que meus
músculos reclamassem, apesar de ainda não conseguir correr. Continuei com a
minha arte que, surpreendentemente, estava ficando ainda melhor do que antes
— sessenta e dois anos de sonhos estases não tinham sido uma total perda de
tempo. Continuei com as sessões com a Dra. Bija uma vez por semana. E
continuei, quase contra a minha vontade, observando Bren.



— Você trouxe uma de suas obras de arte para eu ver hoje? — a Dra. Bija
perguntou quando entrei.



Balancei a cabeça, negando. Tinham se passado quase quatro semanas
desde o meu incidente de sonambulismo e eu nunca me lembrava de pegar uma
de minhas paisagens antes de sair de casa para as sessões.



— Sinto muito.




Mina ergueu uma sobrancelha.



— Vejo que você trouxe um bloco de desenho. Há algo aí que gostaria de me
mostrar?



— São apenas rascunhos — eu disse, surpresa.



— Qual o problema? Não preciso ver a Mona Lisa.



Encolhi os ombros.



— Certo. — Entreguei o bloco a ela.



As primeiras páginas eram de paisagens.



— Fale um pouco sobre estes desenhos — Mina pediu.



— São apenas paisagens — eu disse.



— Onde você as desenhou?



— Ah... a maioria foi durante as aulas — admiti. Ao longo do último mês eu
tinha enchido muito mais páginas do meu bloco de desenho do que feito as lições
de casa no meu supertablet. Poucos dos meus desenhos eram coloridos, mas ela
pareceu apreciar até mesmo as paisagens cinzentas, feitas a carvão. Várias
paisagens eram de tempestades, elas sempre ocorriam em meus sonhos estases.
Ela virou mais algumas páginas.



— E quem é este? É o Bren?




Umedeci os lábios, nervosa.



— Não — respondi. — Esse é Xavier. — Havia me esquecido que tinha um
desenho dele ali. Estava tentando com tanto afinco evitar mencionar qualquer
coisa sobre a minha vida passada, e agora eu tinha acabado de entregar algo de
bandeja para ela.



— Quem é Xavier?



— Alguém que eu conheci... antes.



De repente, senti que ela estava cheia de perguntas, todas as perguntas
que ela evitara fazer sobre a minha vida pregressa. Não ofereci mais nenhuma
informação e, a seu favor, ela respeitou isso. Ela simplesmente virou a página
seguinte.



— Esses são Nabiki e Otto — falei.



— Sim, eu sei.



— Você conhece o Otto?



— A situação de Otto é um pouco parecida com a sua. Acho que todos
sabem quem ele é — Mina falou.



Captei algo em suas palavras que provavelmente não deveria.



— Ele é seu paciente?




— Não posso responder isso — Mina disse. — Você deveria perguntar a ele
se estiver curiosa.



Suspirei.



— Não posso. Ele não vai me responder.



— Você ficaria surpresa em saber o quanto Otto pode dizer, se permitir que
ele fale.



— Sei tudo sobre o modo como ele se comunica — respondi. — Mas ele não
permite que eu o toque. Por algum motivo, minha mente o assusta.



— Ah! — Mina exclamou pensativa. — Ele lhe disse por quê?



Balancei a cabeça.



— Nabiki não conseguiu traduzir muito bem.



— Você tentou perguntar a ele pessoalmente?



— Eu já lhe disse, ele não vai falar comigo.



Mina torceu os lábios.



— Você já tentou entrar em contato com ele através da rede?



Eu a encarei como se ela tivesse ficado louca.




— Se ele não pode falar, como poderá usar um celular?



— Através do supertablet — Mina esclareceu. — Ele escreve muito bem.



Eu simplesmente não tinha pensado nessa hipótese. Raramente abria meu
supertablet, muito menos escrevia nele. Nunca tive com quem me comunicar.



— Vou pensar a respeito — eu disse, virando a página para ela. — Este é o
Bren.



Mina sorriu.



— Ele é bonito. Veja esses olhos!



Eu os encarei.



— Eu sei — sussurrei. Eu tinha destacado os olhos dele no desenho Eles
pareciam brilhar entre os espaços sombreados. Os olhos de Bren sempre me
atraíram, até eu me dar conta que estava desenhando-os.



Eu tinha desenhado, naquele bloco, a turma toda que almoçava comigo e,
assim, Mina pôde colocar rostos em todos os nomes que eu mencionava. Em
seguida, ela virou a página e lá estava outro retrato de Xavier.



— Este é o mesmo garoto de antes — Mina comentou —, mas ele parece
mais novo aqui. Ele é seu irmão?



— Não — respondi. — Esse também é o Xavier. Nossa amizade foi longa.




— Durou quanto tempo?



Senti uma pontada de dor.



— Durante toda a vida dele — eu disse.



Então, ela fez a primeira pergunta direta sobre a minha situação.



— Você sente saudades dele?



Pensei em ignorar a pergunta ou mudar de assunto, mas não o fiz.



— Todos os dias — confessei. — Tento não pensar nele.



— Mesmo assim você o desenha.



Suspirei.



— Não posso pensar nele, mas também não consigo esquecê-lo. Não é certo
esquecer uma pessoa que você amou.



Um silêncio muito, muito longo se seguiu, e então Mina perguntou:



— Você acha isso?



Essa linha de perguntas tinha ido demasiadamente longe.




— Então é isso, esse é o meu bloco de desenho — eu disse, pegando-o de
volta. — Não passa de um monte de rabiscos.



— Eles são muito bons — Mina falou, recostando-se de volta na cadeira.



— Você acha que irá dar continuidade à sua arte?



— Claro que vou.



— Quero dizer, você acha que gostaria de fazer isso para viver?



— Tenho a UniCorp para assumir — eu a lembrei.



— Claro — Mina disse. — Esse é um desafio e tanto. Você acha que tem
capacidade para administrar uma corporação interplanetária multifacetada como
a UniCorp?



Ninguém nunca me perguntara isso antes. Senti um peso nos ombros.



— Não — admiti. — Mas talvez eu possa contratar alguém para administrar
tudo. Talvez depois que eu me formar...



Ela riu.



— Felizmente, você não tem de se preocupar com isso agora.



— Não, você tem razão — eu disse. — Eu deveria estudar mais.



* * *




Eu deveria estudar mais. Essa se tornou tanto a minha ladainha quanto a
minha vergonha, pois, por mais que a repetisse, não conseguia me concentrar
nos estudos. Eu sabia que era muito burra para entender as coisas, então, como
as matérias da escola poderiam me interessar?



Bren me interessava. Otto me interessava ainda mais.



Eu estava muito interessada em Otto, mas achei difícil conseguir descobrir
mais sobre ele. Não tive coragem de lhe passar o meu número na rede,
especialmente por causa de Nabiki (e ela estava sempre por perto). Nabiki gostava
de falar sobre ele, e foi assim que consegui descobrir algo mais. Otto sempre
estava lá quando eu descobria mais alguma coisa a seu respeito, e parecia muito
estranho eu não ter conseguido as informações diretamente dele — pelo menos,
não falávamos de Otto pelas costas.



Descobri que ele ganhara uma bolsa de estudos do Uni sem contar a
ninguém exatamente quem ele era. A bolsa de estudos era concedida com base
em uma redação. Otto não falava, mas tinha uma mente brilhante e isso se
mostrava por meio de sua escrita.



Apesar da bolsa de estudos, Otto quase não conseguiu entrar no
Preparatório Uni. Levou seis meses e uma ação de direitos civis para que ele
conquistasse o direito a uma educação externa. Antes, ele e sua família
frequentavam a escola do laboratório da UniCorp, cada mínima alteração de seu
cérebro era monitorada e registrada.



Otto estudava com afinco no Preparatório Uni. Seus irmãos, as outras três
crianças do Projeto Europa que não tinham deficiência mental, ainda estavam


sendo monitorados pela UniCorp e, ele os visitava nos fins de semana. Apesar de
não serem maltratados, todos não viam a hora de atingir a maioridade e serem
oficialmente seus próprios guardiões.



Bren era pura energia em minha cabeça, um passarinho de sentimentos
batendo asas e constantemente distraindo meus pensamentos. Otto, por outro
lado, era um peso. Ele se esquivava, tornando-se um fardo pesado que ficava em
um canto da minha mente e que eu arrastava para todos os lugares. Consumia-
me saber que todo o seu sofrimento advinha da empresa que eu herdaria.



E o fato de eu surpreendê-lo me observando (encarando mesmo), em várias
ocasiões, não ajudou muito, mas Otto não tinha expressão. Eu não conseguia
decifrá-lo. Além do sorriso forçado que obviamente tinha cultivado como um
lubrificante social, era impossível dizer o que ele estava pensando. Eu não sabia
dizer se Otto estava interessado em mim ou se sentia muita raiva de mim.



Minha oportunidade surgiu por puro acidente. Na hora do almoço, dias
depois de eu ter mostrado meu bloco de desenhos para a Dra. Bija, Nabiki e Otto
deixaram a mesa rapidamente e se esqueceram de levar seus supertablets.
Sorrateiramente alcancei o supertablet de Otto e liguei-o. Lá estava. Salvei seu
número no meu supertablet para entrar em contato com ele mais tarde.



E bem nesse momento, Nabiki voltou correndo, e eu peguei os dois
supertablets para disfarçar.



— Vocês os esqueceram — eu disse, entregando-os.



Nabiki pareceu um pouco irritada.




— Obrigada — ela agradeceu.



Nabiki era sempre muito educada, mas eu podia perceber que ela não
gostava de mim.



Eu me senti estranha quando me conectei com o supertablet de Otto mais
tarde, naquela noite. Ele ainda usava o sistema do tipo Messenger para se
comunicar, o que era uma tecnologia ultrapassada, já era antiquada quando eu
era criança. Os programas de mensagem instantânea foram substituídos pelos
celulares, que atendiam com um comando de voz e utilizavam pequenos
gravadores holográficos que permitiam ver a pessoa enquanto se conversava com
ela. Aquilo pareceu tão antiquado para mim quanto uma caneta tinteiro teria
parecido para alguém nos tempos de Gates.



Ativei o teclado na minha tela, respirei fundo e comecei a escrever.



"Otto, desculpe incomodá-lo. Aqui é a Rose."



Esperei.



Quando a resposta despontou na minha tela, quase não consegui ler de tão
nervosa.



"Não é incomodo algum. Legal falar com você."



"É, olá." — Uma vez estabelecida a conversa, eu não sabia ao certo como
continuar. — “Acho que eu já disse olá." — Fiquei feliz por ele não poder ver a
cara que eu fiz quando percebi que estava soando como uma boba. — "Sinto
muito. Mas é estranho falar com você por meio da Nabiki o tempo todo."




"É mesmo. Estou feliz que você tenha pensado em me escrever. Isso é
realmente muito... uau. Isso é tão das alturas! Sabe! Eu realmente não estava
esperando."



Eu também não esperava. Otto parecia tão mais amigável comparado ao
seu olhar frio e à indiferença de Nabiki.



"Sinto muito."



"Por quê?"



"Por interromper seja lá o que você esteja fazendo."



"Você não está interrompendo nada. Para falar a verdade, eu também
quería falar com você. É que... este seria o único modo, e eu não conseguia
encontrar um jeito de pedir. É uma pergunta um pouco estranha para se fazer
por meio de outra pessoa. A maioria das pessoas considera esse tipo
comunicação muito antiquado."



"Na verdade, eu também considero."



"Sério? Pensei que você já tivesse se comunicado dessa maneira antes."



"Bem, já, mas só quando eu era criança."



"Foi o que pensei."




Uma longa pausa se seguiu. Eu realmente não sabia o que dizer em
seguida.



"Existe algum motivo específico para você querer falar comigo?"



"Mais ou menos." — escrevi. — "Foi a Dra. Bija quem sugeriu que eu
escrevesse para você."



"Mina? Ela não é legal?"



"Gosto dela. Você frequenta o consultório dela?"



"Semanalmente."



"Eu também."



"Eu sei."



"Ela não me contou sobre você."



"Não foi ela quem me contou. Foi você. Ela estava na sua mente."



"Ah. Não sei ao certo como me sinto com relação a isso."



"Não se preocupe. Não mostro para ninguém o que eu vejo na mente das
outras pessoas. Tenho um código de ética tão rígido quanto o de Mina. Quanto o
de qualquer médico."



"É mesmo?"




"Você tem a minha palavra. Por escrito."



Percebi um tom de humor naquela frase.



"Obrigada" — escrevi. — "Eu queria lhe fazer uma pergunta um pouco
pessoal e não queria que fosse através da Nabiki."



"Hmm. Por que não?"



Tentei pensar em algo que não fosse ofensivo, uma vez que eu realmente
não tinha nenhum motivo para não gostar de Nabiki. Na verdade, eu a
considerava muito — qual era mesmo a palavra que eles usavam? — das alturas,
considerando o seu bom gosto para escolher amigos.



"Ela parece não gostar muito de mim."



“Ah. Vou ter de avisá-la, ela não está conseguindo esconder bem sua
hostilidade."



"Ela está tentando esconder?"



"Desesperadamente."



"Então, ela realmente não gosta de mim?"



Houve uma pequena pausa antes dele responder.



"Ela não a culpa por isso. Ela sabe muito bem que a culpa não é sua."




"O que não é culpa minha?"



Outra pausa longa se seguiu.



"Ela está com ciúme" — ele finalmente escreveu.



Fiquei indignada.



"Com ciúme? Mas de quê?"



"Por quem você é, eu acho."



"Olhe! Diga para Nabiki que ela pode ficar com tudo. Com toda a minha
vida. Pode ficar com a maldita empresa inteira, com os repórteres odiosos, com a
fadiga estase, com mais dois anos de fisioterapia, sem mencionar os pesadelos!
Eu trocaria de lugar com ela num piscar de olhos."



No momento em que enviei a mensagem me arrependi.



"Desculpe" — escrevi no mesmo instante.



"Ela sabe de tudo isso. Não é disso que ela tem ciúme."



Fiquei confusa.



"Do que ela tem ciúme, então?"



"Eu acho você interessante, e ela acha isso irritante."




Engoli em seco.



“Ah."



"Pois é. Sabe, isso não costuma acontecer com muita frequência. A maioria
das pessoas me cansa. A maioria das mentes é muito simplória."



"Não sou muito inteligente" — escrevi.



"Não tem nada a ver com a sua inteligência, apesar de eu não ver nenhuma
asneira em seus pensamentos. Não, é a capacidade de pensar e refletir que
considero interessante. Todos possuem a habilidade de ampliar a sua mente, mas
poucos fazem uso dessa habilidade."



Eu não sabia o que dizer, por isso, fiz outra pergunta:



"Nabiki é interessante?"



"Muito. Ela possui várias camadas de pensamento. Creio que seja por isso
que ela consiga sentir hostilidade e simpatia por você ao mesmo tempo."



"Como vocês se conheceram? Se não for uma pergunta muito pessoal."



"Não é. Quando entrei no Uni, a minha situação não era das melhores. Eu
era quase tão solitário quanto você e ainda mais estranho. Tive muitos
aborrecimentos. Nabiki sempre me protegeu com ardor, mesmo quando ainda
mal nos conhecíamos. Havia algo naquilo que me lembrava uma mãe Leoa. Ela


ficou tão lisonjeada com a ideia que praticamente se apaixonou no mesmo
instante."



"Espere, depois de um elogio?"



"Bem. É um pouco difícil de explicar. Primeiro, um elogio vindo de mim
normalmente é bonito, bem, intenso. Deus, isso soou arrogante. Mas é verdade,
sou estranho, e isso é a coisa mais estranha sobre mim. E em segundo lugar,
Nabiki simplesmente gostou do elogio. Tudo o que ela sente é de todo o coração,
não deixa escapar nada. Foi muito estranho absorver os pensamentos de uma
pessoa que estava se apaixonando por mim. Era como se um arco-íris de luzes
penetrasse na minha mente."



Gostei da descrição do amor.



"Eu não tinha planejado arrumar uma namorada, mas era uma ideia tão
linda que acabei baixando a guarda. Já estamos juntos há mais de um ano."



"É uma bela história."



“Acho que é melhor do que a maioria das suas histórias."



Encolhi os ombros, apesar de ele não poder ver o gesto.



"É verdade."



"Não se preocupe. Tenho muito mais histórias ruins do que boas."



"Sinto muito."




"Eu não. Não posso viver a vida de ninguém a não ser a minha. Qual era a
pergunta pessoal você queria me fazer?"



“Ah. É uma pergunta só. O que o assustou na minha mente?"



"Você não quer a resposta para essa pergunta."



"Quero sim."



"Se eu pudesse ter dado uma resposta apropriada, da primeira vez, você
não teria de me perguntar novamente. Não estou acostumado a encontrar
palavras para aquele tipo de coisa."



Meus ombros penderam de desapontamento.



"Mesmo assim, ainda estou perguntando. Responda do modo que
conseguir."



"A mente é sua" — Otto escreveu. — "O que você acha que eu vi?"



"Quando você me tocou, só me senti confusa."



"E solitária. E assustada. E perdida. E um pouco ressentida."



"Não estou ressentida com você."



"Não comigo. Mas com alguma estátua dourada."




“Ah. É assim que penso em Reginald Guillory "



"Isso é engraçado!"



Um pensamento me ocorreu.



"Você ri?"



"Não muito bem. O som... é estranho. Costumo não fazer isso em público."



"Por que você não fala?"



"Não consigo. Já tentei. Tem uma caixa de ressonância nos humanos
adultos que possibilita a fala. A minha ainda é do mesmo tamanho de uma
criança de um ano. Consigo sussurrar às vezes, se estiver desesperado, mas isso
também soa estranho e as pessoas têm dificuldade para entender. Sei a
linguagem de sinais, mas ela é inútil se os outros não sabem também. Isso pode
ser muito frustrante."



"E as suas expressões? A sua pele?"



"Creio que, como herdeira da UniCorp, você pode acessar o meu prontuário
médico se quiser."



"Não é preciso" — escrevi o mais rápido que pude. — "Sinto muito."



"Eu não quis ser rude" — Otto escreveu. — "Meu conceito sobre a UniCorp
não é dos melhores."




"Eu não o culpo."



"Eu também não a culpo."



Foi bom ouvir isso.



"Fico feliz. Mas ainda quero entender. Eu gostaria de saber por que o
assustei, para que este não seja o único meio que possamos usar para
conversar.”



"Certo. Deixe-me pensar." — Houve uma longa pausa antes que as palavras
começassem a surgir novamente. — "Isso é irritante" — ele finalmente escreveu.
— "Seria muito mais fácil se eu pudesse lhe MOSTRAR. Mas, se eu pudesse lhe
mostrar, não teria de fazê-lo, porque eu estaria na sua mente e o problema não
teria surgido."



"Isso é irônico" — escrevi.



"Um pouco. Mas tudo bem. Existe um... vazio na sua mente. Não é falta de
intelecto, e não se trata de bloqueios ou falhas de memória. Sua memória me
parece muito sólida. Forte em alguns pontos, mais do que a maioria das pessoas.
Tão forte que parece correr em alta velocidade. Não consegui ver muito, por isso
me corrija se eu disser algo que a ofenda."



"Duvido que tenha qualquer coisa que você possa dizer que irá me ofender"
— respondi com sinceridade.



"É algo que está ao redor das áreas onde aquelas memórias fortes circulam
desenfreadas. Tanto antes quanto depois dessas áreas existem vastos buracos, e


tenho medo de olhar dentro deles. Sinto que o que está lá dentro é muito
perigoso. Como se fosse uma roseira cheia de espinhos que pudesse me arrastar
para dentro e me prender para sempre. Mas não sei por que sinto isso."



Engoli em seco.



“Otto?" — escrevi. — "Você já entrou em estase?"



“Não, mas planejo fazê-lo um dia. Eu, minhas irmãs e meus irmãos
gostaríamos de ir para Europa depois que atingirmos a maioridade e, então,
termos o direito de fazer tudo o que quisermos."



Sorri ao ler aquilo.



“Por que você perguntou?"



"Só estava tentando imaginar se foi isso que você viu."



"Duvido que tenha sido. Existe mais de um espaço vazio."



"Bem, passei por mais de uma estase."



"É mesmo? Por que você passou por mais de uma estase?"



Tive de mudar de assunto.



"Você acha que vai conseguir ir para Europa?"



"Eles não poderão nos impedir depois que completarmos vinte e um anos."




"Fico feliz que você seja humano o bastante para que a UniCorp não possa
ser sua dona por completo."



"Mesmo assim eles ainda podem fazer muito mais conosco" — Otto
escreveu. — "Não conhecemos nem o nosso próprio sangue. Tente picar um de
nós, pensa que não sangramos? Não sem uma autorização por escrito. A UniCorp
é a detentora dos nossos direitos de reprodução também. Se um dia pudermos ter
filhos, eles serão os donos deles."



"Isso é horrível!"



"Sim. Mas a sua situação no momento é quase tão ruim quanto a minha. A
UniCorp tem todos os direitos sobre você também."



"Até que eu possa assumir a UniCorp."



"Isso se a sua estátua dourada deixar."



Fui tomada por um pressentimento terrível.



"Você acha que ele não permitiria?"



"Sei que ele gosta do poder. Ele ficou extremamente ofendido quando
ganhei a bolsa de estudos do Uni. E tem nos perturbado desde então."



Quando li aquilo, me senti mal. Tentei não pensar no Prêmio Jovens
Talentos há muito perdido.




"É claro que não sou totalmente livre" — Otto continuou. — "O Uni também
é administrado pela UniCorp. Foi só por isso que ganhei a ação. O juiz decidiu
que qualquer escola administrada pelos meus guardiões era o mesmo que
qualquer outra entidade administrada por eles e que, se eu tive a capacidade de
ganhar a bolsa, poderia escolher. Citando a linguagem jurídica." — Houve uma
pausa no seu fluxo constante de palavras, então, elas recomeçaram. — "Preciso
ir. Eles apagam as luzes às onze horas para os internos e Jamal é meu
companheiro de quarto. Ele reclama se deixo a tela ligada."



"Boa noite, Otto."



"Boa noite, Rosa Selvagem. Escreva para mim novamente. Eu ainda acho
você interessante."




































9





FOI BOM FALAR COM OTTO. CONVERSAR COM ELE ANTES DE DORMIR FEZ
COM que eu me sentisse um pouco menos solitária. Aquela foi a primeira noite
em semanas em que não tive um pesadelo. Eu estava mais do que disposta a
repetir qualquer coisa que me ajudasse a afastar os horrores.



Por isso, no dia seguinte, na hora do almoço, fiquei contente quando Otto
lançou seu sorriso contido na minha direção, em um momento em que Nabiki
não estava olhando. Ele tocou no seu supertablet duas vezes e então ergueu as
duas mãos. Às dez. Concordei silenciosamente.



Às dez horas daquela noite, com Zavier sentado aos meus pés, mantendo-
os aquecidos, eu me acomodei e liguei o meu supertablet. Mal tive tempo de abrir
um arquivo antes que a janelinha de conversa começasse a piscar.



"Olá, outra vez."



"Olá" — escrevi. — "A quê devo a honra?"



"Eu só queria falar com você."



"Sobre o quê?"




"Sobre nada e sobre tudo. Quero lhe fazer todas as perguntas banais que
você nunca respondeu aos jornalistas."



"Do que você está falando? Não fiz outra coisa senão falar com jornalistas
durante dias!"



"Dizendo a eles exatamente o que eles queriam ouvir. Estou certo?"



Hesitei.



"Hmmm" — finalmente escrevi, meio de brincadeira.



“Você é engraçada. Conte-me a verdade. O que sentiu ao despertar sessenta
anos depois de dormir?"



"Estase não é exatamente um sono" — escrevi, querendo me esquivar da
pergunta. — “Apesar de permitir que você descanse. E de ocorrerem... sonhos, na
falta de um termo melhor."



"Não são sonhos de verdade?"



"Não" — escrevi. — "É como se você estivesse vendo dentro de sua própria
cabeça." — Franzi a testa. — "Acho que é um pouco parecido com o que você fez
quando me tocou, só que é dentro de sua própria cabeça. E a maioria deles vem
em forma de imagens, tempestades e mares, e muitas cores."



"Ah!" — Uma longa pausa se seguiu. — "Deve ser muito fantasmagórico,
então."




"Não. A estase química elimina os centros do medo no seu sistema nervoso.
Você não sente nenhum tipo de medo durante a estase. Preocupação e tristeza
são particularmente eliminadas também, uma vez que a maioria desses
sentimentos envolve o medo."



"Isso é estranho."



"Mas foi necessário. Antes dos supressores do medo, as pessoas
instintivamente entravam em pânico enquanto seus corpos paravam de
funcionar. É um processo estranho, digo, suas células parando de envelhecer ou
de se dividir, e você sentindo seu corpo, bem, como se estivesse morrendo. Você
não está morrendo de fato, mas esse é o único parâmetro que seu corpo tem.
Você pode sentir isso por um segundo apenas, mas antes dos supressores
começarem a fazer efeito, aí a estase é extremamente desagradável. As pessoas
ficavam paralisadas em um estado de terror por... todo o tempo que permaneciam
em estase. Havia também os claustrofóbicos, que entravam em pânico muito
antes de a estase começar, e..." — Era tudo o que eu sabia. — "Havia outros
motivos. Antes de ser introduzida a segunda carga de químicos, a estase era
muito menos prazerosa de se usar."



"Você sabe muito sobre o assunto."



"Já passei por várias estases."



"Do jeito que você fala, isso parece com uma droga."



Tive um sobressalto. Demorei tanto para responder, que Otto escreveu:



"Rose? Você ainda está aí?"




"Estou aqui" — escrevi. — "Você me pegou de surpresa, só isso. Tem razão.
De certo modo, acho que é um pouco parecido com uma droga."



"Desculpe, acabei de perceber que foi um pouco insensível da minha parte
dizer aquilo. Eu não quis dizer que você ficou drogada durante sessenta anos."



"De acordo com o que me disseram, foram sessenta e dois" — eu disse. —
"Não, não foram sessenta e dois anos drogada. Foi mais como uma meditação
sobre a minha arte durante muito tempo mesmo."



"E ajudou na sua arte?"



"Parece que sim. Não que eu tenha escolhido aquela opção de estudo.
Dificultou um bocado os meus relacionamentos. E a fadiga estase não é muito
divertida."



"Imagino que não seja mesmo. Quanto tempo você ficou no hospital?"



"Eu deveria ter ficado três semanas, mas eles me deram alta depois de uma
semana. Os jornalistas estavam chegando. Quatro semanas depois, eles me
matricularam na escola. Eu ainda não consigo correr mil e seiscentos metros."



"Isso eu consigo fazer. Todos nós somos ótimos corredores. Eles escolheram
os melhores embriões para nós. Mas Tristan é a mais rápida."



Percebi que ele tinha mudado de assunto por minha causa e fiquei grata.



"Tristan?"




"Tristan Due. A minha irmã."



"É um nome diferente."



"Significa 32. Todos nós arrumamos nomes baseados em nossos números
embrionários."



"Como você acabou se chamando Otto, então?"



"Tecnicamente significa Octavius, nos registros do tribunal. É meio que
para encurtar. Octavius Sextus. Acho bem melhor do que 86."



"Registros do tribunal?"



"Sim. Nós lutamos para ter nomes de verdade."



"Quando vocês fizeram isso?"



Uma pausa muito mais longa do que eu imaginara que ele precisaria para
responder uma pergunta tão inofensiva se seguiu.



"Quando nós tínhamos treze anos" — Otto escreveu.



"Por que não antes?"



“Isso foi quando..." — então ele não escreveu mais nada durante um bom
tempo. — "Quando começamos a morrer" — ele terminou.




"Sinto muito. Você não precisa continuar."



Outra pausa se seguiu.



“Não tem problema" — Otto escreveu. — "Pensei que seria mais difícil para
mim, mas acho que essa forma de comunicação veio a calhar. Eu me esqueci do
quão intenso é ficar pensando em tudo na mente de outra pessoa. Não posso
contar para alguém sobre isso do modo como normalmente eu falaria com as
pessoas, acabo perdendo a fala. Nem mesmo para Nabiki. Mas, por este meio de
comunicação que estamos usando, não estou me sentindo tão incomodado.
Estranho."



"Bem, isso é bom. Eu acho."



"Sim. Estranho, mas bom. No começo éramos trinta e dois. Perdemos quase
meia dúzia por causa de complicações inesperadas durante a infância, a maioria
ainda era muito pequena, aconteceu antes de completarmos cinco anos. Mas,
quando atingimos a puberdade, começamos a cair com moscas. Dezesseis de nós
morreram em um período de oito meses, ou sete no caso daqueles que eram
organismos mais simples. Incluindo a minha melhor amiga. Ela se chamava 42."



"Mas o que aconteceu? O que levou vocês a escolherem nomes?"

"Foi ideia da Una. Una Prima. Onze. Ela tinha certeza absoluta de que ia
morrer. É claro que eu também tinha a mesma certeza. Aqueles que fazem o que
eu sou capaz de fazer morrem mais rápido."



"Você quer dizer os que têm a capacidade de ler a mente?"




"Isso mesmo. Quando éramos crianças, haviam muitos mais de nós que
conseguiam. Então, as coisas começaram a desmoronar. Alguns enlouqueceram
antes de morrer. Outros tiveram uma hemorragia cerebral muito forte. Foi isso
que aconteceu com a 42. Ficamos assustados. Especialmente a Una. Ela acabou
morrendo. Só restam Tristan e eu agora. Nós somos os únicos que não são
organismos simples e que podem compartilhar pensamentos, que sobreviveram."
— Houve uma pausa. — "Bem, até agora. Ninguém tem certeza absoluta da nossa
expectativa de vida."



"Deus. Você está me assustando."



"Eu também fiquei assustado. Acabei me acostumando com isso. Mas Una
Prima tinha medo de morrer e tinha apenas onze anos quando foi enterrada. Por
isso acho que aqueles de nós que conseguiram sobreviver resolveram escolher
nomes. Somente eu, Tristan, Penny e Quin conseguimos até agora. Os
organismos simples ainda são chamados pelos seus números."



"Quem são Penny e Quin?"



"Pen Última é a minha outra irmã. Ela se chamava 99. E Quint Essencial é
o meu irmão, ele se chamava 50. Quin consegue falar. Você precisa conhecê-lo.
Ele é muito engraçado."



"Eu gostaria muito de conhecer sua família. Vocês sempre se consideraram
uma família?"



"Sim. Mas não éramos oficialmente irmãos e irmãs até colocarmos os
nossos nomes. Una queria que sua família cuidasse do funeral, por isso enviamos
o pedido ao juiz e nos adotamos uns aos outros. Agora somos parentes com


direitos de herança e tudo, por isso, se morrermos (presumindo que já estejamos
livres até lá), a Uni não ficará com a nossa propriedade. Tudo o que ganharmos
será repartido entre nós. Legalmente somos parentes. Sempre me incomodou o
fato de 42 ter morrido antes de termos conseguido isso. É como se ela tivesse
morrido sozinha."



"Mas vocês não são irmãos de verdade?"



"Não. Tivemos mães diferentes, e DNAs distintos provenientes de micróbios
distintos. Quer dizer, do mesmo tipo de micróbio, em termos genéticos, mas de
indivíduos distintos. Acho que eles esperavam que tentássemos procriar entre
nós. Mas é muito estranho. Nós simplesmente não nos vemos desse modo.
Sempre estivemos juntos. Bem, isso até eu vir para a escola."



Algo sobre toda aquela história tocou fundo em mim. A lembrança da bolsa
do Prêmio Jovens Talentos ainda me perseguia. Será que eu simplesmente não
poderia ter aceitado o prêmio e fugido da minha mãe e do meu pai? Em vez de
tocar naquela ferida, perguntei a Otto:



"Sua família ficou chateada com você por causa do Uni?"



"Não. Nós quatro tentamos. Sabíamos que somente um de nós tinha a
chance de conseguir. Quin soube do programa de bolsa de estudos por meio de
seu tutor. Quin tinha um tutor diferente do nosso, porque ele pode falar. Tristan
e eu costumávamos compartilhar o mesmo tutor. Precisávamos de alguém que
tivesse especialidade em psicologia, por nosso meio de comunicação ser tão" —
ele fez uma pausa antes de continuar — "diferente. O tutor da Penny é surdo,
pois ela só consegue se comunicar por meio de sinais e escrevendo, como
estamos fazendo. A menos que eu esteja com ela, é claro, então posso traduzir."




"Isso deve ser estranho."



"Você precisa ver quando Guillory vem verificar o nosso progresso! Tristan e
eu nos recusamos a tocá-lo, e ele não sabe a linguagem de sinais, por isso, Quin
faz toda a conversa. E como eu disse, Quin tem senso de humor. Você precisava
ver a cara do Guillory! Quin ficou famoso por andar para cima e para baixo
fazendo ruídos 'bip, bip', só para assustá-lo."



"Você me fez rir" — escrevi. — "Obrigada, não costumo rir muito."



“Já percebi" — Otto escreveu.



"Fico feliz de não ser a única pessoa em quem você se recusa a tocar —
escrevi. — “Apesar de ter ficado um pouco desapontada por ter Guillory como
companheiro."



"Existem milhares de pessoas em quem eu me recuso a tocar" — Otto
contou. — “Você está longe de estar sozinha."



“Alguém mais o assusta?"



“A maioria das pessoas me cansa, ou me incomoda. A mente de quase
todas as pessoas não é um lugar muito agradável de estar."



Suspirei.



"Não é de se surpreender que você não queira me tocar, então."




"Na verdade, eu quero" — ele escreveu. — "Só que tenho medo. Isso é
irritante. Nunca me deparei com um problema como esse antes. Depois de ter
passado toda a minha vida em um corredor da morte biológico, existem poucas
coisas que me assustam." — Uma pequena pausa se seguiu antes de ele dizer —
"Por isso estou feliz que você ainda goste de mim. Isso é bom.”



"É sim" — escrevi. E era. — "Você contou a Dra. Bija que queria falar
comigo?"



"Claro. Sou um péssimo mentiroso e, se me sinto à vontade, também não
consigo esconder as coisas muito bem."



"O que a Dra. Bija pensa sobre mim?"



"Lá vamos nós outra vez. Ela não pensa sobre você ou sobre qualquer outro
de seus pacientes quando estou com ela e, se pensa acidentalmente, evito o
pensamento e não leio. É preciso muita confiança da parte dela, mas a Dra. Bija é
sincera. É como estar em uma sala com documentos secretos e jurar que não vai
ler nenhum dos que não estejam à sua disposição. Mantenha os olhos fixos à
frente e não preste atenção ao restante da sala."



“Ah! Não estou tentando burlar o seu código de ética. Eu meio que esperava
poder saber como as outras pessoas me veem."



"Posso dizer como eu a vejo" - Otto escreveu.



Fiquei com um pouco de medo de saber, mas escrevi:



"Certo."




"Você é muito calada. Você fala mais comigo do que já a vi conversando na
escola." — Ele tinha razão. Acho que eu escrevia mais com ele do que jamais
tinha falado com Bren ou com a Dra. Bija. — "Você me parece triste” — ele
continuou. — "Seus olhos são escuros, e não estou me referindo apenas ao tom
profundo de chá preto que eles têm." — Hum. Otto tinha olho bom para cor. —
"Você se dedica à sua arte, está sempre desenhando. Isso parece ser muito
importante para você, meio que uma válvula de escape, mais do que um
passatempo, eu acho."



"Você está certo" — escrevi, oferecendo alguma informação, uma vez que ele
tinha dito tanto sobre ele mesmo. — "Uso a arte para compreender as coisas."



"Você tem problemas para compreender as coisas?"



"Sim. Eu sempre me senti um pouco estranha, mesmo antes de tudo isso.
Desenhar me ajuda."



"Isso é bom. Deixe-me pensar. O que mais? Bem, pessoalmente, eu me
preocupo com você. Você não reclama, apesar de eu perceber que você odeia
quase tudo sobre a escola. Isso me leva a pensar se aconteceu algo com você. É
claro, todos concordam que passar sessenta anos fora é o bastante para
confundir a cabeça de alguém."



"Então, todo mundo me vê como uma pessoa confusa? Que bom."



"Claro que sim. Mas acho que a maioria está enganada em pensar isso. De
acordo com as fofocas (de que não guardo segredo, como faço com os
pensamentos dos outros), a maioria das pessoas acha que você quis permanecer


em estase e que você só queria se tornar o centro das atenções e a herdeira da
UniCorp. A maioria das pessoas acha que você sofre de distúrbio alimentar,
porque tem fixação por permanecer bela."



"Eu me pareço com um esqueleto."



"Também acho e fico observando você tentar comer."



"É por causa da fadiga estase."



“Ah. Desculpa."



"Muitas coisas não estão funcionando bem dentro de mim. Todos os meus
órgãos estão protestando por terem ficado inativos por tanto tempo. Foram
colocados alguns pequenos nanorrobôs dentro de mim, eles mantêm meus rins
funcionando e o meu coração feliz."



"Quin tem uns desses" — Otto disse. — "Eles serão retirados quando ele
tiver idade suficiente. Provavelmente quando estiver próximo da maioridade."



“Quando será?"



“Com vinte e um anos."



“Por que ele precisa da ajuda de nanos?"



"Estamos morrendo. Tentaram nos manter vivos. Metade dos organismos
simples também precisa de ajuda, especialmente porque não consegue dizer para
ninguém quando está sentindo dor."




"A vida deles é muito difícil?"



"Tentam mantê-los felizes. Nós os visitamos por uma hora mais ou menos
nos fins de semana. Eles gostam de nós, especialmente de mim e de Tristan, pois
nós podemos mostrar a eles, através da mente, imagens e coisas bonitas." —
Houve uma pausa. — “Apagaram as luzes. Jamal vai ficar bravo.”



"Boa noite."



"Boa noite, Rosa Selvagem."



Sorri. Eu estava começando a gostar de ser chamada de Rosa Selvagem.




































10





APESAR DE EU TER RESOLVIDO ME DEDICAR MAIS AOS ESTUDOS, A ESCOLA
CONTINUAVA drenando as minhas forças, física e mentalmente. Não que eu
estivesse me esforçando tanto assim. Passei dias mergulhada no meu bloco de
desenho, encerrada no meu estúdio. A única hora em que me mantinha acordada
na escola era durante a aula de história, quando podia observar Bren e seus
brilhantes olhos verdes.



Só de vê-lo caminhando pelo corredor já iluminava meu dia, era como se
um raio de sol estivesse penetrando as nuvens. Eu não sabia o que estava
sentindo. Com Xavier não havia esse fluxo vertiginoso de emoções conflitantes.
Com ele, a afeição tinha sido concreta, serena, era a minha pedra de salvação.
Xavier fora a única coisa constante na minha vida e agora que ele tinha partido,
eu me sentia sem raízes. Se Bren se fosse, eu sabia que meu mundo não iria
desmoronar por completo, mas havia algo, algo no meu hábito de observá-lo, que
estava quase se tornando um vício. O que eu sentia por ele tinha algumas
semelhanças com o que eu sentia por Xavier, mas isso não era uma equação
matemática, o que me confundia.



Eu sempre convidava Bren para ir para casa comigo, na minha limobarca.
Na maioria das vezes ele aceitava, o que achei que era um bom sinal. Ele me
contava sobre os jogos de tênis de que ia participar, ou sobre os trabalhos da
UniCorp, coisas das quais ele costumava ouvir muito a respeito. Ele me contou
fofocas sobre seus amigos, de como as pessoas reagiram quando Otto e Nabiki


começaram a namorar, de quando Anastásia se apaixonara por Wilhelm, mas Wil
era louco por uma menina mais velha que assistia com ele às aulas avançadas de
astrofísica. Era divertido conversar com Bren.



A princípio, Bren e seus amigos me pareceram ser os meus salvadores, mas
depois ficou muito claro que, tirando Otto, que não falava, os amigos dele só
andavam comigo porque Bren parecia gostar de mim. Não que não gostassem de
mim, mas não me tratavam de modo caloroso. O que não era de surpreender.
Aparentemente o grupo todo já era amigo desde o ensino fundamental. Eles
pareciam ser muito diferentes, vindos de planetas e colônias distintas, mas o fato
de seus pais trabalharem na UniCorp os atraíam de alguma maneira, quase como
se eles fossem a nobreza da UniCorp, e Bren fosse o príncipe herdeiro. As únicas
adesões ao grupo tinham acontecido havia anos, no início do ensino médio,
quando os pais de Anastácia enviaram-na da Nova Rússia, em Io, e Molly e Otto
conseguiram suas bolsas de estudo. Apesar de Otto ter me chamado de
"princesa" desde a primeira vez que falou comigo, eu não parecia me encaixar
naquele conceito de realeza da UniCorp. Tecnicamente, eu ocupava uma posição
mais elevada do que a de Bren, mas, até poucos meses antes, nunca tinham
ouvido falar a meu respeito. Eles não sabiam o que fazer comigo.



Bren, por outro lado, parecia completamente cego à frieza dos amigos. Ele
realmente tentava me incluir nas discussões do grupo quando nos sentávamos
juntos na hora do almoço, e eu era muito grata a ele por isso.



E um pouco obcecada. Quando não estava tendo pesadelos, tentava
preencher meus sonhos com Bren. Xavier era uma lembrança muito dolorosa, e
nada mais era poderoso o bastante para prender a minha atenção. Fiz retratos e
mais retratos de Bren, em vários ângulos e com expressões diferentes, tentando


entender o que se passava por trás daqueles olhos. Tinha medo de que ele visse
meu bloco de desenho e descobrisse o quanto eu pensava nele.



Até que percebi que tal segredo era bobagem. Eu queria que ele soubesse o
que eu sentia.



"Otto?"



Isso foi menos de dez segundos depois de a minha tela ter carregado. Agora
nós nos conectávamos quase todas as noites, às dez.



"Estou aqui! Olá, novamente!"



"Oi, Posso lhe fazer uma pergunta?"



''Você sempre me faz perguntas. Agora é a minha vez."



"Droga" — escrevi. — “Acredite, não há nada de interessante sobre mim."



"Muito engraçado. Você não respondeu a esta pergunta quando a fiz antes.
Como é sair da estase?"



"Dói" — escrevi. — "Na verdade, Otto, nada faz muito sentido. Entre a
estase e meu choque emocional, durante a primeira semana, tudo foi muito
confuso. Tudo desmoronou desde aquele dia. Eu não sabia como o fogão
funcionava, todos os computadores me pareceram incompreensíveis e mal
entendia o que as pessoas me diziam. Eu não podia sair para comprar roupas as
íntimas sem que metade dos jornalistas do mundo estivesse seguindo cada passo
meu. Antes das aulas começarem eu me sentia como uma água-viva encalhada


na praia, meio disforme e elétrica. Como se a água onde eu deveria nadar tivesse
sido roubada. Patty e Barry podiam muito bem não estar aqui. Todos que eu
conhecia estavam mortos. Junte tudo isso com a fadiga estase e a crueldade do
mundo de uma só vez e, provavelmente, sou tão infeliz quanto você."



"Não sou infeliz. Não mais."



"Não desde Nabiki?" — perguntei, pensando em Xavier. E Bren.



"Não desde a bolsa de estudos."



Aquilo soou vazio para mim. Eu me sentia desolada sem Xavier. Todas as
bolsas de estudos do mundo não poderiam me ajudar a suportar isso.



"Nabiki não tem nada a ver com isso?"



"Todos os meus amigos têm algo a ver com isso. Jamal me introduziu no
grupo. Ele é o meu companheiro de quarto desde o começo. Bren e Wil eram
amigos dele."



Suspirei.



"Eles fizeram amizade com você logo de cara?"



"Claro que não. Leva um tempo para as pessoas se acostumarem." — Um
momento se seguiu antes de ele continuar escrevendo. — "Fiquei surpreso que
você tenha feito amizade comigo tão rápido."



"Você é legal."




"Você descobriu isso falando comigo só uma vez? A vez em que eu a rejeitei
de imediato?"



"Bem..."



"Estou acostumado com as pessoas desviando os olhos, agindo de modo
estranho, até mesmo com total aversão. Você não fez nada disso."



"Eu teria sido muito hipócrita se tivesse feito isso" — escrevi. — "Além do
mais, você me assustou da primeira vez."



"Você também me assustou" — ele escreveu.



"Somos um par de patinhos feios."



"É verdade. Mas o que você queria me perguntar?"



“Ah. Era só sobre o Bren."



"O que você quer saber?"



"Você o conhece bem?"



"Eu o conheço há quase três anos."



"Você pode me dizer se ele gosta de mim, ou se está apenas sendo
educado?"




"Não vou contar para ninguém o que vejo na mente de outra pessoa.”



"Eu não lhe perguntaria isso" — escrevi, um pouco ofendida.



“Ah. Desculpa."



"Só de observá-lo. Ou de algo que ele tenha dito. Ou algo que outra pessoa
tenha dito. Estou perguntando se ouviu alguma fofoca, mesmo."



Após um longo, bem longo momento, Otto escreveu:



"Realmente não sou a pessoa certa para você perguntar isso."



"Quem é a pessoa certa então?" — escrevi, irritada. — "Tirando você e Bren,
não converso com mais ninguém."



"Você não conversa?"



"Não!"



"Sinto muito. Mas, por que não?"



"Não conheço ninguém."



"Se você falasse com as pessoas, isso mudaria."



"Não sei como me aproximar das pessoas. Nunca fiz isso antes. Só tive um
amigo, de verdade. E com ele, era meio como o que você faz, eu quase podia ler a
mente dele."




"Como isso aconteceu?"



"Eu o conhecia desde os meus sete anos."



"Ele era seu namorado?"



"Sim."



Ele respirou fundo antes de sua exclamação saltar na teia:



"Ops!"



Ri, apesar de tudo.



"Sim. Um grande ops."



"Sinto muito."



"Estou me acostumando com isso."



"É aquele garoto que você está sempre desenhando no seu bloco?"



"Como você sabe disso?"



"Vi por cima do seu ombro. Eu reconheci todos os rostos exceto um. Você
está gostando do Bren?"




"Ok, pensei que você só pudesse ler a minha mente quando estivesse me
tocando."



"Peguei escondido seu bloco de desenho na hora do almoço, na semana
passada, quando você não estava vendo. Aquele garoto e o Bren estão em todas
as páginas."



"Seu ladrãozinho azul!"



"Sou eu" — ele escreveu, aparentemente sem ter se ofendido. — "E como
você conseguiu o meu número on-line, posso saber?"



"Touché" — escrevi.



"Sinto muito se aquilo era particular."



"Na verdade não é. Especialmente para você, que sabe todos os meus
segredos. Posso confiar que você não vai espalhar nada por aí, não é?"



"Duas vezes."



Quase ri com aquilo.



"Só queria que você tivesse me pedido."



"Sinto muito. Eu estava curioso. Queria saber o que você pensa que precisa
entender melhor."



Ri.




"Tudo. Não me sinto à vontade nesta época."



"O que você está tentando entender com as paisagens?"



Pensei sobre aquilo durante um longo tempo.



"Acho que eu mesma" — escrevi. — "A vida. A estase. Elas são mais... acho
que eu poderia usar a palavra 'meditações' do que desenhos. Apesar de os meus
retratos também serem meditativos, uma vez que, por meio deles, estou
entendendo uma pessoa."



"Por falar nisso, belo desenho de mim e Nabiki. Não imaginei que você
pudesse capturá-la com... um jeito tão meigo, uma vez que ela é sempre tão fria
com você.”



"Ela estava olhando para você."



“Ah" — Otto escreveu. — "Isso explica tudo! Então, você está ou não
gostando do Bren?"



“Não sei. Só tenho certeza de que estou com muito tempo livre e com pouco
bom senso."



“Não sei se ele gosta de você ou não. Ele não tem namorada, se é isso que
você quer saber."



"Ele gosta de alguém?"




"Não que eu tenha notado."



"Certo." — Bom saber.



"Agora eu tenho uma pergunta" — Otto revelou.



"Manda."



"O que você vê nele?"



"Tirando o óbvio?"



"O que é óbvio? Acho que eu não sou uma garota."



Tentei encontrar um modo de dizer aquilo, sem parecer uma adolescente
empolgada.



"Ele é esteticamente muito agradável."



"Só isso?"



"Bem, ele é legal. Ele conversa comigo. Ele é mais legal do que todos os
outros."



"Mais do que eu?"



"Não é nada pessoal, Otto, mas você não fala comigo."



"Sim. Eu sei."




"Eu realmente não sei o que é. Tem algo nele que simplesmente me atrai.
Sou fascinada por ele. Fico querendo desenhá-lo. Isso deve significar algo, certo?"



"Claro que você quer desenhá-lo, com todos aqueles músculos atléticos e
aquela pele morena e os olhos que se parecem dois pontos de luz!"



Olhei surpresa para a tela.



"É, acho que sim. De onde veio tudo isso?"



"Molly; há cerca de um ano. Mas ela superou."



Tentei me lembrar bem de Molly, avaliando minha concorrente. Não fiquei
preocupada. Por ter nascido em Calisto, a estrutura óssea dela era mais
compacta do que o que seria considerado atraente. Ela certamente passava muito
tempo fazendo exercícios gravimétricos, mas seus pais não eram ricos o suficiente
para bancar o kit corretivo completo, que incluía uma cirurgia externa, por isso
dava para perceber os sinais em seu corpo. Então, dei uma olhada de relance
para o meu pulso, fino como um palito de dente, e tentei imaginar por que estava
me sentindo tão confiante.



"Ainda está aí?"



"Sim. Estava apenas pensando sobre minha configuração estética, ou sobre
a falta dela."



"Acho você muito bonita."




"Você disse que eu parecia um esqueleto."



"Eu disse que você ficaria melhor um pouco mais cheinha. Não que você
não era bonita."



"Ah!"— De repente eu queria um espelho. Olhei para a minha imagem
refletida na janela. Eu era apenas uma sombra. — "Obrigada."



"Claro que não acho que 'bonita' seja o melhor elogio que eu possa lhe
fazer."



"Pare no 'bonita'. Vá mais longe e eu não sei como vou conseguir lidar com
isso."



"Acredito."



"Além do mais, não tem muito mais a ser dito sobre mim."



"Ah, eu tentaria: talentosa, receptiva, encantadora ou reservada, mas vou
parar no 'bonita'. Não quero que você fique convencida."



"Pare com isso. Você me fez corar."



"Que se dane! Estou perdendo essa." — Houve uma pequena pausa. — "Se
você realmente gosta dele, acho que deveria lutar por isso."



"Você acha que eu realmente devo tentar?"




"Não sei. Tudo o que sei é que você deveria ser feliz. Posso lhe fazer outra
pergunta?"



"Acho que sim." — Fiquei com medo de que fosse mais alguma coisa sobre
Bren, pois eu estava começando a me sentir sem jeito.



"Você não ficou ofendida quando eu disse que não poderia tocá-la?"



"Nem um pouco."



"Por que não?"



Encolhi os ombros, então me lembrei de que ele não poderia ver o gesto.



"Não sei" — escrevi. — "Só me pareceu... não sei. Acho que se tivesse de
resumir o que estava pensando, seria algo como, 'claro, tudo bem!'."



"Você está tão acostumada assim com a rejeição?"



"Acho que não" — escrevi a princípio. Então, pensei sobre todas as escolas
que eu frequentara, e todas as criadas que passaram pela família, e todas vezes
em que papai me disse para não tocar em seu cabelo. — "Sim" — escrevi.



Houve uma pequena pausa e Otto escreveu:



"Eu também."



Não sabia exatamente o que responder. Passado um minuto, Otto
acrescentou:




"Eu queria poder falar com você. Eu realmente não estava tentando rejeitá-
la. Estou muito feliz que você tenha escrito para mim."



"Desculpe se o assustei."



"Sinto muito por você ter coisas na sua mente que me assustam. Você faz
alguma ideia do que elas são?"



"Não" — escrevi. — "Já os momentos de lembranças luminosas eu posso
explicar. A estase fixa pensamentos dentro de sua cabeça até que eles se tornem
mais claros do que normalmente seriam."



"Havia um montão desses" — ele escreveu.



Engoli em seco.



"É, acho que sim."



"Então o que são os lugares obscuros, espinhosos e confusos? Pois eles não
são a mesma coisa."



"Não sei" — escrevi. Eu não sabia ao certo o que tinha causado aqueles
espaços confusos na minha mente durante as minhas estases. — "Não creio que
sejam falhas na memória."



"Eu também não acho. Eles parecem mais com emoções."



Franzi a testa.




"Talvez eu esteja confusa por ter perdido todo mundo."



"Pode ser" — ele escreveu, mas não acho que nenhum de nós tenha
acreditado nisso.



"Você também perdeu muitas pessoas" — escrevi. Preferia ter falado essas
palavras bem baixinho; era algo terrível. — "Foi isso que você viu?"



"Sim" — Otto escreveu —, "mas havia algo mais. Acho que essas perdas
foram mais imediatamente brutais para mim do que no seu caso. Há algo no seu
caso que se parece mais com um pesadelo. Acho que tem uma parte sua que
ainda acredita que você vai acordar e encontrar tudo como era antes. Estou
certo?"



"Como você me conhece tão bem?"



"Observação, meu caro Watson! Além do mais, não precisa ser gênio para
saber que é bem menos concreto despertar e descobrir que todos se foram do que
amparar a sua melhor amiga enquanto ela sofre uma hemorragia cerebral."



A frieza daquelas palavras me surpreendeu.



"Minha nossa, Otto! Você estava com ela quando aconteceu?"



Ele esperou um bom tempo antes de retomar a escrita.



"Morri junto com ela. Ou a minha mente morreu. Céus, não posso acreditar
que estou contando isso para você. Eles tiveram de me tirar à força de perto dela,


e deixei quatro deles inconscientes antes que percebessem que não podiam tocar
em mim. Eles simplesmente não imaginavam."



"Fico surpresa que você não os odeie."



"Não foi culpa deles. São apenas empregados."



O modo como ele se referiu às pessoas que cuidavam de sua família me fez
pensar.



"Nenhum deles ama vocês?"



"Você é esperta."



"Sinto falta dos meus pais" — eu disse com toda a honestidade, a título de
explicação. O que, aparentemente, fez sentido para ele, pois não pediu mais
detalhes.



"Nunca ninguém me perguntou isso antes. Nós nos amamos uns aos
outros. Somos parentes biológicos. Algumas das nossas portadoras (as mães
implantadas) se reuniram depois que nascemos para garantir nossos direitos
como seres humanos. Mas apenas a portadora de Penny participou desse grupo.
As outras poucas eram todas portadoras de organismos simples. Elas, às vezes,
também os visitavam nos fins de semanas."



"E o que aconteceu com a portadora da Penny"



"Ela se casou e teve outro filho. Mas ainda envia presentes de Natal para
Penny."




"Só isso?"



"É. Não importa. Somos felizes por termos sido considerados humanos."



"Posso imaginar que sim! Mas eles não lhes deram pais adotivos, ou
qualquer coisa do tipo? Quem cuidava de vocês quando eram bebês?"



"Enfermeiras contratadas. Elas eram carinhosas, mas isso fazia parte do
trabalho. Tivemos tutores, supervisores. Muitos são simpáticos, mas não, eles
não nos amam. Eles são contratados pela UniCorp. Nós não pertencemos a eles.
Nem estamos com eles."



Engoli em seco. Refleti durante um bom tempo se ia ou não escrever aquilo
e, então, decidi, que se dane! Eu não tinha nada a perder.



"Você poderia ser meu" — escrevi. E tive de escrever rápido, pois sabia que
do contrário, não iria conseguir. — "Eu poderia lhe dar amor. Sou tão anormal
quanto você, e não pareço pertencer a ninguém. Você é o único que parece
combinar comigo. Podemos ser uma família."



No momento em que cliquei em "enviar" desejei ter tido tempo de apagar
tudo aquilo. Houve uma longa pausa, quase tão longa quanto a que eu fiz antes
de escrever. Permaneci ali, me sentindo uma tonta. Só de ler novamente, soou
como se eu estivesse desesperada e sem esperança. Eu tinha falado demais. Sem
dúvida, agora ele estava assustado e prestes a desligar.



"Obrigado." — As palavras surgiram na tela. — "Isso significa muito.”




"Espero que sim."



Uma longa pausa se seguiu antes de ele escrever:



"Você vai se declarar para o Bren?"



Acho que foi para mudar de assunto. Se comparado, era um tema mais
fácil.



"Ainda não sei."



"Quem sabe a Mina não possa ajudar? Ela me ajudou uma dúzia de vezes a
acertar as coisas com Nabiki."



"Posso imaginar que seja difícil para você ter um relacionamento."



"É mais fácil em alguns sentidos, mais difícil em outros, eu acho. É bem
mais difícil para Nabiki. Ela sofre muito. E os pais dela não aprovam."



"Por que não?"



"Você deixaria sua filha namorar um alienígena azul?"



"Se o alienígena fosse tão adorável quanto você, claro que sim."



Uma breve hesitação se seguiu antes de Otto escrever:



"Você sabe que meu rubor é roxo? Jamal está rindo de mim por isso."




"Ele está lendo isto?" — perguntei, apavorada.



"Não."



"Sinto muito se o fiz corar."



"Eu não. Boa noite, Rosa Selvagem."



"Boa noite, alienígena azul."



* * *



— Muito bem — eu disse à Dra. Bija. — Eu realmente tenho algo em que
você pode me ajudar.



— O que é? — Mina perguntou, com o rosto radiante.



— Como sabemos se estamos gostando de alguém?



A pergunta pareceu confundi-la.



— O quê?



— Como podemos saber se estamos gostando de alguém? Quero dizer, para
namorar.



— Não estou muito certa sobre o que você está me perguntando.
Geralmente as pessoas simplesmente sabem.




Franzi a testa. A resposta não me ajudou.



— Por que você está perguntando isso? É por causa do Bren?



— Dá para perceber? — perguntei sem jeito.



Mina encolheu os ombros.



— Por eliminação. Você não fala sobre mais ninguém.



Suspirei.



— Eu realmente não falo com mais ninguém.



— Não?



Balancei a cabeça.



— Exceto com Otto. Mas não falamos de verdade um com o outro.



— Com ninguém mais?



— Não.



— Por quê?



Às vezes era realmente muito irritante o modo como ela simplesmente
continuava fazendo perguntas.




— Porque sou uma aberração — eu disse, como se fosse óbvio. — Estou
ultrapassada, desatualizada, deslocada.



— Você acha que está fazendo algum progresso na sua adaptação?



Suspirei. Tentei o máximo que pude falar apenas sobre aspectos triviais da
vida. Falávamos muito sobre a minha arte. E Patty e Barry, por quem eu era
muito pressionada a encontrar algo para dizer. Basicamente, eu não sabia nada
sobre eles. Ambos ainda eram dois estranhos com quem eu compartilhava os
jantares.



— Não sei.



— O que a fez perguntar isso? — Mina perguntou.



— Acho que gosto do Bren. Mas... não é a mesma coisa. — Eu não sabia ao
certo o que eu estava tentando dizer, mas Mina sabia.



— Não é igual ao Xavier?



Balancei a cabeça.



— Como você e Xavier se conheceram?



— Eu tinha sete anos — disse, mas não terminei a história. Isso poderia
implicar ter de explicar que eu tinha acabado de sair de um longo período em
estase e que sofria de um leve surto de fadiga estase que não me permitiu fazer
quase nada durante semanas além de sentar no jardim. E a Sra. Zellwegger, a
vizinha ao lado, tinha um bebê. Ele ainda não tinha completado um ano, estava


aprendendo a engatinhar, e ela o levava para o jardim para tomar ar. Uma vez
que meus olhos ardiam se eu ficasse lendo durante muito tempo, e eu tinha
apenas sete anos, não me restava muito mais para fazer. Por isso acabei me
envolvendo com Xavy. Eu passava horas a fio me divertindo, colocando
brinquedos na grama e engatinhando com ele. Nós ríamos um bocado. Eu o
colocava sentado no meu colo e lhe contava histórias, e, quando ele cresceu um
pouco mais, nós fazíamos desenhos no tanquinho de areia.



O jardim ainda existe no condomínio, mas o tanquinho de areia foi há
muito tempo. Assim como Xavier.



— Então vocês se conheciam havia muito tempo.



— Sim — eu disse. — Eu realmente não quero falar sobre Xavier.



— Tudo bem. Você acha que vai contar ao Bren o que está sentindo?



— Você acha que eu deveria? — perguntei.



— Não posso responder isso por você — Mina disse. — Você acha que
deveria contar a ele como se sente?



Suspirei.



— O problema é que não tenho certeza do que ele sente.



— Bem, só posso lhe dizer uma coisa. Cada amor, cada relacionamento é
diferente. Um nunca será igual ao outro.




Suspirei. Fiquei mais do que desapontada com aquele pensamento. A ideia
de nunca mais ter uma pedra de salvação, de continuar para sempre como uma
semente vagando por aí, sem raízes, era terrível.



— Este pode ser tão bom quanto o outro — Mina disse. — Mas sempre será
um pouco diferente.



Respirei fundo. Se fosse esse o caso, talvez esse temor vertiginoso, confuso
e inflexível fosse um tipo novo, diferente, de amor. Ou pelo menos o início de algo.
Se fosse esse o caso, eu realmente queria que Bren soubesse como eu me sentia.



Então, eu contaria a ele.




















11





NO DIA SEGUINTE, PARECIA QUE HAVIA UM BANDO DE PÁSSAROS
ASSUSTADOS batendo contra meu peito por causa da minha decisão. Eu não
sabia ao certo como agir nesse tipo de situação. Com Xavier foi tão fácil. Nós nos
conhecíamos havia tanto tempo que nosso relacionamento foi natural. Mesmo
assim, tinha uma noção geral de como conduziria a situação. Já havia visto
holofilmes o suficiente.



Resolvi esperar até que estivéssemos sozinhos na limobarca. Fiquei
morrendo de medo de não conseguir alcançá-lo. Se ele pegasse o rasantesolar do
Uni, acho que não conseguiria esperar mais um dia. Eu literalmente saí correndo
da última aula e alcancei Bren no pátio, no exato momento em que ele estava
prestes a ir embora com Otto e Nabiki.



— Você quer uma carona? — balbuciei.



Bren pareceu ter sido apanhado de surpresa, a princípio, até conseguir
decifrar a minha pergunta ansiosa.



— Ah. Hum. — Ele deu uma olhada para Nabiki e Otto. Nabiki revirou os
olhos e continuou andando, mas Otto apenas ficou olhando para nós. Para mim,
na verdade, como se tornara seu hábito. — Acho que sim.




Quando ele aceitou, senti uma estranha mistura de alívio e medo. O
primeiro obstáculo tinha sido ultrapassado. Eu sabia o que planejara dizer. Tinha
ensaiado um milhão de vezes desde a noite anterior. Mas, no momento em que
me vi sozinha com Bren, dentro da limobarca, toda a cuidadosa preparação foi
por água abaixo, deixando minha boca seca e as mãos úmidas de suor.



Bren tentou me contar sobre o seu próximo jogo de tênis, mas eu mal ouvi
uma palavra entre doze. Os quilômetros corriam sob o meu hovercraft, e todo o
meu precioso tempo a sós com ele foi ficando para trás. O barco entrou no
estacionamento do condomínio. O tempo se esgotara.



Todo aquele tempo desperdiçado!



— Quero namorar você — deixei escapar.



Bren estava recostado casualmente, contando sobre o ângulo da quadra e
de como se adaptar à proximidade da plateia. Ele parou no meio de uma sentença
e me encarou, suas costas eretas.



— Como? — ele perguntou.



— Eu... gosto de você, e... — engoli em seco.



A reação dele foi pior do que eu poderia imaginar. Eu não esperava que
fosse cair aos meus pés com juras de adoração. Mas também não esperava que
fosse sair correndo pela porta da limobarca, tão desesperado para ficar longe de
mim, com uma cara apavorada de quem tinha caído em uma armadilha, o que
cortou meu coração. Confuso, ele derrubou seu supertablet no chão e, pegando-o
desajeitadamente, respondeu, quando já parecia seguro, fora da limobarca:




— Sinto muito, Rose. Não...



Não sei que tipo de impulso perverso me levou a continuar falando. Mas
não consegui manter a boca fechada.



— Eu sei — disse. — Não esperava que você dissesse sim. Quer dizer, isso
não é... tão importante. Eu só... — minhas bochechas estavam quentes e as
orelhas também. Eu estava pegando fogo de vergonha e ouvi minha própria voz
terminando. — Eu pensei que você gostasse de mim.



— Capete! — Bren deixou escapar um palavrão. — Veja bem, Rose. Ah,
vamos lá. — Ele olhou para o céu como se estivesse buscando por forças. — Sinto
muito se lhe dei a impressão errada. Certo? Não era a minha intenção. Acho-acho
que foi culpa minha, e talvez tenha rolado... algo... Meu avô me disse para eu
ficar de olho em você, só isso. Quer dizer, ele e Guillory estavam preocupados
com a empresa, certo? Eles só me pediram para garantir que você não fosse... Sei
lá, "desviada", acho que foi essa a palavra que Guillory usou. Meu avô estava
preocupado com você, e ele não tem a mente tão mercenária quanto Reggie. Por
isso eu sempre estava ao seu lado, mas realmente não tinha a intenção de levar
você a pensar nada, e não faço a menor ideia de como essas coisas funcionavam
há sessenta anos. Sinto muito. Sinto muito mesmo.



Ele não parecia sentir. Parecia estar em pânico.



— Então... você não gosta de mim — sussurrei.



— Não... desse modo. Quer dizer, você é legal, mas me dá calafrios! Você é
como um fantasma ou algo assim! — Ele engoliu as palavras seguintes, ao se dar


conta de que falara demais. — Desculpa — acrescentou. — A culpa não é sua. É
que simplesmente... não posso, tá?



Uma mão forte pareceu agarrar meu peito, apertando meus pulmões. Não,
não eram os meus pulmões. Era o meu coração. Ele estava se partindo.



Será que eu era mais forte do que isso?



— Sinto muito — sussurrei.



Bren me encarou e o pânico desapareceu de seu rosto. Então, percebi
remorso, e... ah, não. Eu não queria aquele olhar. Era de pena.



— Eu também. — Ele apertou o supertablet contra o peito e me olhou sem
jeito. — Eu... eu ainda vejo você no almoço amanhã. Como se não... — ele parou.



— Certo — sussurrei.



— Certo — Bren disse. — Adeus.



Permaneci sentada dentro da limobarca durante um bom tempo depois que
ele se foi. Meus olhos afetados pela fadiga estavam sempre ardendo e embaçados,
por isso não percebi que estava chorando até ver um rastro molhado na saia do
uniforme. Enxuguei as lágrimas e segui rumo ao elevador, esperando que nem
Barry nem Patty tivessem voltado para casa mais cedo do trabalho. Eu tive sorte.
Eles não estavam em casa. Como sempre.




Zavier me encontrou na porta, com o rabo abanando, esperando que eu o
levasse para um passeio. Não poderia deixar de passear com ele, por isso me
arrastei até o jardim e me joguei sobre a grama.



Zavier correu de um lado para o outro e perseguiu borboletas. Desejei
poder ser tão livre. As lágrimas começaram a cair novamente quando olhei ao
redor. Em sessenta anos, muitas plantas tinham sido trocadas, algumas trilhas
alteradas, mas muitas das árvores ornamentais ainda estavam ali, arqueando
sobre o jardim com suas flores e folhas vermelhas. Só que estavam com os
troncos quatro vezes mais largos e, dessa vez, quando eu caminhasse sob elas,
nunca mais encontraria o meu Xavier.



Tudo era tão perfeito com Xavier.A amizade se transformou em amor tão
rapidamente que mal sabíamos dizer qual era a diferença entre as duas coisas.



* * *



Mamãe e papai me deixaram sair da estase e tivemos um café da manhã de
boas-vindas fabuloso, com champanhe e tudo. Era final de outono quando entrei
em estase, mas agora o verão começava. Eu tinha perdido o fim das aulas e fiquei
feliz por isso.



Depois do café da manhã, mamãe me levou até Jacquard para fazermos
compras e nos divertirmos. Ela renovou todo o meu guarda-roupa, comprou tudo
de acordo com a última moda do verão. A moda naquele ano era o algodão
indiano, substituindo as leves saias de seda que tinham sido tão populares no
meu guarda-roupa anterior. Quando terminamos as compras já era meio da
tarde, por isso mamãe precisava ir para casa e se acomodar para o seu cochilo de
depois do almoço. Papai estava em algum lugar, fazendo algo para a UniCorp, e


eu não estava com vontade de cochilar. Poderia ter descido para a piscina ou
para as quadras de tênis, mas não me sentia disposta. Tinha ficado em estase
por um período longo o bastante para sentir os músculos enrijecidos, os
primeiros sinais de fadiga estase. Em vez de sossegar no meu quarto, vasculhei
até encontrar meu bloco de desenho e desci para o jardim, para desenhar.



Eu não o reconheci. Não imediatamente. Pensei que o rapaz alto e esguio
que caminhava pelas trilhas era um morador novo, evitei-o pegando outro
caminho. Houve uma pausa nos passos apressados às minhas costas e, então,
ele começou a correr atrás de mim.



— Rose?



Gelei. Eu conhecia aquela voz de algum lugar. Desde que perdera sua linda
voz de soprano, aos treze anos de idade, a voz de Xavier tinha se tornado quente e
marrom como um sofá de couro macio. Eu me virei, com as sobrancelhas
contraídas.



— Xavier? É você mesmo?



Xavier tinha mudado. Muito. Seus cabelos loiros acinzentados tinham
escurecido para um tom de castanho dourado nos últimos nove meses, e ele
tinha crescido como uma erva daninha. Estava mais alto do que eu agora. Dez
centímetros não eram muita coisa, mas eu sempre fora mais alta do que ele.
Assim como sempre fui mais velha do que ele. Este Xavier não era mais uma
criança. A penugem que ele cultivava quando entrei em estase tinha se
transformado, da noite para o dia, em um cavanhaque bem-cuidado. Quando eu
disse seu nome, o sorriso que ele lançou para mim já não era mais de todo


inocente. Mas, acima de tudo, seus olhos me fitaram com um apetite que eu
nunca tinha visto antes.



Minhas mãos se aproximaram dele, agarrando as lapelas da camisa aberta,
que estava sobre uma camiseta com o logo da UniCorp, que era um unicórnio
branco saltando.



— Olhe para você! — sorri, erguendo os olhos para o seu novo rosto. —
Você está tão alto!



Ele riu.



— Você sempre diz isso.



— Isso sempre é verdade. — Eu estava atordoada com a aparência dele.
Fiquei na ponta dos pés para tocar em seu rosto e me surpreendi com a aspereza
da barba curta aparada pela lâmina. — O que aconteceu com você?! Está...
diferente.



Ele sorria para mim, os olhos verdes brilhando no rosto sardento.



— Deus! — ele disse. — Gosto de ficar diferente para você. — Ele estendeu
o braço e tocou meu cabelo, enrolando uma mecha ao redor do dedo. — Mas você
continua a mesma.



Encolhi os ombros. Eu não queria falar sobre mim.



— O que foi que eu perdi? — perguntei. Toquei nos seus músculos peitorais
recém-adquiridos. — Quer dizer, tirando o óbvio.




Seus dedos continuaram brincando com o meu cabelo. Senti leves tremores
passando por meu couro cabeludo. Aquilo era... diferente. Ele já tinha brincado
com meu cabelo antes. Na verdade, tinha sido ontem... ou eu achava que tinha
sido ontem. Por que então isso parecia diferente? Bem, ele estava diferente, eu
acho, mas algo mais tinha mudado.



— Não muito — Xavier disse. Ele olhou dentro dos meus olhos e sua
fisionomia suavizou. — Quanto tempo se passou?



Não consegui conter o riso na minha voz.



— Você deveria saber melhor do que eu.



Ele sorriu, puxou-me para mais perto e me apertou com força.



— Senti saudades de você!



— Eu também — respondi. Eu não havia planejado isso. Nunca tinha
sentido tanta saudade dele. Ele me apertou ainda mais e ergueu meus pés do
chão. Ofeguei. Ele nunca fora forte o suficiente para fazer isso. Eu ri e ele olhou
para mim, encantado. Com um brilho travesso nos olhos, ele me girou e eu gritei.



— Pare com isso! — eu disse. — Coloque-me no chão, seu gigante!



Ele me colocou delicadamente no chão.





— O que você achou? — perguntou. — Acha que eu cresci o bastante?




— Eu sempre disse que você daria um belo malandro! — disse provocando-
o. Estava maravilhada. Olhei-o de alto a baixo, seu peitoral desenvolvido, o belo
corte de cabelo, os braços fortes que ainda me seguravam pelos ombros. Balancei
a cabeça. — Olhe para você! — sussurrei.



— Você gosta de mim, então?



Tentei pensar exatamente no que dizer, mas me vi sem palavras.



— Ah, sim — eu disse. — Ah... — desisti, finalmente mostrando aprovação
com um assovio expressivo.



— Mmm. — O murmúrio saiu baixinho. Ele fechou os olhos e sua
respiração acelerou. Desviou o olhar de mim por um momento como se estivesse
lutando consigo mesmo. Então, suas mãos apertaram meus ombros. — Rose? —
ele perguntou, seu tom era profundamente sério. — Nós sempre fomos amigos,
certo?



— Sim — eu disse. — Acho que sempre fomos.



— Sabe... isso nunca mudará. Não importa... o que mais possa mudar.



Fiquei como medo daquilo. Sempre soube que um dia iria sair da estase e
ele teria me esquecido. Um menino não anda ao redor da irmã mais velha para
sempre.



— Sim, eu sei disso. — Suspirei. — Eu só... trouxe meu bloco de desenho,
você pode ir fazer... o que quiser. A gente se vê mais tarde.




— Eu não estava planejando ir a lugar algum — ele murmurou.



Agora eu estava confusa.



— Então o que você quis dizer com...? — minha voz foi sumindo, distraída
pelo olhar dele. Era um olhar muito, muito profundo. — Xavier... — sussurrei.



— Ah — Xavier gemeu, fechando os olhos. — Você não mudou nada. Eu
queria esperar por isso, pelo menos mais alguns dias, mas acho que não posso.



— Esperar o quê?



Ele permaneceu em silêncio por um momento, as sobrancelhas contraídas,
olhando no fundo da escuridão que se ocultava atrás das pálpebras fechadas.



— Rose — ele finalmente disse. — Se você não quiser, basta dizer. Não fará
nenhuma diferença.



— O quê?



— Psiu. — Ele pousou um dedo sobre a minha boca e me fitou. Seus olhos
ardiam com uma chama amarelada contornada por raios esverdeados. — Tenho
pensado nisso desde o último outono. Bem, na verdade, em cada dia insuportável
durante os últimos quatro anos. E se eu não fizer algo a respeito agora que eu...
posso, acho que vou enlouquecer.



Ele afastou o dedo e eu abri a boca.




— A respeito do quê? — sussurrei, mas acho que eu sabia.



— Disso — Xavier murmurou e se aproximou de mim.



O tempo passou muito devagar. Tive tempo de pensar sobre todas as
repercussões se eu permitisse que ele me beijasse. Nove anos de amizade
mudaram em um instante. Dezesseis anos, se contássemos a partir da idade dele.
Ajudei a trocar as fraldas dele quando eu tinha sete anos. Agora nós estávamos
ali e ele estava mais alto do que eu, lindo, encantador e confiante. Tão seguro.
Essa não era a atitude de um garoto que nunca beijara uma menina antes.



Só de pensar na possibilidade, já foi o suficiente para que eu me atirasse
nos braços dele e soltasse o meu bloco de desenho, que acabou caindo
abandonado sobre a grama. Quando o calor do seu hálito tocou meus lábios,
minhas mãos subiram até seu pescoço, até seus cabelos recém-escurecidos, e
agarrei-me a ele. Xavier era meu! Ele sempre fora meu! Que direito tinha outra
garota de roubar de mim o primeiro beijo dele? Não importava, lá estava eu,
dando meu primeiro beijo com ele.



No momento em que nossos lábios se encontraram, houve uma agitação de
cores que pude sentir, mas não ver. Uma explosão de luz, com toda a intensidade
de um sonho estase, e só isso era real e tangível, uma sólida e impenetrável
conexão com o meu Xavier, sempre meu. Minhas mãos enlouqueceram, tentando
puxar diferentes partes do seu corpo contra o meu, seus cabelos, seus ombros,
seu pescoço, sua nuca. Entrelacei os dedos entre seus cabelos. Seus braços
estavam parados, firmes e sólidos como uma pedra, puxando-me mais para perto
dele, como se isso fosse possível. Seus dentes mordiscaram de leve meu lábio
inferior, sua língua explorou minha boca e fiquei irritada outra vez por causa de
sua segurança, de sua clara experiência.




Meus ciúmes me empurraram ainda mais para perto dele, e as luzes
intensas do meu corpo começaram a ficar cinza, junto com tudo o mais. Minhas
pernas se enroscaram ao redor do seu corpo, para que não pudesse escapar. E
mesmo enquanto eu o beijava, estava chorando.



Após um momento Xavier me empurrou. Olhei assustada para ele,
ofegante. Seu rosto estava cinza e o céu estava cinza e o mundo estava cinza. Eu
estava sem fôlego.



— Calma — sussurrou, sua voz soou rouca. Ele me segurou com força
suficiente para que eu não desmoronasse aos seus pés. Sentiu meu tremor e
lentamente nos colocou de joelhos sobre o gramado verdinho. Xavier beijou as
lágrimas do meu rosto, dos meus olhos, então, inclinou a cabeça e sussurrou ao
meu ouvido. — Eu sei.



Ele sabia o que eu estava sentindo? Sabia por que eu estava chorando?
Nem mesmo eu tinha certeza se sabia. Eu estava respirando com dificuldade e, à
medida que o oxigênio retornava ao meu organismo, as cores ao meu redor
também foram retornando. Nós nos abraçamos. Xavier estava com os lábios sobre
os cabelos atrás da minha orelha. Enterrei o nariz em seu pescoço, sentindo seu
cheiro familiar, misturado ao novo odor inebriante de suor masculino que não
estava lá da última vez em que eu o vi.



Quando nossa respiração desacelerou, Xavier me segurou firme pelos
ombros.



— Uau. — Ele soltou um suspiro na minha orelha, e eu estremeci com a
sensação. — Eu não estava esperando por aquilo.




— Quem era ela?



Xavier se afastou um pouco e olhou para mim.



— Quem?



Como ele podia perguntar quem?



— A garota que tomou você de mim. A garota que roubou seu primeiro
beijo, que o ensinou tudo aquilo.



Xavier sorriu, mas foi um sorriso um pouco trêmulo.



— Isso importa?



— Siiiim! — a palavra saiu como um chiado venenoso. Eu não sabia que me
sentia tão possessiva com relação a ele.



— O nome dela era Claire — Xavier disse pacientemente —, e eu a conheci
na escola. Mas, Rose, ela não foi importante. — Ele tocou carinhosamente meu
rosto, deixando um rastro de calor sobre a minha pele. — Ela serviu de...
instrumento para um propósito. E ela sabia disso. Eu certamente não fui o
primeiro. Ela passou por mais quatro depois. Era você. Sempre você. — Ele
pressionou os lábios sobre os meus cabelos com um suspiro. — Só permiti que
ela me tocasse para que assim eu soubesse o que fazer quando finalmente a visse
novamente. — Seus lábios passearam com uma doçura dolorosa sobre a minha
testa, ao longo da linha dos meus cabelos, ao longo do meu rosto. — Ah, tenho
esperado por você — ele sussurrou com um suspiro pesado que não deixava


dúvidas quanto à sua sinceridade. — Ela não me amava, e eu com certeza não a
amava. — Seu nariz acariciou minha face. — Não foi nada parecido com isso.



Mesmo distraída como eu estava com o que seus lábios estavam fazendo
sobre a minha pele, ainda consegui ouvi-lo.



— Você está... dizendo que me ama?



Xavier se afastou e me encarou com espanto sincero.



— Rose! — ele sussurrou. Então seus olhos suavizaram. — Eu sempre a
amei. — Ele me beijou novamente e, dessa vez, o beijo foi hesitante, quase
provocador, ou teria sido, se seus olhos não estivessem tão desesperados.Quando
nossos lábios se encontraram outra vez não foi de um modo agitado ou furioso, e
a paixão já não era mais como um fogo envolvente e sim um ardor quente, difuso
e poderoso. A sensação foi melhor do que a dos primeiros minutos da estase,
melhor do que a segurança envolvente da primeira infusão química. Quando
Xavier e eu nos beijamos pela segunda vez, eu sabia, sem sombra de dúvida, que
estava em casa.



Aquele nariz que me tocava agora pertencia ao meu cachorro, que estava
começando a ficar preocupado com o fluxo constante de lágrimas que caía dos
meus olhos. Ele lambeu-as das minhas faces, e eu soltei uma risada vazia. Meu
Zavier beijando minhas lágrimas. Mas já não era a mesma coisa.



Arrastei-me de volta para casa. Zavier esperava que eu fosse trabalhar no
estúdio, como costumava fazer todas as tardes, mas eu não ia suportar ficar lá
dentro. Os rostos de Xavier e Bren poderiam olhar para mim e esmagar meu
coração até que ele virasse pó de giz. Em vez disso, enrolei-me na colcha da


minha cama, com estampa de botões de rosa, ainda vestida com o uniforme da
escola. E nem me movi quando Patty me avisou que estava na hora de jantar. Eu
ainda não conseguia comer muito e só a ideia de tentar, nas condições em que
me encontrava, era horrorosa.



Em algum momento, quando já era noite, arrastei-me até o banheiro e bebi,
de uma vez, um copo de água para repor o líquido perdido com as lágrimas.
Cinco minutos depois corri de volta ao banheiro e vomitei. Então, quando voltei
para a cama, levei o copo comigo e bebi lentamente, para garantir que meu
estômago pudesse absorver cada gole.



Por volta das dez, meu supertablet apitou, mas eu não estava com vontade
explicar a Otto o que tinha acontecido. Ignorei o sinal, e ele não tocou novamente.



Foi uma noite terrível. Minhas pílulas para dormir só me deixaram
sonolenta o suficiente para que eu tivesse pesadelos, mas não conseguiram me
manter dormindo. Oscilei entre pesadelos e lágrimas. Os pesadelos eram
particularmente terríveis, dessa vez eu era atacada por versões brilhantes e
mórbidas do olhar de Bren ou de Xavier, apanhando várias vezes com o bastão
que o agressor carregava durante as aventuras do meu ataque de sonambulismo.



Fiquei feliz quando o despertador sinalizou uma trégua para os meus
pesadelos. Alimentei Zavier e entrei na limobarca, desprezando o café da manhã.



Quando cheguei à escola, abri a porta do barco e só então percebi que
ainda estava com o mesmo uniforme amassado e manchado de lágrimas que
usara durante a noite. Estremeci quando a barulheira da escola invadiu o
veículo. A garotada gritava pelo pátio e o time de vôlei do Uni estava cantando
algum hino esportivo ritmado que me pareceu árabe. Celulares tocavam, passos


ecoavam. Minha cabeça começou a doer antes mesmo de eu colocar os dois pés
no chão. E então eu o vi.



Bren estava com seus amigos no meio do pátio. Eu sabia que estava com
cara de acabada. Eu me sentia como se tivesse sido arrastada de costas sobre
uma cerca. Será que eu tinha me lembrado de pentear os cabelos? Bren tinha a
mesma aparência radiante de sempre. Ele olhou de canto de olho minha direção e
deve ter me visto na limobarca, pois virou-se rapidamente, dando-me as costas e
rindo com Anastásia. Meu coração se contorceu.



Otto se afastou um pouco do grupo e olhou para mim. Seu rosto
inexpressivo inclinou para o lado e ele me fitou silenciosamente. Eu daria
qualquer coisa naquele momento por um rosto inexpressivo como o dele. O meu
estava amassado e as lágrimas começaram a descer novamente. Otto avançou
um passo na minha direção, seu braço estava esticado como se ele pudesse me
tocar do meio do pátio. Quanto ele sabia? Não pude suportar aquilo. Voltei para a
limobarca.



— Casa! — ordenei. — Casa, casa, casa, casa, casa!



O barco fechou as portas, obediente, e saiu deslizando.



Quando cheguei ao apartamento, tirei o saco de comida para cachorro do
Zavier de baixo da minha cama e deixei ao lado dele, aberto, para que ele pudesse
comer quando sentisse fome. Eu sabia que ele poderia beber água do vaso
sanitário. Roubei um breve momento de conforto ao abraçá-lo, mas isso foi muito,
até mesmo para o meu belo e fofo cão. Enxuguei as lágrimas em seu pelo, saí do
apartamento e entrei determinada no elevador.




Desci lentamente até o subsolo. Senti-me mais calma só de pensar no
esquecimento que estava por vir.



Entrei ávida dentro do meu tubo de estase e apertei o botão pré-ajustado.
Raramente usávamos esse botão. Meus pais sempre sabiam quando era o melhor
momento para me colocar em estase. Programei para duas semanas e me deitei
enquanto a música começou a soar ao redor da minha cabeça.



O perfume das substâncias químicas rapidamente varreu o horror e a dor
da minha mente. Inalei o odor prontamente e pensei em Xavier. Eu tinha
esperanças de que, quando acordasse, todo esse terrível incidente nunca tivesse
acontecido, e que teriam se passado apenas algumas semanas ou meses desde
que meus pais me fecharam em meu tubo de estase, e mamãe estaria cuidando
de mim, oferecendo um café da manhã com champanhe. Xavier ainda seria meu
vizinho e eu poderia me atirar em seus braços e pedir desculpas por todos os
momentos perdidos.



Qualquer coisa parecia possível durante aqueles primeiros momentos de
estase.
























12





COM APENAS TRÊS POR CENTO DA VISÃO, ELE SEGUIU DE VOLTA PARA O
SEU POSTO. Seu alvo havia fugido da localização identificada. Ele não estava
programado para acreditar que o alvo pudesse retornar para o mesmo lugar. Ele
não conseguia localizar o alvo, suas diretrizes estavam suspensas. Ele se sentou,
acionou o modo standby e esperou.



— A famosa Rose Fitzroy foi dada como desaparecida nesta manhã, correm
rumores de um possível sequestro. O último paradeiro conhecido de Rose foi o
apartamento da família, no Condomínio Unicórnio, que fica na ComUnidade, a
cidade da UniCorp. A polícia está de prontidão.



NOME ALERTA: ALVO REFERENCIADO. ROSE SAMANTHA FITZROY



A nova localização era conhecida. Não ocorreu a ele que era a mesma de
antes. Padrões de comportamento não eram algo que seu programa levava em
consideração.



Ele implementou sua diretiva primária. RETORNAR AO PRINCÍPIO.



Buscou então na rede. Uma vez que estava funcionando com capacidade de
98,7%, a varredura durou uma hora.



PRINCÍPIO INDISPONÍVEL.




Elétrons disparando, ele restabeleceu a diretiva alternativa.



ELIMINAR ALVO.



STANDBY, VARREDURA REDUNTANTE PENDENTE.



Seu verificador de status registrou automaticamente que sua visão ainda
estava em apenas três por cento. Seus nanos levaram mais ou menos quatro
horas para remover de seus olhos cada partícula de tinta a óleo seca antes que
ele se levantasse de seu posto para implementar a diretiva.







Quando abri os olhos, desta vez, o rosto que me observava não era um
vulto. Eu não tinha permanecido em estase por um período demasiado longo para
sofrer os efeitos da fadiga estase. Brendan me encarou, seus olhos cintilavam
como se tivesse peixinhos dourados nadando em um lago verde.



— Você sabe que tentativa de suicídio é comportamento abusivo, não sabe?



Balancei a cabeça, lamentando a perda do sonho estase. Estava sonhando
com Xavier, apenas Xavier, e Bren, de algum modo, tinha se misturado a ele, e eu
não sabia ao certo quem era quem. Disse a Bren que sentia a falta dele, mas na
verdade eu sentia saudade de Xavier. O garoto, seja ele quem fosse, abraçou-me,
e estávamos nadando nas paisagens vibrantes de cores primárias que permeavam
meus sonhos estases. Pouco me importava se o garoto em meus braços mudava.
Aquilo ainda era bem melhor do que o rosto zangado que estava diante de mim.




— Eu não estava tentando suicídio — respondi. Minha voz ainda parecia
lânguida por causa da estase química.



Bren me fitou.



— Certo. Que outro nome você dá para voltar ao seu caixão de vidro?



Fiquei surpresa. Nunca pensara daquela maneira. Olhei para o meu
confortável tubo de estase. A maciez da seda que me protegia, a música suave
que completava o último instante antes da estase iniciar, o primeiro perfume doce
dos gases que precediam os momentos finais do estado de sonho antes da estase
profunda tomar conta. Um caixão?



Bren bufou para mim e se afastou enquanto dizia:



— Volte para a sua família. Eles estão preocupados.



Eu sabia que era mentira. Barry e Patty mal notavam quando eu estava em
casa, quanto tempo levara para eles perceberem que eu não estava? Engoli em
seco.



— Quanto tempo? — perguntei.



— Dois dias — Bren respondeu com rispidez. — Quando eles me contaram
que você tinha desaparecido, achei que pudesse estar aqui embaixo.



— Ninguém mais pensou nisso?



Bren me encarou.




— Ninguém tinha nenhum motivo para pensar que você estava tentando
fazer com que alguém se sentisse culpado.



Segurei nas laterais do tubo aberto e coloquei os pés no chão.



— Eu não estava tentando fazer com que você se sentisse culpado.



— Ah, não estava — Bren disse, incrédulo. — Nunca passou por sua
cabecinha egocêntrica que se você voltasse para seu tubo de estase, então, eu me
sentiria arrependido.



Aquilo foi injusto.



— Não — respondi. — Imaginei que você ficaria feliz.



Bren ergueu uma sobrancelha.



— Feliz? Dane-se! Você acha que sou totalmente insensível, só porque não
quis namorar você?



Aquilo me confundiu.



— Não.



— Então por que acha que eu ficaria feliz? Só porque eu não a quero, não
significa que eu deseje ver você magoada ou morta ou... desaparecida nessa
maldita estase.




Balancei a cabeça.



— Não foi nada disso! Eu simplesmente não sabia para onde ir.



Bren escarneceu.



— Sim, escolher entre a vida e a morte, claro que esta foi a melhor opção.
— Ele balançou a cabeça.



— Mas... isto é o que eu sempre faço.



— O que você quer dizer com sempre? — ele perguntou. Então ficou
paralisado. — Capete! Você já... fez isso antes?



— Sim. Várias vezes.



Ele me encarou descrente.



— Mas por quê? — perguntou, arrastando as palavras.



Encolhi os ombros.



— Mamãe chamava isso de "o nosso mecanismo de superação". Quando
brigávamos, ou quando eles estavam muito cansados, ou quando as coisas
ficavam muito complicadas para mim na escola, ou se precisavam viajar; eles me
colocavam em estase.



Bren pareceu ficar sem chão. Ele se sentou pesadamente sobre um baú
empoeirado.




— Quer dizer que seus pais a colocavam em estase o tempo todo?



— Sim — respondi. — Como você acha que entrei aqui da outra vez



— Eu... não sabia. Você não foi colocada em estase para ser protegida dos
Tempos Sombrios?



Neguei com um aceno de cabeça.



— Eles ainda não tinham começado quando fui colocada em estase. Não
totalmente. Havia alguns casos de tuberculose, mas não era tão grave.



— Seus pais realmente a colocaram em estase... várias vezes? Só por que
eles estavam saindo de férias ou algo assim?



Encolhi os ombros.



— Sim. Eles diziam que ninguém seria capaz de cuidar de mim tão bem
quanto eles. E que era a melhor opção para mim.



Bren me olhava, incrédulo.



— O que foi? — perguntei.



— Você... você sabe que isso é ilegal?



— O que é ilegal?




— Colocar um indivíduo em estase para a própria conveniência é
considerado um crime grave. Isso se enquadra na mesma categoria de assalto.



Eu não sabia o que dizer. Estase era algo bem-vindo e reconfortante, um
alívio relaxante às pressões da vida. Como alguém poderia comparar isso com um
assalto?



— Seus pais fizeram isso com você? — ele perguntou com voz mais suave.
— Várias vezes? Simplesmente roubaram grandes pedaços da sua infância?



— Não — disse, na defensiva. — Não foi nada disso. Eles estavam
impedindo que eu desperdiçasse grandes pedaços da minha vida. O período mais
longo que me mantiveram em estase foi de quatro anos e foi apenas porque eles
precisavam supervisionar a formação da colônia de mineração em Titan. —
Quando disse isso, franzi o cenho, tentando me lembrar se o que eu contara era
verdade. Eu não estava certa. Era comum eu perder a noção do tempo enquanto
estava em estase. — Eles fizeram uma festa para mim quando voltaram — contei,
tentando recuperar a sequência dos fatos. — Isso foi no meu aniversário de sete
anos.



Bren me olhou de um modo estranho.



— Sete... como agora que você tem dezesseis, mas na verdade está com
setenta e oito?



— Ah! — eu disse. — Sim, acho que é isso.



— Rose... — ele disse. — Quantos anos demorou para você completar
dezesseis anos?




— Bem... não tenho certeza. Só me dei conta algumas semanas atrás de
que estou com cem anos de idade, tecnicamente. A última estase foi há sessenta
e dois anos, portanto... vinte e oito anos? Eu acho — encolhi os ombros.



Bren se levantou lentamente e fez algo que realmente me surpreendeu. Ele
pousou os braços ao redor dos meus ombros e me envolveu em um abraço forte e
caloroso.



— Sinto muito — ele sussurrou no meu ouvido.



Isso simplesmente não era justo. Era como se ele estivesse tentando
dilacerar meu coração, para que assim pudesse fazer com que virasse pó. Seu
hálito estava pesado sobre a minha orelha, e seu corpo estava tão confortável
contra o meu como em um sonho. Não consegui conter um suspiro, mas fiquei
com raiva. Ele não estava sentindo o mesmo que eu, estava apenas me
torturando. Afastei-me.



— Sente pelo quê? Estou bem. — Fiquei surpresa por minha voz ter soado
tão forte.



Ele me encarou, sua fisionomia era tão suave e sincera como eu nunca
tinha visto antes. E balançou a cabeça lentamente.



— Rose, você não está bem.



— Estou sim — retruquei, fitando-o. — Quem é você para julgar o meu
mecanismo de superação? Você bate em uma bolinha de tênis, eu entro em
estase. Não há diferença.




Bren me olhou incrédulo e, então, lentamente fechou os olhos. Balançou a
cabeça algumas vezes.



— Está bem — ele disse, abrindo os olhos. — Acredite, se isso lhe conforta.
— Segurou a minha mão. — Temos de levar você de volta para casa.



Recusei-me a sair do lugar.



— Não.



Bren se voltou para mim.



— Não?



— Ainda não estou pronta para voltar.



Bren fitou-me pelo que me pareceu um minuto inteiro.



— Que pena — ele finalmente disse. — Metade da força policial da
ComUnidade está em alerta, à sua procura. Seus pais adotivos tiveram um
ataque histérico. Guillory e meu avô parecem tão irritados que estão prestes a
explodir. Por isso cresça, controle-se e volte.



Franzi a testa.



— Deixe-me sozinha — resmunguei. — Diga a eles que estou bem, diga que
estou aqui. Eu simplesmente não posso voltar ainda. — Esquivei-me dele e me
sentei sobre um caixote.




— Por que não?



— Ainda é muito... cedo — disse. — Era para ter passado tudo. Era para ter
passado tanto tempo que nada mais importaria. — Olhei-o de relance. Lindo
miserável! E meu coração disparou. Não, não tinha passado tempo o bastante. —
Mas não foi isso que aconteceu.



Bren ainda me encarava. Ele, então, avançou, como se eu fosse um felino
selvagem, e se agachou aos meus pés, para que eu pudesse olhar em seus olhos.



— Rose — disse. — Eu realmente sinto muito. Não deveria ter dito o que eu
disse para você. Aquilo foi... cruel, mas você me pegou de surpresa. Interpretei-a
mal. — Ele suspirou. — Não sou muito bom em conhecer pessoas novas, nosso
grupinho é muito...



— Fechado — completei.



— Sim. É isso mesmo. — Ele soltou uma risada triste. — E você é tão
calada. Foi isso que eu quis dizer quando disse que você parece um fantasma,
não tinha nada a ver com essa coisa de estase. É difícil conhecê-la melhor, pois
você não fala. Eu não esperava por aquilo. Não mesmo. — Ele lutou em busca
das palavras certas. — Você é indecifrável. Para mim, pelo menos. Otto viu você
naquela manhã, quando foi embora da escola. Ele ficou preocupado. Eu disse a
ele que você estava interessada em mim e que estava exagerando, mas ele acha...
— Bren hesitou. — Otto acha que tem algo errado com você. Não com você, quer
dizer, ele não acha que pode ser algo congênito ou qualquer coisa do tipo. Mas
você tem aqueles vazios na sua mente. Eu não sei o que significa, mas agora
acho...




— Não foi por causa da estase — eu disse com convicção. — Experimente
acordar em uma manhã e descobrir que todo o seu mundo se foi, que todas as
pessoas que você conhecia e amava morreram de uma só vez, que todos os
lugares que conhecia mudaram de maneira tão radical que você nem reconhece
mais, até as expressões nos rostos das pessoas está diferente, e veja o buraco que
fica na sua mente! — Quando terminei esse pequeno discurso, lágrimas brotaram
novamente em meus olhos cansados. — Capete! — resmunguei, e tentei empurrá-
las de volta. Eu estava certa. Não tinha permanecido em estase por tempo
suficiente.



— Esse foi o discurso mais longo que já ouvi você fazer. — Bren tocou no
meu rosto. — Pode chorar — disse calmamente. — Eu também choraria.



— Não, eu não posso. Não posso permitir que ninguém veja. Sou muito
tensa. Preciso me controlar.



— Não tem mais ninguém aqui para vê-la, além de mim.



— Não importa — respondi. — Isso não é apropriado. Preciso de muito
tempo para conseguir relaxar, é por isso que uso a estase, entendeu? Sou muito
emotiva. Além do mais, passei a noite chorando. Eu não deveria sentir vontade de
chorar outra vez.



Bren inclinou a cabeça para o lado, sorrindo.



— Na noite passada, você estava em estase — ele corrigiu.




— Ah! — exclamei. A boca de Bren se curvou para o lado, ele então se
aproximou ainda mais e se sentou ao meu lado no caixote. Em seguida, pousou
um braço ao meu redor e esfregou meu ombro. A carícia me pareceu totalmente
platônica, mas realmente de coração. Suspirei. Desde que eu saíra da estase, era
o primeiro toque que eu sentia que não parecia forçado. A menos que Zavier
contasse. Inclinei a cabeça sobre o ombro de Bren. — Sinto muito se o fiz se
sentir mal, ontem — eu disse.



— Foi há três dias — Bren lembrou.



— Certo — eu disse. Organizar o tempo quando se esteve em estase é
sempre um enigma. — Nunca namorei ninguém de verdade, não sei reconhecer
os sinais.



Bren soltou um leve bufar.



— Ninguém sabe — falou. — É sempre acertar ou errar. Pensei, que você
tivesse dito que teve um namorado.



Assenti.



— Xavier — eu disse. — Mas nós não precisamos reconhecer nenhum sinal.
Nós nos conhecíamos tão bem que foi como água se juntando com água. Eu o
conhecia desde que ele nasceu.



— Você quer me contar sobre ele? — Bren perguntou gentilmente.



Respirei fundo.




— Ele era filho do nosso vizinho. Eu o conheci quando ele ainda era um
bebê e eu já tinha sete anos. Nós costumávamos brincar no jardim. Crescemos
juntos. Ele era como meu irmão mais novo, e então acabou se tornando meu
melhor amigo. Meu único amigo de verdade. Ele era a única pessoa que me
entendia, o único que me ouvia. Quando tínhamos quinze anos, ou, acho que ele
já estava com dezesseis, nós... — As lágrimas começaram a cair novamente e,
dessa vez, eu simplesmente permiti que elas rolassem.



Bren apertou meu ombro e pressionou o rosto sobre o topo da minha
cabeça.



— Sinto muito, Rose. Deve ter sido muito difícil ter tido alguém desse jeito,
e nunca ter podido dizer adeus.



Mas era exatamente isso que piorava mais as coisas.



— Eu disse adeus — contei, e minhas lágrimas distorceram minha voz. —
Só nunca tive a chance de pedir desculpa.



Bren não entendeu, mas não precisou. Tudo o que eu precisava naquele
momento era que ele me deixasse chorar.



Mas eu não tive chance. Uma voz rouca perfurou a penumbra silenciosa do
subsolo, arrancando-me do meu sofrimento.



— Você é Rose Samantha Fitzroy. Por favor, permaneça parada para
confirmação de identificação.






13





AFASTEI-ME DE BREN.



— Você ouviu isso? — sussurrei, rezando para que ele dissesse não. E
preferia estar tendo uma alucinação a ter aquela coisa atrás de mim de verdade.



— Sim. Olá? — ele chamou na escuridão. — Quem está aí?



Não houve nenhuma resposta imediata, exceto pela minha.



— Capete!



— O que está acontecendo?



— Ele é real!



Bren pareceu confuso.



— Quem é real?



Olhei para ele, apavorada.



— Pensei que tivesse sido um sonho, mas...




— Combinação de voz confirmada. Por favor, permaneça parada para
identificação de retina.



Fechei os olhos e saí para o lado, puxando Bren comigo. Escondi-me atrás
do caixote e olhei para a esquerda e para a direita em busca de uma saída. Não
havia nada. Somente corredores e mais corredores de caixotes e caixas
empoeirados. Talvez tivesse uma arma ou algo assim por lá...



— O que está acontecendo aqui? — Bren perguntou.



— Não temos tempo! — eu disse. — Corra! Ele está atrás de mim, não de
você!



— Correr? O que você está...?



Mas eu já estava correndo.







Ele tinha perdido o sinal do seu alvo. O alvo se escondera atrás do caixote
e, então, correu por um dos corredores formados por prateleiras. Ele ativou o
sinal de alerta.



— Permaneça parada. Minhas ordens são para capturar e retornar. Se a
captura se mostrar impossível, minhas ordens são para exterminar.



Enquanto isso, caminhava entre os corredores. Depois de tanto tempo no
modo standby, seu mecanismo de audição não se encontrava em sua capacidade


máxima, por isso não podia ver ou ouvir o alvo. Ele se conectou à rede e buscou
por um mapa do subsolo.



ANÁLISE ESTATÍSTICA, POSSIBILIDADES DE OCULTAMENTO DE
ACORDO COM O TAMANHO. Iniciou um programa de estratégia, pronto para
buscar sistematicamente em cada canto do depósito, enquanto ainda bloqueava o
acesso à saída.



INICIAR PROGRAMA DE ESTRATÉGIA.



O labirinto de depósitos e prateleiras no subsolo mostrou ser muito para
meu corpo afetado pela fadiga estase. Eu me perdi de Bren e não consegui
alcançar o corredor que levava ao elevador. Ofegante, com o peito ardendo,
agachei-me em um canto atrás de uma cadeira quebrada e tentei me lembrar em
que direção ficava o elevador. Uma mão segurou meu ombro. Gritei e, então,
mordi meu braço, odiando-me por ter feito barulho. Era apenas Bren.



— Por que você não correu? — sibilei. — Ele estará aqui dentro de um
minuto. Não espere por mim.



— Quem estará aqui? Do que você está falando?



— Seus pais nunca o ensinaram como fugir de um sequestro? — perguntei.



— Não — Bren respondeu. — Por que iriam?



Fiquei boquiaberta diante de tamanho descuido.




— Rose, você não vai me dizer o que está acontecendo? — Bren gritou mais
exasperado do que preocupado.



— Esse homem brilhante maluco que parece de plástico me atacou em meu
estúdio há algumas noites. Pensei que tinha sido um sonho, mas acho que estava
enganada. Ele ia colocar um colar controlador em mim e me levar de volta para
algum princípio.



— Ah! — Bren se levantou e olhou pelo corredor. — Você quer dizer ele?



Olhei. Meu agressor se aproximava, lentamente, mas a passos firmes. Ele
estava no meio do caminho, mas ia acabar conseguindo me apanhar.



— Ah, Deus! — ofeguei. — Vamos! — puxei Bren pelo braço. — Ele vai
pegar você, também!



Bren me segurou pela blusa, impedindo-me de correr.



— Aquilo não é ele — Bren disse, de um modo um tanto arrogante, pensei.
— É uma máquina. Pare de correr, ele irá se colocar entre você e o elevador, e
você irá se cansar muito antes do que ele.



— Ele disse que ia me exterminar! — eu disse. — O que eu deveria fazer?
Oferecer chá com bolinhos? Da última vez ele quase matou o meu cachorro!



— O que Barry e Patty disseram da última vez?



— Nada.




— Tentaram eliminar você e eles não disseram nada?



— Não contei a eles — sussurrei.



— Por que não?



Abri a boca, mas não tinha um motivo de verdade. Tinha me convencido de
que tudo não passara de um sonho, mas por que eu não tinha dito nada na
manhã seguinte?



— Não sei.



Bren ficou olhando para mim durante um momento e então balançou a
cabeça.



— Ei, Rose! Aprenda a falar! — Bren se levantou e apontou para o homem.
— Abortar missão! — ele disse em voz alta. — Abortar, abortar, abortar!



— Bren!



— Abortar! Abortar! Alvo em localização de retorno especificado! Abortar!
Abortar!



— Combinação de voz inválida — disse a voz mecânica com um acentuado
sotaque alemão. — Alvo secundário impedindo a missão. Exterminar alvo
secundário.



Bren gelou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário