quinta-feira, 7 de março de 2013

Dezesseis Luas 01 - MARGARET STOHL e KAMI GARCIA (Parte 2)


Emily, Savannah, Charlotte e Eden estavam paradas em frente aos seus
armários, se ajeitando nos espelhos pendurados por dentro das portas. O
armário de Lena era só um pouco depois no corredor.

— Apenas as ignore — pedi.

Emily estava esfregando a bochecha com um lenço de papel. A marca
negra com formato de lua estava ficando maior e mais preta, em vez de sair.

— Charlotte, você tem removedor de maquiagem?

— Claro.

Emily esfregou a bochecha algumas vezes mais.

— Isso não está saindo. Savannah, achei que você tinha dito que esse
negócio saía com água e sabão.

— Sai.


— Então por que não está saindo?

Emily bateu a porta do armário, irritada. O drama chamou a atenção de
Link.

— O que aquelas quatro estão fazendo ali?

— Parece que estão tendo algum tipo de problema — disse Lena,
apoiando em seu armário.

Savannah tentou limpar a lua negra da própria bochecha.

— A minha também não está saindo. — A lua agora estava espalhada em
metade do rosto. Savannah começou a revirar a bolsa. — Estou com o lápis
bem aqui.

Emily tirou a bolsa do armário, enquanto procurava algo.

— Esqueça. O meu está na minha bolsa.

— Mas o que... — Savannah tirou algo da bolsa.

— Você usou caneta permanente? — Emily riu.

Savannah segurou a caneta na frente dos olhos.

— Claro que não. Não tenho ideia de como isso veio parar aqui.

— Você é tão burra. Isso nunca vai sair antes da festa de hoje.

— Não posso ficar com essa coisa no meu rosto a noite toda. Vou vestida
de deusa grega. Afrodite. Isso vai arruinar minha fantasia.

— Você devia ter tido mais cuidado. — Emily revirou a pequena bolsa
prateada mais um pouco. Virou seu conteúdo no chão embaixo do armário, e
tubos de gloss e vidros de esmalte rolaram pelo chão. — Tem que estar aqui.

— De que você está falando? — perguntou Charlotte.

— A maquiagem que usei hoje de manhã não está aqui.

A essa altura, Emily estava atraindo uma plateia; as pessoas estavam
parando para ver o que estava acontecendo. Uma caneta permanente rolou
da bolsa de Emily até o meio do corredor.

— Você usou caneta permanente também?

— Claro que não! — gritou Emily, esfregando o rosto freneticamente.
Mas a lua negra só crescia mais e mais como as outras. — Que diabos está
acontecendo?

— Sei que estou com o meu — disse Charlotte, girando a tranca do
armário. Quando abriu a porta e ficou ali alguns segundos, olhando para
dentro.

— O que é? — perguntou Savannah.


Charlotte tirou a mão de dentro do armário. Estava segurando uma
caneta permanente.

Link sacudiu um pompom.

— As líderes de torcida são demais!

Olhei para Lena.

Caneta permanente?

Um sorriso malicioso cresceu em seu rosto.

Pensei que você tivesse dito que não conseguia controlar seus poderes.

Sorte de principiante.









No fim do dia, todo mundo na Jackson falava sobre a equipe de líderes de
torcida. Ao que tudo indicava, todas as líderes de torcida que se vestiram de
Lena de alguma maneira usaram caneta permanente para desenhar a
inofensiva lua crescente no rosto em vez de lápis de olho. Líderes de torcida.
Uma fonte infinita de piadas.

Todas elas andariam pela escola e pelo resto da cidade, cantariam nos
corais jovens das igrejas e fariam a torcida nos jogos com caneta permanente
na bochecha pelos próximos dias, até que a lua sumisse. A Sra. Lincoln e a
Sra. Snow teriam um ataque.

Eu só desejava poder estar lá para ver.

Depois da escola, andei com Lena até o carro dela, o que na verdade era
uma desculpa para segurar sua mão por mais tempo. As sensações físicas
intensas que eu sentia quando tocava nela não serviam para me deter como se
poderia esperar. Não importava como eu me sentia, se estava fervendo ou
explodindo como lâmpadas ou sendo atingido por relâmpagos, eu tinha que
estar perto dela. Era como comer ou respirar. Eu não tinha escolha. E isso era
mais assustador do que um mês de Halloween, e estava me matando.

— O que você vai fazer hoje à noite?

Enquanto eu falava, ela passou a mão distraidamente pelo cabelo. Estava
sentada no capô do rabecão, e eu estava de pé na frente dela.

— Achei que você podia ir pra minha casa, a gente podia ficar lá
atendendo a porta para as crianças pedindo doces. Você pode me ajudar a


ficar de olho no gramado pra que ninguém queime uma cruz lá. — Tentei
não pensar muito nos meus planos que envolviam Lena, e nosso sofá, e filmes
velhos e Amma passando a noite fora.

— Não posso. É uma das Grandes Festividades. Tenho parentes que vêm
de toda parte. Tio M não me deixaria sair de casa por 5 minutos, isso sem
mencionar o perigo. Eu jamais abriria minha porta para estranhos numa
noite com tanto poder das Trevas.

— Nunca pensei por esse lado.

Até agora.









Quando cheguei em casa, Amma estava se aprontando para ir embora.
Estava cozinhando um frango e sovando massa de pão com as mãos, "o único
jeito de uma mulher que tem respeito próprio fazer pães." Olhei para a
panela com desconfiança, imaginando se essa refeição ia para nossa mesa de
jantar ou para a dos Grandes.

Peguei um pouco de massa e ela pegou minha mão.

— L-A-R-Á-P-I-O.

Eu sorri.

— Que significa mantenha suas mãos de ladrão longe dos meus pães,
Ethan Wate. Tenho pessoas famintas para alimentar.

Acho que isso queria dizer que eu não comeria frango nem pãezinhos
naquela noite.

Amma sempre ia para casa no Halloween. Ela dizia que era uma noite
especial na igreja, mas minha mãe costumava dizer que era apenas uma boa
noite para os negócios. Que noite melhor haveria para ler cartas do que a de
Halloween? O público não seria o mesmo na Páscoa ou no Dia dos
Namorados.

Mas diante dos últimos eventos, me perguntei se não havia outra razão.
Talvez fosse uma boa noite para ler ossos de galinha no cemitério também.
Eu não podia perguntar, e não tinha certeza se queria saber. Sentia falta de
Amma, de conversar com ela, de confiar nela. Se ela estava sentindo a
diferença, não estava demonstrando. Talvez ela só pensasse que eu estava


crescendo, e talvez eu estivesse.

— Você vai àquela festa na casa dos Snow?

— Não, vou ficar em casa esse ano.

Ela ergueu uma sobrancelha, mas não ia perguntar. Já sabia por que eu
não ia.

— Se você faz a cama, é melhor estar pronto para deitar nela.

Eu não disse nada. Sabia que não devia. Ela não estava esperando uma
resposta.

— Estou me aprontando para ir em alguns minutos. Atenda a porta
quando os pequenos passarem aí. Seu pai está ocupado trabalhando.

Como se meu pai fosse sair de seu exílio autoimposto para atender a
porta e distribuir doces.

— Claro.









Os sacos de doce estavam no corredor. Eu os abri e virei em uma grande
tigela de vidro. Não conseguia tirar as palavras de Lena da cabeça. Uma
noite com tanto poder das Trevas. Lembrei de Ridley parada em frente ao
carro do lado de fora do Pare & Roube, toda sorriso doce e pernas.
Obviamente, identificar as forças das Trevas não era um dos meus talentos, e
nem decidir para quem se devia ou não abrir a porta de casa. Como eu disse,
quando a garota que não sai da sua cabeça é uma Conjuradora, o Halloween
assumia um novo significado. Olhei para a tigela de doces nas minhas mãos.
Então abri a porta da frente, coloquei a tigela na varanda e voltei para
dentro.

Enquanto me ajeitava para ver O Iluminado, percebi que sentia falta de
Lena. Deixei minha mente vagar, porque eu costumava achar um meio de ir
até o ponto em que ela ficava, mas ela não estava lá. Adormeci no sofá
esperando que Lena me chamasse em sonho, ou algo assim,

Uma batida na porta me assustou. Olhei para meu relógio. Eram quase
22 horas, tarde demais para crianças pedindo doces.

— Amma?

Nenhuma resposta. Ouvi a batida de novo.


— É você?

A varanda estava escura, e só a luz da TV estava piscando. Era o
momento em O Iluminado em que o pai quebra a porta do hotel com o
machado sangrento para ir atrás da família. Não era um bom momento para
se abrir a porta, principalmente no Halloween. Outra batida.

— Link? — Desliguei a TV e olhei ao redor para ver se tinha algo para eu
pegar, mas não havia nada. Peguei um velho console de videogame que
estava no chão com uma pilha de jogos. Não era um taco de beisebol, mas
era uma sólida peça de velha tecnologia japonesa. Pesava pelo menos uns 2,5
quilos. Levantei-o sobre a cabeça e dei um passo em direção à parede que
separava a varanda do corredor de entrada. Outro passo, e puxei a cortina de
renda que cobria a porta com painéis de vidro só um milímetro.

Na escuridão da varanda escura, não consegui ver o rosto dela. Mas eu
reconheceria aquela velha van bege, com o motor ainda ligado em frente à
minha casa, em qualquer lugar. "Areia do Deserto" era como ela costumava
chamar. Era a mãe de Link, segurando um prato de brownies. Eu ainda
estava segurando o videogame. Se Link me visse, jamais me deixaria
continuar vivendo sem mencionar isso.

— Só um minuto, Sra. Lincoln.

Acendi a luz da varanda e destranquei a porta da frente. Mas quando
tentei abri-la, a porta continuava presa. Verifiquei a fechadura de novo, e ela
ainda estava trancada, apesar de eu ter acabado de destrancá-la.

— Ethan?

Destranquei a porta de novo. Ela se trancou com um estalo, antes que eu
pudesse afastar minha mão da fechadura.

— Sra. Lincoln, desculpe, minha porta parece estar emperrada.

Sacudi a porta com todo meu peso, equilibrando o console. Alguma coisa
caiu no chão na minha frente. Parei para pegar. Alho, enrolado em um dos
lenços de Amma. Se fosse para dar um palpite, diria que havia um em cada
porta e cada janela. Uma pequena tradição de Halloween de Amma.

Ainda assim, alguma coisa estava impedindo que a porta abrisse, assim
como alguma coisa tinha tentado abrir a porta do escritório para mim dias
atrás. Quantas trancas nessa casa iam ficar se abrindo e fechando sozinhas? O
que estava acontecendo?

Destranquei a porta mais uma vez e dei um puxão final. Ela abriu de


repente e bateu na parede do corredor. A Sra. Lincoln estava iluminada por
trás, uma figura escura em uma poça de luz pálida. A silhueta era inquietante.

Ela olhou para o console na minha mão.

— Os videogames vão apodrecer seu cérebro, Ethan.

— Sim, senhora.

— Trouxe brownies para você. Uma oferta de paz.

Ela os ofereceu com expectativa. Eu devia tê-la convidado para entrar.
Havia regras para tudo. Acho que podia se chamar de educação,
hospitalidade sulista. Mas eu tinha tentado isso com Ridley, e não tinha ido
muito bem. Hesitei.

— O que a senhora faz aqui agora? Link não está aqui.

— É claro que não. Está na casa dos Snow, onde todo integrante
honrado do corpo de alunos da Jackson High deveria ter sorte de estar.
Precisei dar muitos telefonemas para conseguir que ele fosse convidado,
devido ao comportamento recente dele.

Eu ainda não estava entendendo. Conhecia a Sra. Lincoln a minha vida
inteira. Ela sempre tinha sido incomum. Se ocupava fazendo com que livros
fossem tirados das prateleiras da biblioteca, professores demitidos das escolas,
reputações arruinadas em apenas uma tarde. Ultimamente, ela estava
diferente. A cruzada contra Lena era diferente. A Sra. Lincoln sempre teve
convicções, mas isso era pessoal.

— Senhora?

Ela parecia agitada.

— Fiz brownies para você. Achei que podia entrar para conversarmos.
Minha briga não é com você, Ethan. Não é sua culpa que aquela garota
esteja usando a perversidade dela em você. Você devia estar na festa com seus
amigos. Com os adolescentes que são daqui de verdade. — Ela esticou os
brownies, aqueles com pedaços de chocolate e calda de chocolate que eram
sempre a primeira coisa a acabar na venda beneficente da Igreja Batista.
Cresci comendo aqueles brownies. — Ethan?

— Senhora?

— Posso entrar?

Não movi um músculo. Segurei o console com mais força. Olhei para os
brownies e de repente não senti mais fome. Nem mesmo o prato, nem uma
migalha daquela mulher era bem-vinda na minha casa. Minha casa, como


Ravenwood, estava começando a ter mente própria, e não havia parte de
mim e nem da casa que iria deixá-la entrar.

— Não, senhora.

— O que você falou, Ethan?

— Não. Senhora.

Os olhos dela se apertaram. Ela empurrou o prato em minha direção,
como se fosse entrar de qualquer jeito, mas ele balançou como se houvesse
uma parede invisível entre ela e eu. Vi o prato se inclinar e cair lentamente
até o chão, onde se partiu em milhões de pedaços de cerâmica e chocolate,
tudo em cima do nosso capacho de Feliz Halloween. Amma teria um ataque
de manhã.

A Sra. Lincoln se afastou pelos degraus da varanda com cautela e
desapareceu na escuridão do velho Areia do Deserto.





Ethan!

A voz dela me arrancou do sono. Devo ter cochilado. A maratona de
horror tinha acabado e a televisão tinha passado a transmitir um chuvisco
alto e cinzento.

Tio Macon! Ethan! Socorro!

Lena estava gritando. Em algum lugar. Eu podia ouvir o terror em sua
voz, e minha cabeça pulsava com tanta dor que por um segundo esqueci onde
estava.

Alguém, por favor, me ajude!

A porta da frente da minha casa estava aberta, balançando e batendo ao
vento. O som ricocheteava pelas paredes como tiros.

Achei que você tivesse dito que era seguro aqui!

Ravenwood.

Peguei as chaves do velho Volvo e corri.





Não consigo me lembrar de como cheguei a Ravenwood, mas sei que quase
saí da estrada algumas vezes. Meus olhos mal conseguiam se focar. Lena
estava sofrendo tanto e nossa ligação estava tão próxima que eu quase
desmaiei só de senti-la.


E os gritos.

Os gritos eram constantes, desde o momento em que acordei até a hora
em que apertei a lua crescente e entrei em Ravenwood.

Quando a porta se abriu, pude ver que Ravenwood tinha se
transformado mais uma vez. Esta noite, estava quase como um castelo antigo.
Candelabros jogavam sombras estranhas na multidão de convidados de
vestidos negros, capas negras e jaquetas negras, em número bem maior do
que na Reunião.

Ethan! Corra! Não consigo aguentar...

— Lena! — gritei. — Macon! Onde ela está?

Ninguém sequer olhou em minha direção. Não vi ninguém que eu
conhecesse, embora o salão da frente estivesse repleto de convidados, indo de
aposento a aposento como fantasmas em um jantar assombrado. Eles não
eram daqui, pelo menos não há centenas de anos. Vi homens de saias escuras
e grosseiras túnicas escocesas, mulheres de vestidos com espartilhos. Tudo era
negro e envolvido em sombras.

Passei pela multidão empurrando e entrei no que parecia ser o grande
salão de baile. Eu não via nenhum deles; nada de tia Del, nem Reece, nem
mesmo a pequena Ryan. Velas ardiam em chamas nos cantos da sala, e o que
parecia ser uma orquestra translúcida de estranhos instrumentos musicais
entrava e saía de foco, tocando sozinha, enquanto casais cobertos de sombras
iam girando e deslizando pelo chão que agora era de pedra. Os dançarinos
nem pareciam me perceber.

A música era claramente música de Conjuradores, conclamando um
feitiço próprio. Eram cordas, principalmente. Eu ouvia violinos, uma viola,
um violoncelo. Quase via a teia que girava de dançarino para dançarino, o
modo como puxavam um ao outro, como se fosse um padrão deiiberado, e
eles fizessem parte do design. E eu não.

Ethan...

Eu tinha que encontrá-la.

Uma repentina onda de dor. A voz dela estava ficando mais baixa agora.
Tropecei e me apoiei no ombro do convidado ao meu lado. Bastou tocá-lo e a
dor, a dor de Lena, fluiu através de mim e até ele. Ele cambaleou e esbarrou
no casal dançando ao lado dele.

— Macon! — gritei a plenos pulmões.


Vi Boo Radley no topo da escada, como se estivesse esperando por mim.
Os olhos redondos e humanos pareciam apavorados.

— Boo! Onde ela está?

Boo olhou para mim e vi os olhos enevoados e duros de Macon
Ravenwood; pelo menos, eu podia ter jurado que vi. Então Boo se virou e
correu. Corri atrás dele, ou pensei que o estava seguindo, correndo para cima
na escadaria de pedra em espiral do que agora era o Castelo Ravenwood. Já
no alto, ele esperou que eu o alcançasse, depois correu em direção ao final do
corredor. Vindo de Boo, isso era praticamente um convite.

Ele latiu, e duas portas sólidas de carvalho abriram sozinhas com um
gemido. Era tão longe da festa que eu nem conseguia ouvir a música nem a
conversa dos convidados, Era como se tivéssemos entrado em outro lugar e
tempo. Até mesmo o castelo estava mudando debaixo dos meus pés, as pedras
se despedaçando, as paredes ficando cheias de musgo e frias. As luzes agora
eram tochas penduradas na parede.

Eu conhecia coisas antigas. Gatlin era velha. Eu tinha crescido com
coisas velhas. Isso era uma coisa totalmente diferente. Como Lena tinha dito,
um Ano-Novo. Uma noite fora do tempo.

Quando entrei no quarto principal, dei de cara com o céu. O quarto se
abria para os céus como uma estufa. O céu acima estava preto, o céu mais
negro que eu já tinha visto. Como se estivéssemos no meio de uma
tempestade terrível, mas ainda assim o quarto estava silencioso.

Lena estava deitada sobre uma pesada mesa de pedra, encolhida em
posição fetal. Estava encharcada, ensopada no próprio suor e se contorcendo
de dor. Eles estavam de pé ao redor dela: Macon, tia Del, Barclay, Reece,
Larkin, até mesmo Ryan, e uma mulher que não reconheci, de mãos dadas,
formando um círculo.

Os olhos deles estavam abertos, mas eles não enxergavam. Nem mesmo
repararam que eu tinha entrado no quarto. Eu podia ver suas bocas se
mexendo, murmurando alguma coisa. Quando cheguei perto de Macon,
percebi que não estavam falando nossa língua. Eu não tinha certeza, mas já
passara tempo o bastante com Marian para achar que era Latim.



— Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.


Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.



Eu só conseguia ouvir o murmúrio baixo, o cantarolar. Não conseguia
mais ouvir Lena. Minha cabeça estava vazia. Ela tinha ido embora.

Lena! Me responda!

Nada. Ela continuava lá deitada, murmurando baixinho, se contorcendo
lentamente como se estivesse tentando se livrar da própria pele. Ainda
suando, o suor misturado às lágrimas.

Dei quebrou o silêncio, histérica.

— Macon, faça alguma coisa! Não está funcionando.

— Estou tentando, Deiphine.

Havia alguma coisa na voz dele que eu nunca tinha notado antes. Medo.

— Não entendo. Enfeitiçamos essa casa juntos. Essa casa é o único lugar
onde ela deveria estar segura. — Tia Del olhou para Macon em busca de
respostas.

— Estávamos errados. Não há abrigo seguro para ela aqui — disse uma
mulher bonita da idade da minha avó com espirais de cabelos negros. Ela
usava contas em volta do pescoço, cordão em cima de cordão, e enfeitados
anéis de prata nos polegares. Tinha a mesma qualidade exótica que Marian
tinha, como se fosse de algum lugar longe dali.

— Você não tem certeza, tia Arelia — falou Dei, se virando para Reece.
— Reece, o que está acontecendo? Consegue ver alguma coisa?

Os olhos de Reece estavam fechados, as lágrimas correndo pelo rosto.

— Não consigo ver nada, mãe.

O corpo de Lena deu um espasmo e ela gritou, ou pelo menos abriu a
boca e parecia que estava gritando, mas não saiu som algum. Eu não
conseguia suportar.

— Façam alguma coisa! Ajudem! — gritei.

— O que você está fazendo aqui? Saia daqui. Não é seguro — avisou
Larkin. A família me notou pela primeira vez.

— Concentrem-se!

Macon parecia desesperado. A voz dele subiu acima das outras, cada vez
mais alta, até que ele estava gritando:




— Sanguis sanguínis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguínis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguínis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguínis mei, tutela tua est.

Sangue do meu sangue, a proteção é sua!



Os integrantes do círculo contraíram os braços como se quisessem dar
mais força ao círculo, mas não funcionou. Lena ainda dava gritos silenciosos
de pavor. Aquilo era pior do que os sonhos. Era real. E se eles não iam acabar
com isso, eu ia. Corri em direção a ela, passando por baixo dos braços de
Reece e Larkin.

— Ethan, NÃO!

Quando entrei no círculo, consegui ouvir. Um uivo. Sinistro, assustador,
como a voz do próprio vento. Ou seria mesmo uma voz? Eu não tinha
certeza. Apesar de estar apenas a alguns metros da mesa onde ela estava
deitada, senti como se estivesse a milhões de quilômetros de distância.
Alguma coisa estava tentando me afastar, alguma coisa mais poderosa do que
qualquer coisa que já senti antes. Até mais poderosa do que quando Ridley
estava congelando minha vida dentro de mim. Fiz força contra com tudo o
que havia em mim.

Estou indo, Lena! Aguente!

Joguei meu corpo para a frente, esticando a mão, como nos sonhos. O
abismo negro no céu começou a girar.

Fechei meus olhos e saltei para a frente. Nossos dedos se tocaram, de
leve.

Ouvi a voz dela.

Ethan, eu...

O ar dentro do círculo girou em torno de nós com violência, como um
tufão. Girando em direção ao céu, se é que ainda podíamos chamar de céu.
Em direção à escuridão. Houve um estouro, como uma explosão, que
empurrou tio Macon, tia Del, todo mundo de costas, contra as paredes atrás
deles. No mesmo momento, o ar que girava dentro do círculo rompido foi
sugado para a escuridão acima.

E então, acabou. O castelo virou um sótão normal, com uma janela
retangular que se abria sob as calhas. Lena estava deitada no chão, em um


emaranhado de cabelos e membros e inconsciência, mas estava respirando.

Macon se levantou do chão, olhando para mim espantado. Depois andou
até a janela e a fechou.

Tia Del olhou para mim, lágrimas ainda escorrendo pelo rosto.

— Se eu mesma não tivesse visto...

Ajoelhei ao lado de Lena. Ela não conseguia se mexer nem falar. Mas
estava viva. Eu conseguia senti-la, um pequeno latejar pulsando em sua mão.
Deitei minha cabeça ao lado dela. Foi tudo que consegui fazer para não
desmoronar.

A família de Lena lentamente se reuniu ao redor de nós, um círculo
escuro falando sobre minha cabeça.

— Eu falei para você. O garoto tem poder.

— Não é possível. Ele é Mortal. Não é um de nós.

— Como um Mortal poderia quebrar um Círculo Sanguinis? Como um
Mortal poderia repelir um Mentem Interficere tão poderoso que nem o
Feitiço de Ravenwood conseguiu resistir?

— Não sei, mas tem que haver uma explicação. — Dei ergueu a mão
acima da cabeça. — Evinco, contineo, colligo, includo. — Ela abriu os olhos.
— A casa ainda está Enfeitiçada, Macon. Consigo sentir. Ela atingiu Lena
mesmo assim.

— Claro que atingiu. Não podemos impedi-la de vir atrás da criança.

— Os poderes de Sarafine crescem a cada dia. Reece consegue vê-la
agora, quando olha nos olhos de Lena. — A voz de Dei estava trêmula.

— Nos atacar aqui, nesta noite. Ela estava apenas querendo mostrar pra
nós.

— Mostrar o quê, Macon?

— Que ela consegue.

Senti uma mão na minha têmpora. Era quase um carinho, alguém
acariciava minha testa. Tentei ouvir, mas a mão me deixava com sono.
Queria rastejar até minha casa e ir para a cama.

— Ou que não consegue. — Olhei para cima. Arelia estava esfregando
minhas têmporas, como se eu fosse um pardalzinho ferido. Só que eu sabia
que ela estava tentando me sentir, saber o que havia dentro de mim. Estava
procurando por alguma coisa, vasculhando minha mente como se procurasse
por um botão perdido ou uma meia velha. — Ela foi tola. Cometeu um erro


crítico. Descobrimos a única coisa que precisamos saber — disse Arelia.

— Então você concorda com Macon? O garoto tem poder? — Dei
parecia ainda mais nervosa agora.

— Você estava certa antes, Deiphine. Deve haver alguma outra
explicação. Ele é Mortal, e sabemos que Mortais não possuem poder — disse
Macon, como se estivesse tentando convencer a si mesmo e a todo mundo.

Mas eu tinha começado a me perguntar se não era verdade. Ele tinha
dito a mesma coisa para Amma no pântano, que eu tinha algum tipo de
poder. Só não fazia sentido, nem mesmo para mim. Eu não era um deles, isso
eu sabia. Não era um Conjurador.

Arelia olhou para Macon.

— Pode Enfeitiçar a casa o quanto quiser, Macon. Mas sou sua mãe e
estou dizendo que você pode trazer para cá todos os Duchannes, todos os
Ravenwood, tornar o Círculo tão largo quanto esse condado esquecido, se
quiser. Conjurar toda a Vincula, se quiser. Não é a casa que a protege. É o
garoto. Nunca vi nada assim. Nenhum Conjurador pode ficar entre eles.

— É o que parece. — Macon parecia furioso, mas não desafiou a mãe.
Eu estava cansado demais para me importar. Nem levantei minha cabeça.

Eu podia ouvir Arelia sussurrando alguma coisa no meu ouvido. Parecia
que ela estava falando latim de novo, mas as palavras pareciam diferentes.

— Cruor pectoris mei, tutela tua est! Sangue do meu coração, a proteção
é sua!




























p 1º de novembro p

d



Os escritos na parede













N



a manhã seguinte, eu não tinha ideia de onde estava. Então vi as
palavras cobrindo as paredes e a velha cama de ferro e as janelas e os
espelhos, tudo escrito com caneta permanente e na letra de Lena, e
lembrei.

Levantei a cabeça e limpei a baba da minha bochecha. Lena ainda
estava dormindo; eu podia ver o pé dela caindo pela lateral da cama. Me
levantei, as costas ainda doendo por ter dormido no chão. Me perguntei
quem nos trouxe do sótão e como.

Meu celular tocou; era meu despertador diário, para que Amma só
tivesse que gritar pela escadaria três vezes para me acordar. Só que hoje, não
tocou "Bohemian Rhapsody". Tocou a música. Lena se sentou, assustada,
grogue.

— O que acont...

— Shh. Escute.



A música tinha mudado.



Dezesseis luas, dezesseis anos,

Dezesseis vezes você sonhou com meus medos,

Dezesseis vão tentar Enfeitiçar as esferas,

Dezesseis gritos mas só um escuta...



— Pare!

Ela pegou meu celular e o desligou, mas o verso continuou tocando.

— É sobre você, eu acho. Mas o que é Enfeitiçar as esferas?


— Quase morri ontem à noite. Estou cansada de tudo ser sobre mim.
Estou cansada de todas essas coisas estranhas acontecendo comigo. Talvez a
música idiota seja sobre você, pra variar. Você é o único aqui que tem 16
anos.

Frustrada, Lena ergueu a mão e a abriu. Depois fechou o punho e bateu
no chão como se estivesse matando uma aranha.

A música parou. Ninguém ia mexer com Lena hoje. Eu não podia culpá-
la, para ser honesto. Ela parecia estar enjoada, talvez até pior do que Link na
manhã seguinte do dia em que Savannah o tinha desafiado a beber a velha
garrafa de licor de menta do bar da mãe dela, no último dia de aula antes das
férias de inverno. Três anos se passaram e ele ainda não comia doces de
hortelã.

O cabelo de Lena estava espetado em umas 15 direções diferentes, e os
olhos estavam pequenos e inchados de tanto chorar. Então era assim que as
garotas ficavam de manhã. Eu nunca tinha visto aquilo, não de perto. Tentei
não pensar em Amma e no inferno que teria que encarar quando chegasse
em casa.

Rastejei até a cama e puxei Lena para o meu colo, passando minha mão
pelo seu cabelo louco.

— Você está bem?

Ela fechou os olhos e enterrou o rosto no meu moletom. Eu sabia que
devia estar fedendo como um gambá selvagem.

— Acho que sim.

— Eu ouvia você gritando lá da minha casa.

— Quem ia imaginar que fazer Kelt salvaria minha vida.

Eu não estava entendendo, como sempre.

— O que é Kelt?

— É assim que se chama o modo como conseguimos nos comunicar
independentemente de onde estamos. Alguns Conjuradores conseguem fazer
Kelt, outros não. Ridley e eu costumávamos conversar na escola desse jeito,
mas...

— Pensei que você tivesse dito que nunca aconteceu com você antes.

— Nunca aconteceu antes comigo e um Mortal. Tio Macon diz que é
muito raro.

Gostei de ouvir isso.


Lena me cutucou.

— Vem do lado celta de nossa família. É como os Conjuradores
costumavam mandar recados uns pros outros durante os julgamentos. Nos
Estados Unidos, costumavam chamar de "O Sussurro".

— Mas não sou Conjurador.

— Eu sei, é bem estranho. Não devia funcionar com Mortais.

Claro que não.

— Não acha que é mais do que estranho? Conseguimos fazer esse
negócio de Kelt, Ridley entrou em Ravenwood por minha causa, até seu tio
disse que consigo proteger você de alguma forma. Como isso é possível?
Quero dizer, não sou Conjurador. Meus pais são diferentes, mas não são tão
diferentes.

Ela se apoiou no meu ombro.

— Talvez não seja preciso ser Conjurador para ter poder.

Coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha dela.

— Talvez só seja preciso se apaixonar por uma.

Falei como quem não quer nada. Sem piadinhas, sem mudar o assunto.
Pela primeira vez não fiquei sem jeito, porque era a verdade. Eu tinha me
apaixonado. Acho que estava me apaixonando desde o começo. E ela tinha
que saber, se ainda não sabia, porque não tinha como voltar atrás agora. Não
para mim.

Ela olhou para mim, e o mundo inteiro desapareceu. Como se houvesse
nós dois, como se sempre só fosse haver nós dois. E não precisássemos de
magia para isso. Era meio que feliz e triste, tudo ao mesmo tempo. Eu não
conseguia ficar perto dela sem sentir coisas, sem sentir tudo.

Em que você está pensando?

Ela sorriu.

Acho que você consegue descobrir. Pode ler o que está escrito na parede.

E enquanto ela dizia, apareceu algo escrito na parede. Lentamente, uma
palavra de cada vez foi se formando.



Você.

não-

é

o


único-

se

apaixonando-.



Apareceu escrito sozinho, com a mesma letra preta que cobria as paredes
do quarto. As bochechas de Lena ficaram um pouco vermelhas e ela cobriu o
rosto com as mãos.

— Vai ser bem constrangedor se tudo que penso começar a aparecer nas
paredes.

— Você não fez de propósito?

— Não.

Você não precisa ficar constrangida, L.

Afastei as mãos dela do rosto.

Porque sinto o mesmo por você.

Os olhos dela estavam fechados, e me inclinei para beijá-la. Foi um
beijinho rápido, um beijinho de nada. Mas fez meu coração disparar mesmo
assim.

Ela abriu os olhos e sorriu.

— Quero ouvir o resto. Quero saber como você salvou minha vida.

— Nem me lembro como cheguei aqui, e depois eu não conseguia
encontrar você, e sua casa estava cheia de pessoas assustadoras que pareciam
estar numa festa a fantasia.

— Não estavam.

— Imaginei.

— Então você me encontrou? — Ela deitou a cabeça no meu colo,
erguendo os olhos para mim com um sorriso. — Você entrou no quarto com
seu cavalo branco e me salvou da morte certa nas mãos de um Conjurador
das Trevas?

— Não brinque. Foi apavorante. E não havia nenhum cavalo, era um
cachorro.

— A última coisa de que me lembro foi de tio Macon falando sobre o
Feitiço. — Lena torceu uma mecha de cabelo, pensativa.

— O que era aquela coisa de Circulo?

— O Círculo Sanguinis. O Círculo de Sangue.

Tentei não parecer muito apavorado. Mal conseguia engolir a ideia de


Amma e os ossos de galinha. Achava que não poderia lidar com sangue de
galinha de verdade; pelo menos, eu esperava que fosse apenas sangue de
galinha.

— Não vi sangue.

— Não é sangue de verdade, seu idiota. Sangue no sentido de parentes,
família. Minha família inteira está aqui para a festividade, lembra?

— Certo. Desculpe.

— Eu te falei. O Halloween é uma noite poderosa para Conjuros.

— Então era isso que vocês todos faziam lá em cima? Naquele Círculo?

— Macon queria Enfeitiçar Ravenwood. Sempre está Enfeitiçada, mas
ele a Enfeitiça novamente a cada Halloween para o Ano-Novo.

— Mas alguma coisa deu errado.

— Acho que sim, porque estávamos naquele círculo, e eu conseguia ouvir
tio Macon falando com tia Del, e depois todos começaram a gritar, e
começaram a falar de uma mulher. Sara alguma coisa.

— Sarafine. Eu ouvi também.

— Sarafine. Era esse o nome? Nunca o ouvi antes.

— Ela deve ser uma Conjuradora das Trevas. Todos pareciam, não sei,
com medo. Nunca ouvi seu tio falar daquele jeito antes. Você sabe o que
estava acontecendo? Ela estava mesmo tentando matar você? — Eu não tinha
certeza se queria saber a resposta.

— Não sei. Não me lembro de muita coisa, a não ser uma voz, como se
alguém estivesse falando comigo de muito longe. Mas não me lembro o que
dizia. — Ela se mexeu no meu colo, se apoiando sem jeito no meu peito.
Quase conseguia sentir o coração dela pulsando junto ao meu, como um
pássaro batendo asas dentro de uma gaiola. Estávamos tão próximos quanto
duas pessoas podiam ficar sem olhar uma para a outra. E acho que essa
manhã era assim que nós precisávamos ficar. — Ethan. Estamos ficando sem
tempo. Não adianta. Seja o que fosse, seja lá quem ela fosse, você não acha
que ela estava vindo até mim porque em quatro meses vou para as Trevas?

— Não.

— Não? É só isso que você tem a dizer sobre a pior noite da minha vida
inteira, quando quase morri? — Lena se afastou.

— Pense bem. Essa Sarafine, seja lá quem ela for, iria atrás de você se
você fosse um dos bandidos? Não, os mocinhos iriam atrás de você. Olhe


para Ridley. Ninguém da sua família estava estendendo o tapete vermelho
para recebê-la.

— Menos você. Imbecil. — Ela me deu um soco de brincadeira nas
costelas.

— Exatamente. Porque não sou um Conjurador. Sou um ínfimo Mortal.
E você mesma disse que se ela me mandasse pular de um penhasco, eu
pularia.

Lena mexeu no cabelo.

— Sua mãe nunca perguntou a você, Ethan Wate, se você também
pularia de um penhasco caso seus amigos fossem pular de um?

Passei os braços ao redor dela, me sentindo mais feliz do que deveria,
considerando a noite anterior. Ou talvez apenas fosse Lena que estivesse se
sentindo melhor, e eu estivesse em sintonia. Ultimamente, uma corrente forte
corria entre nós e era difícil saber o que era eu e o que era ela.

Eu só sabia que queria beijá-la.

Você vai para a Luz.

E então a beijei.

Com certeza, para a Luz.

Beijei-a de novo, puxando-a para meus braços. Beijá-la era como
respirar. Eu tinha que fazer. Não conseguia evitar. Comprimi meu corpo
contra o dela. Podia ouvi-la respirando, sentir seu coração batendo contra
meu peito. Meu sistema nervoso inteiro começou a disparar de repente. Meu
cabelo ficou de pé. O cabelo preto dela caiu sobre minhas mãos, e ela relaxou
contra meu corpo. Cada toque do seu cabelo era como uma pontada de
eletricidade. Eu estava esperando para fazer aquilo desde que a conheci,
desde que sonhei com ela pela primeira vez.

Era como um relâmpago. Éramos uma coisa só.

Ethan.

Mesmo na minha cabeça, pude ouvir a urgência na voz dela. Senti
também, como se não conseguisse chegar perto o bastante. A pele dela estava
macia e quente. Eu sentia as pontadas se intensificando. Nossos lábios
estavam doendo; não conseguíamos nos beijar com mais intensidade. A cama
começou a tremer e depois a flutuar. Eu a sentia balançando debaixo de nós.
Senti falta de ar. Minha pele ficou fria. As luzes no quarto piscaram e o
quarto girava, ou talvez estivesse escurecendo, eu não conseguia saber e não


sabia se era eu ou a luz no quarto.

Ethan!

A cama caiu no chão. Ouvi o barulho de vidro quebrado ao longe, como
se uma janela tivesse se despedaçado. Ouvi Lena chorando.

Depois, a voz de uma criança.

— O que houve, Lena? Por que está tão triste?

Senti uma mão pequena e quente no meu peito. O calor irradiou da
mão, passou para o meu corpo, o quarto parou de girar e eu consegui respirar
de novo. Abri os olhos.

Ryan.









Me sentei, a cabeça latejando. Lena estava ao meu lado, a cabeça pressionada
contra meu peito, como tinha feito uma hora antes. Só que desta vez as
janelas dela estavam quebradas, a cama tinha desmontado e uma pequena
loura de 10 anos estava parada na minha frente com a mão no meu peito.
Lena, ainda fungando, tentou empurrar parte de um espelho quebrado para
longe de mim, assim como o que tinha sobrado da cama dela.

— Acho que descobrimos o que Ryan é.

Lena sorriu, enxugando os olhos. Puxou Ryan para perto.

— Uma Taumaturga. Nunca tivemos uma na família.

— Imagino que seja uma palavra bacana de Conjuradores para
curandeira — eu disse, esfregando a cabeça.

Lena assentiu e beijou a bochecha de Ryan.

— Algo do tipo.




















p 27 de novembro p

d



Apenas um feriado americano comum

















D



epois do Halloween, parecia a calmaria depois da tempestade.
Estabelecemos uma rotina, apesar de sabermos que o tempo estava
passando. Eu andava até a esquina para me esconder de Amma, Lena
me pegava com o rabecão, Boo Radley nos alcançava na frente do Pare &
Roube e nos seguia até a escola. Com a exceção ocasional de Winnie Reid, a
única integrante da equipe de debate da Jackson, o que tornava o debate algo
difícil, ou Robert Lester Tate, que tinha ganhado o campeonato estadual de
soletrar dois anos seguidos, a única pessoa que sentava conosco no refeitório
era Link. Quando não estávamos na escola comendo nas arquibancadas ou
sendo espionados pelo diretor Harper, estávamos enfiados na biblioteca
relendo os papéis sobre o medalhão e torcendo para que Marian desse um
escorre- gão e nos contasse alguma coisa. Sem sinal de primas Sirenas
paqueradoras portando pirulitos e toques mortais, sem tempestades nível 3
inexplicáveis ou ameaçadoras nuvens negras no céu, nem mesmo uma
refeição esquisita com Macon, Nada fora do normal.

Exceto uma coisa. A coisa mais importante. Eu estava louco por uma
garota que se sentia do mesmo jeito em relação a mim. Quando isso tinha
acontecido? O fato de ela ser uma Conjuradora era quase mais fácil de
acreditar do que o fato de que ela existia.

Eu linha Lena. Ela era poderosa e bonita. Cada dia era apavorante, e
cada dia era perfeito.

Até que, do nada, o impensável aconteceu. Amma convidou Lena para o
jantar de Ação de Graças.










— Não sei por que você quer ir lá em casa no dia de Ação de Graças. É bem
chato. — Eu estava nervoso. Amma obviamente estava tramando alguma
coisa.

Lena sorriu, então relaxei. Não havia nada melhor do que quando ela
sorria. Sempre me deixava maravilhado.

— Não acho que seja chato.

— Você nunca foi ao jantar de Ação de Graças na minha casa.

— Nunca fui a um jantar de Ação de Graças na casa de ninguém.
Conjuradores não comemoram o dia de Ação de Graças. É um feriado
Mortal.

— Está brincando? Sem peru? Sem torta de abóbora?

— Isso mesmo.

— Você não comeu muito hoje, comeu?

— Na verdade, não.

— Então você ficará bem.

Eu tinha preparado Lena para que ela não ficasse surpresa quando as
Irmãs enrolassem uns pãezinhos em guardanapos e os enfiassem na bolsa. Ou
quando minha tia Caroline e Marian passassem metade da noite debatendo
sobre a localização da primeira biblioteca pública dos EUA (Charleston) ou
sobre as proporções certas para fazer a tinta “verde Charleston” (duas partes
de preto "Yankee" e uma parte de amarelo "Rebel"). Tia Caroline era
curadora de um museu em Savannah e sabia tanto sobre arquitetura e
antiguidades de época quanto minha mãe sabia sobre munição da Guerra
Civil e estratégias de batalha. Era para isso que Lena tinha que estar pronta:
Amma, meus parentes malucos, Marian e Harlon James, para completar.

Deixei de fora o único detalhe que ela realmente precisava saber.
Considerando os acontecimentos mais recentes, o dia de Ação de Graças
provavelmente também significava jantar com meu pai de pijama. Mas isso
era uma coisa que eu não poderia explicar.

Amma levava o dia de Ação de Graças muito a sério, o que significava
duas coisas. Meu pai finalmente sairia do escritório, se bem que já estaria


escuro, e portanto não seria uma grande exceção, e ele comeria à mesa
conosco. Nada de cereal. Era o mínimo que Amma permitiria. Então em
homenagem à peregrinação do meu pai ao mundo que todos nós
habitávamos todo dia, Amma cozinhava muito. Peru, purê de batata com
molho, feijão manteiga e creme de milho, batata doce com marshmallow,
presunto com mel e pãezinhos, torta de abóbora e torta de limão com
merengue, a qual, depois da minha noite no pântano, eu tinha quase certeza
de que ela estava fazendo mais para o tio Abner do que para o resto de nós.

Parei por um segundo na varanda, me lembrando de como me senti na
varanda de Ravenwood na primeira noite que fui lá. Agora era a vez de Lena.
Ela tinha prendido o cabelo escuro, revelando o rosto, e toquei o ponto onde
um fio conseguiu escapar, se enroscando até seu queixo.

Está pronta?

Ela puxou o vestido preto para soltá-lo da meia-calça.

Não.

Deveria estar.

Sorri e abri a porta.

— Pronta ou não...

A casa cheirava como na minha infância. Cheiro de purê de batata e de
trabalho árduo.

— Ethan Wate, é você? — gritou Amma da cozinha.

— Sim, senhora.

— Trouxe aquela garota? Traga-a aqui para que possamos dar uma boa
olhada nela.

A cozinha estava fervilhando. Amma estava em frente ao fogão, usando o
avental e tinha uma colher de pau em cada mão. Tia Prue estava andando
pela cozinha, enfiando os dedos nos potes na bancada. Tia Mercy e tia Grace
estavam fazendo Palavras Cruzadas na mesa da cozinha; nenhuma das duas
parecia perceber que não estavam acertando palavra alguma.

— Não fique aí parado. Traga-a até aqui.

Cada músculo do meu corpo se contraiu. Não havia como prever o que
Amma ou as Irmãs iam dizer. Eu ainda não tinha ideia de por que Amma
tinha insistido que eu convidasse Lena.

Lena deu um passo a frente.

— É um prazer finalmente conhecer a senhora.


Amma olhou Lena de cima a baixo, limpando as mãos no avental.

— Então é você que tem mantido meu menino tão ocupado. O carteiro
estava certo. Linda como numa foto. — Me perguntei se Carlton Eaton tinha
mencionado isso na ida até Wader's Creek.

Lena ficou vermelha.

— Obrigada,

— Ouvi dizer que você deu uma sacudida nas coisas naquela escola. —
Tia Grace sorriu. — Isso é bom. Não sei o que andam ensinando a vocês lá.

Tia Mercy colocou peças no tabuleiro, uma de cada vez: C-0-Ç-A-N--0.

Tia Grace se inclinou para mais perto do tabuleiro, apertando os olhos.

— Mercy Lynne, você está roubando de novo! Que espécie de palavra é
essa? Use-a em uma frase.

— Estou me coçano para comer um pouco daquela torta branca.

— Não é assim que se escreve. — Pelo menos uma delas sabia ortografia.
Tia Grace tirou uma das peças do tabuleiro. — Coçano não é com cê cedilha.
— Ou não.

Você não estava exagerando.

Eu avisei.

— Ouvi a voz de Ethan? — Tia Caroline entrou na cozinha bem na
hora, de braços abertos. — Venha aqui e dê um abraço na sua tia.

Sempre me espantava por um segundo o tanto que ela se parecia com
minha mãe. O mesmo cabelo longo castanho, sempre preso, os mesmos olhos
castanhos escuros. Mas minha mãe sempre preferiu pés descalços e jeans,
enquanto tia Caroline estava mais para uma bela sulista com vestidos de
verão e suéteres justos. Acho que minha tia gostava de ver a expressão nos
rostos das pessoas quando descobriam que ela era curadora no Museu de
História de Savannah e não uma debutante madura.

— Como estão as coisas aqui no norte? — Tia Caroline sempre se referia
a Gatlin como "norte" por ser ao norte de Savannah.

— Tudo bem. Você me trouxe doce de amêndoa?

— Não trago sempre?

Peguei a mão de Lena, puxando-a para perto de nós.

— Lena, esta é minha tia Caroline, e estas são minhas tias-avós Pruden-
ce, Mercy e Grace.

— É um prazer conhecê-las. — Ela esticou a mão, mas minha tia


Caroline a puxou e deu um abraço.

A porta da frente bateu.

— Feliz Dia de Ação de Graças. — Marian entrou carregando uma
travessa e um prato de torta, um em cima do outro. — O que eu perdi?

— Esquilos. — Tia Prue andou até ela e passou o braço pelo de Marian.
— O que você sabe sobre eles?

— Já chega, todos vocês, saiam da minha cozinha. Preciso de espaço
para fazer minha mágica, e Mercy Statham, estou vendo você comendo
minhas balas de canela. — Tia Mercy parou de mastigar por um segundo.
Lena olhou para mim, tentando não sorrir.

Eu podia chamar a Cozinha.

Confie em mim, Amma não precisa de ajuda alguma quando se trata de
cozinhar. Ela faz sua própria mágica.

Todo mundo foi para a sala de estar. Tia Caroline e tia Prue estavam
conversando sobre como plantar caquis em uma varanda e tia Grace e tia
Mercy ainda estavam brigando sobre como escrever "coçando", enquanto
Marian era a juíza. Era o bastante para deixar qualquer um maluco, mas
quando vi Lena entre as Irmãs, ela parecia feliz, exultante.

Isso é legal.

Está brincando?

Era essa a ideia dela de uma festa em família? Comida e Palavras
Cruzadas e velhas senhoras brigando? Eu não tinha certeza, mas sabia que
isso era o mais distante possível da Reunião.

Pelo menos ninguém está tentando matar ninguém.

Dê a elas uns 15 minutos, L.

Vi o olhar de Amma pela porta da cozinha, mas não era para mim que
ela estava olhando. Era para Lena.

Estava armando alguma coisa, com certeza.

O jantar de Ação de Graças transcorreu como todo ano. Só que nada era
igual. Meu pai estava de pijama, a cadeira de minha mãe estava vazia e eu
estava de mãos dadas com uma garota Conjuradora por baixo da mesa. Por
um segundo, foi demais — me sentir feliz e triste ao mesmo tempo —, como
se as duas coisas estivessem presas uma a outra de alguma forma. Mas só tive
um segundo para pensar nisso; mal tínhamos dito "amém" e as Irmãs
começaram a trocar pãezinhos, Amma estava colocando colheradas enormes


de purê de batata e molho nos nossos pratos e tia Caroline começou com a
conversa superficial.

Eu sabia o que estava acontecendo. Se houvesse trabalho o bastante,
conversa o bastante, torta o bastante, talvez ninguém notasse a cadeira vazia.
Não havia torta o bastante no mundo para isso, nem mesmo na cozinha de
Amma.

Ainda assim, tia Caroline estava determinada a me manter falando.

— Ethan, você precisa de alguma coisa emprestada para a encenação?
Tenho umas jaquetas no sótão que realmente parecem autênticas.

— Nem me lembre.

Eu quase tinha esquecido que teria que me vestir de soldado
Confederado para a encenação da batalha de Honey Hill se quisesse passar
em História este ano. Todo mês de fevereiro havia uma encenação da Guerra
Civil em Gatlin; era a única razão pela qual turistas apareciam aqui.

Lena esticou a mão para pegar um pãozinho.

— Não entendo por que a encenação é tão importante. Parece ser
trabalho demais para recriar uma batalha que aconteceu há mais de cem
anos, considerando que podemos ler sobre ela nos livros de história.

Oh-oh.

Tia Prue ofegou; aquilo era blasfêmia na opinião dela.

— Deviam queimar aquela escola de vocês até não sobrar nada! Não
estão ensinando história nenhuma lá. Você não pode aprender sobre a guerra
da Independência Sulista em livro nenhum. Tem que ver por si mesma, e
cada um de vocês crianças deveria, porque o mesmo país que lutou junto na
Revolução Americana pela independência virou contra si mesmo na Guerra.

Ethan, diga alguma coisa. Mude o assunto.

Tarde demais. Ela vai começar a cantar o hino nacional a qualquer
momento.

Márian abriu um pãozinho e o recheou de presunto.

— A Srta. Statham tem razão. A Guerra Civil fez este país se virar contra
si mesmo, muitas vezes irmão contra irmão. Foi um capítulo trágico na
história americana. Mais de meio milhão de homens morreram, apesar de a
maior parte ter morrido de doenças e não em batalhas.

— Um capítulo trágico, é o que isso foi — assentiu Tia Prue.

— Não fique nervosa, Prudence Jane.


Tia Grace deu tapinhas no braço da irmã. Tia Prue empurrou a mão
dela.

— Não me diga que estou nervosa. Só estou tentando fazer com que eles
diferenciem a cabeça do rabo do porco. Sou a única a ensinar alguma coisa.
Aquela escola devia me pagar.

Eu devia ter avisado você para não provocá-las.

Agora que você me diz.

Lena se mexeu desconfortavelmente na cadeira.

— Desculpe. Eu não tive a intenção de ser desrespeitosa. Nunca conheci
ninguém que soubesse tanto sobre a Guerra.

Boa. Se você estiver querendo dizer obcecada...

— Não se sinta mal, querida. Prudence Jane fica meio irritada de vez em
quando. — Tia Grace deu uma cotovelada em tia Prue.

É por isso que colocamos uísque no chá dela.

— Foi aquele doce de amendoim que Carlton trouxe. — Tia Prue olhou
para Lena se desculpando. — Tenho dificuldade com muito açúcar.

Dificuldade em ficar longe de muito açúcar.

Meu pai tossiu e empurrou o purê de batata pelo prato distraidamente.
Lena viu uma oportunidade para mudar o assunto.

— Ethan disse que o senhor é escritor, Sr. Wate. Que tipo de livros o
senhor escreve?

Meu pai olhou para ela, mas não disse nada. Provavelmente nem
percebeu que Lena estava falando com ele.

— Mitchell está trabalhando em um livro novo. É um livro grande.
Talvez o mais importante que ele já escreveu. Mas ele escreveu muitos livros.

Quantos já tem, Mitchell? — perguntou Amma, como se estivesse
falando com uma criança. Ela sabia quantos livros meu pai tinha publicado.

— Treze — murmurou meu pai.

Lena não foi desencorajada pelo apavorante traquejo social de meu pai,
apesar de eu sim. Olhei para ele, cabelo despenteado, olheiras sob os olhos.
Quando tinha chegado a esse ponto?

Lena continuou.

— Sobre o quê é seu livro?

Meu pai voltou à vida, animado pela primeira vez esta noite.

— É uma história de amor. Esse livro tem sido uma jornada, na verdade.


O grande romance americano. Alguns podem dizer que é O Som e a Fúria
da minha carreira, mas não posso falar muito do enredo. Não mesmo. Não
neste ponto. Não quando estou tão perto... de... — Ele estava divagando. De
repente parou de falar, como se alguém tivesse mexido em um interruptor em
suas costas. Ele olhava para a cadeira vazia da minha mãe enquanto se
afastava mentalmente.

Amma parecia ansiosa. Tia Caroline tentou distrair todo mundo daquela
que estava rapidamente se tornando a noite mais constrangedora da minha
vida.

— Lena, de onde você falou que veio?

Mas eu não pude ouvir a resposta. Não pude ouvir nada. Em vez disso, o
que eu via era tudo em câmera lenta. Borrado, se expandindo e contraindo,
como as ondas de calor ficam quando se movem no ar.

Então...

A sala estava paralisada, só que não estava. Eu estava paralisado. Meu
pai estava paralisado. Seus olhos estavam apertados, os lábios arredondados
pelos sons que não tiveram chance de passar. Ainda olhando para o prato
cheio de purê, intocado. As Irmãs, tia Caroline e Marian estavam como
estátuas. Até o ar estava perfeitamente parado. O pêndulo no relógio tinha
parado no meio do movimento.

Ethan? Você está bem?

Tentei responder, mas não consegui. Quando Ridley me manteve preso
em seu toque mortal, tive certeza de que ia congelar e morrer. Agora eu
estava paralisado também, mas não estava com frio e nem morrendo.

— Eu fiz isso? — perguntou Lena em voz alta.

Só Amma podia responder.

— Conjurar um Feitiço do Tempo? Você? Tão provável quanto um
jacaré sair de um ovo de peru — bufou ela. — Não, você não fez isso, criança.
Isso é maior do que você. Os Grandes acham que é hora de termos uma
conversa de mulher para mulher. Ninguém pode nos ouvir agora.

Exceto eu. Eu ouço vocês.

Mas as palavras não saíram. Eu podia ouvi-las conversando, mas não
conseguia emitir som algum.

Amma olhou para o teto.

— Obrigada, tia Delilah. Agradeço a ajuda. — Ela andou até o bufê e


cortou um pedaço de torta de abóbora. Colocou em um prato de porcelana
enfeitado e o deixou no meio da mesa. — Agora vou deixar esse pedaço para
você e para os Grandes, e trate de lembrar que fiz isso.

— O que está acontecendo? O que você fez a eles?

— Não fiz nada a eles. Só arrumei um tempinho para nós.

— Você é Conjuradora?

— Não, sou apenas uma Vidente. Vejo o que precisa ser visto, o que
ninguém mais pode ver ou quer ver.

— Você parou o tempo? — Conjuradores podiam fazer isso, parar o
tempo. Lena tinha me contado. Mas só os incrivelmente poderosos.

— Não fiz nada. Só pedi aos Grandes um pouco de ajuda e tia Delilah
ajudou.

Lena parecia confusa ou assustada.

— Quem são os Grandes?

— Os Grandes são minha família do Outro Mundo. Eles me ajudam de
vez em quando, e não estão sozinhos. Há outros com eles. — Amma se
inclinou sobre a mesa, olhando Lena nos olhos. — Por que você não está
usando a pulseira?

— O quê?

— Melchizedek não a deu para você? Falei para ele que você tinha que
usar.

— Ele me deu, mas eu tirei.

— Por que você faria uma coisa dessas?

— Descobrimos que estava bloqueando as visões.

— Estava mesmo bloqueando uma coisa. Até que você parou de usar.

— O que estava bloqueando?

Amma esticou a mão e pegou a de Lena, virando-a para revelar a palma.

— Eu não queria ser a pessoa a ter que lhe contar isso, criança. Mas
Melchizedek, sua família, eles não vão contar, nenhum deles. E você precisa
saber. Precisa estar preparada.

— Preparada para quê?

Amma olhou para o teto, murmurando baixinho.

— Ela está vindo, criança. Vindo atrás de você, e ela é uma força com a
qual se deve tomar cuidado. Trazendo tantas Trevas quanto a noite.

— Quem? Quem vem atrás de mim?


— Queria que os seus tivessem contado. Não queria que fosse eu. Mas os
Grandes disseram que alguém tem que contar a você antes que seja tarde
demais.

— Contar o quê? Quem está vindo, Amma?

Amma pegou uma pequena bolsinha que estava pendurada em uma
corda de couro em torno do seu pescoço por dentro da blusa e a segurou,
abaixando o tom de voz como se tivesse medo de que alguém pudesse ouvir.

— Sarafine. A das Trevas.

— Quem é Sarafine?

Amma hesitou, apertando a bolsinha com mais força.

— Sua mãe.

— Não entendo. Meus pais morreram quando eu era criança, e o nome
da minha mãe era Sara. Vi na árvore genealógica.

— Seu pai morreu, é verdade, mas sua mãe está tão viva quanto eu aqui
na sua frente. E você sabe como são as árvores genealógicas aqui no sul, elas
nunca estão tão certas quanto alegam estar.

A cor sumiu do rosto de Lena. Lutei para esticar a mão e pegar a dela,
mas só meu dedo tremeu. Eu estava impotente. Não podia fazer nada além
de olhar enquanto ela caía em um lugar escuro, sozinha. Assim como nos
sonhos.

— E ela é das Trevas?

— Ela é a maior Conjuradora das Trevas da atualidade.

— Por que meu tio não me contou? Ou minha avó? Disseram que ela
estava morta. Por que mentiriam para mim?

— Há a verdade e há a verdade. Não são exatamente a mesma coisa.
Acho que estavam tentando proteger você. Ainda acham que podem. Mas os
Grandes... Eles não têm tanta certeza. Eu não queria ter que contar a você,
mas Melchizedek é teimoso.

— Por que está tentando me ajudar? Pensei... Pensei que você não
gostasse de mim.

— Não tem nada a ver com gostar ou não. Ela vem atrás de você, e você
não precisa de nada que a distraia. — Amma ergueu uma sobrancelha. — E
não quero que nada aconteça com meu menino. Isso é maior do que você,
maior do que vocês dois.

— O que é maior do que nós dois?


— Tudo isso. Você e Ethan não estão destinados a ficarem juntos.

Lena parecia confusa. Amma estava falando em charadas de novo.

— O que você quer dizer?

Amma se virou como se alguém atrás dela tivesse lhe dado um tapinha
no ombro.

— O que disse, tia Delilah? — Amma se virou para Lena. — Não temos
muito tempo.

O pêndulo no relógio começou a se mover quase imperceptivelmente. A
sala começou a voltar à vida. Os olhos de meu pai começaram a piscar
lentamente, tão lentamente que demorou segundos para que os cílios
roçassem a pálpebra inferior.

— Coloque a pulseira de volta. Você precisa de toda ajuda que puder ter.

O tempo voltou a se ajustar...

Pisquei algumas vezes, olhando em volta. Meu pai ainda encarava para
as batatas. Tia Mercy ainda estava enrolando um pãozinho no guardanapo.
Levantei as mãos em frente ao rosto e balancei os dedos.

— Que diabos foi aquilo?

— Ethan Wate! — disse Tia Grace, ofegante.

Amma estava abrindo seus pãezinhos e os recheando de presunto. Olhou
para mim, pega desprevenida. Era óbvio que ela não tinha tido a intenção de
que eu ouvisse sua conversa. Ela me deu o Olhar. Significando: mantenha a
boca fechada, Ethan Wate.

— Não use esse tipo de linguagem na minha mesa. Você não está velho
demais para eu lavar sua boca com sabão. O que você acha que é? Presunto e
pãozinho. Peru recheado. Agora que passei o dia cozinhando, espero que
você coma.

Olhei para Lena. O sorriso dela tinha sumido. Ela estava olhando para o
prato.

Lena. Volte pra mim. Não vou deixar nada acontecer a você. Tudo vai
ficar bem.

Mas ela estava muito distante de mim.





Lena não disse uma palavra no caminho para casa. Quando chegamos a
Ravenwood, ela abriu a porta do carro, fechou-a com força e saiu em direção


à casa sem uma palavra.

Quase não a segui até a porta. Minha cabeça estava girando. Eu não
conseguia imaginar o que Lena estava sentindo. Era ruim demais perder a
mãe, mas mesmo eu não podia imaginar como era descobrir que sua mãe
queria você morta.

Minha mãe estava perdida para mim, mas eu não estava perdido. Ela
tinha me ancorado, a Amma, ao meu pai, a Link, a Gatlin antes de partir. Eu
a sentia nas ruas, em minha casa, na biblioteca, até na despensa. Lena nunca
tivera nada disso. Cresceu solta e à deriva, Amma diria, como as balsas dos
pobres no pântano.

Eu queria ser a âncora dela. Mas agora, acho que ninguém poderia ser.







Lena passou por Boo, que estava sentado na varanda da frente e nem estava
ofegando, apesar de ter corrido atrás do nosso carro obedientemente durante
todo o trajeto. Também tinha ficado sentado no jardim da frente de minha
casa durante todo o jantar. Ele parecia gostar de batata doce e dos pequenos
marshmallows que joguei pela porta da frente quando Amma foi à cozinha
buscar mais molho.

Eu podia ouvi-la gritando dentro da casa. Suspirei, saí do carro e sentei
nos degraus da varanda ao lado do cachorro. Minha cabeça já estava late-
jando, com pouco açúcar no sangue.

— Tio Macon! Tio Macon! Acorde! O sol se pôs, sei que você não está
dormindo aí!

Eu conseguia ouvir Lena gritando dentro da minha cabeça também.

O sol se pôs, sei que você não está dormindo!

Eu estava esperando pelo dia em que Lena fosse se abrir e me contar a
verdade sobre Macon, como tinha me contado a verdade sobre si mesma.
Seja lá o que ele fosse, ele não parecia um Conjurador normal, se é que isso
existia. Pelo modo como ele dormia o dia todo e só aparecia e desaparecia
onde queria, não era preciso ser gênio para ver onde aquilo ia dar. Ainda
assim, eu não tinha certeza se queria entrar nesse assunto hoje.

Boo olhou para mim. Estiquei minha mão para fazer carinho nele, e ele
virou a cabeça, como se dissesse que não precisava. "Por favor não me toque,


garoto." Quando ouvimos coisas começarem a quebrar lá dentro, Boo e eu
nos levantamos e seguimos o barulho. Lena estava batendo em uma das
portas no segundo andar.

A casa tinha voltado para o que eu suspeitava ser o estilo preferido de
Macon, com ornamentos antiquados do período anterior à guerra. Fiquei
secretamente aliviado por não estar dentro de um castelo. Desejei poder parar
o tempo e voltar três horas. Para ser honesto, eu ficaria perfeitamente feliz se
a casa de Lena tivesse se transformado em um trailer e estivéssemos sentados
todos em frente a uma tigela de sobras de recheio de peru, como o resto de
Gatlin.

— Minha mãe? Minha própria mãe?

A porta abriu de repente. Macon estava lá, todo bagunçado. Usava um
pijama de linho amassado, que, odeio ter de admitir, era um camisolão. Os
olhos dele estavam mais vermelhos do que o habitual e a pele mais branca, o
cabelo desalinhado. Ele parecia ter sido atropelado por um caminhão.

A sua maneira, ele não era tão diferente do meu pai, uma bagunça.
Talvez uma bagunça mais refinada. Exceto pelo camisolão; meu pai jamais
seria visto usando um vestido.

— Minha mãe é Sarafine? Aquela coisa que tentou me matar no
Halloween? Como você pôde esconder isso de mim?

Macon balançou a cabeça e passou a mão no cabelo, irritado.

— Amarie.

Eu pagaria qualquer coisa para ver Macon e Amma acertando as contas
numa briga. Meu dinheiro seria apostado era Amma, sem dúvida alguma.

Macon passou pelo portal, fechando a porta atrás de si. Dei uma olhada
rápida no quarto dele. Parecia algo saído do Fantasma da Ópera, com
candelabros de ferro fundido mais altos do que eu e uma cama preta com
dosséis adornada com veludo cinza e preto. As janelas tinham cortinas do
mesmo material, que caíam pesadas sobre as janelas escuras da fazenda. Até
as paredes eram cobertas de tecido puído preto e cinza que tinha
provavelmente uns cem anos. O quarto era muito escuro, escuro como a
noite. O efeito era assustador.

A escuridão, a verdadeira escuridão, era algo além da pura ausência de
luz.

Quando Macon passou pelo portal, emergiu no corredor perfeitamente


vestido, sem um fio de cabelo fora do lugar, nenhuma ruga na calça ou na
camisa branca engomada. Até os sapatos de couro não tinham um arranhão.
Ele não parecia nada como em um momento antes, e tudo que tinha feito era
passar pela porta do próprio quarto.

Olhei para Lena. Ela não tinha nem reparado, e senti frio ao lembrar por
um momento o quão diferente sua vida deve ter sempre sido em comparação
à minha.

— Minha mãe está viva?

— Temo que seja um pouco mais complicado do que isso.

— Você quer dizer a parte sobre como minha própria mãe quer me
matar? Quando você ia me contar, tio Macon? Quando eu tivesse sido
Invocada?

— Por favor, não comece isso de novo. Você não vai para as Trevas. —
Macon suspirou.

— Não imagino como pode pensar diferente. Já que sou a filha da, abre
aspas, Conjuradora das Trevas mais poderosa da atualidade, fecha aspas.

— Entendo que esteja chateada. É muita coisa para absorver, e eu
mesmo devia ter lhe contado. Mas você tem que acreditar que eu estava
tentando lhe proteger.

Lena estava mais do que irritada agora.

— Me proteger! Você me deixou acreditar que o Halloween foi apenas
um ataque aleatório, mas era minha mãe! Minha mãe está viva e estava
tentando me matar, e você achou que eu não devia saber sobre isso?

— Não sabemos se ela está tentando matar você.

Quadros começaram a bater contra as paredes. As lâmpadas alinhadas
no corredor começaram a se apagar uma a uma. O som de chuva chegou às
janelas.

— Já não tivemos tempo ruim o bastante nas últimas semanas?

— Sobre o que mais você tem mentido? O que vou descobrir agora? Que
meu pai está vivo também?

— Lamento dizer que não. — Ele falou como se fosse uma tragédia, algo
triste demais para se mencionar. Era o mesmo tom que as pessoas usavam
quando falavam da morte da minha mãe.

— Você tem que me ajudar. — Sua voz estava falhando.

— Farei tudo que puder para ajudar você, Lena. Sempre fiz.


— Não é verdade — respondeu ela. — Você não me contou sobre meus
poderes. Não me ensinou a me proteger.

— Não sei a extensão dos seus poderes. Você é uma Natural. Quando
precisa fazer uma coisa, você faz. Da sua maneira, no seu próprio tempo.

— Minha própria mãe quer me matar. Não tenho tempo.

— Como eu disse antes, não sabemos se ela está querendo matar você.

— Então como você explica o Halloween?

— Há outras possibilidades. Dei e eu estamos tentando descobrir. —
Macon se virou, como se fosse entrar de novo no quarto. — Você precisa se
acalmar. Podemos conversar depois.

Lena se virou na direção de um vaso sobre uma prateleira no final do
corredor. Como se puxado por uma corda, o vaso seguiu o olhar dela até a
parede ao lado da porta do quarto de Macon, voando e se espatifando contra
o gesso. Foi longe o bastante de Macon para não machucá-lo, mas perto o
bastante para mostrar a opinião dela. Não foi nenhum acidente.

Não era uma daquelas vezes em que Lena tinha perdido o controle e as
coisas apenas aconteceram. Ela tinha feito isso de propósito. Estava no
controle.

Macon se virou tão rápido que nem o vi se mover, mas de repente ele
estava parado na frente de Lena. Estava tão chocado quanto eu, e tinha
percebido a mesma coisa: não tinha sido acidente. E o olhar no rosto dela
dizia que ela também estava surpresa. Ele parecia magoado, tão magoado
quanto Macon Ravenwood podia ser capaz de demonstrar.

— Como eu disse, quando você precisa fazer uma coisa, você faz.

Macon se virou para mim.

— Vai ficar mais perigoso, lamento dizer, nas próximas semanas. As
coisas mudaram. Não a deixe sozinha. Quando ela estiver aqui, posso
protegê- la, mas minha mãe estava certa. Parece que você também pode
protegê-la, talvez melhor do que eu.

— Olá? Eu estou ouvindo você! — Lena se recuperou de sua
demonstração de poder e do olhar no rosto de Macon. Eu sabia que ela se
culparia mais tarde, mas agora estava irritada demais para ver isso. — Não
fale de mim como se eu não estivesse aqui.

Uma lâmpada explodiu atrás de Macon e ele não moveu um músculo.

— Você está ouvindo o que você mesmo diz? Preciso saber! Sou eu que


estou sendo caçada. Sou eu que ela quer, e nem sei por quê.

Eles olharam um para o outro, um Ravenwood e uma Duchannes, dois
braços da mesma árvore genealógica distorcida de Conjuradores. Me
perguntei se seria uma boa hora para eu ir embora.

Macon olhou para mim. O rosto dele dizia que sim.

Lena olhou para mim. O dela dizia que não.

Ela me pegou pela mão, e eu pude sentir o calor, queimando. Ela estava
em chamas, mais furiosa do que eu jamais a tinha visto. Eu não acreditava
que as janelas da casa ainda não tivessem estourado.

— Você sabe por que ela está me perseguindo, não sabe?

— É...

— Deixe-me adivinhar, complicado?

Os dois ficaram olhando um para o outro. O cabelo de Lena estava se
mexendo. Macon estava girando o anel de prata.

Boo estava se afastando, o corpo rente ao chão. Cachorro esperto. Eu
desejava poder rastejar para longe também. A última das lâmpadas estourou,
e então ficamos no escuro.

— Você tem que me contar tudo que sabe sobre meus poderes. — Esses
eram seus termos.

Macon suspirou, e a escuridão começou a se dissipar.

— Lena. Não é que eu não queira contar. Depois da sua pequena
demonstração, está claro que nem sei do que você é capaz. Ninguém sabe.
Suspeito que nem você. — Ela não estava completamente convencida, mas
ouvia. — É isso que significa ser uma Natural. É parte do dom.

Ela começou a relaxar. A batalha tinha chegado ao fim, e ela tinha
vencido, por enquanto.

— Então o que vou fazer?

Macon parecia perturbadoramente com meu pai quando entrou no meu
quarto durante o 5º ano para explicar sobre a cegonha.

— Dominar seus poderes pode ser um momento muito confuso. Talvez
haja algum livro sobre o assunto. Se quiser, podemos ir ver Marian.

Ah, tá. Escolhas e Mudanças. O Guia da Garota Moderna Conjuradora.
Minha Mãe Quer Me Matar: Um Livro de Autoajuda para Adolescentes.

Seriam longas semanas.








p 28 de novembro p

d



Domus Lunae Líbri















—H



oje? Mas não é feriado.

Quando abri a porta da frente, Marian era a última pessoa
que eu esperava ver, parada ali, de casaco. Agora eu estava
sentado com Lena no banco frio da picape turquesa velha de Marian, a
caminho da biblioteca de Conjuradores.

— Promessa é dívida. É o dia seguinte ao dia de Ação de Graças. Sexta-
feira negra. Pode não parecer um feriado, mas ninguém trabalha, e isso basta.
— Marian estava certa. Amma provavelmente estava numa fila na frente do
shopping com a mão cheia de cupons de desconto desde antes do amanhecer;
já tinha escurecido e ela ainda não tinha voltado. — A Biblioteca do Condado
de Gatlin está fechada, então a Biblioteca de Conjuradores está aberta.

— Durante o mesmo horário? — perguntei a Marian quando ela virou
na Main.

Ela assentiu.

— Das nove às seis. — Depois, completou: — Das nove da noite às seis da
manhã. Nem toda a minha clientela pode se aventurar à luz do dia.

— Isso não parece muito justo — reclamou Lena. — Os Mortais têm
muito mais tempo, e eles nem leem por aqui.

Marian deu de ombros.

— Como eu disse, sou paga pelo Condado de Gatlin. Converse com eles.
Mas pense em quanto tempo mais você vai ter até que seus Lunae Libri
tenham que ser devolvidos.


Não entendi nada.

— Lunae Libri. Traduzido livremente, Livros da Lua. Podem chamá-los
de Manuscritos dos Conjuradores.

Eu não ligava para como chamavam qualquer coisa. Mal podia esperar
para ver o que os livros na Biblioteca dos Conjuradores nos diriam, e um livro
em particular. Porque havia duas coisas que tínhamos pouco: respostas e
tempo.

Quando saímos da picape, eu não podia acreditar onde estávamos. A
picape de Marian estava estacionada ao lado do meio-fio, a 3 metros da
Sociedade Histórica de Gatlin, ou como minha mãe e Marian gostavam de
dizer, a Sociedade Histérica de Gatlin. A Sociedade Histórica também era o
quartel general do FRA. Marian parou a picape bem afastada, para evitar o
foco de luz do poste na porta.

Boo Radley estava sentado na calçada, como se soubesse.

— Aqui? O Lunae sei-la-o-quê é no quartel-general do FRA?

— Domus Lunae Libri. A Casa dos Livros das Luas. Lunae Libri, para
abreviar. E não, só a entrada de Gatlin para a biblioteca. — Eu caí na
gargalhada. — Você tem o mesmo apreço que sua mãe pela ironia.

Andamos até o prédio deserto. Não podíamos ter escolhido uma noite
melhor.

— Mas não é piada. A Sociedade Histórica é o prédio mais antigo do
condado, junto com Ravenwood. Nenhum outro sobreviveu ao Grande
Incêndio — acrescentou Marian.

— Mas o FRA e Conjuradores? Como podem ter alguma coisa em co-
mum? — Lena estava chocada.

— Acho que vocês vão descobrir que têm mais em comum do que
pensam. — Marian andou rápido até a velha construção de pedra, puxando o
chaveiro já conhecido. — Eu, por exemplo, sou membro das duas sociedades.
— Olhei para Marian sem acreditar. — Sou neutra. Pensei que tinha deixado
isso bem claro. Não sou como vocês. Você é como Lila, se envolve demais...

Eu podia terminar aquela frase sozinho. E veja o que aconteceu com ela.

Marian parou, mas as palavras ficaram suspensas no ar. Não havia nada
que ela pudesse dizer ou fazer para voltar atrás. Eu me senti dormente, mas
não falei nada. Lena esticou sua mão para pegar alcançar a minha, e eu podia
senti-la me puxando para fora de mim mesmo.


Ethan. Você está bem?

Marian olhou para o relógio de novo.

— São cinco para as nove. Tecnicamente, eu não deveria deixar vocês
entrarem ainda. Mas preciso estar lá embaixo às 21 horas caso tenhamos
algum outro visitante esta noite. Sigam-me.

Passamos pelo jardim escuro atrás do prédio. Ela mexeu no chaveiro até
achar o que sempre pensei ser um enfeite, porque não se parecia com uma
chave em nada. Era um anel de ferro com um lado articulado. Com mão
treinada, Marian girou a articulação até que se encaixou no próprio anel, em
outra posição, se transformando em uma lua crescente. Uma lua
Conjuradora.

Ela empurrou a chave no que parecia ser uma grade de ferro na
estrutura na parte de trás do prédio. Depois girou a chave, e a grade deslizou
e abriu. Atrás da grade havia uma escadaria escura de pedra que levava para
mais escuridão abaixo, o porão abaixo do porão do FRA. Quando ela girou a
chave mais uma rotação para a esquerda, uma fileira de tochas se acendeu
nas laterais da parede. Agora a escadaria estava completamente iluminada
com luz tremeluzente, e eu podia até ver de leve as palavras domus lunae libri
entalhadas no arco de pedra na entrada abaixo. Marian girou a chave mais
uma vez, e a escadaria desapareceu, sendo substituída novamente pela grade
de ferro.

— É isso? Não vamos entrar? — Lena parecia irritada.

Marian enfiou a mão na grade. Era uma ilusão.

— Não posso Conjurar, como você sabe, mas alguma coisa tinha que ser
feita. Há vagabundos que andam por aí à noite. Macon pediu que Larkin
ajeitasse para mim, e ele vem manter tudo intacto de tempos em tempos.

Marian olhou para nós, repentinamente séria.

— Tudo bem. Se vocês têm certeza de que é isso que querem fazer, não
posso impedir vocês. Nem posso guiá-los de maneira alguma depois que
descermos. Não posso impedi-los de pegar um livro, nem tirar um de vocês
antes que a Lunae Libri se abra de novo.

Ela colocou uma mão no meu ombro.

— Você entendeu, Ethan? Isso não é brincadeira. Há livros poderosos lá
embaixo; livros de Feitiço, manuscritos de Conjuradores, talismãs da Luz e
das Trevas, objetos poderosos. Coisas que nenhum Mortal jamais viu exceto


eu e meus predecessores. Muitos livros são encantados, outros amaldiçoados.
Você tem que ter cuidado. Não toque em nada. Deixe que Lena mexa nos
livros por você.

O cabelo de Lena estava ondulando. Ela já sentia a magia do lugar. Eu
assenti, desconfiado. O que eu estava sentindo era menos mágico, meu
estômago se revirava como se fosse eu que tivesse bebido muito licor de
menta. Me perguntei com que frequência a Sra. Lincoln e suas amigas
tinham andado de um lado para o outro no piso acima de nós, sem saber o
que havia abaixo delas.

— Não importa o que acharem, lembrem que temos que sair antes do
nascer do sol. Nove às seis. São as horas de funcionamento da biblioteca, e a
entrada só pode ser aberta dentro desses horários. O sol vai nascer
exatamente às 6 horas; sempre nasce em Dia de Biblioteca. Se não tiverem
subido a escadaria até o nascer do sol, ficarão presos até o próximo Dia, e eu
não tenho como saber se um Mortal sobreviveria bem a tal experiência. Estou
sendo perfeitamente clara?

Lena assentiu, me pegando pela mão.

— Podemos entrar agora? Mal posso esperar.

— Não acredito que estou fazendo isso. Seu tio Macon e Amma me
matariam se soubessem. — Marian olhou para o relógio. — Vão na frente.

— Marian? Você... Minha mãe alguma vez viu isso? — Eu não podia
deixar passar. Não conseguia pensar em mais nada.

Marian olhou para mim, os olhos brilhando estranhamente.

— Sua mãe foi a pessoa que me deu o emprego.

E com isso ela desapareceu na frente de nós pela grade ilusória, e desceu
para o Lunae Libri abaixo. Boo Radley latiu, mas era tarde demais para
voltar agora.









Os degraus eram velhos e cobertos de musgo, o ar úmido. Coisas molhadas,
coisas gosmentas, coisas enterradas, não era difícil imaginá-las se
acomodando confortavelmente lá embaixo.

Tentei não pensar nas últimas palavras de Marian. Não podia imaginar


minha mãe descendo esta escadaria. Não podia imaginar que ela sabia
qualquer coisa sobre esse mundo no qual eu tinha acabado de tropeçar, esse
mundo que tropeçou em mim. Mas ela sabia, e eu não conseguia parar de
pensar em como. Teria ela tropeçado nele também, ou alguém a teria
convidado? De alguma forma, fazia tudo parecer mais real, que minha mãe e
eu compartilhássemos desse segredo, mesmo ela não estando aqui comigo.

Mas era eu que estava lá embaixo agora, descendo os degraus de pedra,
entalhados e planos como o chão de uma velha igreja. Nas laterais da
escadaria eu via paredes rústicas de pedra, a base de um aposento antigo que
tinha existido no local do prédio do FRA muito antes que a estrutura em si
tivesse sido erguida. Olhei para baixo, mas tudo que podia ver eram
contornos indefinidos, formas no escuro. Não parecia uma biblioteca. Parecia
o que provavelmente era, o que sempre tinha sido. Uma cripta.

No pé da escadaria, nas sombras da cripta, inúmeras pequenas cúpulas
se curvavam no alto onde as colunas encontravam o teto abobadado, umas
quarenta ou cinquenta no total. Enquanto meus olhos se ajustavam ao escuro,
pude ver que cada coluna era diferente, e algumas delas eram inclinadas,
como velhos carvalhos tortos. Suas sombras faziam a câmara circular parecer
uma espécie de floresta escura e calma. Era um aposento apavorante de se
estar. Não havia meio de saber até onde ia, já que todas as direções se
dissolviam na escuridão.

Marian inseriu a chave na primeira coluna, marcada com uma lua. As
tochas nas paredes se acenderam, iluminando o aposento com luz
bruxuleante.

— São lindas — murmurou Lena. Eu via seu cabelo ainda ondulando, e
me perguntei que sensação esse lugar passava a ela, de maneiras que eu
jamais saberia.

De vida. Poder. Como se a verdade, todas as verdades, estivessem aqui
de alguma forma.

— Recolhidas por todo o mundo, muito antes do meu tempo. Istambul.
— Marian apontou para o topo das colunas, as partes decoradas. — Tirada
da Babilônia. — Ela apontou para outra, com quatro cabeças de gavião
saindo uma de cada lado. — Egito, o Olho de Deus. — Deu um tapinha em
outra, dramaticamente entalhada com a cabeça de um leão. — Assíria.

Passei a mão na parede. Até as pedras nas paredes eram entalhadas.


Algumas tinham rostos, de homens, de criaturas similares a pássaros, olhando
de dentro da floresta de colunas, como predadores. Outras pedras estavam
entalhadas com símbolos que não reconheci, hieróglifos de Conjuradores e
culturas que nunca conheci.

Entramos mais na câmara, para fora da cripta, que parecia servir como
um tipo de saguão, e mais uma vez as tochas se acenderam, uma depois da
outra, como se nos seguissem. Eu podia ver que as colunas se curvavam ao
redor de uma mesa de pedra no meio do recinto. As estantes, ou o que achei
serem as estantes, radiavam do círculo central como raios de uma roda, e
pareciam subir até quase o teto, criando um labirinto assustador no qual um
Mortal podia se perder. No recinto em si, não havia nada além das colunas e
da mesa circular de pedra.

Marian calmamente pegou uma tocha de um crescente de ferro na
parede e passou para mim. Passou outra para Lena e pegou uma para si
mesma.

— Deem uma olhada por aí. Tenho que verificar a correspondência.
Talvez haja uma requisição de transferência de outra filial.

— Para a Lunae Libri? — Eu não tinha pensado que talvez houvesse
outras bibliotecas de Conjuradores.

— É claro. — Marian se virou de novo em direção à escadaria.

— Espere. Como você recebe a correspondência daqui?

— Do mesmo modo que você. Carlton Eaton entrega, chova ou faça sol.

Carlton Eaton sabia. Claro. Isso provavelmente explicava por que ele

pegou Amma no meio da noite. Me perguntei se ele abria a
correspondência dos Conjuradores também. Me perguntei o que mais eu não
sabia sobre Gatlin e sobre as pessoas daqui. Eu não precisava perguntar.

— Não há muitos de nós, mas mais do que você pensaria. Você precisa
lembrar que Ravenwood está aqui há mais tempo do que este velho prédio.
Era um condado de Conjuradores antes de ser dos Mortais.

— Talvez seja por isso que vocês são todos tão esquisitos por aqui. —
Lena me cutucou. Eu ainda estava espantado por saber de Carlton Eaton.

Quem mais sabia o que realmente acontecia em Gatlin, na outra Gatlin,
com bibliotecas subterrâneas mágicas e garotas que conseguem controlar o
tempo ou fazer você pular de um penhasco? Quem mais estava envolvido na
jogada dos Conjuradores além de Marian e Carlton Eaton? Como minha


mãe?

Fatty? A Sra. English? O Sr. Lee?

O Sr. Lee com certeza não.

— Não se preocupe. Quando você precisar deles, eles encontrarão você.
É assim que funciona, que sempre funcionou.

— Espere. — Segurei o braço de Marian. — Meu pai sabe?

— Não.

Pelo menos havia uma pessoa na minha casa que não estava vivendo
uma vida dupla, ainda que ele fosse louco.

Marian deu um último conselho.

— Agora é melhor vocês começarem. A Lunae Libri é milhares de vezes
maior do que qualquer biblioteca que vocês já tenham visto. Se vocês se
perderem, imediatamente sigam os passos dados de volta. É por isso que as
colunas irradiam desta câmara. Se vocês só forem para a frente e para trás,
tem menos chance de se perderem.

— Como podemos nos perder se só podemos ir numa linha reta?

— Experimente. Você verá.

Lena interrompeu.

— O que há no final das colunas? Quero dizer, no final dos corredores?

Marian olhou para ela com um olhar estranho.

— Ninguém sabe. Ninguém chegou tão longe a ponto de descobrir.
Alguns dos corredores viram túneis. Parte da Lunae Libri ainda não foi
mapeada. Há muitas coisas aqui em baixo que nem eu vi. Um dia, talvez.

— Como assim? Tudo acaba em algum lugar. Não pode haver fileiras e
fileiras de livros formando túneis embaixo da cidade inteira. Basta subir para
tomar um chá na casa da Sra. Lincoln? Virar a esquerda e deixar um livro
para tia Del na cidade ao lado? Entrar no túnel à direita para bater um papo
com Amma? — Eu estava cético.

Marian sorriu para mim, divertida.

— Como você acha que Macon pega livros? Como acha que o FRA
nunca vê nenhum visitante entrando ou saindo? Gatlin é Gatlin. O pessoal
gosta do jeito que é, do jeito que pensa que é. Os Mortais só veem o que
querem ver. Há uma comunidade fervilhante de Conjuradores neste condado
e ao redor dele desde antes da Guerra Civil. São centenas de anos, Ethan, e
isso não vai mudar de repente. Não só porque agora você sabe.


— Não acredito que tio Macon nunca tenha me contado sobre esse
lugar. Pense em todos os Conjuradores que já passaram por aqui. — Lena
levantou a tocha, puxando um livro encadernado da prateleira. O livro era
enfeitado, pesado e uma nuvem de poeira voou em todas as direções.
Comecei a tossir.

— Conjuração, uma Breve História. — Ela puxou outro. — Estamos na
seção da letra C, acho. — Este estava em uma caixa de couro que se abria no
alto para revelar o pergaminho em pé dentro dela. Lena puxou-o. Até a
poeira parecia velha e mais escura. — Conjuração para Criar e Confundir.
Esse é velho.

— Cuidado. Mais de algumas centenas de anos. Gutenberg inventou a
prensa móvel em 1455. — Marian pegou o pergaminho cuidadosamente da
mão dela, como se segurasse um recém-nascido.

Lena pegou outro livro, encapado com couro cinza.

— Conjurando a Confederação. Havia Conjuradores na Guerra?

Marian assentiu.

— Dos dois lados, dos Cinzas e dos Azuis. Foi uma das grandes divisões
da comunidade Conjuradora, infelizmente. Assim como foi para nós,
Mortais.

Lena olhou para Marian, enfiando o livro empoeirado de volta na
prateleira.

— Os Conjuradores da minha família ainda estão em guerra, não é?

Marian olhou para ela com tristeza.

— Uma Casa Dividida, foi como o presidente Lincoln chamou. E sim,
Lena, infelizmente vocês estão. — Ela tocou na bochecha de Lena. — E é por
isso que você está aqui, lembra? Para descobrir uma coisa que você precisa,
para entender algo sem sentido. Agora é melhor vocês começarem.

— Há tantos livros, Marian. Você não pode ao menos nos apontar a
direção certa?

— Não olhem para mim. Como eu disse, não tenho as respostas. Isso é
com os livros. Comecem logo. Estamos seguindo o relógio lunar, e vocês
podem perder a noção do tempo. As coisas não são exatamente o que
parecem quando estamos aqui embaixo.

Olhei de Lena para Marian. Estava com medo de perder qualquer uma
das duas de vista. A Lunae Libri era mais intimidante do que eu tinha


imaginado. Parecia menos com uma biblioteca e mais com, bem, uma
catacumba. E O Livro das Luas poderia estar em qualquer lugar,

Lena e eu encaramos as prateleiras infinitas, mas nenhum de nós deu um
passo sequer.

— Como vamos encontrá-lo? Deve haver um milhão de livros aqui.

— Não tenho ideia. Talvez...

Eu sabia o que ela estava pensando.

— Será que devemos tentar o medalhão?

— Você trouxe?

Assenti e tirei a esfera quente do bolso do meu jeans. Passei a tocha para
Lena.

— Precisamos ver o que acontece. Tem que ter mais alguma coisa. —
Desenrolei o medalhão e o coloquei na mesa redonda de pedra no centro do
aposento. Vi um olhar familiar no rosto de Marian, o mesmo que ela e minha
mãe compartilhavam quando encontravam algo especial. — Você quer ver
isso?

— Mais do que você imagina.

Lentamente, Marian pegou minha mão, e eu peguei a de Lena. Estiquei
a mão, os dedos entrelaçados com os de Lena, e toquei no medalhão.

Uma luz intensa forçou que eu fechasse os olhos.

E então pude ver a fumaça e sentir o cheiro do fogo, e todos estávamos
indo...







Genevieve levantou o Livro para que pudesse ler as palavras na chuva.

Ela sabia que dizer as palavras seria desafiar as Leis Naturais. Podia
quase ouvir a voz da mãe pedindo que ela parasse — para que pensasse sobre
a escolha que estava fazendo.

Mas Genevieve não podia parar. Não podia perder Ethan. Começou a
recitar.



"CRUOR PECTORIS ME1, TUTELA TUA EST.

VITA VITAE MEAE, CORRIPIENS TUAM,
CORRIPIENS MEAM.


CORPUS CORPORIS MEI, MEDULLA MENSQUE,

ANIMA ANIMAE MEAE, ANIMAM NOSTRAM
CONECTE.

CRUOR PECTORIS MEI, LUNA MEA, AESTUS
MEUS.

CRUOR PECTORIS MEI, FATUM MEUM, MEA
SALUS."



— Pare, criança, antes que seja tarde demais! — A voz de Ivy estava
desesperada.

A chuva cata e um relâmpago iluminou a fumaça. Genevieve prendeu a
respiração e esperou. Nada. Ela devia ter feito errado. Apertou os olhos para
ler as palavras mais claramente no escuro. Gritou-as na escuridão, na língua
que ela conhecia melhor.



— SANGUE DO MEU CORAÇÃO, A PROTEÇÃO É
TUA. VIDA DA MINHA VIDA, TIRA A TUA, TIRA A
MINHA. CORPO DO MEU CORPO, ESSÊNCIA E
MENTE, ALMA DA MINHA ALMA, UNA A NOSSOS
ESPÍRITOS. SANGUE DO MEU CORAÇÃO, MINHAS
MARÉS, MINHA LUA. SANGUE DO MEU CORAÇÃO,
MINHA SALVAÇÃO, MINHA PERDIÇÃO.



Ela pensou que os olhos a estivessem enganando quando viu as pálpebras
de Ethan lutando para se abrir.

— Ethan! — Por uma fração de segundos, os olhares se encontraram.
Ethan lutou para respirar, claramente tentando falar. Genevieve colocou o
ouvido perto dos lábios dele e pôde sentir a respiração quente na bochecha.

— Nunca acreditei em seu pai quando ele disse que era impossível uma
Conjuradora e um Mortal ficarem juntos. Nós encontraríamos um meio.
Amo você, Genevieve.

Ele colocou algo na mão dela. Um medalhão. E tão repentinamente
quanto os olhos se abriram, eles fecharam de novo, o peito cessando de subir
e descer.

Antes que Genevieve pudesse reagir, uma onda de eletricidade percorreu


seu corpo. Ela sentia o sangue pulsando nas veias. Devia ter sido atingida por
um relâmpago. As ondas de dor caíram sobre ela.

Genevieve tentou aguentar.

Então tudo ficou negro.







— Meu Deus do Céu, não a leve também.

Genevieve reconheceu a voz de Ivy. Onde ela estava? O cheiro a trouxe
de volta. Limões queimados. Tentou falar, mas a garganta doía como se
tivesse engolido areia. Os olhos tremeram.

— Oh, Deus, obrigada! — Ivy estava olhando para ela, ajoelhada na
lama.

Genevieve tossiu e esticou a mão para Ivy, tentando puxá-la para mais
perto.

— Ethan está...? — sussurrou ela.

— Lamento, criança. Ele se foi.

Genevieve lutou para abrir os olhos. Ivy deu um salto para trás, como se
tivesse visto o demônio em pessoa.

— Deus tenha piedade!

— O quê? O que houve, Ivy?

A velha senhora lutava para entender o que via.

— Seus olhos, criança. Eles... estão mudados.

— Do que você está falando?

— Não estão mais verdes. Estão amarelos, tão amarelos quanto o sol.

Genevieve não se importava com a cor de seus olhos. Não ligava para
mais nada agora que tinha perdido Ethan. Começou a chorar.

A chuva aumentou, transformando a terra embaixo delas em lama.

— Você precisa se levantar, Srta. Genevieve. Temos que nos reunir com
Aqueles do Outro Mundo. — Ivy tentou colocá-la de pé.

— Ivy, você não está falando nada que faça sentido.

— Seus olhos... Eu avisei você. Avisei sobre a lua, sobre não haver lua.
Temos que descobrir o que significa. Temos que consultar os Espíritos.

— Se tem alguma coisa errada com meus olhos, tenho certeza de que foi
porque fui atingida por um raio.


— O que você viu? — Ivy parecia em pânico.

— Ivy, o que está acontecendo? Por que está agindo de forma estranha?

— Você não foi atingida por um raio. Foi outra coisa.

Ivy correu na direção dos campos de algodão em chamas. Genevieve
gritou por ela, tentando se levantar, mas ainda estava tonta. Deitou a cabeça
na lama grossa, a chuva caindo sem parar em seu rosto. Chuva misturando-se
às lágrimas de derrota. Ela perdia noção do momento e depois se recuperava,
ficava inconsciente e voltava. Ouviu a voz de Ivy, baixa, ao longe, gritando
seu nome. Quando os olhos se focaram de novo, a velha senhora estava ao
seu lado, a saia presa nas mãos.

Ivy estava carregando alguma coisa nas dobras da saia, e ela a jogou no
chão molhado ao lado de Genevieve. Pequenos frascos de pó e garrafas do
que parecia areia e terra bateram uns nos outros.

— O que está fazendo?

— Fazendo uma oferenda. Para os Espíritos. São os únicos que podem
nos dizer o que isso significa.

— Ivy, se acalme. Você está falando bobagem.

A velha senhora tirou uma coisa do bolso do vestido. Era um pedaço de
espelho. Ela o colocou na frente de Genevieve.

Estava escuro, mas não tinha como não ver. Os olhos de Genevieve
brilhavam. Tinham se transformado de um verde profundo em dourado-fogo,
e não pareciam com os olhos dela por uma outra característica inconfundível.
No centro, onde deveria haver uma pupila redonda e preta, havia aberturas
amendoadas, como as pupilas de um gato. Genevieve jogou o espelho no
chão e virou-se para Ivy.

Mas a velha senhora não estava prestando atenção. Já tinha misturado os
pós com a terra e os passava de uma mão para a outra, sussurrando na velha
língua Gullah de seus ancestrais.

— Ivy, o que você...?

— Shh — sibilou a velha senhora. — Estou ouvindo os espíritos. Eles
sabem o que você fez. Vão nos dizer o que isso significa. Da terra aos ossos
dela e do sangue ao meu sangue. — Ivy espetou o dedo na ponta do espelho
quebrado e espalhou as pequenas gotas de sangue na terra que ela misturava.
— Deixe-me ouvir o que vocês ouvem. Ver o que vocês veem. Saber o que
vocês sabem.


Ivy ficou de pé, braços abertos para os céus. A chuva caía sobre ela, e a
lama escorria-lhe pelo vestido em filetes. Começou a falar de novo na
estranha língua e então...

— Não pode ser. Ela não sabia — gritou para o céu escuro acima.

— Ivy, o que foi?

Ivy estava tremendo, se abraçando e gemendo.

— Não pode ser. Não pode ser.

Genevieve segurou Ivy pelos ombros.

— O quê? O que foi? O que há de errado comigo?

— Eu avisei para não se meter com aquele livro. Avisei que era o tipo de
noite errada para Conjurar, mas agora é tarde demais, criança. Não tem jeito
de voltar atrás.

— De que você está falando?

— Você está amaldiçoada, Srta. Genevieve. Você foi Invocada.
Transformou, e não há nada que possamos fazer para impedir. Uma troca.
Você não pode conseguir nada do Livro das Luas sem dar algo em retorno.

— O quê? O que eu dei?

— Seu destino, criança. Seu destino e o destino de todas as outras
crianças Duchannes que nascerem depois de você.

Genevieve não entendeu. Mas entendeu o bastante para saber que o que
ela tinha feito não podia ser desfeito.

— O que você quer dizer?

— Na Décima-Sexta Lua, no Décimo-Sexto Ano, o Livro vai pegar o que
lhe foi prometido. O que você deu em troca. O sangue de uma criança
Duchannes, e essa criança vai para as Trevas.

— Todas as crianças Duchannes?

Ivy baixou a cabeça. Genevieve não era a única derrotada naquela noite.

— Não todas.

Genevieve ficou esperançosa.

— Quais? Como saberemos quais?

— O Livro vai escolher. Na Décima-Sexta Lua, no décimo-sexto
aniversário da criança.





— Não deu certo. — A voz de Lena parecia estrangulada, distante.


Tudo que eu via era fumaça, e tudo que eu ouvia era a voz dela. Não
estávamos na biblioteca e não estávamos na visão. Estávamos em algum lugar
entre um e outro, e era horrível.

— Lena!

E então, por um momento, vi o rosto dela na fumaça. Seus olhos
estavam enormes e escuros, o verde quase preto. A voz parecia mais um
sussurro.

— Dois segundos. Ele ficou vivo por dois segundos, e então ela o perdeu.
Ela fechou os olhos e desapareceu.

— Lena! Onde você está?

— Ethan. O medalhão. — Eu podia ouvir Marian, como se de uma
grande distância.







Senti a dureza do medalhão nas minhas mãos. E entendi. Deixei-o cair.

Abri os olhos, tossindo pela fumaça ainda nos meus pulmões. A sala
estava girando, embaçada.

— Que diabos vocês, crianças, estão fazendo aqui?

Fixei meu olhar no medalhão e a sala voltou a entrar em foco. Estava no
chão de pedra, parecendo pequeno e inocente. Marian soltou minha mão.

Macon Ravenwood estava parado no meio da cripta, o casaco voando ao
redor dele. Amma estava ao seu lado, segurando a bolsinha, o casaco
displicentemente abotoado nos botões errados. Eu não sabia quem estava
mais zangado.

— Desculpe, Macon. Você conhece as regras. Eles pediram ajuda, e eu
sou obrigada a dar. — Marian parecia surpresa.

Amma gritou com Marian, como se ela tivesse encharcado sua casa com
gasolina.

— No meu ponto de vista, você tem obrigação de cuidar do filho de Lila
e da sobrinha de Macon. E não vejo como você possa estar fazendo nenhuma
das duas coisas.

Esperei que Macon caísse em cima de Marian também, mas ele não disse
nada. Então percebi por quê. Ele estava sacudindo Lena. Ela tinha caído
sobre a mesa de pedra no meio da sala. Os braços dela estavam abertos, o


rosto contra a pedra áspera. Ela não parecia estar consciente.

— Lena!

Puxei-a para meus braços, ignorando Macon, que já estava ao lado dela.
Seus olhos ainda estavam negros, olhando para cima, para mim.

— Ela não está morta. Está a deriva. Acredito que consigo chegar até ela.
— Macon trabalhava em silêncio. Eu podia vê-lo girando o anel. Seus olhos
estavam estranhamente iluminados.

— Lena! Volte! — Puxei seu corpo inerte para meus braços, inclinando-
rne sobre seu peito.

Macon estava murmurando. Eu não conseguia decifrar as palavras, mas
pude ver o cabelo de Lena começar a se mover com o já familiar vento
sobrenatural que passei a chamar de brisa Conjuradora.

— Aqui não, Macon. Seu Conjuro não vai funcionar aqui. — Marian
estava folheando um livro poeirento, a voz trêmula.

— Ele não está Conjurando, Marian. Está Viajando. Nem mesmo um
Conjurador consegue fazer isso. Para onde ela foi, só a espécie de Macon
pode ir. Para baixo. — Amma usava um tom tranquilizador, mas não era
muito convincente.

Senti o frio tomando conta do corpo vazio de Lena e soube que Amma
estava certa. Seja lá onde Lena estivesse, não era nos meus braços. Estava
longe. Eu podia sentir, e eu era apenas um Mortal.

— Eu avisei você, Macon. Aqui é um lugar neutro. Não há Feitiço que
você consiga realizar em uma sala da terra.

Marian estava andando de um lado para outro, segurando o livro como
se ele a fizesse sentir que estava ajudando de alguma maneira. Mas não havia
respostas lá dentro. Ela mesma tinha dito. Conjurar não teria efeito ali.

Me lembrei dos sonhos, de puxar Lena pela lama. Me perguntei se este
era o lugar onde eu a perdi.

Macon falou. Seus olhos estavam abertos, mas ele não estava en-
xergando. Era como se estivessem virados para dentro, para onde Lena
estava.

— Lena. Me escute. Ela não pode segurar você.

Ela. Olhei para os olhos vazios de Lena.

Sarafine.

— Você é forte, Lena; se liberte. Ela sabe que não posso ajudar você


aqui. Estava esperando por você nas sombras. Você tem que fazer isso
sozinha.

Marian apareceu com um copo de água. Macon o derramou no rosto de
Lena, dentro da boca, mas ela não se moveu.

Eu não podia mais suportar.

Segurei-a e a beijei na boca, com força. A água escorreu, como se eu
estivesse fazendo boca a boca com uma vítima de afogamento.

Acorde, L. Você não pode me abandonar agora. Não assim. Preciso de
você mais do que ela.

As pálpebras de Lena tremeram.

Ethan. Estou cansada.

Ela voltou à vida, engasgando, cuspindo água sobre a jaqueta. Eu sorri
apesar de tudo, e ela correspondeu. Se os sonhos eram sobre isso, tínhamos
mudado o modo como eles terminavam. Desta vez, eu a segurei. Mas no
fundo da minha mente, acho que eu sabia. Esse não era o momento em que
ela escorregava dos meus braços. Era só o começo.

Mesmo se isso fosse verdade, eu a tinha salvo desta vez.

Estiquei os braços para abraçá-la. Queria sentir a corrente elétrica
familiar entre nós. Antes que eu pudesse passar os braços em torno dela, Lena
se sentou e saiu dos meus braços.

— Tio Macon!

Macon estava do outro lado da sala, encostado na parede da cripta, mal
conseguindo aguentar o próprio peso. Encostou a cabeça contra a pedra.
Suava, respirando pesadamente e o rosto estava branco como giz.

Lena correu e o agarrou, uma criança preocupada com o pai.

— Você não devia ter feito aquilo. Ela podia ter matado você.

Seja lá o que ele tenha feito quando estava Viajando, seja lá o que isso
significasse, o esforço tinha tivera ura preço alto.

Então aquela era Sarafine. Essa coisa, fosse lá quem Ela fosse, era mãe de
Lena.

Se uma ida à biblioteca era assim, eu não sabia se estava pronto para o
que aconteceria nos próximos meses.

Contando da manhã seguinte, 74 dias.








Lena estava sentada, pingando de suor, enrolada em um cobertor. Parecia ter
uns 5 anos de idade. Olhei para a velha porta de carvalho atrás dela,
imaginando se eu conseguiria achar o caminho da saída sozinho. Era
improvável. Tínhamos andado uns trinta passos por um dos corredores,
depois descemos uma escadaria, passamos por uma série de pequenas portas
até chegar a um aconchegante escritório que parecia uma espécie de sala de
leitura. O corredor parecia infinito, com uma porta a cada poucos metros,
como uma espécie de hotel subterrâneo.

Assim que Macon sentou, um aparelho de chá de prata apareceu no
meio da mesa com exatamente cinco xícaras e um prato de pães doces.
Talvez a Cozinha estivesse aqui também.

Olhei ao redor. Não tinha ideia de onde eu estava, mas sabia de uma
coisa. Estava em algum lugar de Gatlin, mas ao mesmo tempo ficava o mais
longe de Gatlin que já estivera.

De qualquer modo, não tinha nenhum domínio aqui.

Tentei encontrar um lugar confortável em uma cadeira estofada que
talvez tenha pertencido a Henrique VIII. Na verdade, não havia como saber
que não tinha pertencido a ele. A tapeçaria na parede também poderia ter
vindo de um antigo castelo, ou de Ravenwood. Estava bordada no formato de
uma constelação, fundo azul escuro e linha prateada. Cada vez que eu
olhava, a lua estava numa fase diferente.

Macon, Marian e Amma estavam sentados do outro lado da mesa. Dizer
que Lena e eu estávamos encrencados era ser otimista. Macon estava furioso,
a xícara tremendo a sua frente. Amma estava mais do que isso.

— O que faz você pensar que pode tomar para si a decisão de quando
meu menino está pronto para o Mundo Subterrâneo? Lila arrancaria sua pele
com as próprias mãos se estivesse aqui. Você tem muita coragem, Marian
Ashcroft.

As mãos de Marian tremiam enquanto ela erguia sua xícara.

— Seu menino? E quanto à minha sobrinha? Já que foi ela, afinal, que foi
atacada.

Macon e Amma, depois de nos dar uma bronca gigantesca, começaram
a atacar um ao outro. Não ousei olhar para Lena.

— Você se mete em problemas desde o dia em que nasceu, Macon. —


Amma se virou para Lena. — Mas não acredito que você arrastaria meu
menino para isso, Lena Duchannes.

Lena perdeu o controle.

— É claro que eu o arrastei. Eu faço coisas ruins. Quando você vai
entender isso? E só vai piorar!

O conjunto de chá voou da mesa e parou no ar. Macon olhou sem nem
piscar. Um desafio. O conjunto todo se ajeitou e pousou gentilmente sobre a
mesa de volta. Lena olhou para Macon como se não houvesse mais ninguém
no aposento.

— Eu vou para as Trevas, e não há nada que você possa fazer para
impedir.

— Isso não é verdade.

— Não é? Vou acabar que nem minha... — Ela não conseguiu terminar a
frase.

O cobertor caiu de seus ombros e ela pegou minha mão.

— Você tem que se afastar de mim, Ethan. Antes que seja tarde demais.

Macon olhou para ela, irritado.

— Você não vai para as Trevas. Não seja tão ingênua. Ela só quer que
você pense isso. — O modo como disse ela me lembrou do modo como ele
dizia Gatlin.

Marian colocou a xícara sobre a mesa.

— Adolescentes... Tudo é tão apocalíptico.

Amma sacudiu a cabeça.

— Algumas coisas estão predestinadas a acontecer, outras precisam de
um pouco de trabalho. Ainda não terminou por aqui.

Eu podia sentir a mão de Lena tremendo na minha.

— Eles estão certos, L. Tudo vai ficar bem.

Ela puxou a mão.

— Tudo vai ficar bem? Minha mãe, uma Cataclista, está tentando me
matar. Uma visão de cem anos atrás acabou de esclarecer que minha família
toda vive uma maldição desde a Guerra Civil. Meu décimo-sexto aniversário
será em dois meses, e é isso que você tem para dizer?

Peguei a mão dela de novo, gentilmente, porque ela deixou.

— Vi a mesma visão que você. O Livro escolhe quem ele leva. Talvez
não vá escolher você. — Eu estava sendo otimista, mas era só isso que podia


fazer.

Amma olhou para Marian, batendo o pires na mesa. A xícara tremeu.

— O Livro? — Os olhos de Macon caíram sobre mim.

Tentei olhar nos olhos dele, mas não consegui.

— O Livro que vimos.

Não diga mais nada, Ethan.

Devíamos contar a eles. Não podemos fazer isso sozinhos.

— Não é nada, tio M. Nem sabemos o que as visões significam.

Lena não ia se entregar, mas depois desta noite, eu sentia que tinha que
fazer alguma coisa. Nós tínhamos. A situação estava saindo de controle. Senti
que estava me afogando e não conseguia nem me salvar, muito menos a
Lena.

— Talvez as visões signifiquem que nem todo mundo vá para as Trevas
quando é Invocado. E quanto à tia Del? Reece? Acha que a gracinha da
Ryan vai para o lado negro, quando tem o dom de curar pessoas? —
perguntei, chegando mais para perto dela.

Lena se recostou na cadeira.

— Você não sabe nada sobre minha família.

— Mas ele não está errado, Lena. — Macon olhou para ela, exasperado.

— Você não é Ridley. E você não é sua mãe — falei, da forma mais
convincente que pude.

— Como você sabe? Não conhece minha mãe. E aliás, nem eu, exceto
em ataques psíquicos que, aparentemente, ninguém consegue impedir.

Macon tentou parecer firme.

— Não estávamos preparados para aquele tipo de ataque. Eu não sabia
que ela conseguia Viajar. Eu não sabia que Sarafine tinha alguns dos meus
poderes. Não é um dom comum entre os Conjuradores.

— Ninguém parece saber nada sobre minha mãe e sobre mim.

— É por isso que precisamos do Livro. — Desta vez, olhei diretamente
para Macon quando falei.

— Que livro é esse do qual vocês vivem falando? — Macon estava
perdendo a paciência.

Não conte para ele, Ethan.

Temos que contar.

— O Livro que amaldiçoou Genevieve. — Macon e Amma olharam um


para o outro. Já sabiam o que eu ia dizer. — O Livro das Luas. Se foi assim
que a maldição foi Conjurada, alguma coisa nele deve nos dizer como
quebrá-la. Certo?

A sala ficou em silêncio.

Marian olhou para Macon.

— Macon...

— Marian. Fique fora disso. Você interferiu mais do que deveria, e o sol
vai nascer em alguns minutos.

Marian sabia. Ela sabia onde encontrar O Livro das Luas, e Macon
queria ter certeza de que ela manteria a boca fechada.

— Tia Marian, onde está o Livro? — Olhei nos olhos dela. — Você tem
que nos ajudar. Minha mãe teria nos ajudado, e você não deve tomar o lado
de ninguém, certo? — Eu não estava jogando limpo, mas era verdade.

Amma levantou as mãos e depois as deixou cair no colo. Um raro sinal
de rendição.

— O que está feito, está feito. Eles já começaram a puxar os fios,
Melchizedek. Esse suéter velho está destinado a se desfazer de alguma forma.

— Macon, há protocolos. Se eles perguntam, eu tenho Obrigação de
dizer a eles — disse Marian. Depois ela olhou para mim. — O Livro das Luas
não está na Lunae Libri.

— Como você sabe?

Macon ficou de pé para ir embora e se virou para nós dois. O maxilar
dele estava contraído, os olhos escuros e furiosos. Quando ele finalmente
falou, a voz ecoou pela sala, sobre todos nós.

— Porque este é o livro em cuja homenagem este arquivo foi batizado. É
o livro mais poderoso daqui até o Outro Mundo. Também é o livro que
amaldiçoou nossa família por toda eternidade. E está desaparecido há mais
de cem anos.


















p 1º de dezembro p

d



Rima com bruxa











N



a manhã de segunda-feira, Link e eu dirigimos até a autoestrada 9 e
paramos na bifurcação para pegar Lena. Link gostava de Lena, mas não
iria até Ravenwood de maneira alguma. Ainda era a mansão mal-
assombrada para ele.

Imagina se soubesse a verdade. O feriado de Ação de Graças tinha sido
nada mais do que um final de semana prolongado, mas parecia ter durado
muito mais, considerando o jantar de Ação de Graças estilo "Além da
Imaginação", os vasos voando entre Macon e Lena e nossa viagem ao centro
da terra, tudo sem sair dos limites da cidade de Gatlin. Ao contrário de Link,
que tinha passado o final de semana assistindo futebol americano, batendo
nos primos e tentando determinar se as bolinhas de queijo tinham ou não
cebola esse ano.

Mas, de acordo com Link, havia outro tipo de problema fermentando, e
a manhã de hoje parecia igualmente perigosa. A mãe de Link não saiu do
telefone nas últimas 24 horas, sussurrando, o longo fio esticado e a porta da
cozinha fechada. A Sra. Snow e a Sra. Asher tinham aparecido depois do
jantar, e as três se enfiaram na cozinha, a Sala de Guerra. Quando Link
entrou, fingindo ir pegar um refrigerante, não pescou muito. Mas foi
suficiente para imaginar a jogada final da mãe dele. "Vamos tirá-la da escola,
de uma maneira ou de outra." E o cachorrinho dela também.

Não era muito, mas se eu conhecia a Sra, Lmcoln.., já era o bastante
para ficar preocupado. Nunca se podia subestimar o quão longe mulheres
como a Sra. Lincoln iriam para proteger os filhos e a cidade da coisa que elas
mais odiavam: qualquer um diferente delas. Eu sabia. Minha mãe tinha me
contado histórias dos primeiros anos em que ela tinha morado aqui. Do


modo que contou, ela era uma criminosa que até as senhoras tementes a
Deus, frequentadoras de igreja, cansaram de falar dela; ela ia ao mercado aos
domingos, ia a qualquer igreja de que gostasse ou a nenhuma, era feminista
(que a Sra. Asher às vezes confundia com comunista), era democrata (que a
Sra. Lincoln dizia ter metade da palavra "demônio" só no nome), e pior de
tudo, era vegetariana (o que impedia qualquer convite para jantar da Sra.
Snow). Além disso e de não ser membro da igreja certa ou do FRA ou da
Associação Nacional de Armas, havia o fato de que minha mãe era de fora.

Mas meu pai tinha crescido aqui e era considerado um dos filhos de
Gatlin. Então, quando minha mãe morreu, as mesmas mulheres que a
julgaram tanto quando estava viva apareceram com caçarolas de sopas,
assados e espaguete com um ar de vingança estampado no rosto. Como se
estivessem finalmente tendo a palavra final. Minha mãe teria odiado, e elas
sabiam. Foi a primeira vez que meu pai entrou no escritório e trancou a porta
durante dias. Amma e eu deixamos as caçarolas se empilharem na varanda
até que as levaram embora e voltaram a nos julgar, como sempre tinham
feito.

Sempre tinham a última palavra. Link e eu sabíamos, mas Lena não.







Lena estava entre Link e eu no banco da frente do Lata-Velha, escrevendo na
mão. Eu só conseguia ler as palavras em pedaços como todo o resto. Ela
escrevia o tempo todo, do mesmo jeito que algumas pessoas mascavam
chiclete ou mexiam no cabelo; acho que ela nem se dava conta. Imaginei se
algum dia me deixaria ler um de seus poemas, se algum deles era sobre mim.

Link olhou para baixo.

— Quando você vai escrever uma música pra mim?

— Assim que eu terminar a que estou escrevendo pro Bob Dylan.

— Cacete.

Link enfiou o pé no freio na entrada do estacionamento. Eu não podia
culpá-lo. A visão da mãe dele no estacionamento antes das 8 horas da manhã
era apavorante. E lá estava ela.

O estacionamento estava lotado de pessoas, bem mais do que o normal.
E cheio de pais; fora o incidente da janela, não havia pais no estacionamento


desde que a mãe de Jocelyn Walker apareceu para arrancá-la da escola
durante o filme sobre o ciclo reprodutivo na aula de Desenvolvimento
Humano.

Obviamente, alguma coisa estava acontecendo.

A mãe de Link passou uma caixa para Emily, que estava junto com toda
a equipe de líderes de torcida — time principal e reserva — colocando papéis
em todos os carros do estacionamento, uma espécie de folheto de neon.
Alguns balançavam ao vento, mas eu conseguia ler vários à distância, dentro
da segurança relativa do Lata-Velha. Era como se estivessem fazendo algum
tipo de campanha, só que sem candidato.

DIGA NÃO À VIOLÊNCIA NA JACKSON!

TOLERÂNCIA ZERO!

Link ficou vermelho-vivo.

— Me desculpem. Vocês precisam sair. — Ele se abaixou no banco do
motorista, tão baixo que parecia que ninguém estava dirigindo o carro. —
Não quero que minha mãe me dê uma surra na frente de toda a equipe de
líderes de torcida.

Eu me abaixei e abri a porta da frente para Lena.

— Vemos você lá dentro, cara.

Peguei a mão de Lena e a apertei.

Pronta?

Tão pronta quanto possível

Nos abaixamos entre os carros pela lateral do estacionamento. Não
podíamos ver Emily, mas podíamos ouvir a voz dela atrás da picape de
Emory.

— Conheçam os sinais! — Emily estava se aproximando da janela de
Carrie Jensen. — Estamos formando um novo clube na escola, os Anjos da
Alta Guarda da Jackson. Vamos ajudar a manter a escola segura
comunicando atos de violência ou qualquer comportamento incomum que
virmos na escola. Pessoalmente, acho que é responsabilidade de todos os
alunos da

Jackson manter nossa escola segura. Se você quiser participar, temos um
encontro no refeitório depois do oitavo tempo.

Quando a voz de Emily foi sumindo ao longe, a mão de Lena apertou a
minha.


O que esse encontro quer dizer?

Não tenho ideia. Mas elas perderam a cabeça. Vamos.

Tentei puxá-la para cima, mas ela me puxou de volta para baixo. Ela se
encolheu ao lado do pneu.

— Só preciso de um minuto.

— Você está bem?

— Olhe para elas. Acham que sou um monstro. Formaram um clube.

— Não conseguem suportar qualquer pessoa de fora, e você é a garota
nova. Uma janela se quebrou. Precisam de alguém para culpar. Isso é
apenas...

— Uma caça às bruxas.

Eu não ia dizer isso.

Mas estava pensando.

Apertei a mão dela e meu cabelo ficou de pé.

Você não precisa fazer isso.

Preciso, sim. Deixei pessoas como elas me expulsarem da minha última
escola. Não vou deixar acontecer de novo.

Quando saímos de trás da última fileira de carros, lá estavam elas. A Sra.
Asher e Emily estavam colocando caixas extras de folhetos no porta- malas
das minivans. Eden e Savannah estavam entregando folhetos para algumas
líderes de torcida e qualquer cara que quisesse ver um pouco das pernas ou
do decote de Savannah. A Sra. Lincoln estava a alguns metros de distância
falando com outras mães, provavelmente prometendo acrescentar as casas
delas ao Tour da Herança Sulista se elas fizessem algumas ligações para o
diretor Harper. Entregou uma prancheta com uma caneta à mãe de Earl
Petty. Levei um minuto para me dar conta do que era. Não era possível.

Parecia um abaixo-assinado.

A Sra. Lincoln reparou que estávamos ali parados, e fixou o olhar em
nós. As outras mães seguiram o olhar dela. Por um segundo, não disseram
nada. Achei que talvez sentissem mal por mim e fossem guardar os folhetos,
fechar as minivans e os sedas e voltar para casa. À Sra. Lincoln, em cuja casa
eu tinha dormido quase tantas vezes quanto na minha. A Sra. Snow, que era
tecnicamente minha prima em terceiro grau. A Sra. Asher, que fez um
curativo na minha mão depois que a cortei com um anzol de pescar quando
tinha 10 anos. Srta. Ellery, que fez meu primeiro legítimo corte de cabelo.


Aquelas mulheres me conheciam. Elas me conheciam desde que eu era
criança. Não era possível que elas fossem fazer algo assim, não comigo. Elas
iam recuar.

Se eu dissesse isso muitas vezes, talvez se tornasse verdade.

Vai ficar tudo bem.

Quando me dei conta de que estava errado, era tarde demais. Elas se
recuperaram do choque momentâneo de ver Lena e eu.

Quando a Sra. Lincoln nos viu, seus olhos se apertaram.

— O diretor Harper... — Ela olhou de Lena para mim e sacudiu a
cabeça. Vamos dizer que eu não seria convidado para jantar na casa de Link
no futuro próximo. Ela ergueu a voz. — O diretor Harper prometeu apoio
incondicional. Não vamos tolerar que exista na Jackson a violência que tem
contaminado as escolas deste país. Vocês jovens estão fazendo a coisa certa,
protegendo a escola, e nós, como pais preocupados — ela olhou para nós —,
vamos fazer qualquer coisa que pudermos para apoiar vocês.

Ainda de mãos dadas, Lena e eu passamos por eles. Emily parou na
nossa frente e enfiou um folheto na minha mão, ignorando Lena.

— Ethan, venha ao encontro hoje. Você seria útil para os Anjos da
Guarda.

Era a primeira vez que ela falava comigo em semanas. Captei a
mensagem. Você é um de nós, última chance.

Afastei a mão dela.

— É disso mesmo que a Jackson precisa, de um pouco mais do seu
comportamento angelical. Por que você não vai torturar umas crianças?
Arrancar as asas de uma borboleta? Derrubar um passarinho do ninho? —
Puxei Lena e segui adiante.

— O que sua pobre mãe diria, Ethan Wate? O que ela acharia da pessoa
que anda acompanhando você?

Eu me virei. A Sra. Lincoln estava parada bem atrás de mim. Estava
vestida como sempre se vestia, como algum tipo de bibliotecária que executa
punições em um filme, com óculos baratos de farmácia e um corte de cabelo
raivoso com fios que não conseguiam decidir se eram castanhos ou grisalhos.
Não dava para não pensar: de onde Link tinha vindo?

— Vou dizer o que sua mãe diria. Ela choraria. Ia se revirar no túmulo.

Essa mulher tinha passado do limite.


A Sra. Lincoln não sabia nada sobre minha mãe. Não sabia que era
minha mãe quem havia mandado uma cópia de cada veredito contra
proibição de livros nos EUA para a Superintendência Escolar. Não sabia que
minha mãe odiava cada vez que a Sra, Lincoln a convidava para um
encontro do Auxílio das Mulheres ou do FRA. Não porque ela odiasse o
Auxílio das Mulheres ou o FRA, mas porque odiava tudo que a Sra. Lincoln
representava. Aquele tipo de superioridade com uma mente limitada pelo
qual as mulheres de Gatlin, como a Sra. Lincoln e a Sra. Asher, eram tão
famosas.

Minha mãe sempre dizia: "O certo e o fácil nunca são a mesma coisa." E
agora, nesse exato segundo, eu sabia a coisa certa a fazer, mesmo não sendo
fácil. Ou pelo menos as consequências do meu ato não seriam.

Me virei para a Sra. Lincoln e olhei em seus olhos.

— "Muito bem, Ethan." É isso que minha pobre mãe diria. Senhora.

Me virei em direção à porta do prédio administrativo e continuei
andando, puxando Lena ao meu lado. Estávamos apenas a alguns metros de
distância. Lena estava tremendo, apesar de não parecer assustada. Eu não
parava de apertar a mão dela, tentando acalmá-la. Seu cabelo longo e preto
se mexia, como se ela estivesse prestes a explodir, ou talvez eu estivesse.
Nunca pensei que eu fosse ficar tão feliz de botar meus pés nos corredores da
Jackson, até que vi o diretor Harper parado na entrada. Ele estava olhando
para nós com tanta determinação que parecia que desejava não ser o diretor
para poder distribuir, ele mesmo, alguns folhetos.

O cabelo de Lena voou ao redor dos ombros quando passamos por ele.
Só que ele nem olhou para nós. Estava ocupado demais olhando lá para fora.

— Mas que...?

Olhei, para trás, a tempo de ver centenas de folhetos verdes-neon
soltando de para-brisas, de pilhas, de caixas, de vans e de mãos. Voando e um
sopro repentino de vento, como se houvesse uma revoada de pássaros
subindo em direção às nuvens. Escapando, belos e livres. Meio como i filme
de Hitchcock, Os Pássaros, só que ao contrário.

Ouvimos a gritaria até que as portas pesadas de metal se fecharam.

Lena ajeitou o cabelo.

— O tempo aqui é muito doido.






p 6 de dezembro p

d



Achados e perdidos













E



u estava quase aliviado por ser sábado. Havia alguma coisa reconfortante
em passar o dia com mulheres cujo único poder mágico era esquecer os
próprios nomes, Quando cheguei à casa das Irmãs, a gata siamesa de tia
Mercy, Lucille Bali (as Irmãs adoravam I love Lucy) estava "se exercitando"
no jardim da frente. As Irmãs tinham um varal que percorria a extensão do
jardim, e toda manhã tia Mercy colocava uma coleira em Lucille Bali,
prendendo-a ao varal para a gata se exercitar. Eu tinha tentado explicar que
era possível deixar gatos saírem e que eles voltariam quando quisessem, mas
tia Mercy olhou para mim como se eu tivesse sugerido que ela saísse com um
homem casado. "Não posso deixar Lucille Bali andar pelas ruas sozinha.
Tenho certeza que alguém iria pegá-la." Não havia muitos sequestros de gatos
na cidade, mas era uma discussão que eu jamais venceria.

Abri a porta, esperando o agito tradicional, mas hoje a casa estava
notadamente silenciosa. Um mau sinal.

— Tia Prue?

Ouvi o familiar sotaque arrastado dela falar vindo da parte de trás da
casa.

— Estamos na varanda de trás, Ethan.

Passei pela porta que dava na varanda de trás e vi as Irmãs andando de
um lado para outro, carregando o que pareciam pequenos ratos sem pelos.

— Que diabos é isso? — perguntei sem nem pensar.

— Ethan Wate, olhe como fala ou vou ter que lavar sua boca com sabão.
Você sabe que não deve profanar — disse tia Grace. E no que dizia respeito a
ela, isso incluía palavras como calcinha, pelado e bexiga.


— Me desculpe, senhora. Mas o que é isso que está segurando?

Tia Mercy andou até mim e esticou a mão com dois pequenos roedores
dormindo em cima.

— São esquilos bebês. Ruby Wilcox os achou no sótão na terça-feira.

— Esquilos selvagens?

— São seis esquilos. Não é a coisa mais fofa que você já viu?

Tudo que eu podia ver era um sinal de alerta piscando: perigo. A ideia
de minhas tias anciãs pegando em animais selvagens, filhotes ou não, era um
pensamento assustador.

— Onde a senhora os pegou?

— Bem, Ruby não podia cuidar deles... — começou tia Mercy.

— Por causa daquele marido horrível dela. Ele nem a deixa ir ao Pare 8c
Roube sem avisar a ele.

— Então Ruby os deu para nós, já que tínhamos uma gaiola.

As Irmãs tinham resgatado um guaxinim ferido depois de um furacão e
cuidaram dele até ficar saudável novamente. Depois disso, o guaxinim comeu
o casal de pássaros de tia Prudence, Sonny e Cher, e Thelma colocou o
guaxinim para fora de casa, para que nunca mais tocassem no assunto. Mas
ainda tinham a gaiola.

— Sabem que esquilos podem passar raiva. Não podem pegar nessas
coisas. E se um deles morder vocês?

Tia Prue franziu a testa.

— Ethan, eles são nossos bebês e são umas doçuras. Não nos morderiam.
Somos as mamães deles.

— São tão mansos quanto possível, não são? — disse tia Grace, fazendo
carinho em um deles.

Eu só podia imaginar um desses pequenos vermes agarrado no pescoço
de uma das Irmãs e eu tendo que levá-las para o pronto-socorro para tomar
as vinte injeções na barriga necessárias quando se é mordido por um animal
com raiva. Injeções que, na idade delas, poderiam matá-las.

Tentei argumentar com elas, uma total perda de tempo.

— Nunca se sabe. São animais selvagens.

— Ethan Wate, está claro que você não é um amante dos animais. Esses
bebês jamais nos machucariam. — Tia Grace olhava para mim com uma
careta de reprovação. — E o que vocês quem a que fizéssemos com eles? A


mamãe deles se foi. Vão morrer se não cuidarmos deles.

— Posso levá-los para a Sociedade Protetora dos Animais.

Tia Mercy os puxou contra o peito de forma protetora.

— A Sociedade Protetora dos Animais! Aqueles assassinos. Vão matá-los,
com certeza!

— Chega de falar sobre a Sociedade Protetora dos Animais. Ethan, me
passe esse conta-gotas aí.

— Para quê?

— Temos que alimentá-los a cada quatro horas com esse conta-gotas —
explicou tia Grace. Tia Prue estava segurando um dos esquilos na mão, e ele
sugava desesperadamente a ponta do conta-gotas. — E uma vez por dia
temos que limpar as partes íntimas deles com um cotonete, para que
aprendam a se limpar. — Eu preferia nunca ter imaginado aquilo.

— Como vocês podem saber disso?

— Procuramos na internet. — Tia Mercy sorriu com orgulho.

Eu não podia imaginar como minhas tias sabiam qualquer coisa sobre
internet. As Irmãs não tinham nem uma torradeira.

— Como vocês entraram na internet?

— Thelma nos levou até a biblioteca e a Srta. Marian nos ajudou. Tem
computadores lá. Você sabia?

— E dá para procurar qualquer coisa, até fotos pornográficas. De vez em
quando, as fotos mais pornográficas que se pode imaginar apareciam na tela.
Imagine! — "Pornográficas" para tia Grace provavelmente significava nuas,
coisa que eu achava que as manteria longe da internet para sempre.

— Só quero deixar registrado que acho isso uma péssima ideia. Vocês
não podem ficar com eles para sempre. Vão crescer e ficar mais agressivos.

— Bem, é claro que não estamos planejando cuidar deles para sempre. —
Tia Prue estava balançando a cabeça, como se fosse um pensamento ridículo.
— Vamos deixá-los no quintal assim que forem capazes de cuidar de si
mesmos.

— Mas não saberão como encontrar comida. É por isso que é má ideia
acolher animais selvagens. Quando os soltarem, vão morrer de fome. —
Parecia um argumento que teria apelo com as Irmãs e me manteria longe do
pronto-socorro.

— É nisso que você está errado. Está tudo escrito na internet — disse tia


Grace. Que site era esse que tinha sobre criar esquilos selvagens e limpar as
partes íntimas deles com cotonete?

— Temos que ensinar a eles a juntar nozes. Enterramos nozes no jardim
e deixamos que os esquilos treinem como encontrá-las.

Eu via onde aquilo ia dar. O que levava à parte do dia na qual eu estava
no quintal enterrando frutas secas para bebês esquilos. Me perguntei quantos
buraquinhos eu teria que cavar até que as Irmãs ficassem satisfeitas.

Meia hora depois de eu começar a cavar, comecei a achar coisas. Um
dedal, uma colher de prata e um anel de ametista que não parecia valioso,
mas me deu uma boa desculpa para parar de esconder amendoins no quintal.
Quando entrei na casa, tia Prue estava usando os óculos grossos de leitura,
examinando uma pilha de papéis amarelados.

— O que a senhora está lendo?

— Só estou procurando umas coisas para a mãe do seu amigo Link O
FRA precisa de algumas anotações sobre a história de Gatlin para o landa
Herança Sulista. — Ela examinou mais uma pilha. — Mas é difícil achar algo
sobre a história de Galtin. — O último nome que o FRA queria ouvir.

— Como assim?

— Bem, sem eles, acho que Gatlin não estaria mais aqui. Então é difícil
escrever a história da cidade e deixá-los de fora.

— Eles foram mesmo os primeiros aqui? — Ouvira Marian dizer isso,
mas era difícil de acreditar.

Tia Mercy levantou um dos papéis da pilha e o segurou tão perto do
rosto que devia estar vendo dobrado. Tia Prue o pegou de volta.

— Me dê isso. Estou trabalhando em um sistema.

— Bem, se você não quer ajuda. — Tia Mercy se virou para mim. — Os
Ravenwood foram os primeiros nessas partes, é verdade. Receberam umas
terras do rei da Escócia, por volta de 1800.

— 1781. Estou com o papel bem aqui. — Tia Prue sacudiu uma folha
amarela no ar. — Eram fazendeiros, e o condado de Gatlin tinha o solo mais
fértil de toda a Carolina do Sul. Algodão, tabaco, arroz, anileira, tudo crescia
aqui, o que era peculiar pelo fato de essas plantas não crescerem
normalmente todas no mesmo lugar. Depois que as pessoas descobriram que
era possível plantar praticamente tudo aqui, os Ravenwood passaram a ter
uma cidade.


— Gostando ou não — acrescentou tia Grace, tirando os olhos do tricô.

Era irônico; sem os Ravenwood, Gatlin talvez nem existisse. As pessoas
que evitavam Macon Ravenwood e sua família tinham que agradecer a eles
por terem uma cidade. Eu me perguntei como a Sra. Lincoln se sentiria em
relação a isso. Aposto que ela já sabia, e que provavelmente fosse por isso que
todos odiassem tanto Macon Ravenwood.

Olhei para minha mão, coberta daquele solo inexplicavelmente fértil.
Ainda estava segurando as coisas que desenterrei do quintal.

— Tia Prue, isso pertence a alguma de vocês? — Lavei o anel na pia e o
exibi.

— Nossa, é o anel que meu segundo marido Wallace Pritchard me deu
no nosso primeiro e único aniversário de casamento. — Ela baixou a voz até
chegar a um sussurro. — Ele era um homem muito pão duro. Onde você
achou isso?

— Enterrado no quintal. Também achei uma colher e um dedal.

— Mercy, olhe o que Ethan achou, sua colher do Tennessee, da coleção.
Eu falei que não peguei! — gritou Tia Prue.

— Deixe-me ver. — Mercy colocou os óculos para inspecionar a colher.
— Bem, é mesmo. Finalmente tenho os 11 estados.

— Existem mais do que 11 estados, tia Mercy.

— Só coleciono os estados da Confederação. — Tia Grace e tia Prue
assentiram em concordância.

— Falando em enterrar coisas, dá para acreditar que Eunice Honeycutt
fez com que a enterrassem junto com o livro de receitas? Ela não queria que
ninguém da igreja botasse as mãos em sua receita de bolo de frutas. — Tia
Mercy balançou a cabeça.

— Ela era uma pessoa desprezível, assim como a irmã dela. — Tia Grace
estava abrindo uma lata de doces com a colher do Tennessee.

— E aquela receita nem era boa — disse tia Mercy.

Tia Grace virou a tampa da lata para ler os nomes dos doces dentro.

— Mercy, qual é o com recheio de creme?

— Quando eu morrer, quero ser enterrada com minha estola de pele e
minha Bíblia — disse tia Prue.

— Você não vai ganhar pontos extras com o Senhor por causa disso,
Prudence Jane.


— Não estou tentando ganhar pontos, só quero ter alguma coisa para ler
durante a espera. Mas se houvesse distribuição de pontos, Grace Ann, eu teria
mais do que você.

Enterrada com o livro de receitas...

E se O Livro das Luas estivesse enterrado em algum lugar? E se alguém
quisesse que ninguém o encontrasse, e por isso o escondeu? Talvez a pessoa
que entendia o poder dele melhor do que qualquer outra. Genevieve.

Lena, acho que sei onde o Livro está.

Por um segundo, só houve o silêncio, e então os pensamentos de Lena
encontraram o caminho até os meus.

Corno assim?

O Livro das Luas. Acho que está com Genevieve.

Genevieve está morta.

Eu sei.

O que você quer dizer, Ethan ?

Acho que você sabe o que quero dizer.

Harlon James subiu mancando na mesa, com aparência de dar dó. A
perna ainda estava enfaixada, Tia Mercy começou a dar chocolates de dentro
da lata para ele.

— Mercy, não dê chocolate ao cachorro! Vai matá-lo. Vi no programa
da Oprah. Era chocolate ou molho de cebola?

— Ethan, quer que eu guarde os caramelos para você? — perguntou tia
Mercy. — Ethan?

Eu não estava mais ouvindo. Pensava em como abrir um túmulo.


























p 7 de dezembro p

d



Abrindo um túmulo













F



oi ideia de Lena. Era aniversário de tia Del, e no último minuto Lena
decidiu dar uma festa para a família em Ravenwood. Foi também Lena
que convidou Amma, sabendo muito bem que nada além de intervenção
divina faria com que Amma botasse os pés na propriedade dos Ravenwood.
Seja lá o que fosse em relação a Macon, Amma reagia um pouquinho melhor
à presença dele do que ao medalhão. Ainda assim ela preferia manter Macon
tão longe quanto o medalhão.

Boo Radley apareceu de tarde carregando um papel enrolado na boca,
escrito com caligrafia cuidadosa. Amma não queria tocar no objeto, mesmo
sendo um convite, e quase não me deixou ir. Ainda bem que ela não me viu
entrar no rabecão com a velha pá de jardim de minha mãe. Isso chamaria
atenção.

Eu estava feliz por sair de casa, por qualquer razão, mesmo que essa
razão envolvesse violação de túmulo. Depois do dia de Ação de Graças, meu
pai tinha se fechado no escritório, e desde que Macon e Amma tinham nos
visto na Lunae Libri, a única interação de Amma comigo era um olhar de
reprovação.

Lena e eu não tínhamos permissão de voltar à Lunae Libri, pelo menos
não nos próximos 68 dias. Macon e Amma pareciam não querer nos ver
caçando mais informações do que planejavam fornecer.

— Depois do dia 11 de fevereiro, vocês podem fazer o que quiserem —
tinha resmungado Amma. — Até lá, vocês podem fazer o que todas as pessoas
da sua idade fazem. Ouvir música. Ver televisão. Apenas mantenham o nariz
longe daqueles livros.


Minha mãe teria rido da ideia de eu não ter permissão para ler um livro.
As coisas obviamente tinham ficado bem ruins por aqui.

Está pior aqui, Ethan. Boo até dorme no pé da minha cama agora.

Isso não me parece tão ruim.

Ele espera por mim na porta do banheiro.

Isso é só Macon sendo Macon.

É uma prisão domiciliar.

Era mesmo, e nós dois sabíamos.

Tínhamos que achar O Livro das Luas, e ele tinha que estar com
Genevieve. Era mais do que possível que Genevieve tivesse sido enterrada em
Greenbrier. Havia algumas lápides desgastadas na clareira logo ao lado do
jardim. Dava para vê-las da pedra onde costumávamos sentar, que tinha sido
a pedra da lareira da casa. Nosso lugar, era como eu pensava, mesmo nunca
tendo falado sobre isso. Genevieve tinha que estar enterrada lá, a não ser que
tivesse se mudado depois da Guerra, mas ninguém nunca ia embora de
Gatlin.

Eu sempre pensei que eu seria o primeiro.

Mas agora que eu saíra de casa, como ia encontrar um livro perdido de
Conjuração que podia ou não salvar a vida de Lena, que podia ou não estar
enterrado no túmulo de uma ancestral Conjuradora amaldiçoada, que podia
ou não ser na casa ao lado da casa de Macon Ravenwood? Sem o tio dela me
ver, me parar ou me matar antes?

O resto era com Lena.







— Que espécie de projeto escolar exige que se visite um cemitério à noite? —
perguntou tia Del, tropeçando em um emaranhado de vinhas. — Minha
nossa!

— Mamãe, cuidado.

Reece passou o braço pelo da mãe, ajudando-a a caminhar pela
vegetação. Tia Del tinha dificuldade em andar por aí sem esbarrar em tudo à
luz do dia, mas no escuro era pedir demais.

— Temos que fazer uma cópia da lápide de um dos nossos ancestrais.
Estamos estudando genealogia. — Bem, isso era meio verdade.


— Por que Genevieve? — perguntou Reece, olhando com desconfiança.

Reece olhou para Lena, mas Lena imediatamente virou o rosto. Lena

tinha me avisado para não deixar Reece ver meu rosto. Pelo que ela
disse, um olhar era suficiente para uma Sibila saber se a gente estava
mentindo. Mentir para uma Sibila era ainda mais difícil do que mentir para
Amma.

— É ela no quadro, no hall. Só achei que seria legal usá-la. Não temos
um grande cemitério familiar para escolher, como a maioria das pessoas
daqui.

A música hipnótica Conjuradora da festa estava começando a sumir com
a distância, substituída pelo som de folhas secas sendo esmagadas por nossos
pés. Tínhamos ido até Greenbrier. Estávamos chegando perto. Estava escuro,
mas a lua cheia brilhava tanto que nem precisávamos das lanternas. Me
lembrei do que Amma disse para Macon no cemitério. A meia-lua é para
fazer magia Branca, e a lua cheia é para fazer magia Negra. Não íamos fazer
magia alguma, eu esperava, mas isso não tornava tudo menos assustador.

— Acho que Macon não ia querer que andássemos por aqui no escuro.
Você disse para ele onde estávamos indo? — Tia Del estava apreensiva. Ela
puxou a gola da blusa de renda de gola alta.

— Eu disse que íamos dar uma volta. Ele só me pediu que ficasse com
vocês.

— Não sei se estou em boa forma para isso. Odeio admitir, mas estou
meio sem fôlego. — Tia Del estava ofegante, e o cabelo ao redor do seu rosto
tinha escapado do coque sempre meio descentralizado.

Então senti o aroma familiar.

— Chegamos.

— Graças a Deus.

Andamos até a parede de pedra em ruínas do jardim, onde eu tinha
encontrado Lena chorando no dia em que a janela se quebrou. Me abaixei
sob o arco de vinhas e entrei no jardim. Parecia diferente à noite, menos um
local para olhar as nuvens e mais um lugar onde uma Conjuradora
amaldiçoada estaria enterrada.

É aqui, Ethan. Ela está aqui. Posso sentir.

Eu também.

Onde você acha que está o túmulo dela?


Enquanto passávamos pela pedra onde achei o medalhão, pude ver outra
pedra a alguns metros a frente na clareira. Uma lápide, com uma imagem
difusa sentada em cima.

Ouvi Lena ofegar, apenas alto o bastante para que eu ouvisse.

Ethan, você consegue vê-la?

Consigo.

Genevieve. Estava apenas parcialmente materializada, uma mistura de
névoa e luz, aparecendo e desaparecendo quando o ar passava pela forma
fantasmagórica, mas não havia como confundir. Era Genevieve, a mulher do
quadro. Tinha os mesmos olhos dourados e cabelo ruivo longo e ondulado.
Seu cabelo voava levemente com o vento, como se ela fosse apenas uma
mulher sentada em um banco no ponto de ônibus, em vez de uma aparição
sentada em uma lápide no cemitério. Era bonita, mesmo no presente estado,
e assustadora ao mesmo tempo. Os cabelos da minha nuca se eriçaram.

Talvez fazer isso fosse errado.

Tia Del ficou paralisada. Ela via Genevieve também, mas era claro que
achava que mais ninguém conseguia ver. Provavelmente pensou que a
aparição era o resultado de ver muitos momentos ao mesmo tempo, as
imagens desorganizadas desse lugar em vinte décadas diferentes.

— Acho que devíamos voltar para casa. Não estou me sentindo muito
bem. — Tia Del obviamente não queria interagir com um fantasma de 150
anos em um cemitério de Conjuradores.

Lena tropeçou em uma vinha frouxa e caiu. Eu a peguei pelo braço para
segurá-la, mas não fui rápido o bastante.

— Você está bem?

Ela se recuperou e olhou para mim por uma fração de segundo, mas
uma fração de segundo foi tudo de que Reece precisou. Ela viu os olhos de
Lena, o rosto, a expressão, seus pensamentos dela.

— Mamãe, eles estão mentindo! Não estão fazendo trabalho de história
nenhum. Estão procurando alguma coisa. — Reece colocou uma mão na
têmpora como se estivesse ajustando uma peça do equipamento. — Um livro!

Tia Del parecia confusa, até mais confusa do que costumava parecer.

— Que tipo de livro se procuraria num cemitério?

Lena se libertou do olhar de Reece e do controle dela.

— É um livro que pertenceu a Genevieve.


Abri a sacola que carregava e tirei a pá. Andei até o túmulo lentamente,
tentando ignorar o fato de que o fantasma de Genevieve estava me
observando o tempo todo. Talvez eu acabasse atingido por um raio ou algo
assim; não me surpreenderia. Mas tínhamos ido até ali. Enfiei a pá no chão,
tirando um pouco de terra.

— Ah, Grande Mãe! Ethan, o que você está fazendo? — Pelo visto, cavar
um túmulo tinha trazido tia Del de volta ao presente.

— Estou procurando o livro.

— Aí? — Tia Del parecia que ia desmaiar. — Que tipo de livro estaria aí?

— É um livro de Conjurações, um bem antigo. Nem sabemos se está aí.
É só um palpite — disse Lena, olhando para Genevieve, que ainda estava
sentada na lápide a meio metro de distância.

Tentei não olhar para Genevieve. Era perturbador o modo como o
corpo dela sumia e aparecia, e ela nos observava com aqueles olhos dourados
de gato apavorantes, vazios e sem vida como se fossem feitos de vidro.





O chão não era tão duro, principalmente considerando que estávamos em
dezembro. Em poucos minutos, eu já havia cavado meio metro. Tia Del
andava de um lado para o outro, com expressão preocupada. De vez em
quando ela se virava para ter certeza de que nenhum de nós estava olhando,
depois olhava para Genevieve. Pelo menos eu não era o único apavorado por
causa do fantasma dela.

— Devíamos voltar. Isso é repulsivo — disse Reece, tentando olhar nos
meus olhos.

— Não seja tão certinha — disse Lena, ajoelhando perto do buraco.

Reece consegue vê-la?

Acho que não. Só não olhe nos olhos dela.

E se Reece ler o rosto de tia Del?

Ela não consegue. Ninguém consegue. Tia Del vê muita coisa de uma
vez só. Ninguém além de um Palimpsesto consegue processar toda aquela
informação e entendê-la.

— Mamãe, você vai mesmo deixar que eles cavem um túmulo?

— Pelo amor das estrelas, isso é ridículo. Vamos parar com essa tolice
agora e voltar para a festa.


— Não podemos. Temos que saber se o livro está aqui. — Lena se virou
para tia Del. — Você podia nos mostrar.

De que você está falando?

Ela pode nos mostrar o que tem lá embaixo. Ela consegue projetar o que
vê.

— Não sei. Macon não ia gostar. — Tia Del mordia o lábio, nervosa.

— Você acha que ele prefere que a gente cave um túmulo? — respondeu
Lena.

— Está bem, está bem. Saia desse buraco, Ethan.

Saí do buraco, limpando as mãos na calça. Olhei para Genevieve. Ela
tinha uma expressão peculiar no rosto, quase como se estivesse interessada em
ver o que ia acontecer, ou talvez estivesse apenas prestes a nos vaporizar.

— Todos vocês, sentem-se. Isso pode deixá-los tontos. Se por acaso se
sentirem enjoados, coloquem a cabeça entre os joelhos — instruiu tia Del,
como uma espécie de comissária de bordo sobrenatural. — A primeira vez é
sempre a mais difícil. — Tia Del esticou os braços para que déssemos as mãos.

— Não acredito que você está tomando parte nisso, mamãe.

Tia Del tirou a presilha do coque, deixando o cabelo cair em torno dos
ombros.

— Não seja tão certinha, Reece.

Reece revirou os olhos e pegou minha mão. Olhei para Genevieve. Ela
olhou bem para mim, para dentro de mim, e levou um dedo aos lábios como
se pedisse silêncio.

O ar começou a se dissolver ao redor de nós. Então estávamos girando
como um daqueles brinquedos de parque em que nos prendem na parede e o
troço todo roda tão rápido que você pensa que vai vomitar.

E então, imagens...

Uma depois da outra, abrindo e fechando como portas. Uma depois da
outra, segundo após segundo.

Duas garotas de vestidos brancos correndo na grama, de mãos dadas,
rindo. Laços amarelos nos cabelos.

Outra porta se abriu.

Uma jovem com pele cor de caramelo, pendurando roupas em um varal,
cantarolando baixinho, a brisa levantando os lençóis ao vento. A mulher se
vira em direção a uma grande casa de estilo federal e grita: "Genevieve!


Evangelineí"

E outra.

Uma jovem andando pela clareira ao anoitecer. Ela olha para trás para
ver se alguém a está seguindo, cabelo vermelho balançando atrás de si.
Genevieve. Ela corre para os braços de um rapaz alto e magro, um rapaz que
podia ser eu. Ele se inclina e a beija. "Eu amo você, Genevieve. E um dia
vamos nos casar. Não ligo para o que sua família diz. Não pode ser
impossível."

Ela toca os lábios dele com doçura. "Shh. Não temos muito tempo."

A porta se fecha e outra abre.

Chuva, fumaça e som de fogo estalando, comendo, respirando.
Genevieve está parada na escuridão; fumaça negra e lágrimas mancham o
rosto. Há um livro encapado de couro preto na mão dela. Não tem título, só
uma lua crescente em alto relevo na capa. Ela olha para a mulher, a mesma
que estava pendurando roupas no varal. Ivy. "Por que não tem nome?" Os
olhos da velha senhora estão cheios de medo. "Só porque um livro não tem
título, não significa que não tenha nome. Esse aí é o Livro das Luas."

A porta se fecha.

Ivy, mais velha e mais triste, parada em frente a um túmulo recém-cava-
do, com uma caixa de pinho no fundo do buraco. "Apesar de eu andar pelo
vale das sombras e da morte, não tenho medo do mal." Havia uma coisa em
sua mão. O Livro, couro preto com a lua crescente na capa. "Leve isso com
você, Srta. Genevieve. Para que não cause mal a mais ninguém." Ela joga o
livro no buraco junto com o caixão.

Outra porta.

Nós quatro sentados ao redor do buraco meio cavado, e abaixo da terra,
tão longe que só podemos ver com a ajuda de Dei, a caixa de pinho. O Livro
está sobre ela. Mais abaixo, dentro do caixão, o corpo de Genevieve, repousa
na escuridão. Os olhos dela estão fechados, a pele parece porcelana, como se
ela ainda respirasse, perfeitamente preservada de um modo que nenhum
cadáver poderia estar. O cabelo longo ruivo cai pelos ombros.

A visão volta para cima, saindo do chão. Volta para nós quatro, sentados
em volta do túmulo meio cavado, de mãos dadas. De volta para a lápide e a
imagem fraca de Genevieve, olhando para nós.

Reece gritou. A última porta bateu.




Tentei abrir meus olhos, mas estava tonto. Dei estava certa, eu sentia como se
fosse vomitar. Tentei me orientar, mas meus olhos não entravam em foco.
Senti Reece largar minha mão, se afastando de mim e tentando se afastar de
Genevieve e de seu olhar dourado apavorante.

Você está bem?

Acho que sim.

A cabeça de Lena estava entre os joelhos.

— Está todo mundo bem? — perguntou tia Del, a voz firme e segura. Tia
Del não parecia mais tão confusa e desajeitada agora. Se eu tivesse que ver
tudo isso toda vez que olhasse para alguma coisa, desmaiaria ou
enlouqueceria.

— Não consigo acreditar que é isso que você vê — falei, olhando para
Dei, meus olhos finalmente começando a se ajustar.

— O dom de uma Palimpsesta é uma grande honra e um grande peso.

— O Livro está lá embaixo — confirmei.

— É verdade, mas parece que ele pertence a esta mulher — disse Dei,
gesticulando na direção da aparição de Genevieve -, que vocês dois não
parecem particularmente surpresos de ver.

— Nós a vimos antes — admitiu Lena.

— Bem, então ela decidiu se revelar a vocês. Ver os mortos não é um dos
dons de um Conjurador, mesmo uma Natural, e certamente não está entre os
talentos de um Mortal. Só se pode ver um morto se ele quiser.

Eu estava com medo. Não do jeito que fiquei nos degraus de
Ravenwood, nem do jeito que fiquei quando Ridley estava me congelando
vivo. Era diferente. Parecia mais o medo que sentia quando acordava dos
sonhos, e quando pensava em perder Lena. Era um medo paralisante. Do
tipo que sentimos quando nos damos conta de que o fantasma poderoso de
uma Conjuradora das Trevas está olhando para você no meio da noite, vendo
você cavar o túmulo dela para roubar um livro de cima do seu caixão. O que
eu estava pensando? O que estávamos fazendo vindo aqui, cavando um
túmulo na lua cheia?

Você estava tentando consertar um erro. Havia uma voz na minha
cabeça, mas não era de Lena.

Me virei para Lena. Ela estava pálida. Reece e tia Del estavam olhando


para o que restava de Genevieve. Podiam ouvi-la também. Olhei para os
olhos dourados brilhantes enquanto imagem dela oscilava. Ela parecia sentir
o que tínhamos vindo fazer aqui.

Pegue-o.

Olhei para Genevieve, inseguro. Ela fechou os olhos e assentiu
levemente.

— Ela quer que a gente pegue o Livro — disse Lena. Acho que eu não
estava ficando louco.

— Como sabemos que podemos confiar nela? — Ela era uma
Conjuradora das Trevas, afinal. Com os mesmos olhos dourados de Ridley.

Lena olhou de volta para mim, com um brilho de excitação no olhar.

— Não sabemos.

Só havia uma coisa a fazer.

Cavar.







O Livro era exatamente como nas visões, de couro preto rachado, com uma
pequena lua crescente em relevo. Cheirava a desespero e era pesado, não
apenas física, mas psiquicamente. Era um livro das Trevas; eu sabia só pelos
segundos em que o segurei, antes de queimar as pontas dos meus dedos. Senti
que o Livro roubava um pouco da minha respiração cada vez que eu
inspirava.

Estiquei o braço para fora do buraco, erguendo-o acima da cabeça. Lena
o pegou da minha mão e saí do buraco. Eu queria sair dali o mais rápido
possível. Não tinha esquecido que estava em cima do caixão de Genevieve.

Tia Del ofegou.

— Grande Mãe, eu nunca pensei que fosse vê-lo. O Livro das Luas.
Tenham cuidado. Esse livro é velho como o tempo, talvez até mais. Macon
nunca vai acreditar que nós...

— Ele nunca vai saber. — Lena limpou a terra da capa gentilmente.

— Agora você realmente enlouqueceu. Se você acha ao menos por um
minuto que não vamos contar ao tio Macon... — Reece cruzou os braços
como uma babá irritada.

Lena ergueu o livro mais alto, em frente do rosto de Reece.


— Sobre o quê?

Lena olhava para Reece do mesmo modo que Reece tinha olhado nos
olhos de Ridley na Reunião, seriamente, com determinação. A expressão de
Reece mudou; ela parecia confusa, quase desorientada. Olhava para o Livro,
mas era como se ela não pudesse vê-lo.

— O que há para contar, Reece?

Recce fechou os olhos com força, como se estivesse tentando afastar um
sonho ruim. Abriu a boca para dizer alguma coisa, depois a fechou de
repente. Uma sombra de sorriso se insinuou no rosto de Lena enquanto ela se
virava lentamente na direção da tia.

— Tia Del?

Tia Del parecia tão confusa quanto Reece, que era como ela parecia
estar a maior parte do tempo, de qualquer maneira, mas alguma coisa estava
diferente. E ela não respondeu a Lena também.

Lena se virou um pouco e colocou o Livro em cima da minha bolsa.
Quando fez isso, vi fagulhas verdes em seus olhos e seu cabelo se moveu,
como se preso à luz da lua; a brisa Conjuradora. Era quase como se eu
pudesse ver a magia se revolvendo em torno dela no escuro. Eu não entendia
o que estava acontecendo, mas as três pareciam presas em uma conversa
escura e sem palavras que eu não conseguia ouvir nem entender.

E então acabou. A luz da lua voltou a ser a luz da lua, e a noite voltou a
ser noite. Olhei para além de Reece, para a lápide de Genevieve. Ela não
estava mais lá, como se nunca tivesse estado.

Reece mudou de posição, e sua expressão hipócrita tradicional voltou.

— Se você acha ao menos por um minuto que não vamos contar ao tio
Macon que você nos arrastou até um cemitério sem nenhuma boa razão, por
causa de um trabalho idiota de escola que você acabou nem fazendo...

De que diabos ela estava falando? Mas Reece estava falando sério. Ela
não se lembrava do que tinha acabado de acontecer tanto quanto eu não
entendia.

O que você acabou de fazer?

Tio Macon e eu temos praticado.

Lena fechou o zíper da minha bolsa com o Livro dentro.

— Eu sei. Desculpe. É que esse lugar é muito assustador à noite. Vamos
sair daqui.


Reece se virou na direção de Ravenwood, arrastando tia Del atrás de si.

— Você é tão medrosa.

Lena piscou para mim.

Praticando o quê? Controle da mente?

Pequenas coisas. Jogar pedrinhas com a força da mente. Ilusões
interiores. Feitiços do tempo, mas esses são difíceis.

Isso foi fácil?

Removi o Livro das mentes delas. Acho que se pode dizer que o apaguei.
Elas não vão se lembrar, porque, na realidade delas, nunca aconteceu.

Eu sabia que precisávamos do Livro. Sabia por que Lena precisava. Mas
de alguma forma parecia que um limite havia sido cruzado, e agora eu não
sabia onde estávamos e nem se ela poderia voltar para o ponto onde eu
estava. Onde ela costumava estar.

Reece e tia Del já estavam de volta ao jardim. Eu não precisava ser uma
Sibila para saber que Reece queria sair de lá imediatamente. Lena começou a
segui-las, mas alguma coisa me interrompeu.

L, espere.

Andei de volta até o buraco e enfiei a mão no bolso. Abri o lenço com as
iniciais familiares e ergui o medalhão em sua corrente. Nada. Nenhuma
visão, e alguma coisa me disse que não haveria mais nenhuma. O medalhão
tinha nos trazido aqui, nos mostrou o que precisávamos ver.

Segurei o medalhão sobre o túmulo. Parecia a coisa certa, uma troca
justa. Eu estava prestes a soltar quando ouvi a voz de Genevieve de novo,
mais suave desta vez.

Não. Não tem que ficar comigo.

Olhei de volta para a lápide. Genevieve estava lá de novo, o que restava
dela rompendo o nada cada vez que o vento soprava por ela. Já não parecia
tão assustadora.

Ela parecia arrasada. Como as pessoas ficavam quando perdiam a única
pessoa que amavam.

Eu entendi.














p 8 de dezembro p

d



Até a cintura













Q



uando nos metemos em encrencas, há um ponto em que ela é tanta que
a ameaça de mais encrenca nem é mais ameaça. Em determinado
momento, mergulhamos tão fundo que não temos escolha além de nadar
no meio, se é que há chance de chegar ao outro lado. Era o tipo clássico
de lógica de Link, mas eu começava a ver a lógica daquilo. Talvez não seja
possível entender até que se esteja enterrado em encrenca até a cintura.

No dia seguinte, era assim que nós estávamos, Lena e eu. Profundamente
envolvidos. Começou com a falsificação de um bilhete com um dos lápis n° 2
de Amma, depois matando aula para ler um livro roubado que não
deveríamos ter pegado, e terminou com um monte de mentiras para ganhar
pontos extras em um "trabalho" que estávamos fazendo juntos. Eu tinha
certeza de que Amma ia nos pegar dois segundos depois que eu dissesse as
palavras pontos extras, mas ela estava ao telefone com minha tia Caroline
discutindo a "condição" do meu pai.

Me senti culpado por todas as mentiras, sem mencionar o roubo a
falsificação e o apagar de mentes, mas não havia tempo para a escola;
tínhamos muito estudo de verdade para fazer.

Porque tínhamos O Livro das Luas. Era real. Eu poderia segurá-lo nas
minhas mãos...

— Ai!

Queimou minha mão, como se eu tivesse tocado em um fogão quente. O
Livro caiu no chão do quarto de Lena. Boo Radley latiu de algum lugar da
casa. Eu podia ouvir as patas enquanto ele subia as escadas, vindo em nossa


direção.

— Porta. — Lena falou sem tirar os olhos de um velho dicionário de
latim. A porta do quarto se fechou assim que Boo chegou ao segundo andar.
Ele protestou com um latido ressentido. — Fique fora do meu quarto, Boo.
Não estamos fazendo nada. Vou começar a treinar.

Olhei para a porta, surpreso. Outra aula de Macon, pensei. Lena nem
reagiu, como se tivesse feito aquilo milhares de vezes. Era como o que ela
tinha feito com Reece e tia Del na noite anterior. Eu estava começando a
pensar que quanto mais perto chegássemos do aniversário dela, mais a
Conjuradora tomaria o lugar da menina.

Eu estava tentando não reparar. Mas quanto mais tentava, mais eu
reparava.

Ela olhou para mim, que estava esfregando as mãos no jeans. Elas ainda
doíam.

— Que parte sobre "não se pode tocar se não for Conjurador" você não
entendeu?

— Certo. Essa parte.

Ela abriu um estojo surrado e tirou a viola.

— São quase cinco da tarde. Tenho que começar a treinar ou tio Macon
vai saber quando acordar. Ele sempre sabe.

— O quê? Agora?

Ela sorriu e se sentou numa cadeira no canto do quarto. Ajustou o
instrumento contra o queixo, pegou o arco e com ele tocou nas cordas. Por
um momento ela não se moveu, fechando os olhos como se estivéssemos
numa filarmônica em vez de sentados em seu quarto. E começou a tocar. A
música rastejou das mãos dela e se espalhou no quarto, movendo pelo ar
como outro dos seus poderes não-descobertos. As cortinas brancas da janela
começaram a se mexer, e ouvi a música...



Dezesseis luas, dezesseis anos,

A Lua Invocadora, a hora se aproxima,

Nessas páginas a Escuridão clareia,

Poderes Enfeitiçam o que o fogo queima.



Enquanto eu observava, Lena deslizou da cadeira e, cuidadosamente,


colocou a viola de arco onde ela estava sentada antes. Não estava tocando
mais, mas a música ainda fluía do instrumento. Ela apoiou o arco na cadeira
e se sentou ao meu lado no chão.

Shh.

Isso é treinar?

— Tio M parece não perceber a diferença. E olhe... — Ela apontou para
a porta, onde eu podia ver uma sombra e ouvir batidas rítmicas. O rabo de
Boo. — Ele gosta, e eu gosto de tê-lo em frente à minha porta. Pense que é
uma espécie de alarme antiadulto. — Ela tinha razão.

Lena se ajoelhou perto do Livro e o pegou facilmente nas mãos. Quando
ela abriu as páginas de novo, vimos a mesma coisa que tínhamos visto o dia
todo. Centenas de Conjuros, listas cuidadosas escritas em inglês, latim, galés e
outras línguas. Eu nunca tinha visto nada parecido antes. As páginas marrons
finas eram frágeis, quase transparentes. O pergaminho estava coberto de tinta
marrom, em uma caligrafia antiga e delicada. Pelo menos eu esperava que
fosse tinta.

Ela bateu o dedo na estranha escrita e me passou o dicionário de latim.

— Não é latim. Veja você mesmo.

— Acho que é galês. Você já viu alguma coisa assim antes? — Apontei
para a caligrafia rebuscada.

— Não. Talvez seja alguma espécie de língua de Conjuradores.

— Pena que não temos um dicionário de Conjuradores.

— Temos, quero dizer, meu tio deve ter. Ele tem centenas de livros de
Conjuradores na biblioteca dele. Não é nenhuma Lunae Libri, mas
provavelmente tem o que procuramos.

— Quanto tempo temos até ele acordar?

— Não o bastante.

Puxei a manga do meu moletom sobre a palma da mão e usei para pegar
o livro, como se estivesse usando uma das luvas de forno de Amma. Folheei as
páginas finas; elas se dobravam ruidosamente sob meu toque como se fossem
feitas de folhas secas em vez de papel.

— Alguma dessas coisas têm significado pra você?

Lena sacudiu a cabeça.

— Na minha família, antes de você ser Invocada, você não tem
permissão para saber de nada. — Ela fingiu meditar sobre as páginas. — Para


o caso de ir para as Trevas, acho. — Eu sabia o bastante para não perguntar
mais nada.

Página depois de página, não havia nada que pudéssemos nem começar
a entender. Havia figuras, algumas assustadoras, outras bonitas. Criaturas,
símbolos, animais, até as faces com aparência humana de alguma maneira
conseguiam parecer qualquer coisa menos humanas no Livro das Luas. Aos
meus olhos, era como uma enciclopédia de outro planeta.

Lena puxou o Livro para o colo.

— Tem tanta coisa que não sei, e é tudo tão...

— Esquisito?

Me reclinei na cama dela, olhando para o teto. Havia palavras em todo
canto, novas palavras, e números. Eu podia ver a contagem regressiva, os
números escritos na parede do quarto como acontece em uma cela de prisão.

100, 78, 50...

Quanto tempo mais conseguiríamos ficar assim? O aniversário de Lena
estava chegando, e seus poderes pareciam aumentar. E se ela estivesse certa, e
se Lena se tornasse algo irreconhecível, algo tão das Trevas que ela nem
ligaria para mim e nem me reconheceria? Olhei para a viola de arco no canto
até que eu não queria mais vê-la. Fechei os olhos e ouvi a melodia
Conjuradora. E então escutei a voz de Lena...

— "...ATÉ QUE O ESCURECER TRAGA A HORA DA
INVOCAÇÃO, NA DÉCIMA- SEXTA LUA, QUANDO A PESSOA DE
PODER TEM A LIBERDADE DE ESCOLHA E AÇÃO PARA
CONJURAR A ESCOLHA FINAL, NO FIM DO DIA, OU NO ÚLTIMO
MOMENTO DA ÚLTIMA HORA, SOB A LUA INVOCADORA..."

Olhamos um para o outro.

— Como você...? — Olhei por sobre o ombro dela. Ela virou a página.

— É inglês. Estas páginas estão escritas em inglês. Alguém começou a
traduzi-las, aqui atrás. Vê como a tinta é de cor diferente?

Ela estava certa. Até as páginas em inglês deviam ter centenas de anos. A
página estava escrita em outra caligrafia elegante, mas não era a mesma
caligrafia, e não estava escrita com mesma tinta marrom, ou fosse lá o que
fosse.

— Vá para o final.

Ela ergueu o Livro, e foi lendo:


— "A INVOCAÇÃO, DEPOIS DE CONCLUÍDA, NÃO PODE SER
DESFEITA, A

ESCOLHA, UMA VEZ CONJURADA, NÃO PODE SER
RECONJURADA. A PESSOA DE PODER CAI NAS GRANDES
TREVAS OU NA GRANDE LUZ PARA TODO O SEMPRE. SE O
TEMPO PASSA E A ÚLTIMA HORA DA DÉCIMA-SEXTA LUA PASSA
SEM A ESCOLHA, A ORDEM DAS COISAS É DESFEITA. ISSO NÃO
PODE ACONTECER. O LIVRO VAI ENFEITIÇAR TUDO QUE ESTÁ
DESENFEITIÇADO, POR TODOS OS TEMPOS."

— Então não tem mesmo como contornar esse negócio de Invocação?

— E o que tenho tentado explicar a você.

Olhei aquelas palavras que não me levavam nem um pouco mais para
perto da compreensão.

— Mas o que acontece exatamente durante a Invocação? Essa Lua
Invocadora manda algum tipo de raio Conjurador ou algo assim?

Ela passou os olhos pela página.

— Não diz exatamente. Só sei que acontece sob a lua, à meia-noite...
"NO MEIO DA GRANDE ESCURIDÃO E SOB A GRANDE LUZ, DE
ONDE TODOS NÓS VIEMOS." Mas pode acontecer em qualquer lugar.
Não é nada que se possa ver, apenas acontece. Não há nenhum raio
Conjurador envolvido.

— Mas o que acontece exatamente? — Eu queria saber tudo, e ainda
sentia que ela estava escondendo alguma coisa. Ela mantinha os olhos na
página.

— Para a maioria dos Conjuradores, é uma coisa consciente, como diz
aqui. A Pessoa de Poder, o Conjurador, Conjura a Escolha Eterna. Escolhem
se querem se Invocar da Luz ou das Trevas. É disso que se trata a liberdade
de ação e escolha, como os Mortais escolhem serem bons ou maus, só que os
Conjuradores fazem a escolha para sempre. Escolhem a vida que querem ter,
o modo como vão interagir com o universo da magia, e uns com os outros. É
um acordo que fazem com o mundo natural, com a Ordem das Coisas. Sei
que parece loucura.

— Quando se tem 16 anos? Como alguém pode saber quem é e quem
quer ser para o resto da vida com 16 anos?

— É, bem, esses são os sortudos. Eu não tenho escolha.


Quase não consegui pronunciar a pergunta seguinte.

— Então o que vai acontecer a você?

— Reece diz que você apenas muda. Acontece em um segundo, como
uma batida de coração. Você sente uma energia, uma força passando por seu
corpo, quase como se estivesse vivo pela primeira vez. — Ela parecia triste. —
Pelo menos foi o que Reece disse.

— Isso não parece tão ruim.

— Reece descreveu como um calor devastador. Disse que sentiu como se
o sol brilhasse nela e em mais ninguém. E que, naquele momento, você
simplesmente sabe qual caminho tinha sido escolhido para você. — Parecia
fácil demais, indolor demais, como se ela estivesse deixando alguma parte de
fora. Como a parte sobre como era a sensação quando um Conjurador ia
para as Trevas. Mas eu não queria falar mais, mesmo sabendo que nós dois
estávamos pensando naquilo.

Simples assim?

Simples assim. Não dói nem nada, se é o que preocupa você.

Essa era uma das coisas com as quais eu me preocupava, mas não era a
única.

Não estou preocupado.

Nem eu.

E desta vez, fizemos questão de afastar o que estávamos pensando, até
para nós mesmos.

O sol se deslocou pelo tapete trançado no chão do quarto de Lena, a luz
laranja transformando todas as cores das linhas em centenas de tons de
dourado diferentes. Por um momento, o rosto de Lena, os olhos, o cabelo,
tudo que a luz tocava se transformava em ouro. Ela era bonita, fosse a cem
anos ou a cem quilômetros de distância, e assim como os rostos no Livro, de
alguma forma não tão humana.

— O pôr do sol. Tio Macon vai levantar a qualquer minuto. Temos que
guardar o Livro. — Ela o fechou e colocou dentro da minha bolsa. — Leve.
Se meu tio achar, vai tentar esconder de mim, assim como todo o resto.

— Só não consigo entender o que ele e Amma estão escondendo. Se toda
essa coisa vai acontecer e não há nada que ninguém possa fazer para impedir,
por que não nos contam tudo?

Ela não olhava para mim. Puxei-a para meus braços e ela apoiou a


cabeça no meu peito. Não disse uma palavra, mas entre duas camadas de
camisas e moletons, eu ainda podia sentir o coração dela batendo contra o
meu.

Ela olhou para a viola até que a música foi parando, aos poucos, como o
sol na janela.







No dia seguinte na escola, estava claro que éramos as únicas pessoas
pensando em qualquer coisa que tivesse a ver com qualquer tipo de livro.
Nenhuma mão foi levantada em nenhuma aula, a não ser que alguém
precisasse de permissão para ir ao banheiro. Nenhuma caneta tocou um
pedaço de papel, a não ser que fosse para escrever um bilhete sobre quem
tinha sido convidado, quem não tinha a menor chance de ser convidado e
quem já tinha levado fora.

Dezembro significava só uma coisa na Jackson High: o baile de inverno.
Estávamos no refeitório quando Lena tocou no assunto pela primeira vez.

— Você convidou alguém para ir ao baile?

Lena não estava familiarizada com a estratégia não tão secreta de Link
de ir a todos os bailes sozinho para que pudesse flertar com a treinadora
Cross, a técnica de atletismo das meninas. Link era apaixonado por Maggie
Cross, que tinha se formado cinco anos antes e voltou depois da faculdade
para se tornar a treinadora Cross desde que estávamos no quinto ano.

— Não, gosto de fazer meus voos sozinho. — Link sorriu, a boca cheia de
batatas.

— A treinadora Cross toma conta do baile, então Link sempre vai
sozinho para poder ficar rondando-a a noite toda — expliquei.

— Não quero desapontar as damas. Elas vão lutar por mim depois que
alguém batizar o ponche.

— Nunca fui a um baile de escola antes. — Lena olhou para a bandeja
dela e mexeu no sanduíche. Parecia quase desapontada.

Eu não a tinha convidado para o baile. Não tinha ocorrido a mim que
ela ia querer ir. Tinha tanta coisa acontecendo entre nós, e cada uma delas
era tão mais importante que um baile de escola.

Link olhou para mim. Ele tinha me avisado que isso ia acontecer. "Toda


garota quer ser convidada para o baile, cara. Não tenho ideia do motivo, mas
até eu sei disso." Quem ia imaginar que Link podia mesmo estar certo,
considerando que o plano de mestre dele com a treinadora Cross nunca tinha
dado certo?

Link bebeu o resto da Coca.

— Uma garota bonita como você? Você poderia ser Rainha da Neve2.

2 O sobrenome de Savannah é Snow, o que significa neve em inglês.

Lena tentou sorrir, mas não chegou nem perto.

— O que é esse negócio de Rainha da Neve? Vocês não têm uma Rainha
do Baile como em todos os lugares?

— Não. Esse é o baile de inverno, então é uma Rainha do Gelo, mas a
prima da Savannah, Suzanne, ganhou todos os anos até se formar e
Savannah ganhou ano passado, então todo mundo chama de Rainha da
Neve . — Link esticou a mão e pegou uma fatia de pizza do meu prato.

Era bem óbvio que Lena queria ser convidada. Outra coisa misteriosa
sobre as garotas: elas querem ser convidadas para coisas, mesmo que não
queiram ir. Mas eu tinha a sensação de que esse não era o caso de Lena. Era
quase como se ela tivesse uma lista com o que imaginava que uma garota
normal tinha de fazer na escola e estava determinada a fazê-las. Era loucura.
O baile era o último lugar onde eu queria ir agora. Não éramos as pessoas
mais populares na ]ackson ultimamente. Eu não me importava que todo
mundo olhasse quando a gente andava pelo corredor, mesmo se não
estivéssemos de mãos dadas. Eu não me importava que as pessoas
provavelmente estivessem dizendo coisas agora, coisas cruéis, enquanto nós
três estávamos sentados sozinhos na única mesa vazia do refeitório lotado, ou
que um clube inteiro de Anjos da Jackson estivesse patrulhando os corredores
só esperando que fizéssemos besteira.

Mas o problema é que, antes de Lena, eu teria me importado. Estava
começando a me perguntar se talvez eu estivesse sob a influência de algum
feitiço.

Eu não faço isso.

Eu não disse que você fazia.

Acabou de dizer.

Eu não disse que você tinha Conjurado um feitiço. Apenas disse que
talvez eu estivesse sob o efeito de um.


Acha que sou Ridley?

Acho que... esqueça.

Lena examinou meu rosto com ainda mais atenção, como se estivesse
tentando lê-lo. Talvez ela pudesse fazer isso também agora, considerando o
que eu já tinha visto.

O quê?

Aquilo que você disse na manhã depois do Halloween no seu quarto.
Você estava falando sério, L?

Que coisa?

O escrito da parede.

Que parede?

A parede do seu quarto. Não aja como se não soubesse do que estou
falando. Você disse que estava se sentindo do mesmo jeito que eu.

Ela começou a mexer no cordão.

Não sei do que você está falando.

Gostar.

Gostar?

Gostar... você sabe.

O quê?

Deixa pra lá.

Diga, Ethan.

Acabei de dizer.

Olhe pra mim.

Estou olhando bem pra você.

Olhei para meu leite com achocolatado.

— Entendeu? Savannah Snow? Rainha da Neve? — Link colocou sorvete
de baunilha em cima da batata frita.

Lena viu meu olhar e ficou vermelha. Esticou a mão por baixo da mesa.
Peguei a mão dela, depois quase puxei a minha de tão forte que foi o choque
quando encostei nela. Era mesmo como enfiar a mão numa tomada. Pelo
modo como ela me olhava, mesmo eu não ouvindo o que ela estava dizendo,
eu saberia.

Se tem alguma coisa a dizer, Ethan, diga.

É. Isso.

Diga.


Mas não precisávamos dizer. Estávamos sozinhos, no meio do refeitório
lotado, no meio de uma conversa com Link. Nós dois não tínhamos nem mais
ideia do que Link estava falando.

— Entendeu? Só é engraçado porque é verdade. Sabe, Rainha da Neve,
Savannah é exatamente assim.

Lena soltou minha mão e jogou uma cenoura em Link. Ela não
conseguia parar de sorrir. Ele pensou que ela estava sorrindo para ele.

— Tá, entendi, Rainha da Neve. Ainda assim é idiota.

Link enfiou o garfo na gororoba em sua bandeja.

— Não faz sentido. Nem neva aqui.

Link sorriu para mim sobre a batata frita com sorvete.

— Ela está com ciúmes. E melhor você tomar cuidado. Lena só quer ser
eleita Rainha do Gelo para poder dançar comigo quando me elegerem Rei do
Gelo.

Sem conseguir se controlar, ela riu.

— Com você? Pensei que você estava se guardando para a técnica de
atletismo.

— Estou, e esse vai ser o ano em que ela vai se apaixonar por mim.

— Link passa a noite toda tentando pensar em coisas divertidas para
dizer quando ela passa.

— Ela me acha engraçado.

— Acha sua cara engraçada.

— Esse é meu ano. Posso sentir. Vou ser Rei do Gelo esse ano, e a
treinadora Cross vai finalmente me ver no palco com Savannah Snow.

— Não consigo ver como isso vai acontecer. — Lena começou a
descascar uma laranja.

— Ah, você sabe, ela vai ficar encantada com minha aparência e charme
e talento musical, especialmente se você escrever uma música pra mim. Então
ela vai ceder e dançar comigo e me seguir até Nova York depois da formatura
para ser minha groupie.

— O que é isso, um filme de sessão da tarde? — A casca da laranja caiu
em espiral.

— Sua namorada acha que sou especial, cara. — Batatas caíam da boca
dele.

Lena olhou para mim. Namorada. Nós dois o ouvimos falar.


É isso que sou?

É isso que você quer ser?

Você está me perguntando alguma coisa?

Não era a primeira vez que eu pensava naquilo. Lena já parecia ser
minha namorada há algum tempo. Quando se levava em conta tudo que
tínhamos passado juntos, era meio que óbvio. Então não sei por que eu nunca
tinha falado, e não sei por que era tão difícil dizer agora. Mas havia alguma
coisa em dizer as palavras que tornariam tudo mais real.

Acho que estou.

Você não parece muito seguro.

Peguei a outra mão dela embaixo da mesa e olhei em seus olhos verdes.

Tenho certeza, L.

Então acho que sou sua namorada.

Link ainda estava falando.

— Vocês vão achar que sou especial quando a treinadora Cross ficar
dando em cima de mim no baile. — Link ficou de pé e jogou fora o que
sobrou na bandeja.

— Só não que minha namorada vai dançar com você. — Joguei fora o
que sobrou na minha.

Os olhos de Lena se iluminaram. Eu estava certo: ela não só queria que
eu convidasse, ela queria ir. Naquele momento, eu soube que não me
importava mais com o que estava na lista dela de coisas que uma garota
normal de escola deve fazer. Eu ia me certificar que ela fizesse tudo que
estava na lista.

— Vocês vão?

Olhei para Lena com expectativa e ela apertou minha mão.

— É, acho que sim.

Dessa vez ela sorriu de verdade.

— E Link, que tal se eu dançar com você duas vezes? Meu namorado
não vai se importar. Ele jamais me diria com quem posso e não posso dançar.

Revirei os olhos. Link ergueu o punho e bati meus dedos fechados contra
os dele.

— É, aposto que sim.

O sinal tocou e o almoço acabou. Assim, de repente, eu não só tinha um
par para o baile de inverno, mas também uma namorada. E não apenas uma


namorada, pela primeira vez na minha vida quase usei a palavra que começa
com A. No meio do refeitório, em frente a Link.

Isso é que é almoço interessante.




































































p 13 de dezembro p

d



Derretendo















— N



ão vejo por que ela não pode encontrar você aqui. Eu estava
esperando ver a sobrinha de Melchizedek toda arrumadinha
com o vestido de baile.

Eu estava parado na frente de Amma para ela poder amarrar minha
gravata borboleta. Amma era tão baixa que precisava subir três degraus da
escada para alcançar meu colarinho. Quando eu era criança, ela costumava
me pentear e arrumar minha gravata antes de irmos à igreja aos domingos.
Sempre parecia orgulhosa, e era assim que estava me olhando agora.

— Desculpe. Não temos tempo para uma sessão de fotos. Vou pegá-la em
casa. O cara tem que buscar a garota, lembra? — Seria engraçado,
considerando que eu ia pegá-la com o Lata-Velha. Link ia pegar uma carona
com Shawn. Os caras do time ainda guardavam um lugar para ele na nova
mesa de almoço, apesar de ele normalmente sentar comigo e coro Lena.

Amma puxou minha gravata e deu uma risada. Não sei o que ela achava
tão engraçado, mas me irritou.

— Está apertada demais. Está me enforcando. — Tentei enfiar um dedo
entre meu pescoço e o colarinho da roupa alugada do Buck’s Tux, mas não
consegui.

— Não é a gravata, você está nervoso. Vai dar tudo certo. — Ela me
examinou com aprovação, como eu imagino que minha mãe faria se estivesse
aqui. — Agora me deixe ver essas flores.

Peguei atrás de mim uma pequena caixa com uma rosa vermelha e flores
do campo em volta. Eu achava feio, mas não dava para conseguir nada muito


melhor da Gardens of Eden, a única floricultura de Gatlin.

— As flores mais sem graça que já vi. — Amma deu uma olhada e as
jogou na lata de lixo no pé da escadaria. Ela me deu as costas e desapareceu
na cozinha.

— Por que você fez isso?

Ela abriu a geladeira e pegou um corsage de pulso, pequeno e deiicado.
Jasmim-estrela branco e alecrim selvagem, amarrados com um laço claro
prateado. Prateado e branco, as cores do baile de inverno. Era perfeito.

Eu sabia que Amma não gostava do meu relacionamento com Lena, mas
ela tinha feito isso mesmo assim. Fizera por mim. Era algo que minha mãe
teria feito. Só depois que minha mãe morreu, eu me dei conta do quanto
contava com Amma, do quanto sempre contara. Ela era a única coisa que
tinha me mantido na superfície. Sem ela, eu provavelmente teria me afogado,
como meu pai.

— Tudo tem um significado. Não tente transformar uma coisa selvagem
em algo domado.

Segurei o corsage perto da lâmpada da cozinha. Senti a extensão do laço,
apalpando de leve com meus dedos. Debaixo do laço havia um pequeno osso.

— Amma!

Ela deu de ombros.

— O quê, você vai criar caso com um ossinho de cemitério tão pequeno
assim? Depois de tanto tempo crescendo nessa casa, depois de ver as coisas
que você já viu, onde está seu juízo? Um pouco de proteção nunca fez mal a
ninguém. Nem a você, Ethan Wate.

Suspirei e coloquei o corsage de volta na caixa.

— Também amo você, Amma.

Ela me deu um abraço de esmagar ossos, então desci os degraus
correndo e entrei na noite.

— Tome cuidado, ouviu? Não se deixe levar.

Eu não tinha ideia do que Amma estava falando, mas sorri para ela
mesmo assim.

— Sim, senhora.

A luz do escritório do meu pai estava acesa quando me afastei dirigindo.
Me perguntei se ele ao menos sabia que hoje era o baile de inverno.






Quando Lena abriu a porta, meu coração quase parou, o que era algo
notável, considerando que ela nem estava me tocando. Eu sabia que ela
estava como nenhuma outra das garotas do baile estaria hoje. Só havia dois
tipos de vestido de baile no condado de Gatlin, e todos vinham de apenas
duas lojas: Little Miss, o fornecedor local de vestidos para desfiles, e Southern
Belle, a loja de noivas a duas cidades de distância.

As garotas que iam até o Little Miss usavam vestidos vulgares com rabo
de sereia, cheios de fendas, decotes generosos e lantejoulas; essas eram as
garotas com quem Amma jamais me deixaria ser visto num piquenique da
igreja, muito menos no baile de inverno. Eram as misses da cidade ou as
filhas de ex-misses, como Eden, cuja mãe tinha sido a primeira substituta da
Miss Carolina do Sul, ou, mais frequentemente, apenas as filhas de mulheres
que desejavam ter sido misses. Eram as mesmas garotas que em algum
momento veríamos com bebês no colo na formatura da Jackson High School
em dois anos.

Os vestidos da Southern Belle eram vestidos do estilo de Scarlett 0'Hara,
com formatos de sinos gigantes. As garotas Southern Belle eram as filhas das
senhoras do FRA e do Auxilio das Mulheres — as Emily Asher e Savannah
Snow —, e você podia levá-las a qualquer lugar se aguentasse tudo, se as
aguentasse e se aguentasse o modo como parecia que você estava dançando
com uma noiva em seu próprio casamento.

Independentemente de quem estivesse usando, tudo era brilhoso, era
colorido e envolvia muitos acabamentos metálicos e um tom específico de
laranja que chamavam de Pêssego de Gatlin, que provavelmente era
exclusivo de vestidos brega de damas-de-honra em todos os outros lugares
menos no condado de Gatlin.

Para os garotos, a pressão era menos óbvia, mas não era mais fácil.
Tínhamos que combinar, geralmente com nosso par, o que podia envolver o
temido Pêssego de Gatlin. Neste ano, o time de basquete ia com gravatas
borboleta prateadas e faixas de cintura prateadas também, o que os poupava
da humilhação de gravatas borboleta rosa, roxa ou pêssego.

Lena certamente nunca tinha usado Pêssego de Gatlin em toda sua vida.
Quando olhei pra ela, meus joelhos fraquejaram, uma sensação que estava
começando a se tornar familiar. Estava tão linda que doía.


Uau.

Gostou?

Ela deu uma voltinha. Seu cabelo caía em cachos em torno dos ombros,
comprido e cascateando, preso com grampos brilhantes, de uma daquelas
formas mágicas que as garotas têm de fazer o cabelo parecer que deveria estar
preso, mas também meio solto. Eu queria passar meus dedos entre os fios,
mas não ousava tocá-la, nem um fio de cabelo. O vestido de Lena caía sobre
o corpo, justo nos lugares certos, mas sem parecer coisa do Little Miss, em um
tecido prateado, tão deiicado quanto uma teia de aranha prateada, tecida por
aranhas prateadas.

Foi mesmo? Tecido por aranhas prateadas?

Quem sabe? Pode ser. Foi um presente do tio Macon.

Ela riu e me puxou para dentro de casa. Até Ravenwood parecia refletir
o tema de inverno do baile. Hoje, o hall de entrada parecia com a Hollywood
antiga; o piso era preto e branco, quadriculado, e flocos de neve prateado
brilhavam, flutuando no ar sobre nós. Uma mesa laqueada preta estava em
frente às cortinas prateadas iridescentes, e mais para trás, eu podia ver uma
coisa que brilhava como o oceano, mesmo sabendo que não podia ser. Velas
bruxuleantes flutuavam acima da mobília, criando pequenas piscinas de luz
da lua para onde quer que eu olhasse.

— É mesmo? Aranhas?

Eu podia ver a luz das velas refletidas em seus lábios brilhantes. Tentei
não pensar nisso. Tentei não querer beijar o pequeno crescente na bochecha
dela. Um brilho prateado sutil cintilava em seus ombros, rosto e cabelo. Até
mesmo a marca de nascença parecia estar prateada hoje.

— Estou brincando. Provavelmente é só uma coisa que ele achou em
uma lojinha em Paris ou Roma ou Nova York. Tio Macon gosta de coisas
bonitas. — Ela tocou o medalhão de prata em forma de lua crescente no
pescoço, acima da corrente de recordações. Outro presente de Macon,
deduzi.

A fala arrastada familiar veio do corredor escuro, acompanhada de uma
vela de prata.

— Budapeste, não Paris. Fora isso, me declaro culpado. — Macon surgiu
usando paletó com calça preta e uma camisa branca. Os botões prateados da
camisa brilhavam com a luz da vela.


— Ethan, eu teria grande apreço se você pudesse ter todo cuidado do
mundo com minha sobrinha hoje. Como você sabe, prefiro que ela fique em
casa à noite. — Ele me entregou um corsage para Lena, um pequeno arranjo
de jasmim-estrela. — Todo cuidado possível.

— Tio M! — Lena parecia irritada.

Olhei para o corsage mais de perto. Um anel de prata estava pendurado
no alfinete que prendia as flores. Tinha uma inscrição em uma língua que
não entendi, mas reconheci do Livro das Luas. Eu não precisava ver muito de
perto para saber que era o anel que ele usava dia e noite, até agora. Peguei o
corsage, era quase idêntico ao de Amma. Considerando as centenas de
Conjuradores a quem o anel provavelmente devia ter pertencido e todos os
Grandes de Amma, não havia um espírito na cidade que mexeria conosco.
Eu esperava.

— Acho que, entre Amma e o senhor, Lena vai sobreviver sem
problemas ao baile de inverno da Jackson High.

Eu sorri. Macon não.

— Não é com o baile que me preocupo, mas fico agradecido a Amarie
mesmo assim.

Lena franziu a testa, olhando do tio para mim. Talvez nós não
parecêssemos ser os dois caras mais felizes da cidade.

— Sua vez. — Ela pegou uma flor de lapela de cima da mesa, uma rosa
branca com um pequeno ramo de jasmim, e a prendeu no meu paletó. —
Gostaria que vocês parassem de se preocupar por um minuto. Está ficando
constrangedor. Posso cuidar de mim mesma.

Macon não pareceu convencido.

— Em todo caso, eu não ia querer que ninguém se machucasse.

Eu não sabia se ele estava se referindo às bruxas da Jackson High ou à
poderosa Conjuradora das Trevas, Sarafine. Seja qual fosse, eu já tinha visto
o bastante nos últimos meses para levar um aviso daqueles a sério.

— E traga-a de volta à meia-noite.

— É alguma hora poderosa para Conjuradores?

— Não. É a hora que ela tem que voltar mesmo. Segurei um sorriso.








Lena parecia ansiosa no caminho até a escola. Ficou sentada ereta no banco
da frente, mexendo no rádio, no vestido, no cinto de segurança.

— Relaxe.

— É loucura nós irmos hoje? — Lena olhou para mim com expectativa.

— Como assim?

— Quero dizer que todo mundo me Odeia. — Ela olhou para as mãos.

— Você quer dizer que todo mundo nos Odeia.

— Certo, todo mundo nos Odeia.

— Não temos que ir.

— Não, eu quero ir. Esse é o ponto... — Ela mexeu no corsage no punho
algumas vezes. — Ano passado, Ridley e eu tínhamos planejado de irmos
juntas. Mas aí...

Eu não pude ouvir a resposta dela, nem mesmo na minha cabeça.

— As coisas já tinham dado errado naquela época. Ridley fez 16 anos.
Depois ela foi embora e eu tive que sair da escola.

— Bom, não estamos no ano passado. É só um baile. Nada deu errado.
Ela franziu a testa e fechou o espelho.

Ainda não.







Quando entramos no ginásio, até eu fiquei impressionado com o quanto o
Conselho Estudantil deve ter trabalhado duro durante todo o final de
semana. A Jackson estava completamente imersa no conceito de Sonho de
uma Noite de Inverno. Centenas de pequenos flocos de neve de papel (alguns
brancos, alguns brilhando com alumínio, glitter, lantejoulas e qualquer outra
coisa que brilhasse) estavam pendurados no teto do ginásio com linha de
pesca. Neve feita de flocos de sabonete rolava nos cantos do ginásio, e luzes
brancas que piscavam estavam penduradas nas vigas.

— Oi, Ethan. Lena, você está linda. — A treinadora Cross nos deu copos
de ponche de pêssego. Estava usando um vestido preto que mostrava um
pouco demais as pernas, pensei, já preocupado com Link.

Olhei para Lena, pensando nos flocos de neve prateados flutuando no ar
em Ravenwood, sem linha de pesca ou papel alumínio. Ainda assim, os olhos
dela brilhavam e ela segurava minha mão com força, como se fosse uma


criança na primeira festa de aniversário. Eu nunca acreditei em Link quando
ele dizia que bailes de escola tinham algum tipo de efeito inexplicável nas
garotas. Mas estava claro que era verdade, afetavam todas as garotas,
incluindo as Conjuradoras.

— É lindo. — Honestamente, não era. Era apenas um típico baile da
Jackson, mas acho que para Lena, isso era algo lindo. Talvez a mágica não
estivesse na magia quando se crescia acostumada com ela.

Então ouvi uma voz familiar. Não podia ser.

— Vamos começar essa festa!

Ethan, olhe...

Eu me virei e quase engasguei com o ponche. Link sorriu para mim,
vestindo o que parecia um smoking prateado. Usava uma daquelas camisetas
com um desenho da frente de um smoking por baixo e o Ali Star preto de
cano alto. Parecia um artista de rua de Charleston.

— Oi, Palitinho! Oi, prima! — Ouvi a voz inconfundível de novo, acima
da multidão, acima do DJ, acima da batida do baixo e dos casais na pista de
dança. Mel, açúcar, melado e pirulitos de cereja, tudo misturado. Foi a única
vez na minha vida que achei algo doce demais.

A mão de Lena apertou mais a minha. De braço dado com Link,
inacreditavelmente, no menor pedaço de tecido de lantejoula prateada que já
se usou para um baile na Jackson High, talvez para qualquer baile, estava
Ridley. Eu nem sabia para onde olhar; ela era toda pernas e curvas e cabelo
louro para todo lado. Eu podia sentir a temperatura do ambiente subindo só
de olhar para ela. Pelos inúmeros caras que tinham parado de dançar com
seus pares que pareciam adereços de bolo de noiva, e que estavam furiosas, eu
não era o único. Em um mundo onde todos os vestidos de baile vinham de
uma de duas lojas, Ridley tinha ultrapassado até as que usavam um Little
Miss. Ela fazia a treinadora Cross parecer uma Madre Superiora. Em outras
palavras, Link estava ferrado.

Lena olhou de mim para a prima dela, com hostilidade.

— Ridley, o que você está fazendo aqui?

— Prima. Finalmente conseguimos vir ao baile. Você não está
empolgada? Isso não é fantástico?

Eu podia ver o cabelo de Lena começar a se mexer com o vento
inexistente. Ela piscou e meia fileira de luzes se apagou. Eu tinha que agir


rápido. Puxei Link para perto da tigela de ponche.

— O que você está fazendo com ela?

— Cara, você acredita? Ela é a garota mais gostosa de Gatlin, sem querer
ofender. E ela estava lá no Pare & Roube quando entrei para comprar Slim
Jims antes de vir para cá. Já estava até de vestido.

— Você não acha isso meio estranho?

— Você acha que eu ligo?

— E se ela for algum tipo de psicopata?

— Você acha que ela vai me amarrar ou algo assim? — Ele sorriu, já
imaginando.

— Não estou brincando.

— Você está sempre brincando. O que foi? Ah, entendi, você está com
ciúme. Porque pelo que me lembro, você entrou no carro dela rapidinho.
Não me diga que você tentou ficar com ela...

— Lógico que não. Ela é prima de Lena.

— Não importa. Só sei que estou no baile com a gostosa mais gostosa dos
três condados. É igual às chances de um meteoro cair nessa cidade. Nunca vai
acontecer de novo. Fica tranquilo, tá bom? Não estrague isso para mim. —
Ele já estava sob o feitiço dela, não que ela precisasse se esforçar muito com
Link. Não importava o que eu dissesse.

Fiz outra tentativa pouco enérgica.

— Ela é problema, cara. Está virando sua cabeça. Vai usar você e depois
jogar fora quando tiver terminado.

Ele segurou meus ombros com as duas mãos.

— Que use.

Link passou o braço ao redor da cintura de Ridley e foi para a pista de
dança. Nem olhou para a treinadora Cross ao passar por ela.

Puxei Lena em outra direção, para o canto onde o fotógrafo tirava fotos
dos casais em frente a uma montanha de neve falsa com um boneco de neve
falso, enquanto integrantes do Conselho Estudantil se revezavam sacudindo
neve falsa no cenário. Dei de cara com Emily.

Ela olhou para Lena.

— Lena. Você está... brilhosa.

Lena olhou para ela.

— Emily. Você está... inchada.


Era verdade. Emily "Odeio-Ethan" Southern Belle parecia uma torta de
creme dourada e pêssego, estufada, enfeitada e decorada com tafetá. O
cabelo, em cachos anelados assustadores, parecia feito de fitilho amarelo. O
rosto parecia ter sido esticado um pouco demais quando ela foi fazer o cabelo
no Snip ‘n’ Curl, como se tivesse sido esfaqueada na cabeça muitas vezes com
grampos.

O que será que tinha visto de interessante nelas?

— Eu não sabia que seu tipo dançava.

— Dançamos. — Lena olhava para ela.

— Em volta de uma fogueira? — O rosto de Emily se contorceu em um
sorriso malvado.

O cabelo de Lena começou a se mover de novo.

— Por quê? Está procurando uma fogueira para poder queimar seu
vestido? — O resto da fileira de luzes se apagou. Eu via o Conselho Estudantil
correndo para verificar as ligações elétricas.

Não a deixe vencer. Ela é a única bruxa aqui.

Ela não é a única, Ethan.

Savannah apareceu ao lado de Emily, arrastando Earl a seu lado. Ela
estava exatamente como Emily, só que de prateado e rosa em vez de prateado
e pêssego. A saia era tão volumosa quanto a de Emily. Se a gente apertasse os
olhos, dava para visualizar o casamento das duas agora. Era apavorante.

Earl olhou para o chão, tentando evitar contato visual comigo.

— Vamos, Em, estão anunciando a Corte Real. — Savannah olhou para
Emily de forma expressiva.

— Não me deixe atrapalhar vocês. — Savannah apontou para a fila para
tirar fotos. — Será que você vai aparecer nas fotos, Lena? — Ela saiu farfa-
Ihando, arrastando o enorme vestido.

— Próximos!

O cabelo de Lena ainda estava se mexendo.

São umas idiotas. Não importa. Nada disso importa.

Ouvi a voz do fotógrafo de novo.

— Próximos!

Peguei a mão de Lena e a puxei para o monte de neve falsa. Ela olhou
para mim, os olhos cheios de nuvens. E então as nuvens se foram, e ela estava
de volta. Pude sentir a tempestade se acalmar.


— Marca na neve — ouvi alguém dizer atrás de nós,

Você está certo. Não importa.

Me inclinei para beijá-la.

O que importa é você.

Nos beijamos, e um flash de câmera piscou. Por um segundo, um
segundo perfeito, pareceu que não havia mais ninguém no mundo e nada
mais importava.

Houve a luz cegante de uma lâmpada e depois uma coisa grudenta
estava caindo de todos os lados, sobre nós dois.

Mas o que...?

Lena ofegou. Tentei limpar o grude dos meus olhos, mas ele estava por
toda a parte. Quando vi Lena, foi muito pior, o cabelo, o rosto, o lindo
vestido. O primeiro baile dela. Arruinado.

Estava fazendo espuma, com a consistência de massa da panqueca,
pingando de um balde sobre nossas cabeças, aquele que deveria soltar os
flocos falsos de neve para que, lentamente, caíssem durante a foto. Olhei para
cima, mas recebi mais gosma no rosto. O balde caiu no chão.

— Quem pôs água na neve? — O fotógrafo estava furioso. Ninguém disse
uma palavra, e eu estava disposto a apostar que os Anjos da Jackson não
tinham visto nada.

— Ela está derretendo! — alguém gritou.

Estávamos em uma poça de sabão branco ou cola ou sei lá o quê,
desejando que pudéssemos encolher até desaparecer; pelo menos, foi assim
que deve ter parecido para a multidão parada ao nosso redor, rindo.
Savannah e Emily estavam na lateral, apreciando cada minuto do que
provavelmente era o momento mais humilhante da vida de Lena.

Um cara gritou mais alto do que o ruído ambiente.

— Vocês deviam ter ficado em casa.

Eu reconheceria aquela voz idiota em qualquer lugar. Eu a ouvi vezes o
bastante na quadra, o único lugar em que ele a usava. Earl estava sussurrando
no ouvido de Savannah, o braço em torno dos ombros dela.

Eu surtei. Voei tão rápido que Earl nem me viu ir para cima dele. Enfiei
meu punho coberto de sabão na sua mandíbula e ele caiu no chão,
derrubando Savannah de bunda no chão com a saia armada para cima.

— Mas que diabos? Você enlouqueceu, Wate? — Earl começou a se


levantar, mas eu o empurrei de novo para baixo com o pé.

— É melhor você ficar aí embaixo.

Earl se sentou e puxou o colarinho do paletó para ajeitá-lo, como se
ainda pudesse ficar bem sentado no chão do ginásio.

— É bom você saber o que está fazendo.

Mas ele não se levantou. Podia dizer o que quisesse, mas nós dòis
sabíamos que se ele levantasse, ele era o único que ia acabar de novo no chão.

— Eu sei. — Puxei Lena da gosma branca que deveria apenas ser neve
falsa.

— Vamos, Earl, estão anunciando a Corte Real — disse Savannah,
irritada. Earl se levantou e se endireitou.

Limpei meus olhos e balancei o cabelo molhado. Lena ficou parada
tremendo, pingando neve falsa que parecia cal. Até mesmo no meio da
multidão havia um círculo vazio em torno dela. Ninguém ousava chegar
perto demais, só eu. Tentei limpar seu rosto com a manga da minha camisa,
mas ela se afastou.

É sempre assim.

— Lena.

Eu devia saber.

Ridley apareceu ao lado dela, com Link logo atrás. Estava furiosa, eu
podia perceber ao menos isso.

— Não entendo, prima. Não vejo por que você quer estar perto da
espécie deles. — Ela cuspiu as palavras, parecendo Emily falando. —
Ninguém nos trata assim, seja da Luz ou das Trevas, nem um deles. Onde
está seu respeito próprio, Lena?

— Não vale a pena. Hoje não. Só quero ir pra casa. — Lena estava com
vergonha demais para sentir tanta raiva quanto Ridley. Era lutar ou fugir, e
agora Lena estava escolhendo fugir. — Me leve para casa, Ethan.

Link tirou o paletó prateado e o colocou nos ombros dela.

— Isso foi uma sacanagem.

Ridley não conseguia se acalmar, ou não queria.

— Eles são ruins, prima, com exceção do Palitinho. E do meu novo
namorado, Shrinky Dink.

— Link Já falei que meu nome é Link.

— Cale a boca, Ridley. Ela já passou por muita coisa. — O efeito da


Sirena não estava funcionando mais em mim.

Ridley se virar para me olhar e sorriu, um sorriso maldoso.

— Pensando bem, já estou de saco cheio.

Segui o olhar dela. A Rainha do Gelo e sua Corte tinham ido até o palco
e estavam sorrindo lá de cima. Mais uma vez, Savannah era a Rainha da
Neve. Nada mudava. Ela estava sorrindo para Emily, mais uma vez a
Princesa do Gelo, assim como no ano passado.

Ridley tirou os óculos de estrela de cinema, só um pouco. Seus olhos
começaram a brilhar. Quase dava para sentir o calor saindo deles. Um
pirulito apareceu em sua mão, e senti o cheiro doce intenso e enjoativo no ar.

Não, Ridley.

Não se trata de você, prima. É maior do que isso. As coisas estão prestes
a mudar nessa cidadezinha de merda.

Eu podia ouvir a voz de Ridley na minha cabeça tão claramente quanto
a de Lena. Balancei a cabeça.

Deixa pra lá, Ridley. Você só vai piorar as coisas.

Abra os olhos; não pode piorar. Ou talvez possa.

Ela bateu no ombro de Lena.

Observe e aprenda.

Ela estava olhando para a Corte Real, chupando o pirulito de cereja.
Torci para que estivesse escuro o bastante para que eles não vissem seus
apavorantes olhos de gato.

Não! Eles vão me culpar, Ridley. Não.

Gat-lixo precisa aprender uma lição. E sou eu que vou ensinar.

Ridley andou em direção ao palco, os saltos brilhosos estalando ao bater
no chão.

— Ei, gata, aonde você vai? — Link estava bem atrás dela.

Charlotte estava subindo a escada, em metros de tafetá lilás brilhoso
pequeno demais para ela, em direção à coroa de plástico brilhante e à posição
tradicional de Corte Real, atrás de Eden — Donzela do Gelo, eu acho.
Quando ela estava dando o último passo, o gigantesco vestido lilás ficou preso
na ponta do degrau, e quando subiu o último degrau, a parte de trás do
vestido rasgou bem na costura mal-feita. Charlotte levou alguns segundos
para se dar conta e, nessa hora, metade da escola estava olhando para sua
calcinha rosa do tamanho do estado do Texas. Charlotte deu um grito


arrepiante de agora-todo-mundo-sabe-o-quanto-sou-gorda.

Ridley sorriu.

Opa!

Ridley, para!

Só estou começando.

Charlotte estava gritando, enquanto Emily, Eden e Savannah tentavam
escondê-la com seus próprios vestidos de casamento versão adolescente. O
som de um disco arranhado surgiu nas caixas de som quando o disco que
estava tocando de repente mudou para os Stones.

"Sympathy for the Devil." Podia ser a música-tema de Ridley. Ela estava
se apresentando, e daria um espetáculo.

As pessoas da pista de dança simplesmente concluíram que devia ser
mais um erro de Dickey Wix, que estava prestes a se tornar o DJ de 35 anos
mais famoso no circuito de bailes. Mas eles eram a piada. Nem pense em
fileiras de lâmpadas se apagando; em segundos, todas as lâmpadas sobre o
palco e as sobre a pista de dança começaram a estourar, uma a uma, como
dominó.

Ridley levou Link para a pista de dança, e ele a rodopiou enquanto
alunos da Jackson gritavam, empurrando uns aos outros para sair dali, sair de
baixo da chuva de cacos dê lâmpada. Tenho certeza de que todos acharam
que estavam no meio de um desastre de fiação elétrica pelo qual Red Sweet, o
único eletricista de Gatlin, levaria a culpa. Ridley jogou a cabeça para trás,
gargalhando e girando em torno de Link com aquele vestidinho minúsculo.

Ethan, temos que fazer alguma coisa!

O quê?

Era tarde demais para fazer qualquer coisa. Lena se virou e correu, e fui
logo atrás. Antes que chegássemos às portas do ginásio, os dispositivos contra
incêndio se acionaram, ao longo de todo o teto. Choveu água no ginásio. O
equipamento de áudio começou a dar curto, brilhando como uma
eletrocução prestes a acontecer. Flocos de neve molhados caíam no chão
virando panquecas encharcadas, e a neve de sabão virou uma bagunça de
espuma.

Todos começaram a gritar, e garotas com rimei borrado e cumes de
cabelo pingando correram para a porta em suas saias de tafetá encharcadas.
Na bagunça, não dava para diferenciar uma Little Miss de uma Southern


Belle. Todas pareciam ratos afogados em tons pastéis.

Quando cheguei à porta, ouvi um barulho alto. Me virei para o palco na
hora em que o floco gigante de glitter do cenário caiu. Emily perdeu o
equilíbrio no palco escorregadio. Ainda acenando para a multidão, ela tentou
se equilibrar, mas seus pés escorregaram e ela caiu no chão do ginásio.
Desabou em uma pilha de tafetá pêssego e prata. A treinadora Cross foi
correndo.

Eu não senti pena dela, mas sentia das pessoas que seriam culpadas por
esse pesadeio: o Conselho Estudantil pelo cenário perigosamente instável,
Dickey Wix por capitalizar na infelicidade de uma líder de torcida gorda de
calcinha e Red Sweet pelo nada profissional e potencialmente ameaçador
trabalho com as luzes no ginásio da Jackson High.

Vejo você depois, prima. Isso foi até melhor do que um baile.

Empurrei Lena pela porta na minha frente.

— Vá!

Ela estava tão fria que eu mal conseguia tocá-la. Quando chegamos ao
carro, Boo Radley estava nos alcançando.

Macon não devia ter se preocupado com a hora dela voltar para casa.
Não passava nem das 21 horas.

Macon estava furioso, ou talvez estivesse apenas preocupado. Eu não
sabia qual, porque toda vez que ele olhava para mim, eu olhava para o outro
lado. Nem Boo ousava olhar para ele enquanto estava deitado aos pés de
Lena, batendo o rabo no chão.

A casa não parecia mais com o baile. Aposto que Macon jamais
permitiria que um floco de neve prateado passasse pelas portas de
Ravenwood novamente. Tudo estava preto agora. Tudo: o piso, a mobília, as
cortinas, o teto. Só o fogo na lareira ardia firmemente, iluminando o
aposento. Talvez a casa refletisse os humores variados dele, e esse era bem
sombrio.

— Cozinha! — Uma caneca preta de chocolate quente apareceu na mão
de Macon. Ele a passou para Lena, que estava enrolada em um cobertor de lã
em frente ao fogo. Ela pegou a caneca com as duas mãos, o cabelo molhado
preso atrás das orelhas, se aproximando do calor. Ele andava em frente a ela.
— Você devia ter ido embora no momento em que a viu, Lena.

— Eu estava meio ocupada sendo encharcada de sabão e virando motivo


de piada na frente da escola inteira.

— Bem, você não vai mais ficar ocupada. Está de castigo até seu
aniversário, para o seu próprio bem.

— Meu próprio bem obviamente não é o importante aqui. — Ela ainda
estava tremendo, mas eu achava que agora não era mais de frio.

Ele olhou para mim, os olhos frios e escuros. Macon estava furioso, tive
certeza.

— Você devia tê-la feito ir embora.

— Eu não sabia o que fazer, senhor. Não sabia que Ridley ia destruir o
ginásio. E Lena nunca tinha ido a um baile. — Soou estúpido na hora que
falei.

Macon apenas olhou para mim, balançando o uísque no copo.

— É interessante que vocês nem tenham dançado. Nem uma dança.

— Como você sabe? — Lena botou a caneca na mesa.

Macon andava de um lado para o outro.

— Isso não é importante.

— Na verdade, é importante para mim.

Macon deu de ombros.

— Foi Boo. Ele é, por falta de palavras melhores, meus olhos.

— O quê?

— Ele vê o que eu vejo. Eu vejo o que ele vê. Ele é um cachorro
Conjurador, sabe.

— Tio Macon! Você tem me espionado!

— Não você, particularmente. Como acha que consigo me virar como
recluso da cidade? Eu não iria longe sem o melhor amigo do homem. Boo
aqui vê tudo, então eu vejo tudo.

Olhei para Boo. Eu podia ver os olhos, olhos humanos. Eu devia ter
sabido, talvez sempre tivesse. Ele tinha os olhos de Macon.

E vi outra coisa, uma coisa que ele estava mastigando. Ele tinha uma
bola de alguma coisa na boca. Me abaixei na frente dele. Era uma foto
Polaroid amassada e úmida. Ele tinha trazido do ginásio.

Nossa foto do baile. Eu estava parado ali com Lena, no meio da neve
falsa. Emily estava errada. A espécie de Lena aparecia sim em fotos, só que
ela estava cintilante, transparente, como se da cintura para baixo ela já tivesse
começado a se dissolver em uma aparição fantasmagórica. Como se ela


estivesse mesmo derretendo antes da neve tê-la atingido.

Fiz um carinho na cabeça de Boo e guardei a foto. Isso era uma coisa
que Lena não precisava ver, não agora. Faltavam dois meses para o
aniversário dela. Eu não precisava da foto para saber que o nosso tempo
estava acabando.


































































p 16 de dezembro p

d



Quando os santos chegam sem aviso











L



ena estava sentada na varanda quando encostei o carro. Insisti em dirigir
porque Link queria ir conosco, e ele não podia se arriscar a ser visto
rabecão. E eu não queria que Lena tivesse que entrar sozinha. Eu nem
queria que ela fosse, mas não havia como convencê-la de não ir. Ela parecia
que estava pronta para a guerra. Estava usando um suéter azul de gola alta,
jeans pretos e um colete preto com capuz de bordas de pele. Estava prestes a
encarar o pelotão de fuzilamento e sabia disso.

Só tinham se passado três dias desde o baile, e o FRA não tinha perdido
tempo. A reunião do Comitê Disciplinar da Jackson desta tarde não ia ser
muito diferente de um julgamento de bruxas, e não era preciso ser
Conjuradora para saber disso. Emily estava mancando com a perna
engessada, o desastre do baile de inverno tinha virado o assunto da cidade, e
a Sra. Lincoln linha finalmente todo o apoio de que precisava. Testemunhas
tinham se apresentado. E se você distorcesse tudo que todo mundo alegava
ter visto, ouvido ou de que se lembrava ligeiramente, podia apertar os olhos,
virar a cabeça um pouquinho e tentar ver o lógico: Lena Duchannes era
responsável. Tudo estava bem até que ela veio para a cidade.



***



Link pulou do carro e abriu a porta para Lena. Estava tão consumido pela
culpa que parecia prestes a vomitar.

— Oi, Lena. Como vai?

— Bem.


Mentirosa.

Não quero que ele se sinta mal. Não é culpa dele.

Link limpou a garganta.

— Sinto muito por isso. Briguei com minha mãe o final de semana todo.
Ela sempre foi maluca, mas dessa vez é diferente.

— Não é sua culpa, mas agradeço por você tentar falar com ela.

— Poderia ter feito alguma diferença se todas aquelas bruxas do FRA
não estivesse enchendo os ouvidos dela. A Sra. Snow e a Sra. Asher devem ter
ligado pra a minha casa umas cem vezes nos últimos dois dias.

Passamos pelo Pare & Roube. Nem Fatty estava lá. As ruas estavam
desertas, como se estivéssemos dirigindo por uma cidade fantasma. A reunião
do Comitê Disciplinar estava marcada para as 17 horas, e nós íamos chegar
pontualmente. A reunião seria no ginásio porque era o único lugar na Jackson
grande o bastante para acomodar o número de pessoas que provavelmente ia
aparecer. Essa era outra coisa sobre Gatlin, tudo que acontecia envolvia todo
mundo. Não havia procedimentos fechados aqui. Pela aparência das ruas, a
cidade inteira tinha fechado, o que queria dizer que praticamente todo
mundo estaria na reunião.

— Só não entendo como sua mãe organizou isso tão rápido. É rápido até
pra ela.

— Pelo que ouvi, Doe Asher se envolveu. Ele caça com o diretor Harper
e outros figurões do Conselho Escolar. — Doe Asher era pai de Emily e o
único médico da cidade.

— Ótimo.

— Vocês sabem que eu provavelmente vou ser expulsa, certo? Aposto
que já foi decidido. Esse encontro é só encenação.

Link parecia confuso.

— Não podem expulsar você sem ouvir seu lado da história. Você nem
fez nada.

— Nada disso importa. Essas coisas são decididas a portas fechadas.
Nada que eu diga vai importar.

Ela estava certa, e nós dois sabíamos. Então eu não disse nada. Em vez
disso, levei a mão dela aos meus lábios e a beijei, desejando pela centésima
vez que fosse eu indo contra todo o Conselho e não Lena.

Mas o negócio é que jamais seria eu. Não importava o que eu fizesse, não


importava o que eu dissesse, eu sempre seria um deles. Lena jamais seria. E
acho que era isso que me deixava mais furioso, e mais constrangido. Eu os
odiava ainda mais porque lá no fundo eles ainda me tratavam como um
deles, mesmo eu namorando a sobrinha do Velho Ravenwood, tendo
enfrentado a Sra. Lincoln e não tendo sido convidado para as festas de
Savannah Snow. Eu era um deles. Eu pertencia a eles, e não havia nada que
pudesse fazer para mudar isso. E se o oposto fosse verdade, de certa forma
eles pertenciam a mim, então o que Lena enfrentaria não era só eles. Era eu.

A verdade estava me matando. Lena seria Invocada em seu décimo-
sexto aniversário, mas eu tinha sido invocado desde meu nascimento. Eu não
tinha mais controle sobre meu destino do que ela. Talvez nenhum de nós
tivesse.







Parei o carro no estacionamento. Estava cheio. Havia um grupo de pessoas
em fila na entrada principal, esperando. Eu não via tanta gente no mesmo
lugar desde a estreia de Gods and Generais, o filme mais longo e chato sobre
a Guerra Civil já feito e no qual metade dos meus parentes participaram
como figurantes, pois tinham os próprios uniformes.

Link se abaixou no banco de trás.

— Vou descer aqui. Vejo vocês lá dentro. — Ele abriu a porta e saiu
abaixado entre os carros. — Boa sorte.

As mãos de Lena estavam sobre o colo, tremendo. Eu odiava vê-la tão
nervosa.

— Você não precisa entrar. Podemos dar a volta e levo você direto pra
casa.

— Não. Eu vou entrar.

— Por que quer se sujeitar a isso? Você mesma disse que provavelmente é
só encenação.

— Não vou deixá-los pensar que tenho medo de encará-los. Saí da minha
última escola, mas não vou fugir dessa vez. — Ela respirou fundo.

— Não é fugir.

— Para mim, é.

— Seu tio vem, pelo menos?


— Ele não pode.

— Por que diabos não pode? — Ela estava completamente sozinha nisso,
apesar de eu estar parado ao lado dela.

— E cedo demais. Nem contei a ele.

— Cedo demais? O que isso tem a ver? Ele fica trancado numa cripta ou
o quê?

— Mais para ou o quê.

Não valia a pena tentar conversar agora. Ela teria que lidar com muita
coisa nos próximos minutos.

Andamos na direção do prédio. Começou a chover. Olhei para ela.

Acredite, estou tentando. Se não estivesse, seria um tornado.

As pessoas estavam olhando, até apontando, não que eu estivesse
surpreso. Ninguém se deu ao trabalho de ser civilizado. Olhei em volta, meio
esperando ver Boo Radley sentado na porta, mas hoje ele não estava à vista.









Entramos no ginásio pela lateral, que era, por acaso, a entrada de visitantes,
uma ideia de Link que acabou sendo uma boa ideia. Porque, assim que
entramos, percebi que as pessoas não estavam paradas do lado de fora
esperando para entrar, estavam apenas torcendo para conseguir ouvir a
reunião. Dentro, só havia lugar de pé.

Parecia uma versão patética de uma audiência para o grande júri de um
episódio daqueles programas de advogado da televisão. Havia uma grande
mesa dobrável de plástico na frente, e alguns professores — o Sr. Lee, é claro,
ostentando uma gravata borboleta vermelha e seu próprio estilo homem do
interior preconceituoso; o diretor Harper; e duas pessoas que deviam ser
integrantes do Conselho — sentados lado a lado à mesa. Todos pareciam
velhos e irritados, como se desejassem poder estar em casa assistindo canais
de venda ou programas religiosos.

As arquibancadas estavam lotadas de cidadãos proeminentes de Gatlin.
A Sra. Lincoln e o grupo linchador do FRA ocupavam as três primeiras
fileiras, com os membros das Irmãs da Confederação, do Primeiro Coro
Metodista e da Sociedade Histórica ocupando as seguintes. Logo atrás


estavam os Anjos da Jackson — também conhecidos como as garotas que
queriam ser Emily e Savannah e os caras que queriam tirar a calcinha de
Emily e Savannah —, usando suas camisetas novinhas em folha. Nelas havia
uma imagem de um anjo que parecia muito com Emily Asher, com as
enormes asas de anjo abertas e usando nada menos do que uma camiseta dos
Wildcats da Jackson High. Na parte de trás, havia apenas um par de asas
brancas desenhadas para parecer que estavam saindo direto das costas da
pessoa, e o grito de guerra dos Anjos, "Estamos observando você."

Emily estava sentada ao lado da Sra. Asher, a perna e o enorme gesso
apoiados sobre uma das cadeiras laranjas do refeitório. A Sra. Lincoln
apertou os olhos quando nos viu, e a Sra. Asher passou o braço nos ombros
de Emily de forma protetora, como se um de nós pudesse correr até lá e bater
nela com um porrete como em um bebê foca indefeso, Vi Emily tirar seu
telefone da minúscula bolsa prateada, pronto para o envio de mensagens.
Logo os dedos dela estariam se mexendo freneticamente. O ginásio da escola
era provavelmente o epicentro da fofoca local de quatro condados esta noite.

Amma estava sentada algumas fileiras para trás, mexendo no talismã que
tinha no pescoço. Eu esperava que ele fizesse crescer na Sra. Lincoln os
chifres que ela sempre havia escondido tão bem todos esses anos. É claro que
meu pai não estava lá, mas as Irmãs estavam sentadas ao lado de Thelma, na
fileira ao lado de Amma. As coisas deviam estar piores do que eu pensava. As
Irmãs não saíam de casa tão tarde desde 1980, quando tia Grace comeu
comida apimentada demais e achou que estava tendo um ataque cardíaco.
Tia Mercy me viu e acenou com o lenço.

Acompanhei Lena até o assento na frente do salão, obviamente
destinado a ela. Era bem em frente ao pelotão de fuzilamento.

Vai ficar tudo bem.

Jura?

Eu ouvia a chuva batendo no teto lá fora.

Juro que isso não importa. Juro que essas pessoas são idiotas. Juro que
nada do que digam vai mudar o que sinto por você.

Interpreto isso como um não.

A chuva caiu com mais força no telhado, um mau sinal. Peguei a mão
dela e coloquei algo ali. O botãozinho prateado do colete dela, que eu tinha
encontrado no estofamento rachado do Lata-Velha na noite em que nos


conhecemos na chuva. Parecia lixo, mas eu o carregava no bolso do meu
jeans desde então.

Tome. É uma espécie de amuleto da sorte. Pelo menos trouxe uma coisa
boa para mim.

Eu podia ver o quanto ela estava se esforçando para não chorar. Sem
dizer uma palavra, Lena puxou o cordão e acrescentou o botão à coleção
particular de lixo valioso.

Obrigada.

Se ela conseguisse sorrir, teria sorrido.

Andei até onde as Irmãs e Amma estavam sentadas. Tia Grace ficou de
pé e se apoiou na bengala.

— Ethan, aqui. Guardamos seu lugar, querido.

— Por que você não senta, Grace Statham — sibilou uma senhora de
cabelo azul atrás das Irmãs.

Tia Prue se virou.

— Por que você não toma conta da sua própria vida, Sadie Honeycutt,
ou eu vou fazer isso por você.

Tia Grace se virou para a Sra. Honeycutt e sorriu.

— Venha para cá, Ethan.

Me espremi entre tia Mercy e tia Grace.

— Como você está, docinho? — Thelma sorriu e beliscou meu braço.

Um trovão soou lá fora, e as luzes piscaram. Algumas velhas senhoras
ofegaram.

Um homem parecendo tenso, sentado no meio das pessoas em frente à
mesa dobrável, limpou a garganta.

— Só uma instabilidade na eletricidade, mais nada. Por que vocês não
fazem a gentileza de se sentarem para começarmos? Meu nome é Bertrand
Hollingsworth, e sou o presidente do Conselho Escolar. Essa reunião foi
convocada em resposta à petição que requeria a expulsão de uma aluna da
Jackson, Srta. Lena Duchannes, certo?

O diretor Harper se dirigiu ao Sr. Hollingsworth de seu lugar na mesa,
da Acusação, ou melhor, o enforcador da Sra. Lincoln.

— Sim, senhor. A petição foi trazida até mim por vários pais
preocupados, e foi assinada por mais de duzentos pais e cidadãos respeitáveis
de Gatlin, e por vários alunos também. — É claro que foi.


— Quais são os motivos para a expulsão?

O Sr. Harper virou algumas páginas em seu bloco de folhas amarelas
como se estivesse lendo uma ficha de antecedentes criminais.

— Agressão. Destruição de propriedade escolar. E a Srta. Duchannes já
tinha sido advertida.

Agressão? Não agredi ninguém.

É só uma acusação. Não podem provar nada.

Eu estava de pé antes que ele terminasse.

— Nada disso é verdade!

Outro cara aparentando estar nervoso na outra ponta da mesa elevou a
voz para ser ouvido acima da chuva, e das vinte ou trinta senhoras
sussurrando sobre minha falta de educação.

— Meu jovem, sente-se. Essa reunião não é aberta a manifestações do
público.

O Sr. Hollingsworth continuou falando acima do ruído.

— Temos testemunhas para substanciar essas acusações?

Agora havia mais do que algumas pessoas sussurrando para saber se
alguém sabia o que significava "substanciar".

O diretor Harper limpou a garganta, sem jeito.

— Temos. E recentemente recebi informações de que a Srta. Duchannes
teve problemas similares na escola que frequentou anteriormente.

Do que ele está falando? Como sabem sobre minha antiga escola?

Não sei. O que aconteceu na sua outra escola?

Nada.

Uma mulher do Conselho Escolar folheou alguns papéis.

— Acho que gostaríamos de ouvir primeiro a presidente da Associação de
Pais da Jackson, Sra. Lincoln.

A mãe de Link ficou de pé dramaticamente e andou pelo corredor até o
Grande Júri de Gatlin. Ela já tinha visto alguns programas de televisão sobre
julgamentos.

— Boa-noite, senhoras e senhores.

— Sra. Lincoln, pode nos dizer o que sabe sobre essa situação, já que
você faz do grupo que criou a petição?

— É claro. A Srta. Ravenwood, quero dizer, a Srta. Duchannes se
mudou para cá há alguns meses, e desde então houve vários tipos de


problema na Jackson. Primeiro, ela quebrou uma janela na aula de inglês...

— Isso quase cortou meu bebê em pedaços — gritou a Sra. Snow.

— Quase feriu seriamente várias crianças, e muitas delas sofreram cortes
com o vidro quebrado.

— Ninguém além de Lena se feriu, e foi um acidente! — Link gritou de
onde estava, no fundo do ginásio.

— Wesley Jefferson Lincoln, é melhor que você vá para casa agora
mesmo antes que eu faça você ver o que é bom! — sibilou a Sra. Lincoln.

Ela recuperou a compostura, esticou a saia e se virou para encarar o
Comitê Disciplinar.

— O charme da Srta. Duchannes parece funcionar muito bem com o
sexo frágil — disse a Srta. Lincoln com um sorriso. — Como eu ia dizendo,
ela quebrou uma janela na aula de Inglês, o que assustou tanto os alunos que
algumas jovens de mente cívica decidiram sozinhas criar os Anjos da Guarda
da Jackson, um grupo cujo único propósito é proteger os alunos da escola.
Como a Observação de Vizinhança faz.

Os Anjos assentiram em uníssono da arquibancada, como se alguém
estivesse puxando cordinhas invisíveis presas às cabeças deles, o que, de certa
forma, alguém estava mesmo fazendo.

O Sr. Hollingsworth estava escrevendo em um bloco amarelo.

— Esse foi o único incidente envolvendo a Srta. Duchannes?

A Sra. Lincoln tentou parecer chocada.

— Meu Deus, não! No baile de inverno, ela acionou o alarme de
incêndio, estragando o baile e destruindo equipamentos no valor de
quatrocentos dólares. Como se não fosse o bastante, ela empurrou a Srta.
Asher do palco, fazendo com que ela quebrasse a perna. Eu soube de fonte
segura que levará meses para ficar boa.

Lena olhava para a frente, se recusando a olhar para qualquer pessoa.

— Obrigada, Sra, Lincoln.

A mãe de Link se virou e sorriu para Lena. Não um sorriso genuíno e
nem mesmo um sorriso sarcástico, mas um sorriso de vou-arruinar-sua- vida-
e-gostar.

A Sra. Lincoln andou de volta até o lugar dela. Então parou e olhou di-
retamente para Lena.

— Quase me esqueci. Tem mais uma coisa. — Ela tirou uns papéis da


bolsa. — Tenho registros da escola anterior da Srta. Duchannes na Virgínia.
Apesar de talvez ser mais preciso chamar de instituição.

Não era uma instituição. Era uma escola particular.

— Como o diretor Harper mencionou, essa não é a primeira vez que a
Srta. Duchannes se envolve em episódios violentos.

A voz de Lena na minha mente estava à beira da histeria. Tentei acalmá-
la.

Não se preocupe.

Mas eu estava preocupado. A Sra. Lincoln não diria isso se não pudesse
provar.

— A Srta. Duchannes é uma garota muito perturbada. Ela sofre de uma
doença mental. Deixe-me ver... — Ela passou o dedo pela página como se
procurasse alguma coisa. Esperei para ouvir o diagnóstico da doença mental
que a Sra. Lincoln achava que Lena tinha, o mal de ser diferente. — Ah, sim,
aqui está. Parece que a Srta. Duchannes sofre de distúrbio bipolar, que o Dr.
Asher pode comprovar ser uma doença mental muito séria. Essas pessoas que
sofrem desse mal têm tendência à violência e comportamento imprevisível.
Essas coisas são genéticas; a mãe dela sofria disso também.

Isso não pode estar acontecendo.

A chuva despencava sobre o teto. O vento aumentou, sacudindo a porta
do ginásio,

— Na verdade, ela assassinou o pai da menina há 14 anos.

O ginásio inteiro ofegou.

Ponto. Partida ganha.

Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo.

— Senhoras e senhores, por favor. — O diretor Harper tentou acalmar
todo mundo, mas era como encostar com um fósforo em palha seca. Quando
o fogo começava, não havia como acabar com ele.









Levou dez minutos para o ginásio inteiro se acalmar de novo, mas Lena não
se acalmou. Eu sentia o coração dela disparado como se fosse o meu, e seu nó
na garganta por engolir as lágrimas. Entretanto, julgando pela chuvarada lá


fora, ela estava tendo dificuldade em se controlar. Eu estava surpreso por ela
não ter fugido correndo do ginásio, mas ela estava com coragem demais ou
aparvalhada demais para se mover.

Eu sabia que a Sra. Lincoln estava mentindo. Não acreditava que Lena
tinha sido posta em uma instituição assim como não acreditava que os Anjos
queriam proteger os alunos da Jackson. O que eu não sabia era se a Sra.
Lincoln estava mentindo sobre o resto, sobre a parte da mãe de Lena
assassinar o pai dela.

Mas eu sabia que queria matar a Sra. Lincoln. Eu conhecia a mãe de
Link desde sempre, mas ultimamente não conseguia pensar mais nela do
mesmo jeito. Ela não parecia a mulher que arrancou o aparelho de TV a
cabo da parede ou que nos passava sermões de horas sobre as virtudes da
abstinência. Isso não parecia uma de suas causas irritantes, porém inocentes.
Isso parecia mais vingativo e pessoal. Eu só não conseguia entender por que
ela odiava tanto Lena.

O Sr. Hollingsworth tentou recuperar o controle.

— Certo, todo mundo se acalme. Sra. Lincoln, obrigada por se dar ao
trabalho de vir aqui hoje. Eu gostaria de verificar esses documentos, se não se
importar.

Fiquei de pé de novo.

— Isso tudo é ridículo. Por que não colocam fogo nela para ver se ela
queima?

O Sr. Hollingsworth tentou novamente recuperar o controle da reunião,
que estava quase se tornando um programa de Jerry Springer.

— Sr. Wate, sente-se ou será convidado a se retirar. Não haverá mais
interrupções nessa reunião. Li as declarações escritas das testemunhas sobre o
que aconteceu, e ao que parece o assunto é bem simples e só há uma coisa
sensata a se fazer.

Houve um estrondo, e as portas enormes de metal no fundo do ginásio se
abriram. Uma rajada de vento entrou, assim como rajadas de chuva.

E algo mais.

Macon Ravenwood entrou casualmente no ginásio, usando um
sobretudo de cashmere preto e um terno elegante de risca-de-giz cinza, com
Marian Ashcroft de braço dado com ele. Marian estava segurando um
guarda-chuva xadrez pequeno, com o tamanho suficiente para protegê-la da


chuva. Macon não trazia um guarda-chuva, mas estava completamente seco.
Boo entrou atrás deles, o pelo preto molhado e eriçado, deixando óbvio que
era mais lobo do que cachorro.

Lena se virou na cadeira laranja de plástico e, por um segundo, ela
aparentou estar tão vulnerável quanto se sentia. Eu podia ver o alívio em seus
olhos, e pude ver o quanto ela se esforçava para ficar na cadeira, se segurando
para não se jogar aos prantos nos braços dele.

Os olhos de Macon brilharam na direção dela, e Lena se endireitou na
cadeira. Ele andou pelo corredor em direção aos membros do Conselho
Escolar.

— Lamento nosso atraso. O tempo está terrível hoje. Não me deixe
interromper. Vocês estavam prestes a fazer uma coisa sensata, se ouvi
corretamente.

O Sr. Hollingsworth parecia confuso. Na verdade, a maioria das pessoas
no ginásio parecia confusa. Nenhuma delas jamais tinha visto Macon
Ravenwood em pessoa.

— Desculpe, senhor. Não sei quem você pensa que é, mas está no meio
dos procedimentos. E não pode trazer esse... esse cachorro aqui para dentro.
Só animais de serviço são permitidos em território escolar.

— Entendo perfeitamente. Acontece que Boo Radley é meu cão-guia.

Não consegui segurar um sorriso. Acho que, tecnicamente, era verdade.

Boo sacudiu o enorme corpo, e a água do pelo encharcado voou em todo
mundo que estava sentado perto.

— Bem, senhor...?

— Ravenwood. Macon Ravenwood.

Houve outro ofegar audível vindo da arquibancada, seguido pelo
burburinho de sussurros percorrendo as arquibancadas. A cidade inteira
esperava esse dia desde antes de eu nascer. Dava para sentir a temperatura no
ginásio aumentando, pelo simples espetáculo que era isso tudo. Não havia
nada, nada que Gatlin amasse mais do que um espetáculo.

— Senhoras e senhores de Gatlin. É um prazer finalmente conhecê-los.
Acredito que já conheçam minha querida amiga, a bela Dra. Ashcroft. Ela foi
gentil em me acompanhar esta noite, já que não sei andar pela nossa linda
cidade.

Marian acenou.


— Quero pedir desculpas mais uma vez por ter me atrasado; por favor,
continuem. Tenho certeza de que estavam prestes a explicar que as acusações
contra minha sobrinha são completamente infundadas e a encorajar essas
crianças a irem para casa e dormir uma boa noite de sono antes de irem para
a escola amanhã.

Por um minuto, o Sr. Hollingsworth parecia que poderia ser convencido
a fazer exatamente aquilo, e me perguntei se talvez Macon Ravenwood
tivesse o mesmo Poder de Persuasão de Ridley. Uma mulher com um coque
no alto da cabeça sussurrou alguma coisa para o Sr. Hollingsworth e ele
pareceu recuperar sua linha de pensamento original.

— Não, senhor, não era isso que eu estava prestes a fazer, não mesmo.
Na verdade, as acusações contra sua sobrinha são muito sérias. Parece que há
várias testemunhas dos eventos citados. Baseado nos testemunhos escritos e
na informação apresentada nessa reunião, lamento dizer que não temos
escolha além de expulsá-la.

Macon sacudiu a mão na direção de Emily, Savannah, Charlotte e Eden.

— Essas são suas testemunhas? Um bando de garotinhas de imaginação
fértil que sofrem de uma profunda inveja?

A Sra. Snow ficou de pé.

— Está insinuando que minha filha está mentindo?

Macon deu seu sorriso de galã de cinema.

— Absolutamente, minha cara. Estou afirmando que sua filha está
mentindo. Tenho certeza de que você entende a diferença.

— Como você ousa! — gritou a mãe de Link como um animal selvagem.
— Você não tem direito de estar aqui, ameaçando os procedimentos.

Marian sorriu e deu um passo a frente.

— Como um grande homem disse, "A injustiça em qualquer lugar é uma
ameaça à justiça em todo lugar." E não vejo justiça nesse recinto, Sra.
Lincoln.

— Não venha com seu discurso de Harvard aqui.

Marian fechou o guarda-chuva.

— Acredito que Martin Luther King Jr não frequentou Harvard.

O Sr. Hollingsworth falou alto de forma autoritária.

— Prevalece o fato que, de acordo com testemunhas, a Srta. Duchannes
acionou o alarme de incêndio, resultando em milhares de dólares em danos


aos bens materiais da Jackson High School, e empurrou a Srta. Asher do
palco, resultando em ferimentos. Baseado só nesses eventos, temos o bastante
para expulsá-la.

Marian suspirou alto.

— "É difícil libertar os tolos das correntes que eles idolatram." — Ela
olhou diretamente para a Sra. Lincoln. — Voltaire, outro homem que não
frequentou Harvard.

Macon permaneceu calmo, o que parecia irritar todo mundo ainda mais.

— Senhor...?

— Hollingsworth.

— Sr. Hollingsworth, seria uma vergonha continuar nessa linha de ação.
Veja bem, é ilegal impedir uma menor de frequentar a escola no Grande
Estado da Carolina do Sul. A educação é compulsória, o que quer dizer
obrigatória. Você não pode dispensar uma garota inocente da escola sem
fundamento. Esses dias acabaram, mesmo no sul.

— Como expliquei, Sr. Ravenwood, temos fundamentos, e está dentro da
nossa esfera o poder de expulsar sua sobrinha.

A Sra. Lincoln deu um pulo e ficou de pé.

— Você não pode aparecer assim de repente e interferir nos assuntos da
cidade. Você não sai de sua casa há anos! O que lhe dá o direito de emitir
opinião no que acontece nessa cidade, com nossas crianças?

— Está se referindo à sua pequena coleção de marionetes, vestidas de... o
que é isso? Unicórnios? Perdoe minha vista fraca. — Macon gesticulou em
direção aos Anjos.

— São anjos, Sr. Ravenwood, não unicórnios. Não que eu espere que
você reconheça os mensageiros de Nosso Senhor, já que não me lembro de
vê-lo na igreja.

— "Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra", Sra. Lincoln. —
Macon fez uma pausa de um segundo, como se achasse que a Sra. Lincoln
precisasse de um momento para entender aquilo. — Quanto ao que falou
antes, você está absolutamente certa, Sra. Lincoln. Passo muito tempo em
minha casa, coisa que não me incomoda. É um lugar realmente encantador.
Mas talvez eu devesse passar mais tempo na cidade, com todos vocês. Dar
uma sacudida nas coisas, por falta de expressão melhor.

A Sra. Lincoln parecia horrorizada, e os membros do FRA estavam se


revirando nos assentos, olhando uns para os outros nervosamente só de
cogitarem a ideia.

— Na verdade, se Lena não vai voltar à Jackson, ela vai ter que ter aulas
em casa. Talvez eu devesse convidar alguns dos primos dela para morar
comigo também. Eu não ia querer que ela perdesse os aspectos sociais da
educação. Alguns dos primos dela são encantadores. Na verdade, acho que
conheceram uma delas no Baile de Máscaras de Inverno.

— Não era baile de máscaras...

— Perdão. Supus que fossem fantasias, baseado no espalhafato das
vestimentas.

A Sra. Lincoln enrubesceu. Ela não era mais apenas uma mulher
tentando banir livros. Aquela não era uma mulher que se enfrentava. Eu
estava preocupado com Macon. Estava preocupado com todos nós.

— Vamos ser honestos, Sr. Ravenwood. Você não se encaixa nessa
cidade. Não é parte dela e claramente sua sobrinha também não. Acho que
você não está em posição de fazer exigências.

A expressão de Macon mudou ligeiramente. Ele girou o anel no dedo.

— Sra. Lincoln, aprecio sua sinceridade, e vou tentar ser tão franco
quanto você tem sido comigo. Seria um erro grave se você ou qualquer outra
pessoa dessa cidade fosse em frente com esse assunto. Sabe, eu tenho muitos
meios. Sou um tanto perdulário, pode-se dizer. Se vocês quiserem impedir
minha sobrinha de voltar à Stonewall Jackson High School, serei forçado a
gastar parte desse dinheiro. Quem sabe, talvez eu mande abrir um Wal-Mart
aqui. — Ouve outro ofegar na arquibancada.

— Isso é uma ameaça?

— Em absoluto. Coincidentemente, também sou proprietário da terra
onde fica o Southern Comfort Hotel. O fechamento dele seria muito
inconveniente para você, Sra. Snow, já que seu marido teria que dirigir muito
mais para encontrar as amigas, o que tenho certeza que o faria se atrasar para
o jantar regularmente. Isso não pode acontecer, não é?

O Sr. Snow ficou vermelho-escuro e se escondeu atrás de dois caras do
time de futebol, mas Macon estava apenas começando.

— E Sr. Hollingsworth, você me parece familiar. Assim como essa bela
flor da Confederação à sua esquerda. — Macon gesticulou para a senhora do
Conselho Escolar sentada ao lado dele. — Eu já não vi vocês dois em algum


lugar antes? Poderia jurar...

O Sr. Hollingsworth se remexeu um pouco.

— De modo algum, Sr. Ravenwood. Sou um homem casado!

Macon virou sua atenção para o homem careca sentado do outro lado do
Sr. Hollingsworth.

— E Sr. Ebitt, se eu decidir parar de alugar o terreno para o Wayward
Dog, onde você vai passar as noites bebendo, quando sua esposa pensa que
você está estudando com o Grupo da Bíblia?

— Wilson, como você pôde? Usar o Poderoso Nosso Senhor como álibi.
Vai queimar nas chamas do inferno, com certeza! — A Sra. Ebitt pegou a
bolsa e começou a empurrar as pessoas para sair.

— Não é verdade, Rosalie!

— Não é? — Macon sorriu. — Nem posso imaginar o que Boo me
contaria se soubesse falar. Sabe, ele circula por todos os jardins e
estacionamentos dessa cidade, e aposto que ele viu uma ou outra coisa.

Eu sufoquei uma risada.

As orelhas de Boo ficaram de pé ao ouvir o próprio nome, e mais do que
algumas pessoas começaram a se remexer nos assentos, como se Boo pudesse
abrir a boca e começar a falar. Depois da noite de Halloween, isso não me
surpreenderia, e considerando a reputação de Macon Ravenwood, ninguém
em Gatlin teria ficado chocado.

— Como vocês podem ver, há mais do que algumas pessoas nessa cidade
que não são lá muito honestas. Então vocês podem imaginar minha
preocupação quando soube que quatro adolescentes são as únicas
testemunhas dessas terríveis acusações contra minha própria família. Não
seria do interesse de todos nós esquecer esse assunto? Não seria a coisa mais
cavalheiresca a se fazer, senhor?

O Sr. Hollingsworth parecia que ia vomitar, e a mulher ao lado dele
parecia ter esperanças de ser engolida pelo chão. O Sr. Ebitt, cujo nome me
dei conta jamais ter sido mencionado antes de Macon fazê-lo, já tinha saído,
atrás da esposa. Os integrantes do tribunal que sobraram pareciam
apavorados, como se a qualquer momento Macon Ravenwood, ou seu
cachorro, pudesse começar a contar para a cidade inteira seus segredinhos
sujos.

— Acho que você talvez esteja certo, Sr. Ravenwood. Talvez nós


precisemos investigar essas acusações melhor antes de seguir com o assunto.
Pode haver inconsistências.

— Uma decisão sábia, Sr. Hollingsworth. Muito sábia. — Macon andou
em direção à pequena mesa onde Lena estava e ofereceu o braço. — Vamos,
Lena. Está tarde. Você tem aula amanhã.

Lena ficou de pé, ainda mais ereta do que o normal. A chuva diminuiu
para um leve chuvisco. Marian amarrou uma echarpe em volta do cabelo e os
três desceram o corredor, com Boo seguindo atrás deles. Nem olharam para
mais ninguém no ginásio.

A Sra. Lincoln ficou de pé.

— A mãe dela é uma assassina! — gritou ela, apontando para Lena.

Macon se virou para encontrar o olhar da Sra. Lincoln. Havia algo na
expressão dele. Era a mesma expressão de quando mostrei a ele o medalhão
de Genevieve. Boo rosnou ameaçadoramente.

— Cuidado, Martha. Você nunca sabe quando vamos nos esbarrar de
novo.

— Ah, mas eu sei, Macon. — Ela sorriu, mas não se parecia em nada
com um sorriso. Não sei o que havia entre eles, mas não parecia mais que
Macon estava lutando apenas com a Sra. Lincoln.

Marian abriu o guarda-chuva de novo, apesar de ainda não estarem do
lado de fora. Sorriu diplomaticamente para a multidão.

— Espero ver todos vocês na biblioteca. Não se esqueçam de que ficamos
abertos até às 18 horas durante a semana.

Ela assentiu para o ginásio.

— "Sem bibliotecas, o que nós temos? Não temos passado nem futuro."
Perguntem a Ray Bradbury. Ou vão até Charlotte e leiam na parede da
biblioteca pública. — Macon pegou o braço de Marian, mas ela não tinha
terminado. — E ele também não frequentou Harvard, Sra. Lincoln. Ele nem
fez faculdade.

Com isso, eles se foram.
















 p 19 de dezembro p

d



Natal branco













D



epois da reunião do Comitê Disciplinar, acho que ninguém acreditava
que Lena apareceria na escola no dia seguinte. Mas ela foi, exatamente
como eu sabia que faria. Ninguém mais sabia que, anteriormente, ela
tinha aberto mão do direito de ir à escola. Não deixaria ninguém tirar isso
dela de novo. Para todas as outras pessoas, a escola era uma prisão. Para
Lena, era liberdade. Só que não importava, porque foi naquele dia que Lena
virou um fantasma na Jackson — ninguém olhava para Lena, falava com ela,
sentava perto dela em nenhuma mesa, arquibancada ou carteira. Na quinta-
feira, metade dos alunos da escola estavam usando camisetas dos Anjos da
Jackson, com as asas brancas nas costas. Pelo modo como olhavam para ela,
parecia que metade dos professores desejavam poder usar as camisetas
também. Na sexta-feira, entreguei meu uniforme de basquete. Não parecia
mais que eu estava no mesmo time que eles.

O treinador ficou furioso. Depois que toda a gritaria acabou, ele apenas
balançou a cabeça.

— Você está louco, Wate. Veja a temporada que você está tendo, e está
jogando isso no lixo por uma garota qualquer. — Eu percebia no tom de voz
dele. Urna garota qualquer. A sobrinha do Velho Ravenwood.

Ainda assim, ninguém dizia palavras grosseiras para nenhum de nós dois,
pelo menos não na nossa cara. Se a Sra. Lincoln tinha colocado o medo de
Deus neles, Macon Ravenwood tinha dado ao povo de Gatlin um motivo
para ter medo de algo ainda pior. A verdade.

Enquanto eu via os números na parede e na mão de Lena ficarem


menores e menores, a possibilidade foi se tornando mais real. E se nós não
pudéssemos impedir? E se Lena estivesse certa o tempo todo, e depois do
aniversário dela, a garota que eu conhecia desaparecesse? Como se jamais
tivesse estado aqui.

Tudo que tínhamos era O Livro das Luas. Mas cada vez mais, havia um
pensamento que eu tentava manter fora da cabeça de Lena e da minha.

Eu não tinha certeza de que o Livro seria o bastante.











"DENTRE AS PESSOAS DE PODER, HÁ FORÇAS GÊMEAS DAS
QUAIS BROTA

TODA MAGIA, A DAS TREVAS E DA LUZ."

— Acho que entendemos bem esse negócio de Trevas e Luz. Acha que
podemos ir para a parte boa? A parte chamada Brechas no Dia de
Invocação? Como Derrotar uma Cataclista Malvada? Como Reverter a
Passagem do Tempo? — Eu estava frustrado, e Lena não falava nada.

De onde estávamos sentados na arquibancada fria, a escola parecia
deserta. Deveríamos estar em uma feira de ciências, vendo Alice Milkhouse
afundar um ovo em vinagre, ouvindo Jackson Freeman discutir que não
existia essa história de aquecimento global e Annie Honeycutt retorquir
ensinando como tornar Jackson uma escola verde. Talvez os Anjos fossem
começar a reciclar os folhetos.

Olhei para o livro de Álgebra II, bem visível na minha mochila. Não
parecia haver nada que valesse a pena aprender nesse lugar. Eu tinha
aprendido o bastante nos últimos meses. Lena estava a milhões de
quilômetros de distância, ainda afundada no Livro. Eu tinha começado a
carregá-lo na minha mochila, por medo de Amma encontrá-lo se eu o
deixasse no quarto.

— Aqui tem mais sobre Cataclistas.

"O MAIOR SER DAS TREVAS, O PODER MAIS PRÓXIMO DO
MUNDO E DO SUBMUNDO, O CATACLISTA. O MAIOR SER DA
LUZ, O PODER MAIS PRÓXIMO DO MUNDO E DO SUBMUNDO,


O NATURAL. ONDE NÃO HÁ UM, NÃO PODE HAVER O OUTRO,
POIS SEM TREVAS NÃO PODE HAVER LUZ."

— Está vendo? Você não vai para as Trevas. Você é da Luz porque você
é uma Natural.

Lena sacudiu a cabeça e apontou para o parágrafo seguinte.

— Não necessariamente. É isso o que meu tio pensa. Mas ouça isso:

"NA HORA DA INVOCAÇÃO, A VERDADE SE MANIFESTARÁ. O
QUE PARECE TREVAS PODE SER A MAIOR DAS LUZES, O QUE
PARECE LUZ PODE SER A MAIOR DAS TREVAS."

Ela estava certa, não havia como ter certeza.

— Depois fica muito complicado. Nem sei se entendi direito.

"A MATÉRIA DAS TREVAS FEZ O FOGO DAS TREVAS, E O
FOGO DAS TREVAS FEZ OS PODERES DE TODOS OS LILUM NO
MUNDO DOS DEMÔNIOS E DOS CON- JURADORES DAS TREVAS
E DA LUZ. SEM TODO O PODER, NÃO PODE HAVER PODER. O
FOGO DAS TREVAS FEZ A GRANDE TREVA E A GRANDE LUZ.
TODO PODER É DAS TREVAS, ENQUANTO PODER DAS TREVAS
É ATÉ MESMO LUZ."

— Matéria das Trevas? Fogo das Trevas? O que é isso, o Big Bang dos
Conjuradores?

— E Lilum? Nunca ouvi nada disso, mas por outro lado, ninguém me
conta nada. Eu nem sabia que minha própria mãe estava viva. — Ela tentou
parecer sarcástica, mas eu podia perceber a dor em sua voz.

— Talvez Lilum seja uma palavra antiga para Conjuradores, ou algo
assim.

— Quanto mais descubro, menos entendo.

E menos tempo nós temos.

Não diga isso.

O sinal tocou e me levantei.

— Você vem?

Ela sacudiu a cabeça.

— Vou ficar aqui mais um pouco.

Sozinha, no frio. Cada vez mais era assim: ela nem tinha me olhado nos
olhos desde a reunião do Comitê Disciplinar, quase como se eu fosse um
deles, Eu não podia culpá-la, considerando que a escola toda e metade da


cidade tinham concluído que ela era a filha bipolar de uma assassina que fora
internada em uma instituição.

— É melhor você aparecer na aula mais cedo ou mais tarde. Não dê mais
munição para o diretor Harper.

Ela olhou na direção do prédio.

— Não vejo como isso possa importar agora.







Pelo resto da tarde, ela não estava em nenhum lugar onde pudesse ser
encontrada. Pelo menos, se estava, não estava ouvindo. Na aula de Química,
ela não compareceu para o teste sobre a tabela periódica.

Você não é das Trevas, L. Eu saberia.

Na aula de história, ela não compareceu à encenação do debate entre
Lincoln e Douglas, e o Sr. Lee tentou me fazer debater no lado a favor da
escravidão, provavelmente como punição por algum trabalho de
"mentalidade liberal" que eu ainda iria escrever.

Não deixe que a atinjam assim. Não são importantes.

Na aula de linguagem dos sinais, ela não estava quando tive que ficar na
frente da sala e fazer os sinais de "Brilha, Brilha, Estrelinha", enquanto o
restante do time de basquete ria baixinho.

Não vou a lugar algum, L. Você não pode me afastar.

Foi quando me dei conta de que ela podia.







Na hora do almoço, eu não aguentava mais. Esperei que ela saísse da aula de
Trigonometria e a puxei para o lado do corredor, deixando minha mochila
cair no chão. Peguei o rosto dela nas minhas mãos e a fiz olhar para mim.

Ethan, o que você está fazendo?

Isso.

Puxei o rosto dela em direção ao meu com as duas mãos. Quando nossos
lábios se tocaram, senti o calor do meu corpo percorrer a frieza do dela. Senti
o corpo dela derretendo contra o meu, a atração inexplicável que nos unia
desde o começo, nos unindo de novo. Lena deixou os livros caírem e passou


os braços em volta do meu pescoço, correspondendo ao meu toque. Eu estava
ficando tonto.

O sinal tocou. Ela se afastou de mim, ofegando. Me abaixei para pegar o
exemplar dela de Pleasures ofthe Damned, de Bukowski, e o caderno espiral
surrado. O caderno estava praticamente despencando, mas ela tinha muito
assunto sobre o qual escrever ultimamente.

Você não devia ter feito isso.

Por que não? Você é minha namorada, e sinto saudades.

Cinquenta e quatro dias, Ethan. É tudo que temos. É hora de pararmos
de fingir que podemos mudar alguma coisa. Será mais fácil se nós dois
aceitarmos.

Houve algo no jeito que ela falou que pareceu que estava falando de algo
além do aniversário. Falava de outras coisas que não podíamos mudar.

Ela se virou, mas peguei seu braço antes que virasse as costas para mim.
Se ela estava dizendo o que eu pensava que estava dizendo, queria que me
olhasse quando dissesse.

— O que você quer dizer, L? — Quase não consegui perguntar.

Ela olhou para o outro lado.

— Ethan, sei que você acha que isso pode ter um final feliz, e por um
tempo eu talvez também tenha achado. Mas não vivemos no mesmo mundo,
e no meu, querer muito uma coisa não faz com que ela aconteça. — Ela não
olhava para mim. — Somos diferentes demais.

— Agora somos diferentes? Depois de tudo que passamos? — Minha voz
estava ficando mais alta. Algumas pessoas se viraram, olhando para mim.
Nem olharam para Lena.

Somos diferentes. Você é Mortal e eu sou Conjuradora. Esses mundos
podem se cruzar, mas jamais serão a mesma coisa. Não podemos viver nos
dois.

O que ela estava dizendo era que ela não podia viver nos dois. Emily e
Savannah, o time de basquete, a Sra. Lincoln, o Sr. Harper, os Anjos da
Jackson, todos estavam finalmente conseguindo o que queriam.

Isso é sobre a reunião disciplinar, não é? Não deixe...

Não é só sobre a reunião. Ê tudo. Não pertenço a esse mundo, Ethan.
Você pertence.

Então agora eu sou um deles. É isso que você está dizendo?


Ela fechou os olhos e eu quase pude ver seus pensamentos, se
confundindo na cabeça.

Não estou dizendo que você é como eles, mas você é um deles. É aqui
que você viveu sua vida toda. E depois que tudo isso acabar, depois que eu for
Invocada, você ainda estará aqui. Vai ter que andar por esses corredores e
por essas ruas de novo, e eu provavelmente não estarei aqui. Mas você estará,
sabe-se lá por quanto tempo, e como você mesmo disse — as pessoas de
Gatlin nunca esquecem nada.

Dois anos.

O quê?

E durante esse tempo que estarei aqui.

Dois anos é muito tempo para ficar invisível. Acredite, eu sei.

Por um minuto, nenhum de nós disse nada. Ela apenas ficou ali parada,
puxando fiapos de papel da espiral do caderno.

— Estou cansada de lutar. Estou cansada de tentar fingir que sou normal.

— Você não pode desistir. Não pode deixá-los vencer.

— Já venceram. Venceram no dia que quebrei a janela na aula de inglês.

Havia alguma coisa em sua voz que revelava que ela estava desistindo de
algo além da Jackson.

— Você está terminando comigo? — Prendi a respiração.

— Por favor, não torne isso mais difícil. Não é o que eu quero também.

Então não faça.

Eu não conseguia respirar. Não conseguia pensar. Era como se o tempo
tivesse parado de novo, como no jantar de Ação de Graças. Só que dessa vez
não havia magia. Havia o oposto de magia.

— Só acho que as coisas vão ser mais fáceis assim. Não muda o que sinto
por você. — Ela olhou para mim, os grandes olhos verdes brilhando com as
lágrimas. Depois se virou e saiu correndo pelo corredor, que estava tão
silencioso que daria para ouvir um lápis caindo.

Feliz Natal, Lena.

Mas não havia nada para ouvir. Ela foi embora, e isso era uma coisa
para a qual eu não estaria pronto, nem em 53 dias, nem em 53 anos, nem em
53 séculos.






Cinquenta e três minutos depois, eu estava sentado sozinho, olhando pela
janela, o que era algo chamativo, considerando o quanto o refeitório estava
cheio. Gatlin estava cinza; as nuvens tinham chegado. Eu não chamaria de
tempestade exatamente; não nevava há anos. Se tivéssemos sorte, tínhamos
uma nevasca ou duas, talvez uma vez por ano. Mas não nevou nem um dia
desde que eu tinha 12 anos.

Desejei que nevasse. Desejei que eu pudesse apertar o botão de rebobinar
para estar de volta àquele corredor com Lena. Desejei poder dizer a ela que
eu não ligava se todo mundo na cidade me odiasse, porque não importava.
Eu estava perdido antes de tê-la encontrado nos meus sonhos, e ela me
encontrou naquele dia na chuva. Eu sabia que parecia que era sempre eu que
estava tentando salvar Lena, mas a verdade era que ela tinha me salvado, e
eu não estava pronto para que ela parasse agora.

— Oi, cara. — Link sentou no banco à frente do meu na mesa vazia. —
Onde está Lena? Eu queria agradecer a ela.

— Pelo quê?

Link pegou uma folha de caderno dobrada que estava no bolso.

— Ela escreveu uma música pra mim. Legal, né?

Eu não conseguia nem olhar. Ela falava com Link, só não falava comigo.

Link pegou uma fatia da minha pizza intocada.

— Escuta, tenho um favor pra te pedir.

— Claro. De que você precisa?

— Ridley e eu vamos até Nova York no final do ano. Se alguém
perguntar, estou no acampamento da igreja em Savannah.

— Não tem acampamento da igreja em Savannah.

— É, mas minha mãe não sabe disso. Falei que tinha me inscrito porque
eles têm uma espécie de banda de rock batista.

— E ela acreditou?

— Ela está meio estranha ultimamente, mas não ligo. Falou que eu podia
ir.

— Não importa o que sua mãe diz, você não pode ir. Tem coisas que
você não sabe sobre Ridley. Ela é... perigosa. Coisas podem acontecer com
você.

Os olhos dele se iluminaram. Eu nunca tinha visto Link assim. Mas
também, eu não o via muito ultimamente. Eu vinha passando todo meu


tempo com Lena ou pensando nela, no Livro, no aniversário dela. As coisas
em torno das quais meu mundo girava, pelo menos até uma hora atrás.

— É isso que espero. Além do mais, estou muito a fim dela. Ela provoca
uma coisa em mim, sabe? — Ele pegou o último pedaço de pizza do meu
prato.

Por um segundo, considerei contar tudo a Link, assim como antigamente
— sobre Lena e sua família; Ridley, Genevieve e Ethan Carter Wate. Link
sabia de tudo no começo, mas eu não sabia se ele acreditaria no resto, ou se
ele conseguiria. Algumas coisas eram demais para se pedir, mesmo para um
melhor amigo. Agora eu não podia me arriscar a perder Link também, mas
tinha que fazer alguma coisa. Não podia deixá-lo ir para Nova York e nem
para nenhum outro lugar com Ridley.

— Escute, cara, você tem que confiar em mim. Não se envolva com ela.
Ela só está usando você. Você vai se machucar.

Ele esmagou uma lata de Coca na mão.

— Ah, entendi. Se a garota mais gostosa da cidade está saindo comigo,
ela deve estar me usando? Acho que você pensa que é o único que consegue
pegar uma menina gostosa. Quando foi que ficou tão metido?

— Não é isso que estou dizendo.

Link ficou de pé.

— Acho que nós dois sabemos o que você está dizendo. Esqueça que
pedi.

Era tarde demais. Ridley já o tinha afetado. Nada que eu dissesse ia fazê-
lo mudar de ideia . E eu não podia perder minha namorada e meu melhor
amigo no mesmo dia.

— Olha, não foi isso que eu quis dizer. Não vou dizer nada, afinal sua
mãe nem tem falado comigo.

— Tudo bem. Deve ser difícil ter um melhor amigo que é tão bonito e
talentoso como eu.

Link pegou o biscoito que havia na minha bandeja e o partiu ao meio.
Podia muito bem ter sido o Twinkie sujo do chão do ônibus. Tinha passado.
Seria preciso bem mais do que uma garota, até mesmo uma Sirena, para
entrar entre nós.

Emily estava olhando para ele.

— É melhor você ir antes que Emily dedure você para sua mãe. E aí você


não vai pra nenhum acampamento de igreja, real ou imaginário.

— Não estou preocupado com ela.

Mas estava. Ele não queria ficar preso em casa com a mãe pelo fim de
ano todo. E não queria levar gelo do time, por todo mundo na Jackson,
mesmo que ele fosse burro demais ou leal demais para se dar conta.







Na segunda-feira, ajudei Amma a tirar as caixas de decorações natalinas do
sótão. A poeira fez meus olhos lacrimejarem; pelo menos foi isso que eu disse
para mim mesmo. Encontrei uma cidadezinha iluminada por pequenas luzes
brancas que minha mãe costumava colocar todo ano embaixo da árvore de
Natal, sobre um pedaço de algodão que fingíamos que era neve. As casinhas
eram da avó dela, e ela as amava tanto que eu as amava, apesar de serem
feitas de papelão, cola e purpurina, e metade das vezes caírem enquanto eu
tentava montá-las. "Coisas velhas são melhores do que as novas porque elas
têm história, Ethan." Ela segurava um velho carrinho de lata e dizia:
"Imagine minha bisavó brincando com o mesmo carro, arrumando a mesma
cidade debaixo da árvore, assim como nós agora."

Eu não via a cidade desde quando? Desde que não via minha mãe, pelo
menos. Parecia menor do que antes, o papelão mais amassado e esfarrapado.
Eu não conseguia achar as pessoas em nenhuma das caixas, nem os bichos. A
cidade parecia solitária, e me deixou triste. De alguma forma, a magia tinha
sumido junto com ela. Me vi tentando alcançar Lena, apesar de tudo.

Sinto saudade de tudo. As caixas estão aqui, mas está tudo errado. Ela
não está aqui. Nem é mais uma cidade. E ela nunca vai conhecer você.

Mas não houve resposta. Lena tinha sumido, ou só me banira. Eu não
sabia o que era pior. Eu estava mesmo sozinho, e a única coisa pior do que
estar sozinho era todo mundo ver o quanto você estava sozinho. Então fui
para o único lugar na cidade onde eu sabia que não encontraria ninguém. A
Biblioteca do Condado de Gatlin.



— Tia Marian?

A biblioteca estava congelante e completamente vazia, como sempre.
Depois do modo como a reunião do Comitê Disciplinar tinha decorrido, eu


supunha que Marian não tivera nenhum visitante.

— Estou aqui atrás.

Ela estava sentada no chão, de sobretudo, com uma pilha de livros
abertos até a cintura, como se tivessem acabado de cair das prateleiras ao seu
redor. Estava segurando um livro, lendo em voz alta, em um de seus
familiares transes literários.

"Nós O vemos chegando, e sabemos que Ele é dos nossos,

Quem, com Seu brilho do Sol, e Suas chuvas,

Transforma todo solo paciente em flores.

O Querido do mundo chegou..."

Ela fechou o livro.

— Robert Herrick. E uma cantiga de Natal, cantada para o rei no
Whitehall Palace. — Ela parecia tão distante quanto Lena ultimamente, eu
percebia agora.

— Desculpe, não conheço o cara. — Estava tão frio que eu podia ver na
respiração se condensando.

— Isso o lembra de quem? Transformar o chão em flores, o querido do
mundo.

— Está falando de Lena? Aposto que a Sra. Lincoln teria alguma coisa a
dizer sobre isso. — Sentei ao lado de Marian, espalhando livros pelo corredor.

— A Sra. Lincoln. Que criatura triste. — Ela balançou a cabeça e pegou
outro livro. — Dickens acha que o Natal é uma época para as pessoas
"abrirem livremente seus corações fechados e pensar nas pessoas abaixo delas
como se fosse companheiros passageiros até o túmulo, e não outra raça de
criaturas."

— O aquecedor está quebrado? Você quer que eu ligue para a
companhia elétrica?

— Esqueci de ligar. Acho que me distraí. — Ela jogou o livro de volta na
pilha ao seu redor. — Uma pena que Dickens nunca veio a Gatlin. Temos
mais do que nossa cota de corações fechados por aqui.

Peguei um livro. Richard Wilbur. Eu o abri, afundando meu rosto no
cheiro das palavras. Olhei para as palavras. "Qual é o oposto de dois? Um eu
solitário, um você solitário," Esquisito, é exatamente assim que eu estava me
sentindo. Fechei o livro e olhei para Marian.

— Obrigado por ir à reunião, tia Marian. Espero que não cause


problemas para você. Senti como se fosse tudo minha culpa.

— Não foi.

— Parece que foi. — Joguei o livro na pilha.

— Como assim, agora você é o autor de toda ignorância? Ensinou a Sra.
Lincoln a odiar e o Sr. Hollingsworth a ter medo?

Ficamos os dois sentados ali, cercados por uma montanha de livros. Ela
esticou a mão e apertou a minha.

— Essa batalha não começou com você, Ethan. Não vai terminar com
você também, lamento, nem comigo, aliás. — O rosto dela ficou sério. —
Quando entrei aqui hoje de manhã, esses livros estavam empilhados no chão.
Não sei como chegaram aqui, nem por quê. Tranquei as portas quando saí
ontem à noite, e ainda estavam trancadas hoje de manhã. Só sei que sentei
para dar uma olhada, e cada um desses livros, todos eles, tinham alguma
mensagem para mim sobre esse momento, nessa cidade, agora. Sobre Lena,
você, eu, até.

Balançou minha cabeça.

— É coincidência. Livros são assim.

Ela pegou um livro aleatório da pilha e o passou para mim.

— Tente você. Abra.

Peguei o livro da mão dela.

— Que livro é?

— Shakespeare. Júlio César.

Eu o abri e comecei a ler.

"Os homens em algum momento são os mestres do próprio destino:

A culpa, prezado Brutus, não está nas nossas estrelas,

Mas em nós mesmos, que somos subordinados."

— O que isso tem a ver comigo?

Marian olhou para mim por cima dos óculos.

— Sou apenas a bibliotecária. Só posso lhe dar os livros. Não posso dar
as respostas. — Mas ela sorriu mesmo assim. — A questão sobre o destino é a
seguinte: é você o mestre do seu destino, ou são as estrelas?

— Você está falando sobre Lena ou sobre Júlio César? Porque odeio
confessar, mas jamais li essa peça.

— Responda você.






Passamos o resto daquela hora verificando a pilha, nos revezando na leitura
em voz alta. Finalmente, eu soube por que tinha vindo.

— Tia Marian, acho que preciso voltar no arquivo.

— Hoje? Você não tem coisas a fazer? Compras de Natal, pelo menos?

— Não faço compras.

— Palavras sábias. Quanto a mim, "Gosto do Natal como um todo... De
seu modo desajeitado, chega próximo à Paz e Boa-vontade. Mas fica mais
desajeitado a cada ano."

— Mais Dickens?

— E.M. Forster.

Suspirei.

— Não consigo explicar. Acho que preciso ficar perto da minha mãe.

— Eu sei. Também sinto saudades dela.

Eu não tinha pensado sobre o que diria para Marian em relação aos
meus sentimentos. Quanto à cidade, e como tudo o mais estava errado. Agora
as palavras pareciam entaladas na minha garganta, como se outra pessoa as
estivesse gaguejando.

— Só pensei que, se eu pudesse ficar perto dos livros dela, talvez pudesse
me sentir como antes. Talvez pudesse falar com ela. Tentei ir ao cemitério
uma vez, mas não me fez sentir como se ela estivesse lá, na terra. — Olhei
para uma mancha no carpete.

— Eu sei.

— Ainda não consigo pensar nela estando lá. Não faz sentido. Por que
você enfiaria alguém que ama em um buraco solitário na terra? Onde é frio,
sujo e cheio de insetos? Não pode ser assim que termina, depois de tudo,
depois de tudo que ela foi. — Tentei não pensar sobre isso, sobre o corpo dela
virando osso e lama e poeira lá embaixo. Odiava a ideia de ela ter que passar
por isso sozinha, como eu estava passando por tudo sozinho agora.

— Como você quer que termine? — Marian colocou uma mão no meu
ombro.

— Não sei. Eu devia, alguém devia construir um monumento para ela ou
algo assim.

— Como o General? Sua mãe teria achado graça disso. — Marian passou
o braço em volta de mim. — Sei o que você quer dizer. Ela não está lá, ela


está aqui.

Ela esticou a mão e eu a ajudei a se levantar. Ficamos de mãos dadas no
caminho até o arquivo, como se eu ainda fosse uma criança de quem ela
estivesse cuidando enquanto minha mãe trabalhava lá atrás. Ela puxou um
chaveiro pesado e abriu a porta. Não me seguiu quando entrei.

De volta ao arquivo, me afundei na cadeira em frente à escrivaninha da
minha mãe. Na cadeira da minha mãe. Era de madeira, e tinha a insígnia da
Universidade de Duke. Acho que deram a ela por ter se formado com honra,
ou alguma coisa do tipo. Não era confortável, mas era reconfortante e
familiar. Senti o cheiro de verniz velho, o mesmo verniz que eu
provavelmente tinha mastigado quando bebê, e imediatamente me senti
melhor do que me sentia há meses. Eu podia sentir o cheiro das pilhas de
livros embrulhados em plástico, do pergaminho se desfazendo, de poeira e
dos arquivos baratos. Podia inspirar o ar especial da atmosfera especial do
planeta muito especial da minha mãe. Para mim, era como se eu tivesse 7
anos e estivesse sentado no colo dela com o rosto afundado em seu ombro.

Eu queria ir para a casa. Sem Lena, não tinha nenhum outro lugar para
ir.

Peguei uma fotografia pequena emoldurada na escrivaninha de minha
mãe, quase escondida entre os livros. Era dela e meu pai no escritório lá de
casa. Alguém a tinha tirado em preto e branco, há muito tempo.
Provavelmente para a contracapa do livro, em um de seus primeiros projetos,
quando meu pai ainda era historiador e eles trabalhavam juntos. Quando
tinham cabelos engraçados e usavam calças feias, e dava para ver a felicidade
em seus rostos. Era difícil de olhar, mas era mais difícil colocá-la de volta.
Quando a pus sobre a escrivaninha, ao lado das pilhas poeirentas de livros,
um livro me chamou a atenção. Tirei-o de debaixo de uma enciclopédia
sobre armas da Guerra Civil e de um catálogo de plantas nativas da Carolina
do Sul. Eu não sabia que livro era aquele. Só sabia que estava marcado com
um longo ramo de alecrim. Sorri. Pelo menos não era uma meia e nem uma
colher velha de plástico.

O livro de receitas da Liga de Beisebol Infantil do Condado de Gatlin,
Frango Frito e Audácia. Ele se abriu sozinho em uma página. "Tomates Fritos
com Soro de Leite de Betty Burton", a receita favorita de minha mãe. O
aroma de alecrim subiu das páginas. Olhei para o alecrim mais de perto.


Estava fresco, como se tivesse sido colhido ontem. Minha mãe não podia tê-lo
posto ali, mas ninguém mais usaria alecrim como marcador. A receita
favorita de minha mãe estava marcada com o aroma familiar de Lena. Talvez
os livros estivessem mesmo tentando me dizer alguma coisa.

— Tia Marian? Você andou querendo fritar tomates?

Ela enfiou a cabeça pela passagem da porta.

— Você acha que eu tocaria em um tomate? Imagine fritar um!

Olhei para o alecrim em minha mão.

— Foi o que pensei.

— Acho que era a única coisa sobre o que sua mãe e eu discordávamos.

— Posso pegar esse livro emprestado? Só por uns dias?

— Ethan, você não precisa pedir. São as coisas da sua mãe; não há nada
nessa sala que ela não gostaria que ficasse para você.

Eu queria perguntar a Marian sobre o alecrim no livro de receitas, mas
não consegui. Não podia suportar mostrar para mais ninguém, nem me
separar dele. Embora eu jamais tivesse fritado e talvez nunca fritasse um
tomate na minha vida, enfiei o livro debaixo do braço enquanto Marian me
acompanhava até a porta.

— Se precisar de mim, estou aqui para você. Para você e para Lena.
Sabe disso. Não há nada que eu não faria por você. — Ela tirou o cabelo da
frente dos meus olhos e me deu um sorriso. Não era o sorriso da minha mãe,
mas era um dos sorrisos favoritos da minha mãe.

Marian me abraçou e enrugou o nariz.

— Está sentindo cheiro de alecrim?

Dei de ombros e saí pela porta, para o dia cinzento. Talvez Júlio César
estivesse certo. Talvez fosse hora de confrontar meu destino, e o destino de

Lena. Se dependia de nós ou das estrelas, eu não podia ficar sentado
esperando para descobrir.







Quando cheguei do lado de fora, estava nevando. Eu não podia acreditar.
Olhei para o céu e deixei a neve cair no meu rosto congelado. Os flocos
grossos e leves caíam sem motivo nenhum em particular. Não era uma
tempestade, de modo algum. Era um presente, talvez até um milagre: um


Natal branco, assim como nas canções.

Quando subi a varanda da frente, lá estava ela, sentada sem o capuz nos
degraus da frente. No momento em que a vi, percebi o que a neve realmente
era. Uma oferta de paz.

Lena sorriu para mim. Naquele segundo, os pedaços da minha vida que
estavam se despedaçando voltaram para o lugar. Tudo que estava errado se
consertou; talvez não tudo, mas o bastante.

Sentei ao lado dela no degrau.

— Obrigado, L.

Ela se inclinou em minha direção.

— Eu só queria fazer você se sentir melhor. Estou tão confusa, Ethan.
Não quero que você se machuque. Não sei o que eu faria se alguma coisa
acontecesse a você.

Passei minha mão pelo seu cabelo úmido.

— Não me afaste, por favor. Não suporto perder mais ninguém de quem
eu gosto.

Abri o zíper da parka que ela vestia, passando meu braço em torno de
sua cintura para puxá-la em minha direção. Beijei-a enquanto ela se apertava
contra mim, até que senti que derreteríamos toda neve do jardim se não
parássemos.

— O que foi isso? — perguntou ela, recuperando o fôlego. Beijei-a de
novo, até que não pudemos mais suportar, e nos afastamos.

— Acho que se chama destino. Estou esperando para fazer isso desde o
baile de inverno, e não vou esperar mais.

— Não vai?

— Não.

— Bem, vai ter que esperar mais um pouco. Ainda estou de castigo. Tio
M pensa que estou na biblioteca.

— Não ligo se você está de castigo. Eu não estou. Me mudo para sua casa
se eu precisar, e durmo com Boo na casinha dele.

— Ele tem um quarto. Dorme numa cama de dossel.

— Melhor ainda.

Ela sorriu e segurou minha mão. Os flocos de neve derretiam quando
pousavam em nossa pele quente.

— Senti sua falta, Ethan Wate. — Ela me beijou. A neve caiu mais forte,


nos encharcando. Estávamos praticamente radioativos. — Talvez você
estivesse certo. Devíamos passar o máximo de tempo possível juntos antes
que... — Ela parou, mas eu sabia em que estava pensando.

— Vamos pensar em alguma coisa, L. Prometo.

Ela assentiu sem convicção e se aconchegou nos meus braços. Eu podia
sentir a calma começando a tomar conta de nós.

— Não quero pensar nisso hoje. — Ela me afastou, brincando, de volta à
terra dos vivos.

— E? Em que você quer pensar, então?

— Anjos de neve. Nunca fiz um.

— É mesmo? Vocês não fazem anjos?

— Não é porque são anjos. Só moramos na Virgínia por alguns meses,
então nunca morei em um lugar que nevasse.









Uma hora depois, estávamos encharcados e sentados à mesa da cozinha.
Amma tinha ido até o Pare & Roube, e estávamos bebendo o lamentável
chocolate quente que eu tentara fazer sozinho.

— Não tenho certeza de que seja assim que se faz chocolate quente —
provocou Lena enquanto eu derramava uma tigela de gotas de chocolate
derretidas em leite quente. O resultado era marrom e branco, e cheio de
pedaços. Para mim, parecia ótimo.

— É? E como você poderia saber? "Faz um chocolate quente, por favor?"
— Imitei sua voz fina com minha voz grave e o resultado foi um estranho
falsete falhado. Ela sorriu. Eu estava com saudade daquele sorriso, apesar de
só terem se passado alguns dias; sentia saudade dele mesmo depois de apenas
alguns minutos.

— Falando em Cozinha, tenho que ir. Falei pro meu tio que estava na
biblioteca, e ela já fechou.

Puxei-a para o meu colo, sentado à mesa da cozinha. Eu estava tendo
dificuldade para não tocá-la a cada segundo, agora que podia de novo. Me vi
inventando desculpas para fazer cócegas, qualquer coisa para tocar em seu
cabelo, nas mãos, nos joelhos. A atração entre nós era como um ímã. Ela se


encostou no meu peito e ficamos ali sentados, até que ouvi pés caminhando
no chão do andar de cima. Ela pulou do meu colo como um gato assustado.

— Não se preocupe, é o meu pai. Ele está só tomando banho. Esta é a
única hora que ele sai do escritório.

— Ele está piorando, não está? — Ela pegou minha mão. Nós dois
sabíamos que aquilo não era uma pergunta.

— Meu pai não era assim até minha mãe morrer. Ele pirou depois disso.

Eu não precisava explicar o resto; ela tinha me ouvido pensar várias
vezes. Sobre como minha mãe morreu, como paramos de fazer tomates fritos,
como perdemos as pecinhas da cidade de Natal, como ela não estava lá para
enfrentar a Sra. Lincoln e como nada nunca mais foi o mesmo.

— Sinto muito.

— Eu sei.

— É por isso que você foi à biblioteca hoje? Para procurar sua mãe?

Olhei para Lena, tirando o cabelo do seu rosto. Assenti e tirei o alecrim
do bolso, depois o coloquei com cuidado no balcão.

— Vamos. Quero te mostrar uma coisa.

Puxei-a da cadeira e peguei a mão dela. Deslizamos pelo chão de
madeira usando meias úmidas e paramos na porta do escritório. Olhei pela
escada para o quarto do meu pai. Eu ainda não ouvia o chuveiro; tínhamos
bastante tempo. Tentei abrir a maçaneta.

— Está trancada. — Lena franziu a testa. — Você tem a chave?

— Espere, veja o que acontece.

Ficamos ali, olhando para a porta. Eu me sentia idiota parado ali, e Lena
também devia se sentir, porque começou a rir. Quando eu estava prestes a
dar uma gargalhada, a porta começou a se destrancar. Ela parou de rir.

Isso não é Conjuro. Eu poderia sentir.

Acho que eu tenho que entrar; ou nós dois.

Dei um passo para trás e a porta se trancou de novo, Lena ergueu a mão,
como se fosse usar os poderes para abrir a porta para mim. Toquei nas costas
dela de leve.

— L, acho que eu preciso fazer isso.

Toquei de novo na maçaneta. A porta se destrancou e abriu, e eu entrei
no escritório pela primeira vez em anos. Ainda era um lugar escuro e
assustador. O quadro coberto com um lençol ainda estava pendurado sobre o


sofá desbotado. Embaixo da janela, a escrivaninha entalhada de mogno do
meu pai estava cheia de papéis, empilhados sobre o computador, empilhados
sobre a cadeira, empilhados meticulosamente sobre o tapete persa no chão —
provavelmente pesquisa para seu novo livro.

— Não toque em nada. Ele vai saber.

Lena se agachou e olhou para a pilha mais próxima. E então ela pegou
uma folha de papel, ligando o abajur de leitura.

— Ethan.

— Não acenda a luz. Não quero que ele desça aqui e tenha um chilique
com a gente. Ele me mataria se soubesse que entramos aqui. Só se preocupa
com o livro.

Ela me passou o papel sem dar uma palavra. Eu o peguei. Estava coberto
de rabiscos. Não palavras rabiscadas, só rabiscos. Peguei um punhado dos
papéis mais perto de mim. Estavam cobertos com linhas rabiscadas e formas,
e mais rabiscos. Peguei uma folha do chão: nada além de pequenas linhas de
círculos. Percorri as pilhas de papel branco que entulhavam a escrivaninha e
o chão. Mais rabiscos e formas, páginas e páginas deles. Nem uma única
palavra.

Então eu entendi. Não tinha livro algum.

Meu pai não era um escritor. Não era sequer um vampiro.

Era um louco.

Eu me agachei, as mãos no joelho. Ia vomitar. Devia ter previsto isso.
Lena massageou minhas costas.

Está tudo bem. Ele só está passando por um momento difícil. Vai voltar
para você.

Não vai. Ele se foi. Ela se foi, e agora vou perdê-lo também.

O que meu pai fez esse tempo todo, me evitou? Qual era o sentido de
dormir o dia inteiro e trabalhar a noite inteira se você não estava trabalhando
em um grande romance? Se você estava rabiscando linhas e linhas de
círculos? Fugindo do seu único filho? Amma sabia? Todo mundo sabia da
brincadeira menos eu?

Não é sua culpa. Não faça isso com você mesmo.

Dessa vez era eu que estava sem controle. A raiva cresceu dentro de
mim, e empurrei seu laptop da escrivaninha, fazendo com que os papéis
saíssem voando. Derrubei o abajur de leitura, e sem pensar, arranquei o


lençol do quadro acima do sofá. O quadro caiu no chão, derrubando uma
estante baixa. Uma pilha de livros voou no chão, se abrindo no tapete.

— Olhe para o quadro. — Ela o endireitou no meio dos livros no chão.

Era uma pintura minha.

Eu, como soldado da Confederação, em 1865. Mas era eu, mesmo assim.

Nenhum de nós dois precisou ler o título escrito a lápis na parte de trás
da moldura para saber quem era aquele. Ele até tinha o cabelo castanho fino
caindo sobre os olhos.

— Já era hora de conhecermos você, Ethan Carter Wate — falei no
momento em que ouvi meu pai descendo a escada.

— Ethan Wate!

Lena olhou para a porta, entrando em pânico.

— Porta!

Ela bateu sozinha e se trancou. Ergui uma sobrancelha. Pensei que
jamais me acostumaria com aquilo.

Houve algumas batidas na porta.

— Ethan, você está bem? O que está acontecendo aí dentro?

Eu o ignorei. Não consegui pensar em outra coisa para fazer, e não podia
suportar olhar para ele agora. Então reparei nos livros.

— Olhe. — Fiquei de joelhos no chão em frente ao mais próximo. Estava
aberto na página 3. Virei para a página 4 e ele voltou para a 3. Assim como a
tranca da porta. — Você fez isso?

— De que você está falando? Não podemos ficar aqui a noite toda.

— Marian e eu passamos o dia na biblioteca. E por mais louco que possa
parecer, ela achava que os livros estavam nos dizendo coisas.

— Que coisas?

— Não sei. Coisas sobre destino, a Sra. Lincoln e você.

— Eu?

— Ethan! Abra essa porta! — Meu pai estava esmurrando a porta, mas
ele tinha me mantido de fora muito tempo. Agora era minha vez.

— No arquivo, achei uma foto da minha mãe nesse escritório e depois
um livro de receitas aberto na receita favorita dela, com um marcador feito
de alecrim. Alecrim fresco. Você não vê? Tem a ver com você, de alguma
forma, e minha mãe. E agora estamos aqui, como se alguma coisa quisesse
que a gente entrasse. Ou, sei lá... alguém.


— Ou talvez você apenas tenha pensado nisso porque viu a foto dela.

— Talvez, mas olhe para isso. — Virei a página do livro Constitutional
History à minha frente, mudando da página 3 para a 4. Mais uma vez, assim
que a virei, a página voltou sozinha.

— Isso é estranho. — Ela se virou para outro livro. South Carolina:
Cradle to Grave. Estava aberto na página 12. Ela virou para a página 11.
Voltou sozinho para a 12.

Tirei o cabelo dos meus olhos.

— Mas essa página não diz nada, é um gráfico. Os livros de Marian
estavam abertos em certas páginas porque estavam tentando nos dizer
alguma coisa, eram mensagens. Os livros da minha mãe não parecem estar
nos dizendo nada.

— Talvez seja alguma espécie de código.

— Minha mãe era péssima em matemática. Ela era escritora — falei,
como se isso fosse explicação suficiente. Mas não era, e minha mãe sabia disso
melhor do que ninguém.

Lena pegou o próximo livro.

— Página 1. É apenas a página do título. Não pode ser o conteúdo.

— Por que ela me deixaria um código? — Eu pensava alto, mas Lena
também tinha a resposta.

— Porque você sempre sabe o final do filme. Porque cresceu com Amma
e os livros de mistério e as palavras-cruzadas. Talvez sua mãe achasse que
você descobriria alguma coisa que ninguém mais entenderia.

Meu pai bateu na porta sem convicção. Olhei para o livro seguinte.
Página 9, depois a 13. Nenhum dos números era maior do que 26. E, ainda
assim, muitos dos livros tinham muito mais páginas do que isso...

— Há 26 letras no alfabeto, certo?

— Sim.

— É isso. Quando eu era pequeno e não conseguia ficar parado na igreja
com as Irmãs, minha mãe inventava brincadeiras pra mim no verso do livreto
da igreja. Forca, anagramas e isso, o código do alfabeto.

— Espere, vou pegar uma caneta. — Ela pegou uma na escrivaninha. —
Se A é 1 e B é 2... Deixe-me escrever.

— Cuidado. Às vezes eu fazia ao contrário, e o Z era 1.

Lena e eu nos sentamos no meio de um círculo de livros, indo de um


para o outro, enquanto meu pai batia na porta do lado de fora. Eu o ignorei,
assim como ele sempre me ignorava. Eu não ia respondê-lo, nem dar
nenhuma explicação. Ele que visse como era para variar.

— 9, 14,22,15,17,21,5...

— Ethan! O que você está fazendo aí dentro? Que barulheira foi aquela?

— 1,19,9,13, 5,19,13,1.

Olhei para Lena e ergui a folha de papel. Eu já estava um passo à frente.

— Acho que a mensagem é pra você.

Estava tão claro como se minha mãe estivesse no escritório, nos dizendo
com as palavras dela, na voz dela.

INVOQUE A SI MESMA.

Era uma mensagem para Lena.

Minha mãe estava ali, em alguma forma, em algum sentido, em algum
universo. Minha mãe ainda era minha mãe, mesmo se só vivesse em meio a
livros, maçanetas, cheiro de tomate frito e papel velho.

Ela vivia.









Quando finalmente abri a porta, meu pai estava logo em frente, parado, de
roupão. Ele olhou para além de mim, para dentro do escritório, onde as
páginas do romance imaginário dele estavam espalhadas pelo chão e o
quadro de Ethan Carter Wate estava apoiado no sofá, descoberto.

— Ethan, eu...

— O quê? Ia me contar que estava trancado no escritório há meses
fazendo isso? — Ergui uma das páginas amassadas na mão.

Ele olhou para o chão. Meu pai podia ser louco, mas ainda estava são o
bastante para saber que eu entendera a verdade. Lena estava sentada no sofá,
parecendo desconfortável.

— Por quê? É só o que quero saber. Houve em algum momento algum
livro ou você só estava tentando me evitar?

Meu pai ergueu a cabeça lentamente, os olhos cansados e injetados. Ele
parecia velho, como se a vida o tivesse esgotado, uma decepção de cada vez.

— Eu só queria ficar mais próximo dela. Quando estou aí dentro, com os


livros e as coisas dela, parece que ela não se foi. Ainda sinto o cheiro dela.
Tomate frito... — A voz dele sumiu, como se ele estivesse perdido dentro da
própria mente de novo e o raro momento de lucidez tivesse acabado.

Ele passou por mim, entrou no estúdio e se inclinou para pegar uma das
páginas cobertas de círculos. Sua mão tremia.

— Eu estava tentando escrever. — Ele olhou para a cadeira da minha
mãe. — Só não sei mais o quê.

Não era por minha causa. Nunca tinha sido. Era por causa da minha
mãe. Há algumas horas, eu tinha me sentido da mesma maneira na
biblioteca, sentado em meio às coisas dela, tentando senti-la ali comigo. Mas
agora eu sabia que ela não tinha ido embora, e tudo era diferente. Meu pai
não sabia. Ela não destrancava portas para ele e nem deixava mensagens. Ele
não tinha nem isso.









Na semana seguinte, na véspera de Natal, a gasta e torta cidade de papelão
não parecia tão pequena. A torre inclinada permaneceu na igreja, e a fazenda
até ficava de pé sozinha, se fosse colocada na posição certa. A cola branca
com purpurina brilhava e o mesmo pedaço de neve de algodão segurava a
cidade, constante como o tempo.

Fiquei deitado de bruços no chão, com a cabeça enfiada debaixo dos
galhos mais baixos do pinheiro branco, como sempre fazia. As folhas que
pareciam agulhas verdes arranharam meu pescoço enquanto eu,
cuidadosamente, empurrava uma corda de luzinhas brancas, uma a uma,
para dentro dos buracos circulares na parte de trás da cidade quebrada. Me
sentei um pouco distante para dar uma olhada, a luz branca suave ficando
colorida pelas janelas de papel colorido da cidade. Não encontramos as
pessoas, e os carros de lata e os animais ainda estavam sumidos. A cidade
estava vazia, mas pela primeira vez ela não parecia deserta, e eu não me
sentia sozinho.

Enquanto eu estava sentado ali, ouvindo o lápis de Amma arranhando o
papel e o velho disco de Natal arranhado do meu pai, uma coisa chamou
minha atenção. Era pequena e escura, e aparecia entre camadas da neve de


algodão. Era uma estrela, do tamanho de uma moeda, pintada de prata e
ouro, e cercada de um halo retorcido que parecia um clipe de papel. Era da
árvore de Natal da cidade, feita de uma escovinha, e não a encontrávamos há
anos. Minha mãe a tinha feito na escola, quando era uma garotinha em
Savannah.

Coloquei-a no bolso. Eu a daria a Lena na próxima vez em que a visse,
para o cordão de penduricalhos, só para garantir. Para que não se perdesse
de novo. Para que eu não me perdesse de novo.

Minha mãe teria gostado disso. Gostaria disso. Assim como teria gostado
de Lena — ou talvez até gostasse.

Invoque a si mesma.

A resposta estava na nossa frente o tempo todo. Estava apenas trancada
com todos os livros no escritório do meu pai, enfiada entre as páginas no livro
de receitas da minha mãe.

Perdida em meio a neve poeirenta.












































p 12 de janeiro p

d



Promessa















H



avia alguma coisa no ar. Normalmente, quando se ouve tal frase, não há
nada no ar. Mas, quanto mais o aniversário de Lena se aproximava,
mais eu me questionava. Quando voltamos das férias de inverno, os
corredores estavam marcados de tinta spray, cobrindo armários e paredes.
Mas não era o tipo de pichação tradicional; as palavras nem pareciam estar
na nossa língua. Não se acharia que eram palavras, a não ser para quem viu
O Livro das Luas.

Uma semana depois, todas as janelas da sala de Inglês se quebraram.
Mais uma vez, podia ter sido o vento, só que não tinha nem brisa. E como o
vento podia se direcionar para uma única sala de aula?

Agora que eu não jogava mais basquete, tinha que fazer Educação Física
pelo resto do ano, disparado a pior de todas as aulas da Jackson. Depois de
uma hora de corridas de velocidade cronometradas e mãos ardendo por
escalar uma corda com nós até o teto do ginásio, cheguei ao meu armário e
encontrei a porta aberta e meus papéis espalhados pelo corredor. Minha
mochila tinha sumido. Apesar de Link tê-la achado algumas horas depois em
uma lata de lixo do lado de fora do ginásio, aprendi minha lição. Jackson
High não era lugar para O Livro das Luas.

Dali em diante, guardamos o Livro no meu armário em casa. Eu
esperava que Amma o descobrisse, dissesse alguma coisa, cobrisse meu quarto
com sal, mas isso não. Nas últimas seis semanas, vinha passando todo o meu
tempo lendo o velho livro de couro, com e sem Lena, usando o dicionário
surrado de latim da minha mãe. As luvas de forno de Amma me ajudaram a


minimizar as queimaduras. Havia centenas de Conjuros, e só alguns poucos
eram em inglês. O resto estava escrito em línguas que eu não conseguia ler, e
na língua Conjuradora que não tínhamos como decifrar. Eu ia ficando mais
familiarizado com as páginas e Lena ficava mais agitada.

— Invoque a si mesma. Isso não significa nada.

— Claro que significa.

— Nenhum dos capítulos diz nada sobre isso. Não está em nenhuma
descrição de Invocação no Livro.

— Só temos que continuar procurando. Não vamos encontrar nenhum
guia sobre isso.

O Livro das Luas tinha que ter uma resposta; se nós ao menos
conseguíssemos achá-la. Não conseguíamos pensar em mais nada, exceto no
fato de que em um mês podíamos perder tudo.







De noite, ficávamos acordados até tarde conversando, cada um na sua cama,
porque agora cada noite parecia mais próxima da noite que podia ser nossa
última.

Em que você está pensando, L?

Você quer mesmo saber?

Sempre quero saber.

Queria? Olhei para o mapa enrugado na minha parede, para a fina linha
verde ligando todos os pontos sobre os quais eu tinha lido. Lá estavam elas,
todas as cidades do meu futuro imaginário, unidos por fita adesiva, caneta e
tachinhas. Em seis meses, muita coisa tinha mudado. Não havia linha verde
alguma que pudesse me levar até meu futuro. Só uma garota.

Mas agora a voz dela estava baixa e eu tinha que me esforçar para ouvi-
la.

Há uma parte de mim que gostaria que jamais tivéssemos nos conhecido.

Você está brincando, não é?

Ela não respondeu. Não imediatamente.

Só torna tudo tão mais difícil. Achei que tinha muito a perder antes, mas
agora tenho você.

Entendo.


Tirei a cúpula do abajur ao lado da minha cama e olhei direto para a
impada. Se eu olhasse bem para ela, o brilho faria meus olhos doerem e me
impediria de chorar.

E eu posso perder você.

Isso não vai acontecer, L.

Ela ficou em silêncio. Meus olhos ficaram temporariamente cegos pelos
raios e espirais da luz. Eu não conseguia nem ver o azul do teto do meu
quarto, apesar de estar olhando diretamente para lá.

Promete?

Prometo.

Era uma promessa que ela sabia que eu talvez não pudesse cumprir. Mas
eu a fiz mesmo assim, porque ia dar um jeito de fazê-la ser verdadeira.

Queimei minha mão quando fui tentar apagar a luz.
















































p 4 de fevereiro p

d



Sandman ou algo como ele













E



m uma semana seria o aniversário de Lena.

Sete dias.

Cento e sessenta e seis horas.

Dez mil e oito segundos.

Invoque a si mesma.

Lena e eu estávamos exaustos, mas ainda assim matamos aula para
passar o dia com O Livro das Luas. Eu havia me tornado um especialista na
assinatura de Amma, e a Srta. Hester não ousaria pedir a Lena um bilhete de
Macon Ravenwood. Era um dia claro e frio, e nos enroscamos no jardim
congelante de Greenbrier, encolhidos no velho saco de dormir do Lata-
Velha, tentando descobrir pela milésima vez se alguma coisa no Livro poderia
ajudar.

Eu percebia que Lena começava a desistir. O teto do quarto dela estava
completamente coberto de tinta de caneta, as paredes repletas das palavras
que ela não podia dizer, e pensamentos assustados demais para serem
expressados.

fogo das trevas, luz trevas / matéria das trevas, o que importa? a grande
treva engole a grande luz, com engolem a minha vida / conjuradora / garota
super / natural antes / primeira vista sete dias sete dias sete dias
777777777777777.

Eu não podia culpá-la. Parecia não haver esperanças, mas eu não estava
pronto para desistir. Jamais estaria. Lena se apoiou no velho muro de pedra
que estava desmoronando, assim como a mínima chance que tínhamos.

— Isso é impossível. Há Conjuros demais. Nem sabemos o que estamos


procurando.

Havia Conjuros para todo objetivo concebível: Cegar os Infiéis, Trazer
Água do Mar, Enfeitiçar Runas.

Mas nada que dizia Conjuro para Tirar Maldição sobre a Família
Causada por Conjuro das Trevas, ou Conjuro para Desfazer o Ato de Tentar
Trazer o Herói de Guerra da Tatara-tataravó Genevieve de Volta à Vida, ou
Conjuro para Evitar Ir para as Trevas na Invocação. Ou o que eu realmente
procurava, Conjuro para Salvar sua Namorada (Agora que Você Finalmente
Tem Uma) Antes que Seja Tarde Demais.

Voltei para o sumário: OBSECRATIONES, INCANTAMINA,
NECTENTES, MALEDICENTES, MALÉFICA.

— Não se preocupe, L. Vamos dar um jeito. — Mas na hora em que eu
falei, já não tinha tanta certeza.











Quanto mais tempo o livro ficava na prateleira do alto do meu armário, mais
eu sentia que meu quarto estava ficando assombrado. Estava acontecendo
com nós dois, a cada noite; os sonhos, que mais pareciam pesadeios, estavam
piorando. Eu não dormia por mais que umas poucas horas há dias. Cada vez
que eu fechava os olhos, cada vez que adormecia, lá estavam eles. Esperando.
Mas o pior de tudo era o mesmo pesadeio repetido constantemente. Toda
noite eu perdia Lena novamente, e isso estava me matando.

Minha única estratégia era ficar acordado. Me entupir de açúcar e
cafeína de tanto beber Coca e Red Buli enquanto jogava vídeo game. Ler
tudo, desde O Coração das Trevas até minha edição favorita do Surfista
Prateado, na qual Galactus engole o universo repetidas vezes. Mas como
qualquer um que ficou dias sem dormir sabe, na terceira ou quarta noite você
está tão cansado que poderia adormecer de pé.

Nem Galactus tinha chance.














Queimando.

Havia fogo para todo lado.

E fumaça. Engasguei na fumaça e nas cinzas. Estava completamente
escuro, impossível de enxergar. E o calor era como lixa arranhando minha
pele.

Eu não conseguia ouvir nada além do rugido do fogo.

Não conseguia nem ouvir Lena gritando, exceto na minha cabeça.

Solte! Você tem que sair!

Eu podia sentir os ossos do meu punho estalando, como finas cordas de
violão arrebentando uma a uma. Ela soltou do meu braço como se estivesse
se preparando para que eu a soltasse, mas eu jamais soltaria.

Não faça isso, L! Não solte!

Me solte! Por favor... Se salve!

Eu jamais soltaria.

Mas eu podia senti-la escorregando pelos meus dedos. Tentei segurar
com mais força, mas ela estava indo...









Sentei de repente na cama, tossindo. Era tão real que eu sentia o gosto de
fumaça. Mas meu quarto não estava quente; estava frio. Minha janela estava
aberta de novo. A luz da lua permitiu que meus olhos se ajustassem mais
rapidamente à escuridão habitual.

Reparei em alguma coisa com o canto do olho. Alguma coisa estava se
movendo nas sombras.

Tinha alguém no meu quarto.

— Puta merda!

Ele tentou sair antes que eu o percebesse, mas não foi rápido o bastante.
Sabia que eu o tinha visto. Então ele fez a única coisa que podia. Se virou
para me encarar.

— Apesar do seu terrível linguajar, quem sou eu para chamar sua


atenção depois de saída tão indelicada? — Macon deu seu sorriso de Cary
Grant e se aproximou da ponta da minha cama. Estava usando um longo
casaco preto e calça preta. Parecia vestido para algum tipo de noitada na
cidade na virada do século passado em vez de uma invasão de domicílio nos
dias modernos. — Oi, Ethan.

— Que diabos você está fazendo no meu quarto?

Ele parecia perdido, no padrão de Macon, o que apenas significava que
não tinha uma explicação imediata e encantadora na ponta da língua.

— É complicado.

— Bem, descomplique. Pois você subiu pela minha janela no meio da
noite, então ou você é algum tipo de vampiro ou algum tipo de pervertido, ou
os dois. Qual deles?

— Mortais. Tudo é tão preto e branco para vocês. Não sou Caçador nem
Devastador. Você estaria me confundindo com meu irmão, Hunting. Sangue
não me interessa. — Ele tremeu com a ideia . — Nem sangue, nem carne. —
Acendeu um charuto, fazendo-o rolar entre os dedos. Amma ia ter um ataque
quando sentisse o cheiro daquilo amanhã. — Na verdade, tudo isso me deixa
meio enjoado.

Eu estava perdendo a paciência. Não dormia há dias e estava cansado de
todo mundo desviando das minhas perguntas o tempo todo. Queria respostas,
e queria já.

— Já cansei dos seus enigmas. Responda à pergunta. O que está fazendo
no meu quarto?

Ele andou até a cadeira giratória vagabunda perto da minha
escrivaninha e sentou rapidamente.

— Vamos apenas dizer que eu estava bisbilhotando.

Peguei uma camiseta velha da Jackson embolada no chão e a enfiei pela
cabeça.

— Bisbilhotando o quê, exatamente? Não tem ninguém aqui. Eu estava
dormindo.

— Não, na verdade você estava sonhando.

— Como você sabe disso? É um dos seus poderes Conjuradores?

— Na verdade, não. Não sou um Conjurador, não tecnicamente.

O ar ficou preso na minha garganta. Macon Ravenwood nunca saía de
casa durante o dia; podia aparecer do nada, observar as pessoas pelos olhos


do lobo que passava por cachorro e quase acabou com a vida de uma
Conjuradora das Trevas sem nem piscar. Se ele não era Conjurador, então só
havia uma explicação.

— Então você é um vampiro.

— Isso decididamente não sou. — Ele parecia irritado. — Essa é uma
conclusão tão comum, tão clichê e nada lisonjeira. Não existem vampiros.
Suponho que você acredite em lobisomens e alienígenas também. Culpo a
televisão. — Ele tragou profundamente o charuto. — Odeio desapontá-lo.
Sou um Incubus. Tenho certeza de que seria apenas uma questão de tempo
até que Amarie contasse para você, já que ela parece tão dedicada a revelar
todos os meus segredos.

Um Incubus? Eu nem sabia se devia ficar com medo. Devo ter parecido
confuso, porque Macon se sentiu compelido a explicar melhor.

— Por natureza, cavalheiros como eu têm certos poderes, mas esses
poderes são apenas relativos às nossas forças, que precisamos recarregar
regularmente. — Houve alguma coisa perturbadora no modo como ele disse
recarregar.

— O que você quer dizer com recarregar?

— Nos alimentamos, por falta de uma palavra melhor, de Mortais para
recarregar nossa força.

O quarto começou a rodar. Ou talvez Macon estivesse rodando.

— Ethan, sente-se. Você está absolutamente pálido. — Macon veio até
mim e me guiou até a beirada da cama. — Como eu disse, uso a palavra
"alimentar" por falta de um termo melhor. Só um Incubus de Sangue se
alimenta de sangue Mortal, e não sou um Incubus de Sangue. Apesar de
sermos ambos Lilum, ou seja, aqueles que residem nas Trevas Absolutas, eu
sou uma criatura infinitamente mais evoluída. Pego uma coisa que vocês
Mortais têm em abundância, uma coisa de que vocês nem precisam.

— O quê?

— Sonhos. Partes e pedaços fragmentados. Ideias, desejos, medos,
lembranças... Nada de que você sentirá falta. — As palavras saíram da sua
boca como se estivesse dizendo um feitiço. Me vi lutando para processá-las,
tentando entender o que ele estava dizendo. Minha mente parecia estar
embrulhada em lã grossa.

Mas então eu entendi. Podia sentir as peças se unindo como um quebra-


cabeça na minha mente.

— Os sonhos... Você vem pegando partes deles? Sugando da minha
cabeça? É por isso que não consigo lembrar o sonho todo?

Ele sorriu e apagou o charuto em uma lata de Coca vazia na minha
escrivaninha.

— Me declaro culpado. Exceto pela parte de "sugar". Não é uma nomen-
clatura muito educada.

— Se é você que anda sugando... roubando meus sonhos, então você
sabe o resto. Sabe o que acontece no final. Pode nos contar, para podermos
impedir.

— Receio que não. Seleciono os pedaços que pego intencionalmente.

— Por que não quer que a gente saiba o que acontece? Se soubermos o
resto do sonho, talvez possamos impedir que aconteça.

— Parece que você já sabe demais, não que eu mesmo o entenda
completamente.

— Pare de falar de maneira enigmática pelo menos uma vez. Você fica
dizendo que posso proteger Lena, que eu tenho poder. Por que não me conta
que diabos está acontecendo de verdade, Sr. Ravenwood, porque estou
cansado e de saco cheio de ser enrolado.

— Não posso contar o que não sei, filho. Você é um mistério.

— Não sou seu filho.

— Melchizedek Ravenwood! — A voz de Amma soou como um sino.

Macon começou a perder a compostura.

— Como você ousa entrar nessa casa sem minha permissão? — Ela
estava em seu roupão segurando um cordão cheio de contas. Se eu não a
conhecesse, teria pensado que era um colar. Amma sacudiu o amuleto de
contas com raiva. — Temos um acordo. Essa casa está fora do seu território.
Encontre outro lugar para seus negócios sujos.

— Não é tão simples, Amarie. O garoto está vendo coisas nos sonhos,
coisas que são perigosas para os dois.

Os olhos de Amma estavam selvagens.

— Você está se alimentando do meu menino? É isso que está dizendo?
Isso deveria me fazer sentir melhor?

— Acalme-se. Não seja tão literal. Só estou fazendo o que é necessário
para proteger os dois.


— Sei o que você faz e o que você é, Melchizedek, e você vai lidar com o
demônio na sua hora. Não traga esse mal para a minha casa.

— Fiz uma escolha há muito tempo, Amarie. Lutei contra o que eu
estava destinado a me tornar. Luto cada noite da minha vida. Mas não sou
das Trevas, não enquanto tenho a criança que é minha responsabilidade.

— Não muda o que você é. Isso não é uma escolha sua.

Os olhos de Macon se apertaram. Estava claro que a barganha entre eles
dois era delicada, e ele a tinha ameaçado ao ir lá. Quantas vezes? Eu nem
sabia.

— Por que você simplesmente não me conta o que acontece no final do
sonho? Tenho direito de saber. É meu sonho.

— É um sonho poderoso, perturbador, e Lena não precisa vê-lo. Ela não
está pronta para vê-lo, e vocês dois estão inexplicavelmente ligados. Ela vê o
que você vê. Então você pode entender por que eu tive que tirá-lo de você.

A fúria cresceu dentro de mim. Eu estava tão furioso, mais do que
quando a Sra. Lincoln se levantou e mentiu sobre Lena na reunião do
Comitê Disciplinar, mais do que quando descobri as páginas de rabiscos no
escritório do meu pai.

— Não. Não entendo. Se você sabe de alguma coisa que pode ajudá-la,
por que não conta para nós? Ou apenas para de usar seus truques mentais de
Jedi em mim sonhos e me deixa ver o que sonho por conta própria?

— Só estou tentando protegê-la. Amo Lena, e jamais...

— Eu sei. Já ouvi. Você jamais faria algo para machucá-la. O que você se
esqueceu de dizer é que você não faz nada para ajudá-la também.

O maxilar dele travou. Agora era ele que estava furioso; eu já sabia como
reconhecer. Mas não perdeu a pose, nem por um minuto.

— Estou tentando protegê-la, Ethan, e você também. Sei que você se
preocupa com Lena, e oferece a ela algum tipo de proteção, mas há coisas
que você não vê agora, coisas que estão além do nosso controle. Um dia você
vai entender. Você e Lena são diferentes demais.

Separados por espécie. Como o outro Ethan escreveu para Genevieve.
Eu entendia sim. Nada tinha mudado em mais de cem anos.

A expressão dele se suavizou. Pensei que talvez ele tivesse pena de mim,
mas era outra coisa.

— No fim das contas, o peso será seu e você terá que carregar. É sempre


o Mortal que carrega. Confie em mim, eu sei.

— Não confio em você e você está errado. Não somos tão diferentes.

— Mortais. Tenho inveja de vocês. Acham que podem mudar as coisas.
Parar o universo. Desfazer o que foi feito muito antes de vocês surgirem.
Vocês são criaturas tão lindas. — Ele estava falando comigo, mas não parecia
que estava falando mais sobre mim. — Peço desculpas pela intromissão. Vou
deixá-lo dormir.

— Fique fora do meu quarto, Sr. Ravenwood. E fora da minha cabeça.
Ele se virou em direção à porta, o que me surpreendeu. Eu esperava que

ele saísse pelo caminho que entrou.

— Mais uma coisa. Lena sabe que você está aqui? Ele sorriu.

— E claro. Não há segredos entre nós.

Eu não retribuí o sorriso. Havia mais do que alguns segredos entre eles,
mesmo que eu não fosse um deles, e Macon e eu sabíamos disso. Ele se virou
de costas com um balanço do casaco e se foi. De repente.














































p 5 de fevereiro p

d



A batalha de Honey Hill















N



a manhã seguinte, acordei com uma dor de cabeça latejante. Não achei,
como acontece com frequência nas histórias, que a coisa toda não tinha
acontecido. Não achei que Macon Ravenwood aparecer e desaparecer
do meu quarto na noite anterior tinha sido um sonho. Todo dia de manhã
durante meses depois do acidente de minha mãe, eu acordei acreditando que
tudo tinha sido um sonho ruim. Jamais cometeria o mesmo erro de novo.

Dessa vez eu sabia que, se parecia que tudo tinha mudado, era porque
tinha mudado. Se parecia que as coisas estavam ficando cada vez mais
estranhas, era porque estavam. Se parecia que Lena e eu estávamos ficando
sem tempo, era porque estávamos.









Faltam seis dias a contar de hoje. As coisas não pareciam muito favoráveis a
nós. Era tudo que havia para dizer. Então é claro que não dizíamos nada. Na
escola, fizemos o que sempre fazíamos. Ficávamos de mãos dadas no
corredor. Nos beijávamos perto dos armários dos fundos até que nossos lábios
doessem e eu me sentisse perto de ser eletrocutado. Ficávamos em nossa
bolha, apreciávamos o que tentávamos fingir ser nossas vidas comuns, ou o
pouco que tínhamos delas. E conversávamos, o dia todo, a cada minuto de
cada aula, mesmo as que não tínhamos juntos.


Lena me contou de Barbados, onde a água e o céu se encontravam em
uma fina linha azul até que não desse para saber qual era qual, enquanto eu
deveria estar fazendo uma tigela de corda e argila na aula de cerâmica.

Lena me contou sobre a avó, que a deixava beber 7-Up usando alcaçuz
como canudo, enquanto escrevíamos nossa redação sobre O Médico e o
Monstro na aula de inglês e Savannah Snow estourava bolas de chiclete.

Lena me contou sobre Macon, que, apesar de tudo, tinha comparecido a
cada aniversário, onde quer que ela estivesse, desde que ela podia se lembrar.

Naquela noite, depois de ficarmos acordados hora após hora com O
Livro das Luas, observamos o nascer do sol, apesar de ela estar em
Ravenwood e eu estar em casa.

Ethan?

Estou aqui.

Estou com medo.

Eu sei. Você devia tentar dormir um pouco, L.

Não quero perder tempo dormindo.

Nem eu.

Mas nós dois sabíamos que não era isso. Nenhum de nós estava a fim de
sonhar.











"A NOITE DA INVOCAÇÃO É A NOITE DA GRANDE FRAQUEZA,
QUANDO AS TREVAS INTERIORES APRECIAM AS TREVAS
EXTERIORES E A PESSOA DE PODER SE ABRE PARA A GRANDE
TREVA, DESPIDA DE PROTEÇÕES, FEITIÇOS E CONJUROS DE
BLOQUEIO E IMUNIDADE. A MORTE, NA HORA DA INVOCAÇÃO,
É DEFINITIVA E ETERNA..."

Lena fechou o livro.

— Não consigo mais ler nada disso.

— Nem me fale. Não me surpreendo que seu tio esteja o tempo todo
preocupado.

— Não é o bastante que eu possa virar algum tipo de demônio do mal.


Também posso sofrer morte eterna. Acrescente isso à lista de maldições
iminentes.

— Pode deixar. Demônio. Morte. Maldição.

Estávamos no jardim de Greenbrier de novo. Lena me passou o livro e
deitou de costas, olhando para o céu. Eu esperava que ela estivesse brincando
com as nuvens em vez de pensando sobre o quão pouco tínhamos descoberto
durante essas tardes com o Livro. Mas não pedi que me ajudasse enquanto eu
o folheava, usando as luvas velhas de jardinagem de Amma que eram
pequenas demais.

Havia milhares de páginas em O Livro das Luas, e algumas páginas
continham mais de um Conjuro. Não havia lógica alguma no modo como
estavam organizados, pelo menos não que eu pudesse ver. O Sumário era
uma espécie de brincadeira que pouco correspondia a alguns dos que podiam
ser encontrados nele. Virei as páginas na esperança de dar de cara com
alguma coisa. Mas a maioria das páginas parecia baboseira. Olhei para as
palavras que eu não conseguia entender.



I DDARGANFOD YR HYN SYDD AR GOLL

DATODWCH Y CWLWM, TROELLWCH A THROWCH EF

BWRIWCH Y RHWYMYN HWN

FEL Y CAF GANFOD

YR HYN RWY’N DYHEU AMDANO

YR HYN RWY’N EI GEISIO.



Algo saltou à minha vista, uma palavra que reconheci de uma citação
pregada na parede do escritório dos meus pais: "PETE ET INVENIES."
Procure e você vai encontrar, "INVENIES." Encontrar.



UT INVENIAS QUOD ABEST

EXPEDI NODUM, TORQUE ET CONVOLVE

ELICE HOC VINCULUM

UT INVENIAM

QUOD DESIDERO

QUOD PETO.




Revirei as páginas do dicionário de latim da minha mãe, rabiscando as
palavras atrás conforme eu as traduzia. As palavras do Conjuro pareciam
olhar para mim Encontrar.



Para encontrar o que está faltando,

Desate o laço, trance e enrole

Conjure esse feitiço

Para que eu possa achar

Aquilo pelo que anseio

Aquilo que procuro.



— Encontrei uma coisa!

Lena se sentou, olhando por cima do meu ombro.

— Do que você está falando? — Ela não parecia nada convencida.

Mostrei o texto na minha caligrafia de garranchos para que ela lesse.

— Traduzi isso. Parece que dá pra usar pra encontrar alguma coisa.

Lena chegou mais perto, verificando minha tradução. Os olhos dela se
arregalaram.

— É um Conjuro Localizador.

— Isso parece uma coisa que podemos usar para encontrar a resposta,
para descobrirmos como desfazer a maldição.

Lena puxou o Livro para o colo, olhando para a página. Apontou para o
outro Conjuro acima dele.

— É o mesmo Conjuro em galés, eu acho.

— Mas pode nos ajudar?

— Não sei. Nem sabemos o que estamos procurando. — Ela franziu a
testa, de repente menos entusiasmada. — Além disso, Conjurar Falando não é
tão fácil quanto parece, e eu nunca fiz antes. Coisas podem dar errado. — Ela
estava brincando, não é?

— Coisas podem dar errado? Coisas piores do que virar uma
Conjuradora das Trevas no seu décimo-sexto aniversário? — Tirei o Livro
das mãos dela, queimando as margaridas das pontas dos dedos das luvas. —
Por que cavamos um túmulo parar achar essa coisa e perdemos semanas
tentando descobrir o que diz se nem vamos tentar? — Segurei o Livro até que
uma das luvas começou a emitir fumaça.


Lena sacudiu a cabeça.

— Me dê isso. — Ela respirou fundo. — Certo, vou tentar, mas não tenho
ideia do que vai acontecer. Normalmente não faço assim.

— Assim?

— Você sabe, o modo como uso meus poderes, esse lance de Natural.
Quero dizer, esse é o ponto, não é? É pra ser natural. Nem sei o que estou
fazendo na metade das vezes.

— Tá, então dessa vez você faz e eu ajudo. O que precisamos fazer?
Desenhar um círculo? Acender umas velas?

Lena revirou os olhos.

— Que tal sentar aqui? — Ela apontou para um lugar a alguns metros. —
Só por precaução.

Esperava um pouco mais de preparação, mas eu era apenas um Mortal.
O que eu sabia? Ignorei a ordem de Lena para ficar longe do seu primeiro
Conjuro Falado, mas dei alguns passos para trás. Lena segurou o Livro em
uma mão, o que já era um grande feito porque ele era incrivelmente pesado,
e respirou fundo. Seus olhos desceram lentamente a página enquanto ela lia.

"Desate o laço, trance e enrole

Conjure esse Feitiço

Para que eu possa achar

Aquilo pelo que anseio..."

Ela olhou para a frente e falou a última parte, com clareza e força.

"Aquilo que procuro."







Por um segundo, nada aconteceu. As nuvens ainda estavam no céu, o ar
ainda estava frio. Não funcionou. Lena deu de ombros. Eu sabia que ela
estava pensando a mesma coisa. Até que nós dois ouvimos um som como
uma rajada de ar ecoando em um túnel. A árvore atrás de mim pegou fogo.
Ela realmente entrou em chamas de baixo para cima. As chamas percorriam
o tronco, rugindo, se espalhando em cada galho. Eu nunca tinha visto nada
pegar fogo tão rapidamente.

A madeira começou a soltar fumaça imediatamente. Puxei Lena para
longe do fogo, tossindo.


— Você está bem? — Ela estava tossindo também. Afastei os cachos
negros dos olhos dela. — Bem, obviamente não funcionou. A não ser que
você estivesse querendo torrar uns marshmallows muito grandes.

Lena sorriu debilmente.

— Falei que as coisas podiam dar errado.

— Errado é pouco.

Olhamos o cipreste em chamas. Faltavam cinco dias.













Faltando quatro dias, as nuvens de tempestade chegaram e Lena ficou em
casa, doente. O Santee transbordou e as estradas seguiam em aguaceiros para
o norte da cidade. O noticiário local atribuiu ao aquecimento global, mas eu
sabia a verdade. Enquanto eu estava na aula de Álgebra II, Lena e eu
conversamos sobre o Livro, algo que não ajudaria na minha nota na prova.

Esqueça o Livro, Ethan. Estou cansada dele. Não está ajudando.

Não podemos esquecer dele. É sua única chance. Você ouviu seu tio. É o
livro mais poderoso do mundo Conjurador.

É também o Livro que amaldiçoou minha família toda.

Não desista. A resposta tem que estar em algum lugar no Livro.

Eu a estava perdendo, ela não queria me ouvir, e eu estava prestes a me
dar mal na terceira prova do semestre. Ótimo.

Aliás, você sabe simplificar 7x - 2(4x -6)?

Eu sabia que ela sabia. Ela já estava em Trigonometria.

O que isso tem a ver?

Nada. Mas vou me ferrar nessa prova.

Ela suspirou.

Ter uma namorada Conjuradora tinha suas vantagens.





Faltando três dias os deslizamentos de terra começaram e o campo superior
despencou no ginásio. A equipe de líderes de torcida não se apresentaria por


um tempo, e o Comitê Disciplinar teria que achar outro lugar para seus
julgamentos de bruxas. Lena ainda não tinha voltado à escola, mas estava na
minha cabeça o dia todo. A voz dela foi ficando mais fraca, até que eu mal
podia ouvi-la com o caos de mais um dia na Jackson.

Sentei sozinho no refeitório. Não conseguia comer. Pela primeira vez
desde que conheci Lena, olhei para todo mundo ao redor de mim e senti uma
pontada de, não sei, alguma coisa. O que era? Inveja? Suas vidas eram tão
simples, tão fáceis. Seus problemas tinham dimensões tão mortais, mínimos.
Como os meus eram antes. Peguei Emily me olhando. Savannah pulou no
colo de Emily, e com Savannah veio a irritação familiar. Não era inveja. Eu
não trocaria Lena por nada assim.

Não podia imaginar voltar para uma vida tão pequena.











Faltando dois dias, Lena nem falava comigo. Metade do telhado do quartel-
general do FRA foi arrancada pelo vento forte. Os Registros de Membros que
a Sra. Lincoln e a Sra. Asher tinham passado anos compilando, as árvores
genealógicas que datavam até o Mayflower e a Revolução, foram destruídos.
Os patriotas do condado de Gatlin teriam que provar que o sangue deles era
melhor que o nosso de novo.

Dirigi até Ravenwood no caminho para a escola e bati na porta com o
máximo de força que consegui. Lena não saía da casa. Quando finalmente
consegui que ela abrisse a porta, pude ver por quê.

Ravenwood tinha mudado de novo. Dentro, parecia uma prisão de
segurança máxima. As janelas tinham grades e as paredes eram de concreto
liso, exceto pelo saguão, onde eram cor de laranja e acolchoadas. Lena estava
vestindo um macacão laranja com os números 1102, a data do seu
aniversário, impressos, as mãos cobertas de palavras. Ela estava até bem legal,
na verdade, o cabelo preto desalinhado caindo em volta do rosto. Ela
conseguia até fazer um macacão de presidiária parecer legal.

— O que está acontecendo, L?

Ela seguiu meu olhar sobre o ombro dela.


— Ah, isso? Nada. É uma brincadeira.

— Eu não sabia que Macon brincava.

Ela puxou um fiapo solto da manga.

— Ele não brinca. A brincadeira é minha.

— Desde quando você consegue controlar Ravenwood?

Ela deu de ombros.

— Acordei ontem e estava assim. Devia estar na minha mente. A casa
apenas ouviu, eu acho.

— Vamos sair daqui. A prisão só está deixando você mais deprimida.

— Eu posso ser Ridley em dois dias. É bastante deprimente.

Ela sacudiu a cabeça com tristeza e sentou na beirada da varanda. Sentei
ao seu lado. Ela não olhou para mim, mas olhou para os tênis brancos de
prisão. Me perguntei como ela sabia como eram tênis de prisão.

— Cadarços. Você errou nessa parte.

— O quê?

Apontei.

— Tiram os cadarços na prisão de verdade.

— Você tem que desistir, Ethan. Acabou. Não posso impedir que meu
aniversário chegue, nem a maldição. Não posso mais fingir que sou uma
garota normal. Não sou como Savannah Snow ou Emily Asher. Sou uma
Conjuradora.

Peguei um punhado de pedrinhas do degrau de baixo da varanda e
joguei uma o mais longe que consegui.

Não direi adeus, L. Não posso.

Ela pegou uma pedrinha da minha mão e a jogou. Seus dedos roçaram
nos meus e senti uma pulsação de calor. Tentei guardá-la na memória.

Você não vai ter nem chance. Irei embora, e nem vou lembrar que gostei
de você.

Eu era teimoso. Não podia ouvir aquilo. Dessa vez, a pedrinha bateu
numa árvore.

— Nada vai mudar o que sentimos um pelo outro. É a única coisa que sei
com certeza.

— Ethan, em breve eu posso nem ser capaz de sentir.

— Não acredito nisso.

Joguei o resto das pedras no jardim. Não sei onde caíram; não fizeram


barulho. Mas fiquei olhando naquela direção, com tanta intensidade quanto
possível, controlando o nó na minha garganta.

Lena esticou o braço em minha direção, depois hesitou. Baixou a mão
sem nem me tocar.

— Não fique zangado comigo. Não pedi nada disso.

Foi aí que surtei.

— Talvez não, mas e se amanhã for nosso último dia juntos? E eu podia
passá-lo com você, mas em vez disso, você fica aqui, caída pelos cantos como
se já tivesse sido Invocada.

Ela ficou de pé.

— Você não entende.

Ouvi a porta bater atrás dela quando entrou na casa, na prisão, sei lá.

Eu nunca tinha tido uma namorada, então não estava preparado para
lidar com tudo aquilo — eu nem sabia que nome dar. Principalmente com
uma garota Conjuradora. Sem ter uma ideia melhor do que fazer, fiquei de
pé, desisti e dirigi de volta para a escola. Atrasado, como sempre.









Faltavam 24 horas. Um sistema de baixa pressão se estabeleceu sobre Gatlin.
Não dava para saber se ia nevar ou gear, mas o céu não parecia estar normal.
Hoje qualquer coisa podia acontecer. Olhei pela janela durante a aula de
História e vi o que parecia uma espécie de procissão funerária, só que para
um enterro que ainda não tinha acontecido. Era o rabecão de Macon
Ravenwood seguido de sete carros Lincoln pretos. Passaram pela Jackson
High ao cruzar a cidade para sair de Ravenwood. Ninguém estava ouvindo o
Sr. Lee falando sobre a encenação que faríamos em breve da Batalha de
Honey Hill — não a mais famosa batalha da Guerra Civil, mas uma das
batalhas das quais o povo de Gatlin tinha mais orgulho.

— Em 1864, Sherman ordenou que o General de Divisão da União John
Hatch e suas as tropas interrompessem as ferrovias de Charleston e Savannah
para impedir que os soldados da Confederação interferissem com a "Marcha
para o Mar" que ele tinha planejado. Mas devido a vários "maus cálculos
navegacionais", as forças da União se atrasaram.


Ele sorriu com orgulho, escrevendo MAUS CÁLCULOS
NAVEGACIONAIS no quadro. Certo, a União era burra. Entendemos. Esse
era o ponto da Batalha de Honey Hill, o ponto da Guerra entre os Estados,
como tinha sido ensinado para nós desde o jardim de infância.
Negligenciando, é claro, o fato de que a União tinha vencido a guerra. Em
Gatlin, todo mundo falava sobre isso como uma concessão cavalheiresca da
parte do sul mais cavalheira. O sul tinha agido com polidez, historicamente
falando, de acordo com o Sr. Lee.

Mas hoje ninguém estava olhando para o quadro. Todo mundo estava
olhando pela janela. Os carros Lincoln pretos seguiam o rabecão em uma
comitiva pela rua, atrás do campo de atletismo. Agora que Macon tinha se
revelado, ele parecia gostar de fazer um espetáculo de sua aparição. Para um
cara que só saía à noite, ele continuava a atrair muita atenção.

Senti um chute na minha canela. Link estava curvado sobre a carteira
para que o Sr. Lee não visse seu rosto.

— Cara, quem você acha que está em todos aqueles carros?

— Sr. Lincoln, você gostaria de nos contar o que acontece depois?
Principalmente considerando que seu pai estará comandando a Cavalaria
amanhã? — O Sr. Lee nos olhava de braços cruzados.

Link fingiu tossir. O pai dele, um homem durão e amedrontador, tinha a
honra de comandar a Cavalaria na encenação desde que Big Earl Eaton
morreu ano passado, e esse era um único jeito de um ator de encenação subir
de posto. Alguém tinha que morrer. Seria um grande evento na família de
Savannah Snow. Mas Link não ligava muito para essa coisa de História Viva.

— Vamos ver, Sr. Lee. Espere, eu sei. Nós, hum, vencemos a batalha e
perdemos a guerra, ou foi o contrário? Porque, por aqui, é difícil saber às
vezes.

O Sr. Lee ignorou o comentário de Link. Ele provavelmente pendurava
a Stars and Bars, a bandeira Confederada, em frente da sua casa pré-
fabricada o ano todo.

— Sr. Lincoln, quando Hatch e os Federais chegaram a Honey Hill, o
coronel Cucock... — A turma riu, enquanto o Sr. Lee olhava furioso. — Sim,
esse era o nome dele. O coronel e sua brigada de soldados Confederados e a
milícia formaram uma bateria intransponível de sete armas no caminho.

Quantas vezes íamos ter que ouvir sobre as sete armas? Parecia o milagre


dos peixes e dos pães.

Link olhou para mim, apontando com a cabeça na direção da Main.

— E então?

— Acho que é a família de Lena. Eles vinham pro aniversário dela.

— Ridley falou qualquer coisa sobre isso.

— Vocês ainda estão juntos? — Eu quase tive medo de perguntar.

— Estamos, cara. Você consegue guardar um segredo?

— Não guardo sempre?

Link puxou a manga da camiseta dos Ramones para mostrar uma
tatuagem do que parecia uma versão de anime de Ridley, completa com a
minissaia de uniforme de escola católica e meias até os joelhos. Eu tinha
esperança de que a fascinação de Link por Ridley tivesse perdido o gás, mas
lá no fundo eu sabia da verdade. Link só esqueceria Ridley quando ela fosse
embora e tivesse terminado com ele, se ela não o fizesse pular de um
penhasco antes. E, mesmo então, ele poderia não esquecê-la.

— Fiz na época das férias de Natal. Legal, né? Ridley que desenhou pra
mim. Ela é uma artista de matar.

A parte de matar eu acreditava. O que eu podia dizer? Você tatuou uma
versão de quadrinhos de uma Conjuradora das Trevas no braço, que por
acaso enfeitiçou você e por acaso também é sua namorada?

— Sua mãe vai ter um troço quando vir isso.

— Ela não vai ver. Minha manga cobre, e temos uma nova regra de
privacidade na nossa casa. Ela tem que bater na porta.

— Antes de invadir seu quarto e fazer tudo que quiser?

— É. Mas pelo menos ela bate antes.

— Espero que sim, pela sua tranquilidade.

— Aliás, Ridley e eu temos uma surpresa pra Lena. Não diga pra Rid que
te contei, ela me mataria, mas vamos dar uma festa pra Lena amanhã.
Naquele campo grande em Ravenwood.

— É melhor que isso seja uma brincadeira.

— Surpresa. — Ele realmente parecia empolgado, como se essa festa
fosse mesmo acontecer, como se Lena fosse mesmo comparecer, ou Macon
fosse permitir.

— Em que vocês estavam pensando? Lena odiaria isso. Ela e Ridley nem
se falam.


— Isso é culpa de Lena, cara. Elas deveriam superar os problemas, são
parentes. — Eu sabia que ele estava sob a influência dela, um zumbi de
Ridley, mas estava me deixando irritado.

— Você não sabe o que está dizendo. Apenas fique fora disso. Confie em
mim.

Ele abriu um Slim Jim e deu uma mordida.

— Sei lá, cara. Só estávamos tentando fazer uma coisa legal pra Lena.
Não tem muita gente disposta a dar uma festa pra ela.

— Mais uma razão pra não fazer uma. Ninguém compareceria.

Ele sorriu e enfiou o resto do Slim Jim na boca.

— Todo mundo vai. Já confirmaram. Pelo menos é o que Rid diz.

Ridley. E claro. Ela faria a cidade inteira ir atrás dela, como o Flautista
de

Hamelin, em uma sugada do primeiro pirulito.

Não parecia ser assim que Link entendia a situação.

— Minha banda, os Holy Rollers, vai tocar pela primeira vez.

— Os o quê?

— Minha nova banda. Eu a montei no acampamento da igreja.

Eu não queria saber mais nada sobre o que tinha acontecido nas férias de
inverno. Estava feliz por ele ter voltado inteiro.

O Sr. Lee bateu no quadro para enfatizar, desenhando um grande
número oito com giz.

— No fim, Hatch não conseguia mover os Confederados e retirou as
forças com o total de 89 mortos e 629 feridos. Os Confederados venceram a
batalha, perdendo só oito homens. E isso — o Sr. Lee bateu com orgulho no
número oito — é o motivo de vocês se juntarem a mim na Encenação da
História Viva da Batalha de Honey Hill amanhã.

História Viva. É assim que pessoas como o Sr. Lee chamavam as
encenações da Guerra Civil, e eles não estavam brincando. Cada detalhe era
preciso, dos uniformes até a munição e a posição dos soldados no campo de
batalha.

Link sorriu para mim com a boca cheia de Slim Jim.

— Não conte para Lena. Queremos que ela fique surpresa. É o nosso
presente de aniversário para ela.

Apenas fiquei olhando para ele. Pensei em Lena depressiva e com o


macacão laranja de presidiária. Depois na banda — sem dúvida terrível — de
Link, numa festa da Jackson High, Emily Asher e Savannah Snow, os Anjos
Caídos, Ridley e Ravenwood, sem mencionar Honey Hill explodindo ao
longe. Tudo sob o olhar reprovador de Macon, dos outros parentes doidos de
Lena e da mãe que estava tentando matá-la. E do cachorro que permitia que
Macon visse cada gesto que fazíamos.

O sinal tocou. Surpresa nem era o começo de como ela se sentiria. E era
eu que teria que contar a ela.

— Não se esqueçam de assinar quando chegarem na encenação. Não
receberão crédito se não assinarem! E lembrem-se de ficar dentro das cordas
da Zona Segura. Levar um tiro não vai lhes dar um A nessa matéria — gritou
o Sr. Lee enquanto saíamos em fila pela porta.

Nesse momento, levar um tiro não parecia a pior coisa no mundo.









As encenações da Guerra Civil são um fenômeno bizarramente estranho, e a
Encenação da Batalha de Honey Hill não era exceção. Quem realmente
estaria interessado em se vestir no que parecia ser fantasias de Halloween de
lã muito quentes? Quem queria correr por aí atirando com armas antigas que
eram tão instáveis que eram famosas por estourar membros das pessoas
quando disparadas? E foi assim, aliás, que Big Earl Eaton morreu. Quem
ligava para recriar batalhas que aconteceram em uma guerra que ocorreu há
quase 150 anos e na qual o sul não venceu? Quem faria isso?

Em Gatlin, e na maior parte do sul, a resposta seria: seu médico, seu
advogado, seu pastor, o cara que conserta seu carro e o que entrega sua
correspondência, provavelmente seu pai, todos seus tios e primos, seu
professor de História (principalmente se ele fosse o Sr. Lee), e certamente o
dono da loja de armas da cidade. Quando chegava a segunda semana de
fevereiro, fizesse chuva ou sol, Gatlin só pensava, falava e debatia sobre a
Encenação da Batalha de Honey Hill.

Honey Hill era Nossa Batalha. Não sei como decidiram isso, mas tenho
quase certeza de que teve alguma coisa a ver com as sete armas. As pessoas da
cidade passavam semanas se preparando para Honey Hill. Agora que


estávamos perto do evento, os uniformes Confederados estavam sendo
passados e engomados em todo o condado, o cheiro de lã quente se
espalhando no ar. Rifles Withworth eram limpos e espadas eram polidas, e
metade dos homens da cidade tinha passado o final de semana anterior na
casa de Buford Radford fazendo munição caseira, porque a esposa dele não
se incomodava com o cheiro. As viúvas estavam ocupadas lavando lençóis e
congelando tortas para as centenas de turistas que vinham à cidade para
testemunhar a História Viva. Os membros do FRA passaram semanas se
preparando para a versão deles da Encenação, o Tour da Herança Sulista, e
suas filhas passaram dois sábados assando bolos para servir depois dos tours.

Isso era particularmente divertido, porque os membros do FRA,
incluindo a Sra. Lincoln, conduziam os tours em vestidos de época; elas se
espremiam em espartilhos e camadas de saias que as faziam parecer salsichas
prestes a estourar. E não eram as únicas; as filhas delas, incluindo Savannah e
Emily, a futura geração do FRA, tinham que circular pelas casas vestidas
como personagens de Os Pioneiros. O tour sempre começava no quartel-
general do FRA, já que era a segunda casa mais antiga de Gatlin. Me
perguntei se o teto estaria consertado a tempo. Não podia deixar de imaginar
todas aquelas mulheres circulando pela Sociedade Histórica de Gatlin
apontando para tecidos em cima de centenas de pergaminhos Conjuradores e
documentos que esperavam logo abaixo o próximo feriado.

Mas as pessoas do FRA não eram as únicas a se envolverem na
encenação. A Guerra entre os Estados era frequentemente chamada de
"primeira guerra moderna", mas era só dar uma caminhada em Gatlin uma
semana antes da Encenação, não havia nada de moderno para se observar.
Cada relíquia da Guerra Civil da cidade estava em exibição, desde carroças a
Howitzers, que qualquer aluno de pré-escola da cidade poderia dizer que são
canhões de artilharia apoiados em um par de velhas rodas de carroça. As

Irmãs até pegavam a bandeira Confederada original e a prendiam na
porta da frente, depois de eu me recusar a pendurá-la na varanda para elas.
Apesar de ser apenas um show, esse era meu limite.

Havia um grande desfile na véspera da Encenação, o que dava aos atores
uma oportunidade de marchar pela cidade completamente paramentados em
frente a todos os turistas, porque no dia seguinte estariam tão cobertos de
fumaça e lama que ninguém notaria os botões de latão brilhantes nas jaquetas


autênticas.

Depois do desfile, havia um grande festival, com porco assado, uma
barraca de beijos e uma venda de tortas à moda antiga. Amma passava dias
assando tortas. Fora a Feira do Condado, esse era seu maior show de tortas, e
a maior oportunidade que tinha de bradar vitória sobre os inimigos. Suas
tortas sempre vendiam mais, o que deixava a Sra. Lincoln e a Sra. Snow
furiosas — a motivação primária de Amma para cozinhar tanto. Não havia
nada que ela gostasse mais do que se mostrar para as mulheres do FRA e
esfregar as tortas de segunda categoria que faziam em seus narizes.

Então, a cada ano, quando a segunda semana de fevereiro chegava, a
vida como conhecíamos deixava de existir e todos nós nos víamos novamente
na Batalha de Honey Hill, por volta de 1864. Esse ano não foi exceção, com
uma adição peculiar. Esse ano, enquanto as picapes chegaram à cidade
arrastando canhões duplos e trailers de cavalos (qualquer ator de encenação
de respeito possuía seu próprio cavalo), preparações diferentes também
estavam sendo feitas, para uma batalha diferente.

Só que essa não começava na segunda casa mais antiga de Gatlin, mas
na primeira. Havia Howitzers, e havia Howitzers. Essa batalha não se tratava
de armas e cavalos, mas isso não a tornava uma batalha menor. Para ser
honesto, era a única verdadeira batalha na cidade.

Quanto às oito mortes de Honey Hill, eu não podia comparar. Estava
preocupado com apenas uma. Porque, se eu a perdesse, eu estaria perdido
também.

Então, esqueçam a Batalha de Honey Hill. Para mim, esse parecia mais
o Dia D.




























p 11 de fevereiro p

d



Dezesseis Luas















M



e deixem em paz! Já falei pra todos vocês! Não há nada que possam
fazer!

A voz de Lena me acordou de algumas horas de sono agitado.
Vesti meu jeans e camiseta cinza sem nem parar para pensar em nenhuma
outra coisa além disto: Dia Um. Podíamos parar de esperar pelo fim.

O fim tinha chegado.

Não com um estrondo, mas com um gemido não com um estrondo, mas
com um gemido não com um estrondo, mas com um gemido

Lena estava perdendo o controle, e mal tinha amanhecido.

O Livro. Droga, eu tinha me esquecido dele. Corri de volta até meu
quarto, subindo dois degraus de cada vez. Estiquei a mão para a prateleira do
alto do meu armário, onde eu o tinha escondido, me preparando para a dor
de queimadura que acompanhava o toque ao livro Conjurador.

Só que nada aconteceu. Porque ele não estava lá.

O Livro das Luas, nosso livro, tinha sumido. Precisávamos daquele livro,
hoje mais do que em qualquer dia. Mas a voz de Lena ressoava na minha
cabeça.

É assim que o mundo termina não com um estrondo, mas com um
gemido.

Lena recitando T.S. Eliot não era um bom sinal. Peguei as chaves do
Volvo e corri.


O sol estava nascendo enquanto eu dirigia pela Dove Street. Greenbrier,
ou o único campo vazio para todo o resto da cidade — o que o tornava o
local da Batalha de Honey Hill —, estava começando a ganhar vida também.
O engraçado era que eu nem conseguia ouvir a artilharia do lado de fora da
minha janela por causa da artilharia sendo disparada na minha cabeça.









Quando subi correndo os degraus da varanda de Ravenwood, Boo estava
esperando por mim, latindo. Larkin estava nos degraus também, apoiado em
uma das colunas. Estava de jaqueta de couro, brincando com a cobra que se
enrolava e desenrolava em seu braço. Primeiro era braço, depois era cobra.
Ele mudava sem esforço entre as formas, como um crupiê embaralhando
cartas. Ver isso me pegou desprevenido por um segundo. Isso e o modo como
ele fazia Boo latir. Pensando bem, eu não sabia se Boo latia para mim ou
para Larkin. Boo pertencia a Macon, e ele e eu não tínhamos exatamente nos
despedido bem da última vez.

— Oi, Larkin.

Ele assentiu, desinteressado. Estava frio, e uma lufada de ar saiu da boca
dele, como se ali houvesse um cigarro imaginário. A fumaça se esticou num
círculo, que virou uma pequena cobra branca, que depois mordeu o próprio
rabo, se devorando até desaparecer.

— Eu não entraria aí se fosse você. Sua namorada está um pouco, como
posso dizer? Venenosa? — A cobra enroscou o corpo no pescoço dele e se
tornou o colarinho da jaqueta de couro.

Tia Del abriu a porta.

— Finalmente. Estávamos esperando você. Lena está no quarto dela e
não deixa nenhum de nós entrar.

Olhei para tia Del, tão desgrenhada, a echarpe caindo de um ombro só,
os óculos tortos, até o coque estava se desenrolando. Me inclinei para abraçá-
la. Ela tinha cheiro de um dos armários antigos das Irmãs, cheios de sachês de
lavanda e lençóis velhos, passados de Irmã para Irmã. Reece e Ryan estavam
atrás dela como uma família em luto em um triste saguão de hospital,
esperando por más notícias.


Mais uma vez, Ravenwood parecia mais sintonizada com Lena e seu
humor do que com o de Macon, ou talvez esse fosse um humor que eles
compartilhavam. Macon não estava à vista, então eu não tinha certeza. Se
você conseguir imaginar a cor da raiva, ela tinha sido espalhada sobre as
paredes. Havia fúria, ou alguma coisa igualmente densa e tempestuosa,
pendurada em cada lustre, ressentimento trançado em grossos tapetes
forrando o chão, ódio brilhando sob cada cúpula de abajur. O chão estava
coberto por uma sombra assustadora, uma escuridão única que tinha subido
pelas paredes e agora estava cobrindo meu All Star de forma que eu mal
podia vê-lo. Escuridão absoluta.

Não sei dizer ao certo como o salão estava. Eu estava distraído demais
pela sensação, que era bem intensa. Dei um passo hesitante para a grande
escadaria que levava ao quarto de Lena. Eu tinha subido aquela escada uma
centena de vezes antes, então não era como se não soubesse onde ia dar. Mas,
de alguma maneira, parecia diferente hoje. Tia Del olhou para Reece e Ryan,
que subiam atrás de mim, como se eu estivesse liderando a passagem para um
front de guerra desconhecido.

Quando subi o segundo degrau, a casa inteira tremeu. As milhares de
velas do lustre antigo que balançou sobre minha cabeça tremeram e
derramaram cera no meu rosto. Fiz uma careta e dei um passo para trás. Sem
aviso, a escada se encolheu debaixo do meu pé e me jogou de bunda no chão,
e saí deslizando pelo chão encerado do saguão de entrada. Reece e tia Del
conseguiram sair da frente, mas derrubei a pobre Ryan comigo como uma
bola de boliche batendo nos pinos no County Line Lanes.

Fiquei de pé e gritei para cima da escadaria.

— Lena Duchannes. Se você atiçar essa escadaria contra mim de novo,
vou pessoalmente denunciar você para o Comitê Disciplinar.

Dei um passo para o primeiro degrau, depois para o segundo. Nada
aconteceu.

— Vou ligar para o Sr. Hollingsworth e dar meu testemunho de que você
é uma lunática perigosa. — Pulei de dois em dois degraus, até chegar à
primeira plataforma. — Porque se fizer isso comigo de novo, é isso que você
é, ouviu?

Então eu ouvi, a voz dela se desenrolando na minha mente.

Você não entende.


Sei que você está com medo, L, mas afastar todo mundo não vai tornar
nada melhor.

Vá embora.

 Não.

Estou falando sério, Ethan. Vá embora. Não quero que nada aconteça
com você.

Não posso.

Agora eu estava parado na porta do quarto dela, encostando a bochecha
na madeira branca e fria, Eu queria estar com ela, tão próximo quanto
pudesse estar sem ter outro ataque do coração. E se ali fosse o mais próximo
que ela me deixaria chegar, era o bastante para mim, por enquanto.

Está aí, Ethan?

Estou bem aqui.

Estou com medo.

Eu sei, L.

Não quero que você se machuque.

Não vou me machucar.

Ethan, não quero deixar você.

Você não vai.

E se eu deixar?

Vou esperar por você.

Mesmo se eu for das Trevas?

Mesmo se você for muito das Trevas.

Ela abriu a porta e me puxou para dentro. Havia música tocando alto.
Eu conhecia a música. Era uma versão raivosa e quase de heavy metal, mas
reconheci mesmo assim.



Dezesseis luas,

dezesseis anos

Dezesseis dos seus mais profundos medos

Dezesseis vezes você sonhou com minhas lágrimas

Caindo, caindo ao longo dos anos...



Parecia que ela tinha chorado a noite toda. Provavelmente tinha mesmo.
Quando toquei no seu rosto, vi que ainda estava marcado das lágrimas.


Abracei-a e nos embalamos enquanto a música tocava.



Dezesseis luas,

dezesseis anos

Som de trovão nos seus ouvidos

Dezesseis milhas antes que ela se aproxime

Dezesseis procura o que dezesseis teme...



Por cima do ombro dela, eu podia ver que o quarto estava em ruínas. O
gesso das paredes estava rachado e despencando e a penteadeira estava
virada, como um ladrão revira um quarto quando invade uma casa. As
janelas estavam quebradas. Sem o vidro, as pequenas molduras de metal
pareciam grades de prisão de algum castelo antigo. A prisioneira se agarrava
a mim enquanto a melodia nos envolvia. E a música não parava.



Dezesseis luas,

dezesseis anos,

Dezesseis vezes você sonhou com meus medos,

Dezesseis vão tentar Enfeitiçar as esferas,

Dezesseis gritos mas só um escuta...



Na última vez em que eu tinha estado ali, o teto estava quase
completamente coberto de palavras detalhando os pensamentos mais íntimos
de Lena. Mas agora, cada superfície do quarto estava coberta com a distinta
caligrafia dela em preto. Nas beiradas do teto agora tinha: A solidão domina
aquele que você ama / Quando você sabe que pode nunca mais abraçá-lo.
Nas paredes: Mesmo perdido na escuridão / Meu coração vai encontrar você.
Nas molduras laterais da porta: A alma morre na mão daquele que a carrega.
Nos espelhos: Se eu pudesse encontrar um lugar para fugir / Escondida em
segurança, eu estaria lá hoje. Até mesmo a penteadeira estava coberta de
palavras: A luz do dia mais escuro me encontra aqui, os que esperam estão
sempre observando, e a que parecia dizer tudo, como se escapa de si mesmo?
Eu podia ver a história dela nas palavras, ouvi-la na música.



Dezesseis Luas,


dezesseis anos,

A Lua da Invocação se aproxima,

Nessas páginas as trevas se iluminam

O poder une o que o fogo destrói…



E então a guitarra diminui o ritmo, e ouvi um novo verso, o fim da
música. Me esforcei para bloquear as imagens de terra, fogo, água e vento da
minha mente para poder escutar.



Décima-Sexta Lua, Décimo-Sexto Ano,

Agora chegou o dia que você teme,

Invoque ou seja Invocada,

Derrame sangue, derrame lágrima,

Lua ou Sol — destrua, venere.



O som da guitarra parou completamente, e agora estávamos parados no
silêncio.

— O que você acha...?

Ela colocou a mão sobre os meus lábios. Não conseguia suportar falar
sobre o assunto. Estava mais frágil do que eu jamais a tinha visto. Uma brisa
fria soprava por ela, envolvendo-a e saindo pela porta aberta atrás de mim.
Eu não sabia se as bochechas de Lena estavam vermelhas de frio ou de
lágrimas, e não perguntei. Caímos na cama e nos abraçamos, até ficar difícil
descobrir quais braços e pernas eram de quem. Não estávamos nos beijando,
mas era como se estivéssemos. Estávamos mais próximos do que jamais
imaginei que duas pessoas pudessem ficar.

Acho que era assim a sensação de amar alguém e sentir que o tinha
perdido. Até quando ainda se estava com a pessoa nos braços.

Lena estava tremendo. Eu podia sentir cada costela, cada osso em seu
corpo, e os movimentos pareciam involuntários. Tirei o braço que estava em
volta do pescoço dela e me contorci para pegar a colcha de retalhos do pé da
cama e nos cobrir. Ela se aconchegou no meu peito e puxei a colcha ainda
mais. Agora ela estava cobrindo nossas cabeças, e estávamos em uma caverna
escura juntos, só nós dois.

A caverna ficou quente com a nossa respiração. Beijei sua boca fria e ela


retribuiu. A corrente entre nós se intensificou e ela encostou o rosto no meu
pescoço.

Acha que podemos ficar assim pra sempre, Ethan?

Podemos fazer o que você quiser. É seu aniversário.

Senti-a ficar rígida nos meus braços.

Não me lembre.

Mas eu trouxe um presente pra você.

Ela ergueu a colcha para deixar entrar só um facho de luz.

— Trouxe? Eu disse pra não trazer.

— Desde quando eu escuto o que você diz? Além do mais, Link diz que
se uma garota diz que não quer um presente de aniversário, isso significa que
ela quer um presente de aniversário e que tem que ser uma joia.

— Isso não é verdade sobre todas as garotas.

— Tá. Deixa pra lá.

Ela soltou a colcha, depois se aconchegou nos meus braços.

E?

O quê?

Uma joia.

Pensei que você não queria presente.

Só estou curiosa.

Sorri para mim mesmo e tirei a colcha de cima de nós. O ar frio nos
atingiu ao mesmo tempo, e eu rapidamente tirei uma pequena caixa do bolso
e mergulhei debaixo das cobertas. Ergui um pouco a colcha para que ela
pudesse ver a caixa.

— Abaixe, está frio demais.

Deixei-a cair, e estávamos cercados de escuridão de novo. A caixa
começou a brilhar com uma luz verde, e pude ver os dedos finos de Lena
puxando o laço prateado. O brilho se espalhou, quente e intenso, até que o
rosto dela ficou suavemente aceso em frente ao meu.

— Esse é novo. — Sorri para ela na luz verde.

— Eu sei. Está acontecendo desde que acordei hoje de manhã. Seja lá no
que eu pense, isso meio que acontece.

— Nada mau.

Ela olhou para a caixa com ansiedade, como se estivesse esperando o
máximo de tempo possível para abrir. Me ocorreu que esse talvez fosse o


único presente que Lena receberia hoje. Fora a festa surpresa sobre a qual eu
estava adiando contar a ela até o último minuto.

Festa surpresa?

Ops.

É melhor você estar brincando.

Diga isso a Ridley e a Link.

Ê mesmo? A surpresa é que não vai haver festa.

Abra a caixa.

Ela olhou para mim irritada e abriu a caixa, e a luz aumentou, apesar de
o presente não ter nada a ver com isso. Seu rosto se suavizou e eu sabia que
não levaria bronca pela festa. Era aquela coisa que havia entre garotas e joias.
Quem saberia? Link estava certo, afinal.

Ela segurou um colar, deiicado e brilhante, com um anel pendurado na
corrente. Era um círculo de ouro entalhado, com três fios de ouro trançados
entre si: um meio rosado, um amarelo e um branco.

Ethan! Adorei.

Ela me beijou umas cem vezes, e comecei a falar enquanto ela ainda me
beijava. Porque eu sentia que tinha que contar a ela, antes que ela o
colocasse, antes que alguma coisa acontecesse.

— Foi da minha mãe. Tirei da caixinha de joias antiga dela.

— Tem certeza que quer me dar? — perguntou ela.

Assenti. Eu não podia fingir que não era nada demais. Lena sabia o que
eu sentia em relação à minha mãe. Era uma coisa importante, e me senti
aliviado por nós dois podermos admitir isso.

— Não é raro nem nada do tipo, não é um diamante, mas é valioso pra
mim. Acho que ela não ia se importar de eu dar pra você porque, você sabe.

O quê?

Ah.

— Você vai me fazer dizer em voz alta? — Minha voz estava estranha,
trêmula.

— Odeio dar essa notícia a você, mas você não é muito bom em dizer as
coisas em voz alta. — Ela sabia que eu estava tentando escapar, mas ia me
fazer dizer. Eu preferia nosso modo silencioso de comunicação. Tornava a
conversa, a conversa verdadeira, muito mais fácil para um cara como eu.
Afastei o cabelo dela do pescoço e prendi o cordão. Ficou ali pendurado,


brilhando na luz, bem acima do cordão que ela nunca tirava.

— Porque você é muito especial pra mim.

Quanto especial?

Acho que você está usando a resposta no pescoço.

Estou usando muitas coisas no pescoço.

Toquei em seu colar de amuletos. Tudo parecia lixo, e a maioria era
mesmo — o lixo mais importante do mundo. E agora isso tinha se tornado o
meu lixo também. Uma moeda achatada com um buraco no meio, daquelas
máquinas da praça de alimentação em frente ao cinema, onde fomos no
nosso primeiro encontro. Um pedaço de linha do suéter vermelho que ela
usava quando fomos à torre de água, que tinha se tornado uma piada
particular nossa. O botão prateado que dei para ela ter sorte na reunião
disciplinar. A estrela de clipe de papel da minha mãe.

Então você já deveria saber a resposta.

Ela se inclinou para me beijar de novo, um beijo de verdade. Esse era o
tipo de beijo que não podia ser chamado de beijo, o tipo que envolve braços e
pernas e pescoços e cabelos, o tipo que faz a colcha deslizar para o chão e, no
nosso caso, do tipo que fez as janelas se consertarem sozinhas, a penteadeira
se endireitar sozinha, as roupas voltarem para os cabides e o quarto frio
finalmente se aquecer. Um fogo se acendeu em uma pequena lareira no
quarto, o que não era nada em comparação ao calor percorrendo meu corpo.
Eu sentia a eletricidade, mais forte do que já estava acostumado, e meu pulso
acelerou.

Eu me afastei, sem fôlego.

— Onde está Ryan quando se precisa dela? Vamos ter que descobrir o
que fazer em relação a isso.

— Não se preocupe, ela está lá embaixo. — Ela me puxou de volta, e o
fogo estalou ainda mais alto, ameaçando sobrecarregar a chaminé com
fumaça e chamas.

Joias, estou dizendo. E uma coisa importante. E amor também.

E talvez perigo.





— Estou indo, tio Macon! — Lena se virou para mim e suspirou. — Acho que
não podemos mais adiar. Temos que descer e ver minha família. — Ela olhou


para a porta, que se destrancou sozinha. Massageei as costas dela, fazendo
uma careta. Tinha acabado.

Já estava anoitecendo quando saímos do quarto de Lena. Achei que
teríamos que descer escondidos para visitar a Cozinha por volta da hora do
almoço, mas Lena apenas fechou os olhos e um carrinho de serviço de quarto
entrou pela porta e parou no meio do quarto. Acho que até a Cozinha estava
com pena dela hoje. Ou isso ou a Cozinha não podia resistir aos poderes
recentes de Lena tanto quanto eu. Comi o equivalente ao meu peso em
panquecas com gotas de chocolate afogadas em calda de chocolate,
acompanhadas de leite com achocolatado. Lena comeu um sanduíche e uma
maçã. E então voltemos aos beijos.

Acho que nós dois sabíamos que essa podia ser a última vez em que
ficávamos juntos em um quarto assim. Parecia não haver mais nada que
pudéssemos fazer. A situação era o que era, e se hoje fosse tudo que tínhamos,
pelo menos teríamos isso.

Na realidade, eu estava tão apavorado quanto estava feliz. Nem era hora
do jantar e já era o melhor e o pior dia da minha vida.

Peguei a mão de Lena e descemos a escada. Ainda estava quente, e era
assim que eu sabia que Lena estava se sentindo melhor. Os colares brilhavam
em seu pescoço, e velas prateadas e douradas estavam suspensas no ar.
Passamos por entre elas quando descíamos a escada. Eu não estava
acostumado a ver Ravenwood parecendo tão festiva e cheia de luz, o que por
um segundo fez tudo parecer quase um aniversário de verdade, no qual as
pessoas estão felizes e animadas. Por um segundo.

Então vi Macon e tia Del. Os dois estavam segurando velas, e atrás deles,
Ravenwood estava envolvida em sombras e escuridão. Havia outras figuras
escuras se movendo atrás, também segurando velas. Pior, Macon e Dei
estavam usando longas vestes negras, como seguidores de uma ordem
estranha, ou sacerdotes e sacerdotisas druidas. Não parecia exatamente, uma
festa de aniversário. Parecia mais um enterro assustador.



Dezesseis Luas. Agora entendo porque não quis sair do quarto.

Agora entende do que eu estava falando.



Quando Lena chegou ao último degrau, parou e olhou para mim.


Parecia muito deslocada vestindo calça jeans e meu casaco enorme da
Jackson.

Duvido que Lena já tivesse se vestido assim algum dia. Acho que ela só
queria manter um pedaço de mim com ela o máximo que pudesse.

Não tenha medo. Ê só Feitiço, para me manter em segurança até o
Nascer da Lua. A Invocação não pode acontecer até a lua estar alta no céu.

Não estou com medo, L.

Eu sei. Estava falando comigo mesma.









Ela soltou minha mão e deu o último passo na escada. Quando seu pé tocou
o chão preto polido, ela se transformou. A veste fluida do Feitiço agora
escondia as curvas do seu corpo. O negro do cabelo e o da veste se
misturavam em uma sombra que a cobria da cabeça aos pés, com exceção do
rosto, que estava pálido e luminescente como a própria lua. Ela tocou a
garganta, e o anel de ouro da minha mãe ainda estava em seu pescoço. Eu
esperava que ele ajudasse a lembrá-la de que eu estava com ela. Assim como
esperava que fosse minha mãe que estivesse nos ajudando esse tempo todo.

O que eles vão fazer com você? Isso não vai ser nenhum ritual pagão
sexual bizarro, vai?

Lena caiu na gargalhada. Tia Del olhou para ela, horrorizada. Reece
alisou a veste com cuidado usando uma das mãos, com ar superior, enquanto
Ryan dava risadinhas.

— Componha-se — sibilou Macon. Larkin, que de alguma forma
conseguia parecer tão bacana de veste preta como parecia de jaqueta de
couro, prendeu o riso. Lena sufocou as risadas nas dobras da veste.

Com o movimento das velas, pude ver os rostos perto de mim: Macon,
Del, Lena, Larkin, Reece, Ryan e Barclay. Havia outros rostos que não eram
tão familiares. Arelia, mãe de Macon, e um rosto mais velho, enrugado e
bronzeado. Mas, mesmo de onde eu estava, ela parecia muito com a neta e
eu imediatamente soube quem ela era.

Lena a viu na mesma hora que eu.

— Vovó!


— Feliz aniversário, querida!

O círculo se quebrou brevemente quando Lena correu e jogou os braços
em volta da mulher de cabelos brancos.

— Não achei que você viria!

— Claro que viria. Queria fazer surpresa. Barbados é uma viagem
rápida. Cheguei aqui num piscar de olhos.

Ela está falando literalmente, né? O que ela é? Outra Viajante, um
Incubus como Macon?

Uma passageira com milhas, Ethan. Da United Airlines.

Eu podia sentir o que Lena estava sentindo, um breve momento de
alívio, mesmo eu estando me sentindo cada vez mais estranho. Tá, meu pai
estava sofrendo de insanidade, minha mãe estava morta, de uma certa
maneira, e a mulher que me criou sabia uma coisa e outra sobre vodu. Eu
lidava bem com tudo isso. Mas ficar ali, cercado de Conjuradores de vestes
segurando velas, fez parecer que eu precisava saber muito mais do que a vida
com Amma tinha me ensinado. Antes que eles começassem com o latim e os
Conjuros.

Macon deu um passo a frente no círculo. Tarde demais. Ele elevou a vela
bem alto.

— Cur Luna hac Vinctum convenimus?

Tia Del deu um passo e ficou ao lado dele. Sua vela tremeu quando ela a
elevou, traduzindo.

— Por que nessa Lua nos juntamos para o Feitiço?

O círculo respondeu, elevando suas velas quando cantarolaram.

— Sextusdecima Luna, Sextusdecimo Anno, Illa Capietur.

Lena respondeu na nossa língua. A chama da vela dela ardia de maneira
que quase pareceu que ia queimar o rosto dela.

— Na Décima-Sexta Lua, no Décimo Sexto Ano, Ela será Invocada.

Lena estava parada no meio do círculo, com a cabeça erguida. A luz das

velas atingia o rosto dela de todas as direções. Sua vela começou a
queimar em uma estranha chama verde.

O que está acontecendo, L?

Não se preocupe. É apenas parte do Feitiço.

Se isso era apenas o Feitiço, eu tinha certeza de que não estava pronto
para a Invocação.


Macon começou a cantilena que eu lembrava do Halloween. Como eles
chamaram?



"Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.

Sanguis sanguinis mei, tutela tua est.

Sangue do meu sangue, a proteção é sua!"



Lena ficou pálida. Um Círculo Sanguinis. Era isso. Ela elevou a vela bem
alto acima da cabeça, fechando os olhos. A chama verde irrompeu em uma
chama forte laranja-avermelhada, explodindo da vela para todas as outras do
círculo, acendendo-as também.

— Lena! — gritei acima do som da explosão, mas ela não respondeu. A
chama subiu até a escuridão acima, tão alta que me Dei conta de que não
podia haver telhado nem teto em Ravenwood essa noite. Joguei os braços em
cima dos olhos quando o fogo ficou quente e intenso demais. Eu só conseguia
pensar no Halloween. E se estivesse acontecendo de novo? Tentei lembrar o
que eles estavam fazendo naquela noite para lutar contra Sarafine. O que eles
cantavam? Como a mãe de Macon tinha chamado?

O Sanguinis. Mas eu não conseguia lembrar as palavras, não sabia latim,
e pela primeira vez desejei ter participado do Clube dos Clássicos.

Ouvi batidas na porta da frente e, em um instante, as chamas sumiram.
As vestes, o fogo, as velas, a escuridão e a luz sumiram. Tudo desapareceu.
Sem nem piscar, eles se tornaram uma família normal, reunidos em volta de
um bolo de aniversário. Cantando.

Mas o que...?

— Parabéns pra você!

As últimas notas da música terminaram e as batidas na porta
continuaram. Um bolo enorme, com três camadas de rosa, branco e prateado
estava na mesa de centro da sala de visitas, junto com um serviço de chá
formal e toalhas e guardanapos brancos. Lena soprou as velas, afastando a
fumaça do rosto onde segundos antes havia uma chama ululante. A família
aplaudiu. De volta com meu moletom da Jackson e jeans, ela parecia uma
menina de 16 anos qualquer.

— Essa é nossa menina!


A ayó de Lena colocou o tricô na mesa e começou a cortar a torta,
enquanto tia Del servia o chá. Reece e Ryan carregavam uma enorme pilha
de presentes enquanto Macon estava sentado em sua poltrona vitoriana e
servia para si e Barciay um copo de uísque.

O que está acontecendo, L? O que acabou de acontecer?

Tem alguém na porta. Só estão sendo cuidadosos.

Não consigo acompanhar sua família.

Coma um pedaço de bolo. Ê pra ser uma festa de aniversário, lembra?

As batidas na porta continuaram. Larkin tirou os olhos da grossa fatia de
bolo de chocolate, o favorito de Lena.

— Ninguém vai abrir a porta?

Macon tirou um farelo do paletó de cashmere, olhando calmamente para
Larkin.

— Certamente, veja quem é, Larkin.

Macon olhou para Lena e sacudiu a cabeça. Ela não abriria a porta hoje.
Lena assentiu e se encostou na avó. Sorrindo sobre o prato de bolo como a
neta devotada que era. Ela bateu na almofada ao lado. Ótimo. Era minha vez
de conhecer a vovó.

Então ouvi uma voz familiar na porta, e sabia que preferia encarar a avó
de qualquer um ao que estava esperando lá fora agora. Porque era Ridley e
Link, Savannah, Emily, Eden e Charlotte, com o resto do seu fã clube e o
time de basquete da Jackson. Nenhum deles estava usando o uniforme diário,
a camiseta dos Anjos da Jackson. Então lembrei por quê. Emily tinha uma
mancha de sujeira na bochecha. A Encenação. Me dei conta de que Lena e
eu tínhamos perdido a maior parte dela, e agora íamos repetir em História. A
essa hora já tinha terminado, exceto pela festa da noite e pelos fogos.
Engraçado como uma nota zero pareceria uma coisa importante em qualquer
outro dia.

— SURPRESA!

Surpresa nem começava a descrever o cenário. Mais uma vez, permiti
que o caos e o perigo encontrassem o caminho de Ravenwood. Todo mundo
se amontoou no saguão de entrada. Vovó acenou do sofá. Macon bebericou o
uísque, dono de si, como sempre. Se você o conhecesse, saberia que ele estava
prestes a perder a cabeça.

Na verdade, pensando bem, por que Larkin os Deixou entrar?


Isso não pode estar acontecendo.

A festa surpresa, eu me esqueci completamente.

Emily foi até a frente do grupo.

— Onde está a aniversariante? — Ela esticou os braços com expectativa,
como se planejasse dar um grande abraço em Lena. Lena se encolheu, mas
Emily não seria tão facilmente dissuadida.

Emily passou o braço pelo corpo de Lena como se fossem velhas amigas
que não se viam há tempos.

— Planejamos essa festa a semana toda. Tem música ao vivo e Charlotte
alugou uns holofotes para que todo mundo enxergue, afinal as terras aqui de
Ravenwood são tão escuras. — Emily baixou a voz como se estivesse
discutindo a venda de contrabando no mercado negro. — E temos licor de
pêssego.

— Você tem que ver — falou devagar Charlotte, praticamente ofegando
para tomar ar entre as palavras porque a calça jeans estava apertada demais.
— Tem uma máquina de laser. E uma rave em Ravenwood, não é legal? É
como uma daquelas festas de faculdade em Summerville.

Uma rave? Ridley deve ter dado tudo de si dessa vez. Emily e Savannah
dando uma festa para Lena e puxando o saco dela como se ela fosse a Rainha
da Neve? Isso deve ter sido mais difícil do que fazer todas elas pularem de um
precipício.

— Agora vamos para o seu quarto arrumar você, aniversariante! —
Charlotte parecia mais ainda com uma líder de torcida do que o normal,
sempre exagerando.

Lena estava verde. Seu quarto? Metade dos textos na parede
provavelmente era sobre elas.

— Como assim, Charlotte? Ela está linda. Não acha, Savannah? —
Emily deu um aperto em Lena e olhou para Charlotte com reprovação, como
se talvez ela devesse largar as tortas e se esforçar para ficar tão linda.

— Tá brincando? Eu morreria por esse cabelo — disse Savannah,
enrolando uma mecha do cabelo de Lena no dedo. — É tão incrivelmente...
preto.

— Meu cabelo estava preto no ano passado, pelo menos embaixo —
protestou Eden. Ano passado, Eden tinha pintado a parte de baixo do cabelo
de preto, deixando a de cima loura, em uma de suas tentativas equivocadas


de chamar atenção. Savannah e Emily pegaram tanto no pé dela, sem pena
nenhuma, que ela voltou à cor anterior 24 horas depois.

— Você parecia um gambá. — Savannah sorriu para Lena com
aprovação. — Ela parece italiana.

— Vamos. Todo mundo está esperando você — disse Emily, pegando o
braço de Lena. Lena se soltou dela.

Isso tem que ser algum tipo de truque.

É um truque sim, mas não acho que seja do tipo que você imagina.
Provavelmente tem mais a ver com uma Sirena e um pirulito.

Ridley. Eu devia saber.

Lena olhou para tia Del e tio Macon. Eles estavam horrorizados, como
se todo o latim do mundo não os tivesse preparado para isso. Vovó sorria, não
familiarizada com aquele tipo de anjo em particular.

— Para que a pressa? Vocês não gostariam de ficar e tomar uma xícara
de chá?

— Oi, vó! — gritou Ridley da porta, onde estava esperando na varanda,
sugando o pirulito vermelho com tamanha intensidade que pensei que se ela
parasse, essa coisa toda poderia despencar como uma casa de cartas. Ela não
me tinha ao seu lado para passá-la pela porta dessa vez. Estava a poucos
centímetros de Larkin, que parecia se divertir, mas não se movia de frente
dela. Ridley usava uma blusa de renda apertada que parecia um cruzamento
de lingerie e algo que uma garota na capa de uma revista de carros usaria e
uma saia jeans de cintura baixa.

Ridley se apoiou na moldura da porta.

— Surpresa, surpresa!

Vovó colocou a xícara na mesa e pegou o tricô.

— Ridley. Que prazer ver você, querida! Seu novo visual é muito
apropriado, meu bem. Tenho certeza de que tem muitos cavalheiros
admiradores. — Vovó deu um sorriso inocente para Ridley, mas seus olhos
não estavam sorrindo.

Ridley fez beicinho, mas continuou chupando o pirulito. Andei até onde
ela estava.

— De quantas lambidas precisa, Rid?

— Para o quê, Palitinho?

— Para fazer Savannah Snow e Emily Asher darem uma festa para


Lena?

— Mais do que você imagina, Namorado. — Ela mostrou a língua para
mim, e pude ver que estava manchada de vermelho e roxo. A visão causava
vertigem.

Larkin suspirou e olhou para além de mim.

— Deve ter umas cem pessoas lá fora, nos campos. Tem um palco e alto-
falantes, e carros ao longo da rua.

— É mesmo? — Lena olhou pela janela. — Tem um palco no meio das
magnólias.

— Das minhas magnólias? — Macon ficou de pé.

Eu sabia que a coisa toda era uma farsa, que Ridley estava dando vida à
festa com cada lambida sugestiva, e Lena sabia também. Mas eu ainda podia
ver nos olhos de Lena. Havia uma parte dela que queria ir lá fora.

Uma festa surpresa, a qual todo mundo da escola comparece. Isso devia
estar na lista de Lena das coisas de uma garota normal. Ela conseguia lidar
com o fato de ser Conjuradora. Estava apenas cansada de ser uma excluída.

Larkin olhou para Macon.

— Você nunca vai fazê-los ir embora. Vamos acabar com isso. Fico com
ela o tempo todo, eu ou Ethan.

Link forçou caminho até a frente.

— Vamos, cara. Minha banda, os Holy Rollers, vai estrear na Jackson
High. Vai ser demais. — Link estava mais feliz do que eu jamais tinha visto.
Olhei para Ridley com desconfiança. Ela deu de ombros, mastigando o
pirulito.

— Não vamos a lugar algum. Não hoje. — Eu não podia acreditar que
Link estava aqui. A mãe dele teria um ataque cardíaco se descobrisse.

Larkin olhou para Macon, que estava irritado, e para tia Del, que estava
em pânico. Era a última noite na qual qualquer um dos dois ia querer Lena
longe da vista deles.

— Não. — Macon nem considerava a hipótese.

Larkin tentou de novo.

— Cinco minutos.

— De modo algum.

— Qual será a próxima vez que um grupo da escola dela vai dar uma
festa pra ela?


Macon não perdeu um segundo.

— Espero que nunca.

O rosto de Lena desabou. Eu estava certo. Ela queria fazer parte daquilo,
mesmo não sendo real. Era como o baile e o jogo de basquete. Era o motivo
pelo qual ela se dava ao trabalho de ir à escola, não importando o quão mal
eles a tratavam. Era o motivo dela ir, dia após dia, mesmo tendo que comer
nas arquibancadas e sentar no Lado do Olho Bom. Ela tinha 16 anos,
Conjuradora ou não. Por uma noite, era só isso que ela queria ser.

Só havia uma outra pessoa tão teimosa quanto Macon Ravenwood. Se
eu conhecia Lena, o tio dela não tinha chance, não essa noite.

Ela andou até Macon e passou o braço no dele.

— Sei que parece loucura, tio M, mas posso ir para a festa, só um
pouquinho? Só pra ouvir a banda de Link?

Observei se o cabelo dela ia se mexer, o indicador da brisa Conjuradora.
Nem se moveu. Não era magia Conjuradora que ela estava fazendo. Era de
outro tipo. Ela não conseguia usar magia para fugir do olhar observador de
Macon. Teria que recorrer a uma magia mais antiga, mais forte, do tipo que
funcionava melhor com Macon desde o momento em que ela se mudou para
Ravenwood. O velho e simples amor.

— Por que você iria querer ir a qualquer lugar com essas pessoas depois
de tudo que fizeram você passar? — Eu podia ouvi-lo amolecendo enquanto
falava.

— Nada mudou. Não quero ter nada a ver com essas garotas, mas ainda
assim quero ir.

— Isso não faz sentido. — Macon estava frustrado.

— Eu sei. E sei que é burrice, mas só quero saber como é ser normal.
Quero ir pra um baile sem praticamente destruí-lo. Quero ir a uma festa para
a qual fui convidada. Quer dizer, sei que é coisa da Ridley, mas é errado se eu
não ligar? — Ela olhou para ele, mordendo o lábio.

— Não posso permitir, mesmo se quisesse. É muito perigoso.

Eles se olharam.

— Ethan e eu nem chegamos a dançar, tio M. Você mesmo falou.

Por um segundo, pareceu que Macon ia ceder, mas só por um segundo.

— O que eu não disse foi: acostume-se. Nunca passei um dia na escola,
nem andei pela cidade numa tarde de domingo. Todos nós sofremos


decepções.

Lena jogou a última carta.

— Mas é meu aniversário. Qualquer coisa pode acontecer. Pode ser
minha última chance... — O resto da frase ficou no ar.

De dançar com meu namorado. De ser eu mesma. De ser feliz.

Ela não precisava dizer. Todos sabíamos.

— Lena, entendo como se sente, mas é minha responsabilidade mantê-la
segura. Especialmente durante esta noite, você tem que ficar aqui comigo. Os
Mortais só vão colocá-la você no caminho do perigo ou fazê-la sofrer. Você
não pode ser normal. Não nasceu para ser normal. — Macon nunca tinha
falado com Lena daquele jeito. Eu não tinha certeza se ele estava falando
sobre a festa ou sobre mim.

Os olhos de Lena brilharam, mas ela não chorou.

— Por que não? O que há de tão errado em querer o que eles têm? Já
parou para pensar que eles podem ter acertado em alguma coisa?

— E se tiverem? De que importa? Você é uma Natural. Um dia, vai para
um lugar onde Ethan não pode ir. E cada minuto que vocês passam juntos
agora só será um peso que vai ter que carregar para o resto de sua vida.

— Ele não é um peso.

— Ah, é sim. Ele deixa você fraca, o que o torna perigoso.

— Ele me deixa forte, o que só é perigoso pra você.

Entrei entre os dois.

— Sr. Ravenwood, por favor. Não faça isso hoje.

Mas Macon já tinha feito. Lena estava furiosa.

— E o que você sabe sobre isso? Você nunca teve o peso de um
relacionamento na sua vida, nem mesmo de um amigo. Você não entende
nada. Como poderia? Dorme no seu quarto o dia todo e fica na biblioteca a
noite toda. Odeia todo mundo, e se acha melhor do que todo mundo. Se
nunca amou ninguém de verdade, como poderia saber como eu me sinto?

Ela se virou de costas para Macon, para todos nós, e subiu a escadaria
correndo, com Boo atrás. Bateu a porta do seu quarto, o som ecoando pelo
corredor. Boo se Deitou em frente à porta.

Macon ficou olhando para onde ela estava, apesar de ela não estar mais
lá. Lentamente, ele se virou para mim.

— Eu não poderia permitir. Tenho certeza de que entende.


Eu sabia que essa era possivelmente a noite mais perigosa da vida de
Lena, mas também sabia que talvez fosse a última chance dela de ser a garota
que todos nós amávamos. Então eu entendia. Só não queria estar no mesmo
ambiente que ele agora.

Link voltou para a frente do grupo de jovens ainda no saguão.

— E então, vai ter festa ou não?

Larkin pegou o casaco.

— Já está tendo. Vamos pra lá. Vamos comemorar por Lena.

Emily foi até o lado de Larkin, e todo mundo foi atrás. Ridley ainda
estava parada na porta. Ela olhou para mim e deu de ombros.

— Eu tentei.

Link estava esperando por mim perto da porta.

— Ethan, vamos, cara. Venha.

Olhei para cima da escadaria.

Lena?

— Vou ficar aqui.

Vovó parou de tricotar.

— Não acho que ela vá descer logo, Ethan. Por que não vai com seus
amigos e volta para ver como ela está em alguns minutos?

Mas eu não queria ir. Essa podia ser a última noite que passaríamos
juntos. Mesmo se a passássemos em seu quarto, eu ainda queria estar ao seu
lado.

— Pelo menos venha ouvir minha nova música, cara. Depois você pode
voltar e esperar que ela desça. — Link estava com a baqueia na mão.

— Acho que isso seria o melhor a fazer. — Macon se serviu de outra dose
de uísque. — Você pode voltar daqui a um tempinho, mas nós fizemos coisas
que precisamos discutir enquanto isso. — Estava decidido. Ele estava me
expulsando.

— Uma música. Depois vou esperar ali na frente. — Olhei para Macon.
— Por um tempinho.







O campo atrás de Ravenwood estava cheio de gente. Havia um palco
improvisado de um lado, com luzes portáteis, do mesmo tipo que usavam


para encenar parte noturna da Batalha de Honey Hill. Havia música nos
alto-falantes, mas era difícil ouvir com o barulho dos canhões ao longe.

Segui Link até o palco, onde os Holy Rollers estavam se preparando.
Eram três e pareciam ter uns 30 anos. O cara ajustando o amplificador da
guitarra tinha tatuagens cobrindo os dois braços e uma coisa que parecia uma
corrente de bicicleta no pescoço. O baixista tinha cabelo preto espetado que
combinava com a maquiagem preta que usava em volta dos olhos. O terceiro
cara tinha tantos piercings que doía só de olhar para ele. Ridley subiu, sentou
na beirada do palco e acenou para Link.

— Espere até você nos ouvir. Somos demais. Queria que Lena estivesse
aqui.

— Bem, eu não quereria decepcionar você. — Lena apareceu atrás de
nós e enlaçou minha cintura. Seus olhos estavam vermelhos e chorosos, mas
no escuro ela se parecia com todo mundo.

— O que aconteceu? Seu tio mudou de ideia?

— Não exatamente. Mas o que os olhos não veem o coração não sente, e
não me importo que veja. Ele está terrível hoje.

Eu não disse nada. Jamais entenderia o relacionamento entre Lena e
Macon, assim como ela não podia entender meu relacionamento com Amma.
Mas eu sabia que ela ia se sentir péssima quando isso tudo terminasse. Ela
não suportava ouvir ninguém falar nada de ruim sobre seu tio, nem mesmo
eu; Quando ela falava era tudo bem pior.

— Você saiu escondida?

— Saí. Larkin me ajudou. — Larkin andou até nós, segurando um copo
de plástico. — Só se faz 16 anos uma vez, certo?

Isso não é boa ideia, L.

Eu só quero uma dança. Depois vamos voltar.

Link foi em direção ao palco.

— Escrevi uma música para o seu aniversário, Lena. Você vai adorar.

— Qual é o nome? — perguntei desconfiado.

— Dezesseis Luas. Lembra? Aquela música estranha que você não
conseguia achar no seu iPod? Surgiu na minha cabeça semana passada,
inteirinha. Bem, Rid me ajudou um pouco. — Ele sorriu. — Acho que pode-
se dizer que ela foi minha musa.

Eu estava sem palavras. Mas Lena segurou minha mão e Link pegou o


microfone, e nada podia impedi-lo. Ele ajustou a altura do microfone para
que ficasse na frente da boca. Bem, para ser honesto, estava mais dentro da
boca dele, e era meio nojento. Link tinha visto MTV demais na casa de Earl.
Tínhamos que apreciar sua coragem, visto que estava prestes a ser expulso do
palco. Ele era realmente corajoso, apesar de tudo.

Ele fechou os olhos, sentou atrás da bateria e ergueu as baquetas no ar.

— Um, dois, três.

O guitarrista principal, o cara com aparência de mal-humorado usando
a corrente de bicicleta, começou com a guitarra. O som foi horrível, e os
amplificadores começaram a gritar dos dois lados do palco. Fiz uma careta.
Aquilo não seria bonito. E depois ele continuou, e continuou.

— Senhoras e senhores, se houver algum por aí. — Link ergueu uma
sobrancelha e uma onda de risadas percorreu a plateia. — Eu gostaria de
dizer feliz aniversário, Lena. E agora, batam palmas para a estreia mundial
da minha nova banda, os Holy Rollers.

Link piscou para Ridley. O cara achava que era Mick Jagger. Me senti
mal por ele e segurei a mão de Lena. Parecia que eu tinha enfiado a mão no
lago no inverno, quando a superfície da água estava morna por causa do sol
e, 3 centímetros abaixo, era puro gelo. Tremi, mas não ia soltá-la.

— Espero que esteja pronta para isso. Vai ser um desastre. Estaremos de
volta em seu quarto em cinco minutos. Prometo.

Ela olhou para ele, pensativa.

— Não tenho tanta certeza.

Ridley estava sentada na beirada do palco, sorrindo e acenando como
uma groupie. Seu cabelo balançava na brisa, mechas rosas e louras
começaram a se enroscar sobre os ombros.

E então ouvi a melodia familiar, e Dezesseis Luas estourava nos
amplificadores. Só que dessa vez, não era como uma das músicas das fitas
demo de Link. Eles eram bons, de verdade. E a galera foi à loucura, como se
a Jackson High finalmente tivesse um baile. Só que estávamos em uma
campina, no meio de Ravenwood, a fazenda mais famosa e temida do
condado de Gatlin. A energia era incrível, parecia uma rave. Todo mundo
dançava e metade das pessoas estava cantando, o que era loucura, já que
ninguém tinha ouvido a música antes. Até Lena deu um sorriso, e começamos
a nos balançar com a multidão, porque era mais forte do que nós.


— Estão tocando nossa música. — Ela encontrou minha mão.

— Eu estava pensando nisso.

— Eu sei. — Ela enlaçou os dedos nos meus, fazendo meu corpo tremer.
— E eles são bons — disse ela, gritando na multidão.

— Bons? São ótimos! Quero dizer, é o melhor dia da vida de Link.

Era tudo uma loucura. Os Holy Rollers, Link, a festa. Ridley balançando
na beirada do palco, chupando o pirulito. Não era a coisa mais louca que
havia visto no dia, mas ainda era bem louca.

E então, Lena e eu dançamos e cinco minutos se passaram, depois 25,
depois 55, nenhum de nós reparou e nem ligou. Estávamos parando o tempo
— pelo menos era o que parecia. Tínhamos uma dança, mas tínhamos que
fazê-la durar o máximo possível, caso fosse tudo que tínhamos.

Larkin não estava com pressa. Estava ficando com Emily, aos amassos,
do lado de uma fogueira que alguém fez com latas de lixo. Emily estava
usando a jaqueta de Larkin e, de vez em quando, ele exibia o ombro dela e
lambia seu pescoço ou alguma outra coisa nojenta. Ele era mesmo uma
cobra.

— Larkin! Ela tem 16 anos — gritou Lena de onde estávamos dançando
na direção do fogo. Larkin mostrou a língua, que era bem mais longa do que
a língua de um Mortal normal.

Emily não pareceu notar. Se desenroscou de Larkin, acenou para
Savannah que estava dançando em grupo com Charlotte e Eden.

— Venham, meninas. Vamos dar a Lena o presente dela.

Savannah pôs a mão dentro da bolsinha prateada e tirou o pacote
prateado, embrulhado com fita prateada.

— E só uma coisinha. — Savannah esticou o braço.

— Toda garota deveria ter uma. — Emily estava com a fala enrolada.

— Metal combina com tudo. — Eden mal podia se segurar para ela
mesma não arrancar o papel.

— Do tamanho certo pro seu celular e seu gloss. — Charlotte o
empurrou na direção de Lena. — Ande. Abra.

Lena pegou o pacote nas mãos e sorriu para elas.

— Savannah, Emily, Eden, Charlotte. Vocês não fazem ideia do quanto
isso significa pra mim. — Elas não perceberam o sarcasmo. Eu sabia
exatamente o que era e exatamente o que significava para ela.


Idiota à segunda potência.

Lena não conseguia me olhar nos olhos, senão nós dois teríamos caído na
gargalhada. Enquanto voltávamos para o grupo de pessoas dançando, Lena
jogou o pacotinho prateado na fogueira. As chamas amarelas e laranja
destruíram o papel, até que a pequena bolsa metálica não era nada além de
fumaça e cinzas.







Os Holy Rollers fizeram uma pausa e Link veio se vangloriar pela estreia
musical.

— Falei que éramos bons. Estamos a um passo de um contrato. — Link
me deu uma cotovelada nas costelas como nos velhos tempos.

— Você estava certo, cara. Vocês são ótimos. — Eu tinha que concordar
com ele, mesmo ele tendo aquele pirulito ao seu lado.

Savannah Snow se aproximou lentamente, provavelmente para estourar
a bolha de felicidade de Link.

— Oi, Link — Ela piscou os olhos sugestivamente.

— Oi, Savannah.

— Acha que pode dançar uma música comigo?

Era inacreditável. Ela estava ali olhando para ele como se ele fosse um
verdadeiro astro do rock.

— Não sei o que vou fazer se você não dançar comigo. — Ela deu mais
um sorriso de Rainha da Neve para ele. Me senti preso em um dos sonhos de
Link, ou de Ridley.

Falando nela...

— Tire as mãos, Rainha do Baile. Esse aqui é obra minha. — Ridley
encostou os braços e algumas outras partes importantes em Link para se fazer
entender.

— Desculpe, Savannah. Talvez na próxima.

Link enfiou as baquetas no bolso de trás e voltou para a pista de dança
com Ridley e sua dança proibida para menores. Deve ter sido o melhor
momento da vida dele. Parecia seu aniversário.

Depois que a música acabou, ele pulou de volta no palco.

— Temos uma última música, escrita por uma grande amiga minha,


para algumas pessoas especiais da Jackson High. Vocês sabem quem são.

O palco ficou escuro. Link abriu o casaco e as luzes se acenderam com
um toque de guitarra. Ele estava usando uma camiseta dos Anjos da Jackson
com as mangas arrancadas, tão ridícula em Link quanto ele queria que
ficasse. Se ao menos sua mãe o pudesse ver agora.

Ele se inclinou em direção ao microfone e começou a fazer seu próprio
Conjuro.



Anjos caídos ao meu redor

Infelicidade espalha infelicidade

Suas flechas quebradas estão me matando.

Por que não consegue ver?

O que você odeia se torna seu destino

Seu destino, Anjo Caído.



A música de Lena, a que ela escreveu para Link.

Enquanto a música crescia, cada Anjo se balançava ao som do hino feito
para eles. Talvez fosse tudo coisa de Ridley, talvez não. Mas na hora que a
música acabou e Link jogou a camiseta com asas na fogueira, parecia que
algumas outras coisas estavam em chamas junto com ela. Tudo que tinha
parecido tão difícil, tão insuperável por tanto tempo, meio que sumiu com a
fumaça.

Bem depois que os Holy Rollers tinham parado de tocar, mesmo quando
Ridley e Link não podiam ser encontrados, Savannah e Emily ainda estavam
sendo simpáticas com Lena e todo o time de basquete de repente estava
falando comigo de novo, procurei por algum pequeno sinal, um pirulito, em
algum lugar. Aquele fiapo único que poderia se soltar e desfazer o suéter
todo.

Mas não havia nada. Apenas a lua, as estrelas, a música, a luz e a
multidão. Lena e eu nem estávamos mais dançando, mas estávamos
abraçados. Nos balançávamos de um lado para o outro, a corrente de calor e
frio e eletricidade e medo pulsando por minhas veias. Enquanto houvesse
música, estávamos em nossa pequena bolha. Não estávamos mais sozinhos
em nossa caverna debaixo das cobertas, mas ainda era perfeito.

Lena se afastou com delicadeza, como fazia quando tinha algo em


mente, e olhou para mim. Como se estivesse me vendo pela primeira vez.

— O que foi?

— Nada. Eu... — Ela mordeu o lábio inferior com nervosismo e respirou
fundo. — É que tem uma coisa que eu queria contar pra você.

Tentei ler seus pensamentos, o rosto, qualquer coisa. Porque eu estava
começando a me sentir como se fosse a semana antes das férias de Natal tudo
de novo e estivéssemos no corredor da Jackson em vez de no campo de
Greenbrier. Meus braços ainda estavam ao redor da cintura dela, e tive que
resistir à vontade de abraçá-la com mais força, para garantir que ela não
pudesse se afastar.

— O que é? Você pode me contar qualquer coisa.

Ela colocou as mãos no meu peito.

— Caso alguma coisa aconteça essa noite, quero que você saiba...

Ela olhou nos meus olhos, e ouvi tão claramente como se ela tivesse
sussurrado no meu ouvido, só que significava mais do que poderia significar
se ela tivesse dito as palavras em voz alta. Ela as disse do único jeito
importante entre nós. Do jeito que nos tínhamos encontrado desde o começo.
Da maneira como sempre nos reencontrávamos.

Eu te amo, Ethan.

Por um segundo, eu não soube o que dizer, porque "eu te amo" não
parecia o bastante. Não dizia tudo que eu queria dizer — que ela tinha me
salvado dessa cidade, da minha vida, do meu pai. De mim mesmo. Como três
palavras podem dizer isso tudo? Não podem, mas eu as disse mesmo assim,
porque realmente sentia.

Eu te amo também, L. Acho que sempre amei.

Ela se aconchegou em mim de novo, apoiando a cabeça no meu ombro,
e senti seu cabelo quente contra meu queixo. E senti uma outra coisa. Aquela
parte dela que eu achava que nunca conseguiria alcançar, aquela parte que
ela mantinha fechada para o mundo. Senti que se abria o bastante para me
deixar entrar. Ela estava me dando uma parte de si, a única parte que era
realmente dela. Eu queria me lembrar dessa sensação, desse momento, como
uma foto para a qual eu pudesse voltar quando quisesse.

Eu queria que ficasse assim para sempre.

E isso durou exatamente mais cinco minutos.






p 11 de fevereiro p

d



Garota do pirulito













L



ena e eu ainda estávamos nos embalando ao som da música quando
Link abriu caminho no meio da multidão usando os cotovelos.

— Ei, cara, andei procurando você por toda parte. — Link se
inclinou e apoiou as mãos nos joelhos por um segundo, tentando recuperar o
fôlego.

— Onde está o incêndio?

Link parecia preocupado, o que era estranho para um cara que passava a
maior parte do tempo tentando descobrir como ficar com alguém e se
esconder da mãe ao mesmo tempo.

— É seu pai. Ele está na sacada do Fallen Soldiers de pijama.

De acordo com o Guia para Turistas da Carolina do Sul, o Fallen
Soldiers era um museu da Guerra Civil. Mas na verdade era apenas a velha
casa de Gaylon Evans, que estava cheia de objetos da Guerra Civil Gaylon
deixou a casa e a coleção para a filha, Vera, que estava tão desesperada para
se tornar membro do FRA que Deixou a Sra. Lincoln e companhia restaurar
a casa e transformá-la no único museu de Gatlin.

— Ótimo. — Me envergonhar em casa não era o bastante. Agora meu
pai tinha decidido se aventurar pela rua.

Link parecia confuso. Ele provavelmente esperava que eu ficasse surpreso
por meu pai estar por aí de pijama. Ele não tinha ideia de que aquela era a
realidade diária do meu pai. Percebi o quão pouco Link sabia da minha vida
atualmente, considerando que ele era meu melhor amigo... Meu único amigo.

— Ethan, ele está na sacada, como se fosse pular.

Não consegui me mexer. Ouvi o que ele disse, mas não consegui reagir.


Ultimamente, eu tinha vergonha do meu pai. Mas ainda o amava, louco ou
não, e não podia perdê-lo. Ele era a única família que eu tinha.

Ethan, você está bem?

Olhei para Lena, para aqueles grandes olhos verdes cheios de
preocupação. Esta noite eu podia perdê-la também. Podia perder os dois.

— Ethan, você me ouviu?

Ethan, você tem que ir. Tudo vai ficar bem.

— Vamos, cara! — Link estava me puxando. O astro do rock havia
sumido. Agora ele era apenas meu melhor amigo, tentando me salvar de mim
mesmo. Mas eu não podia Deixar Lena.

Não vou Deixar você aqui. Não sozinha.

De canto de olho, reparei que Larkin estava vindo em nossa direção. Ele
tinha se desembolado de Emily por um minuto.

— Larkin!

— O que foi? — Ele parecia sentir que alguma coisa estava acontecendo,
e realmente parecia preocupado, isso para um cara cuja expressão era
normalmente de desinteresse.

— Preciso que você acompanhe Lena de volta pra casa.

— Por quê?

— Apenas prometa que vai levá-la pra casa.

— Ethan, vou ficar bem. Vá! — Lena estava me empurrando na direção
de Link. Ela parecia tão assustada quanto eu me sentia. Mas não me mexi.

— Tá, cara. Vou levá-la agora.

Link me deu um puxão final, e passamos no meio da multidão. Porque
nós dois sabíamos que eu podia estar a poucos minutos de ser um cara sem
pai e sem mãe.





Corremos pelos campos de mato alto de Ravenwood na direção da estrada e
do Fallen Soldiers. O ar já estava cheio de fumaça dos morteiros, cortesia da
Batalha de Honey Hill, e em intervalos de poucos segundos pudemos ouvir
uma rodada de tiros. A campanha noturna seguia a pleno vapor. Estávamos
chegando perto do limite da fazenda de Ravenwood, onde ela terminava e
Greenbrier começava. Eu podia ver as cordas amarelas que marcavam a
Zona Segura brilhando na escuridão.


E se chegássemos tarde demais?

O Fallen Soldiers estava escuro. Link e eu subimos os degraus dois de
cada vez, tentando subir os quatro andares o mais rápido possível. Quando
chegamos ao terceiro andar, parei instintivamente. Link pressentiu isso, do
mesmo jeito que pressentia quando eu ia passar a bola para ele na quadra
quando meu tempo ia estourar, e parou do meu lado.

— Ele está aqui.

Mas não conseguia me mexer. Link leu meu rosto. Sabia do que eu tinha
medo. Ele tinha ficado ao meu lado no enterro da minha mãe, entregando os
cravos brancos para as pessoas colocarem no caixão dela, enquanto meu pai e
eu olhávamos para o caixão como se estivéssemos mortos também.

— E se... E se ele já tiver pulado?

— Não tem como. Deixei Rid com ele. Ela nunca Deixaria isso
acontecer.

O chão pareceu sumir debaixo de mim.

Se ela usasse o poder dela em você e mandasse você pular de um
penhasco, você pularia.

Passei por Link com um empurrão e olhei o corredor. Todas as portas
estavam fechadas, menos uma. A luz da lua caía sobre o piso de pinho
manchado.

— Ele está ali — disse Link, mas eu já sabia disso.

Quando entrei no quarto, foi como voltar no tempo. O FRA tinha feito
um bom trabalho. Havia uma enorme lareira de pedra em uma ponta, com
uma moldura longa de madeira, com velas em cima que pingavam ao
queimar. Os olhos de Confederados mortos olhavam para nós de retratos em
sépia pendurados na parede, e no lado oposto à lareira tinha uma cama de
dosséis. Mas alguma coisa estava deslocada, abalando a autenticidade. Era
um cheiro, almiscarado e doce. Doce demais. Uma mistura de perigo e
inocência, apesar de Ridley estar longe de ser inocente.

Ridley estava parada ao lado das portas abertas para a sacada, o cabelo
louro balançando ao vento. As portas estavam escancaradas e as cortinas
poeirentas e onduladas sacudiam no quarto, como se tivessem sido forçadas
para dentro por uma lufada de ar. Como se ele já tivesse pulado.

— Eu o encontrei — disse Link para Ridley, recuperando o fôlego.

— Estou vendo. Como vai, Palitinho? — Ridley deu aquele sorriso doce e


doentio. Isso me fez querer simultaneamente sorrir e vomitar.

Andei lentamente até as portas, com medo de ele não estar lá fora. Mas
ele estava. Parado sobre o parapeito estreito, do lado errado da sacada, de
pijama de flanela e descalço.

— Pai! Não se mexa.

Patos. Havia patos estampados no pijama dele, coisa que parecia
imprópria, considerando que ele estava prestes a pular de um prédio.

— Não se aproxime, Ethan. Senão eu pulo. — Ele parecia lúcido,
determinado e mais dono de si do que parecera em meses. Quase parecia
meu pai de novo. Foi por isso que eu soube que não era ele falando, pelo
menos não por conta própria. Isso era coisa de Ridley, o Poder de Persuasão
ligado no máximo.

— Pai, você não quer fazer isso. Deixe-me ajudar você. — Dei alguns
passos em direção a ele.

— Pare bem aí! — gritou ele, esticando a mão a frente de si para mostrar
o que queria dizer.

— Você não quer a ajuda dele, quer, Mitchell? Só quer paz. Só quer ver
Lila de novo. — Ridley estava apoiada na parede, o pirulito a postos.

— Não diga o nome da minha mãe, bruxa!

— Rid, o que você está fazendo? — Link estava na porta.

— Fique fora disso, Shrinky Dink. Isso aqui é demais pra você.

Fiquei parado na frente de Ridley, me colocando entre ela e meu pai

como se meu corpo pudesse de alguma maneira desviar o poder dela.

— Ridley, por que você está fazendo isso? Ele não tem nada a ver com
Lena e eu. Se você quer me machucar, me machuque. Mas Deixe meu pai
fora disso.

Ela jogou a cabeça para trás e riu, um som sensual e maldoso.

— Não estou nem aí pra machucar você, Palitinho. Só estou fazendo
meu trabalho. Não é nada pessoal.

Meu sangue congelou.

Seu trabalho.

— Você está fazendo isso para Sarafine.

— Mas peraí, Palitinho, o que você esperava? Você viu como meu tio me
trata. A coisa toda de família não é exatamente uma opção pra mim agora.

— Rid, de que você está falando? Quem é Sarafine? — Link andou na


direção dela. Ela olhou para ele. Por um segundo, pensei ter visto alguma
coisa passar no rosto de Ridley, só um brilho, mas alguma coisa real. Alguma
coisa que parecia quase uma emoção genuína.

Mas Ridley a afastou, e tão rápido como veio, ela se foi.

— Acho que você quer voltar para a festa, não quer, Shrinky Dink? A
banda está aquecendo pra a segunda rodada. Lembre que vamos gravar esse
show pra sua nova demo. Vou levar pessoalmente pra algumas gravadoras de
Nova York — ronronou ela, olhando com intensidade para ele. Link pareceu
na dúvida, como se talvez quisesse voltar para a festa mas não tivesse certeza.

— Pai, escute. Você não quer fazer isso. Ela está controlando você. Ela
consegue influenciar as pessoas. Mamãe jamais ia querer que você fizesse isso.
— Observei para ver se havia sinal de que minhas palavras estavam sendo
registradas, de que ele estava ouvindo. Mas não havia nada. Ele apenas
olhava para a escuridão. Dava para ouvir o som das baionetas se chocando e
os gritos de batalha de homens medievais ao longe.

— Mitchell, você não tem mais motivo para viver. Perdeu sua esposa,
não consegue mais escrever e Ethan vai para a faculdade em alguns anos. Por
que não pergunta sobre a caixa de sapato cheia de livretos de faculdades
embaixo da cama dele? Você vai ficar sozinho.

— Cale a boca!

Ridley se virou para me encarar, desembrulhando um pirulito de cereja.

— Sinto muito, Palitinho. Lamento mesmo. Mas todo mundo tem seu
papel, e esse é o meu. Seu pai vai sofrer um pequeno acidente essa noite.
Como aconteceu com sua mãe.

— O que você disse? — Eu sabia que Link estava falando, mas não
conseguia ouvir sua voz. Não conseguia ouvir nada além do que ela tinha
acabado de dizer, e aquilo se repetia sem parar na minha cabeça.

Como aconteceu com sua mãe.

— Você matou minha mãe? — Comecei a ir para cima dela. Eu não
ligava para que tipo de poderes ela tinha. Se ela tinha matado minha mãe...

— Calma aí, garotão. Não fui eu. Aquilo foi um pouco antes do meu
tempo.

— Ethan, que diabos está acontecendo? — Link estava ao meu lado.

— Ela não é o que parece, cara. Ela é... — Eu não sabia como dizer de
forma que Link entendesse. — Ela é uma Sirena. É como uma bruxa. E ela


tem controlado você assim como está controlando meu pai agora.

Link começou a rir.

— Uma bruxa. Você está pirando, cara.

Não tirei meus olhos de Ridley. Ela sorria e passava os dedos pelos
cabelos de Link.

— Querido, você sabe que ama uma menina má.

Eu não tinha ideia do que ela era capaz, mas depois da pequena
demonstração em Ravenwood, sabia que ela podia matar qualquer um de
nós. Eu nunca devia tê-la tratado como se ela fosse apenas uma garota
festeira inofensiva. Era mais do que poderia aguentar. Só estava começando a
perceber o quanto.

Link olhou dela para mim. Ele não sabia em que acreditar.

— Não estou brincando, Link. Eu devia ter contado antes, mas juro que
estou falando a verdade. Por que outro motivo ela estaria tentando matar
meu pai?

Link começou a andar de um lado para outro. Não acreditava em mim.
Provavelmente pensava que eu estava louco. Parecia loucura para mim
também enquanto me ouvia dizendo tudo aquilo.

— Ridley, é verdade? Você vem usando alguma espécie de poder em
mim esse tempo todo?

— Se você quer discutir isso...

Meu pai soltou da grade com uma das mãos. Esticou o braço como se
estivesse tentando se equilibrar numa corda bamba.

— Pai, não faça isso!

— Rid, não faça isso. — Link estava indo na direção dela, lentamente. Eu
podia ouvir a corrente da carteira dele tilintando.

— Você não ouviu o que seu amigo disse? Sou uma bruxa. Uma bruxa
má. — Ela tirou os óculos, revelando os olhos dourados felinos. Pude ouvir
Link perder o fôlego, como se estivesse vendo pela primeira vez. Mas só por
um segundo.

— Talvez você seja, mas não é completamente má. Sei disso. Passamos
um tempo juntos. Compartilhamos coisas.

— Era parte do plano, gostosão. Eu precisava de alguém de dentro para
poder ficar perto de Lena.

A expressão de Link se fechou. Seja lá o que Ridley tinha feito a ele, seja


lá o que ela tivesse Conjurado, os sentimentos dele por ela eram maiores do
que isso.

— Então era tudo balela? Não acredito em você.

— Acredite no que quiser, é a verdade. Tão próximo da verdade quanto
sou capaz, pelo menos.

Vi meu pai se mexer, o braço livre ainda esticado, balançando para cima
e para baixo. Parecia que ele estava tentando testar as asas, ver se podia voar.
A alguns metros, um cartucho de baía caiu no chão lá fora e houve uma
borrifada de terra no ar.

— E tudo aquilo que você me contou sobre você e Lena terem crescido
juntas? Que vocês duas eram como irmãs? Por que você iria querer machucá-
la? — Alguma coisa passou pelo rosto de Ridley. Eu não tinha certeza, mas
podia ser arrependimento. Seria possível?

— Não depende de mim. Não sou eu que dito as regras. Como falei, esse
é meu trabalho. Afastar Ethan de Lena. Não tenho nada contra esse coroa,
mas a mente dele é fraca. Sabe, falta um parafuso. — Ela lambeu o pirulito.
— Ele era apenas um alvo fácil.

Afastar Ethan de Lena.

Essa coisa toda era uma distração para nos separar. Eu podia ouvir a voz
de Ariela tão claramente como se ela ainda estivesse ajoelhada ao meu lado.

Não é a casa que a protege. Nenhum Conjurador pode entrar entre eles.

Como pude ser tão burro? Não era uma questão de se eu tinha ou não
algum tipo de poder. Nunca foi sobre mim. Éramos nós.

O poder era o que havia entre nós, o que sempre esteve entre nós. Nos
encontrarmos na autoestrada 9 na chuva. Viramos para o mesmo lado na
bifurcação da rua. Não era preciso um Feitiço para nos manter juntos. Agora
que conseguiram nos separar, eu não tinha poder algum. E Lena estava
sozinha, na noite em que ela mais precisava de mim.

Eu não conseguia pensar claramente. Não tinha tempo, e não ia perder
mais uma pessoa que amava. Corri na direção do meu pai, e apesar de serem
apenas poucos metros, senti como se estivesse correndo por areia movediça.
Vi Ridley dar um passo a frente, as mechas do cabelo se contorcendo ao
vento como as cobras na cabeça de Medusa.

Vi Link dar um passo a frente e segurar o ombro dela.

— Rid, não faça isso.


Por uma fração de segundo, não tive ideia do que ia acontecer. Vi tudo
em câmera lenta.

Meu pai se virou para me olhar.

Eu o vi começar a soltar da grade.

Vi as mechas rosa e louras de Ridley se movimentando.

E vi Link parado na frente dela, olhando naqueles olhos dourados,
sussurrando alguma coisa que eu não conseguia ouvir. Ela olhou para Link e,
sem dizer mais uma palavra, o pirulito saiu voando sobre a grade. Eu o vi
fazer um arco e cair no chão, explodindo como fragmentos de bala. Estava
acabado.

Tão rápido quanto meu pai tinha se virado de costas para a grade, ele se
virou de novo para ela, na minha direção. Peguei seus ombros e o puxei para
a frente, sobre a grade e para o chão da sacada. Ele caiu desajeitado e ficou lá
olhando para mim como uma criança assustada.

— Obrigado, Ridley. Seja lá o que tenha acontecido. Obrigado.

— Não quero seu agradecimento — falou ela com desdém, se afastando
de Link e ajustando a alça da blusa. — Não fiz favores pra nenhum de vocês.
Só não estava a fim de matá-lo. Hoje.

Ela tentou parecer ameaçadora, mas acabou parecendo infantil. Enrolou
uma mecha de cabelo rosa no dedo.

— Mas isso não vai deixar certas pessoas felizes. — Ela não precisava
dizer quem, mas eu podia ver o medo em seus olhos. Por um segundo, pude
ver o quanto da sua personalidade era um personagem. Ilusão de ótica.

Apesar de tudo, mesmo agora, enquanto eu tentava botar meu pai de pé,
senti pena dela. Ridley podia ter qualquer cara no planeta, e ainda assim tudo
que eu via era o quanto ela era solitária. Não era nem de perto tão forte
quanto Lena, não por dentro.

Lena.

Lena, você está bem?

Estou bem. O que foi?

Olhei para meu pai. Ele não conseguia ficar com os olhos abertos, e
estava tendo dificuldade de ficar de pé.

Nada. Você está com Larkin?

Sim, estamos indo para Ravenwood. Seu pai está bem?

Está. Explico quando chegar aí.


Passei meu braço por baixo do ombro do meu pai e Link fez o mesmo do
outro lado.

Fique com Larkin e volte para a casa com sua família. Você não está
segura sozinha.

Antes que pudéssemos dar um passo, Ridley passou por nós, pelas portas
abertas para a sacada, aquelas pernas de 15 quilômetros passando por cima
da grade.

— Me desculpem, rapazes. Tenho que ir, talvez voltar pra Nova York
por um tempo, ficar na minha. Vou ficar bem. — Ela deu de ombros.

Apesar de ela ser um monstro, Link não podia apenas vê-la partir.

— Ei, Rid?

Ela parou e se virou para encará-lo, quase com tristeza. Como se não
pudesse evitar o que era tanto quanto um tubarão é um tubarão, mas se
pudesse...

— O quê, Shrinky Dink?

— Você não é completamente má.

Ela olhou bem para ele e quase sorriu.

— Você sabe o que dizem. Talvez eu tenha nascido assim.

— Tudo bem, cara. Você não podia evitar. Eu devia ter te contado tudo.

— Deixa pra lá. Eu não teria acreditado.

O som dos tiros ecoou sobre nossas cabeças. Nós dois nos abaixamos
instintivamente.

— Espero que sejam de festim — disse Link nervosamente. — Não seria
louco se meu próprio pai me desse um tiro aqui?

— Do tipo que anda minha sorte, não me surpreenderia se ele atirasse
em nós dois.

Chegamos ao topo da colina. Eu podia ver a vegetação, os carvalhos e a
fumaça da artilharia mais a nossa frente.

— Estamos aqui! — gritou Larkin do outro lado da vegetação. Pelo uso
da primeira pessoa do plural, só pude concluir que ele falava dele e de Lena,
então corri mais rápido. Como se a vida de Lena dependesse disso, pois, pelo
que eu sabia, talvez dependesse.

Então percebi onde estávamos. Ali estava o arco que dava no jardim de
Greenbrier. Larkin e Lena estavam na clareira, logo além do jardim, no
mesmo lugar onde cavamos o túmulo de Genevieve alguns semanas antes.


Alguns metros atrás deles, uma pessoa surgiu das sombras e ficou sob a luz da
lua. Estava escuro, mas a lua cheia estava bem acima de nós. Pisquei. Era...
Era...

— Mãe, que diabos você está fazendo aqui? — Link estava confuso.
Porque a mãe dele estava parada na nossa frente, a Sra. Lincoln, meu pior
pesadelo, ou pelo menos um dos dez piores. Ela parecia estranhamente à
vontade, ou deslocada, dependendo de como se analisava a situação. Estava
usando um volume ridículo de camadas de saia e um vestido antiquado idiota
que apertava demais a cintura. E estava de pé bem em cima do túmulo de
Genevieve.

— O que é isso? Você sabe o que penso sobre palavrões, meu jovem.
Link coçou a cabeça. Isso não fazia sentido algum, nem para ele, nem para
mim.

Lena, o que está acontecendo? Lena?

Não houve resposta. Alguma coisa estava errada.

— Sra. Lincoln, você está bem?

— Excelente, Ethan, Não é uma batalha maravilhosa? E é aniversário de
Lena também, ela me disse. Estávamos esperando por vocês, ou pelo menos
por um de vocês.

Link deu um passo a frente.

— Bem, estou aqui agora, mãe. Vou levar você pra casa. Você não devia
ter saído da Zona Segura. Vão acabar explodindo sua cabeça. Você sabe
como papai atira mal.

Peguei o braço de Link e não o deixei seguir. Havia alguma coisa errada,
alguma coisa no jeito que ela sorria para nós. Alguma coisa sobre o olhar de
pânico no rosto de Lena.

O que está acontecendo? Lena!

Por que ela não estava respondendo? Observei Lena tirar o anel da
minha mãe de dentro do casaco e o pegar pelo cordão. Podia ver seus lábios
se movendo na escuridão. Consegui ouvir alguma coisa de leve, só um
sussurro, num canto profundo da minha mente.

Ethan, saia daqui! Chame tio Macon! Corra!

Mas eu não conseguia me mover. Não conseguia Deixá-la.

— Link, meu anjo, você é um menino tão dedicado.

Link? Não era a Sra. Lincoln que estava na nossa frente. Não podia ser.


A Sra. Lincoln não chamaria Wesley Jefferson Lincoln de Link tanto
quanto não andaria pelas ruas pelada. "Por que você usaria esse apelido
ridículo quando tem um nome tão digno, eu não consigo imaginar", ela dizia
cada vez que um de nós ligava para a casa dela e acidentalmente pedia para
falar com Link.

Link sentiu minha mão no braço dele e parou. Ele estava começando a
perceber também; estava no rosto dele.

— Mãe?

— Ethan, saia daqui! Larkin, Link, alguém, chame tio Macon! — gritava
Lena. Ela não conseguia parar. Parecia mais assustada do que eu jamais a
tinha visto. Corri em direção a ela.

Pude ouvir o som de uma bala sendo disparada por um canhão. Depois
uma rajada de tiros de rifle.

Minhas costas bateram em alguma coisa com força. Senti minha cabeça
estalar e tudo saiu de foco por um segundo.

— Ethan! — Eu podia ouvir a voz de Lena, mas não conseguia me
mexer. Tinha levado um tiro. Eu tinha certeza. Lutei para me manter
consciente.

Depois de alguns segundos, meus olhos recuperaram o foco. Eu estava no
chão, com as costas contra um carvalho enorme. O tiro deve ter me jogado
contra a árvore. Tateei em volta para ver onde tinha sido atingido, mas não
havia sangue. Eu não conseguia achar o ponto de entrada da bala. Link
estava a alguns metros, apoiado de forma estranha em outra árvore. Parecia
tão desnorteado quanto eu. Fiquei de pé e cambaleei na direção de Lena, mas
meu rosto bateu em alguma coisa e acabei caindo no chão. Parecia como na
vez em que bati de frente numa porta de vidro na casa das Irmãs.

Eu não tinha levado um tiro; isso era outra coisa. Tinha sido atingido por
um tipo diferente de arma.

— Ethan! — Lena estava gritando.

Levantei de novo e andei para a frente lentamente. Havia uma porta de
vidro ali sim, só que essa era uma espécie de parede invisível em torno da
árvore e de mim. Bati nela com meu punho, mas não houve som algum. Bati
nela com as palmas várias vezes. O que mais eu podia fazer? Foi aí que
reparei em Link batendo em sua própria jaula invisível.

A Sra. Lincoln sorria para mim, com um sorriso mais maldoso do que


qualquer um que Ridley pudesse dar em seu melhor dia.

— Solte eles! — gritou Lena.

Sem mais nem menos, o céu se abriu e a chuva despencou das nuvens,
como se estivesse sendo jogada de um balde. Lena. O cabelo dela ondulava
freneticamente. A chuva caía com neve junto e caía de lado, atacando a Sra.
Lincoln de todas as direções. Em uma questão de segundos estávamos
encharcados até os ossos.

A Sra. Lincoln, ou seja lá quem ela fosse, sorria. Havia alguma coisa no
sorriso dela. Ela parecia quase orgulhosa.

— Não vou machucá-los. Só quero ter um tempo para conversarmos. —
Um trovão soou no céu sobre a cabeça dela. — Eu tinha esperanças de ter
uma chance de ver alguns de seus talentos. Como lamentei não estar perto
para ajudar você a apurar seus dons.

— Cale a boca, bruxa. — Lena estava furiosa. Eu nunca tinha visto seus
olhos verdes assim, tão frios e duros como estavam postos na Sra. Lincoln.

Duros como rocha. Determinados. Cheios de ódio e raiva. Ela parecia
querer arrancar a cabeça da Sra. Lincoln, e parecia capaz de fazer isso.

Finalmente entendi o que preocupou Lena o ano todo. Ela tinha poder
para destruir. Eu só tinha visto o poder de amar. Quando se descobre que se
tem os dois, quem pode entender o que fazer com eles?

A Sra. Lincoln se virou para Lena.

— Espere até perceber o que pode mesmo fazer. Como pode manipular
os elementos. E o verdadeiro dom de uma Natural, uma coisa que temos em
comum.

Uma coisa que elas tinham em comum.

A Sra. Lincoln olhou para o céu, a chuva caindo ao seu lado como se
estivesse de guarda-chuva.

— Agora você está causando pancadas de chuva, mas logo vai aprender a
controlar o fogo também. Deixe-me mostrar. Como eu gosto de brincar com
fogo.

Pancadas de chuva? Ela estava brincando? Estávamos no meio de uma
tempestade.

A Sra. Lincoln ergueu a mão aberta e um relâmpago partiu as nuvens,
eletrificando o céu. Ela ergueu três dedos. Um relâmpago surgiu com o
movimento de cada unha pintada. Uma vez. Um relâmpago atingiu o chão,


fazendo subir terra, a meio metro de onde Link estava preso. Duas vezes. Um
relâmpago queimou o carvalho atrás de mim, partindo o tronco precisamente
ao meio. Uma terceira vez. Um relâmpago atingiu Lena, que simplesmente
ergueu a mão. A onda de eletricidade bateu nela e ricocheteou, caindo nos
pés da Sra. Lincoln. A grama ao redor dela começou a fumegar e queimar.

A Sra. Lincoln riu e sacudiu a mão. O fogo na grama morreu. Ela olhou
para Lena com um brilho de orgulho.

— Nada mau. Estou feliz de ver que quem sai aos seus, não degenera.

Não podia ser.

Lena olhou para ela e ergueu ambas as mãos abertas, num gestou de
proteção.

— É? E o que dizem sobre a ovelha negra?

— Nada. Ninguém nunca sobreviveu para comentar. — E então a Sra.
Lincoln se virou para Link e para mim em seu vestido antiquado com milhões
de saias, com o cabelo trançado caído nas costas. Ela olhou para nós, os olhos
dourados fulminantes. — Lamento, Ethan. Eu tinha esperanças de que nosso
primeiro encontro aconteceria sob circunstâncias diferentes. Não é todo dia
que conhecemos o primeiro namorado da filha.

Ela se virou para Lena.

— E nem a própria filha.

Eu estava certo. Sabia quem era ela e com que estávamos lidando.

Sarafine.

Logo depois, o rosto da Sra. Lincoln, o vestido, o corpo, literalmente
começaram a se partir ao meio. Dava para ver a pele de cada lado se
enrugando como papel de bala. O corpo se abriu ao meio e começou a cair
como um casaco sendo tirado dos ombros de alguém. Por baixo, havia outra
pessoa.

— Não tenho mãe — gritou Lena.

Sarafine fez uma careta, como se estivesse tentando parecer magoada
por ser a mãe de Lena. Era uma verdade genética inegável. Elas tinham o
mesmo cabelo preto longo e encaracolado. Exceto que Lena era
assustadoramente linda, e Sarafine era apenas assustadora. Como Lena,
Sarafine tinha traços alongados e elegantes, mas em vez dos belos olhos
verdes de Lena, ela tinha os mesmos olhos brilhantes de Ridley e Genevieve.
E os olhos faziam toda a diferença.


Sarafine usava um vestido verde escuro de veludo com corpete, meio
moderno, gótico e da virada do século, tudo ao mesmo tempo, e botas pretas
altas. Ela literalmente saiu de dentro do corpo da Sra. Lincoln, que se fundiu
de novo em segundos, como se alguém tivesse refeito a costura. Isso deixou a
verdadeira Sra. Lincoln caída na grama com a armação da saia erguida,
revelando a meia três-quartos e a calçola.

Link estava em choque.

Sarafine se ajeitou, livre do peso, e tremeu.

— Mortais. Aquele corpo era insuportável, desajeitado e desconfortável.
Comia sem parar. Criaturas nojentas.

— Mãe! Mãe, acorde! — Link batia o punho contra o que era
obviamente algum tipo de campo de força. Não importava que monstro ela
fosse, a Sra. Lincoln era o monstro de Link, e devia ser difícil vê-la jogada
como um pedaço de lixo humano sem importância.

Sarafine sacudiu a mão. A boca de Link ainda se mexia, mas não saía
som.

— Assim é melhor. Você tem sorte que não precisei passar o tempo todo
no corpo da sua mãe nos últimos meses. Se tivesse, você estaria morto agora.
Nem posso dizer o número de vezes que quase matei você apenas por tédio
na mesa do jantar, quando você falava sem parar daquela banda idiota.

Tudo fazia sentido agora. A cruzada contra Lena, a reunião do Comitê
Disciplinar da Jackson, as mentiras sobre os registros escolares de Lena, até
mesmo os brownies esquisitos no Halloween. Há quanto tempo Sarafine se
escondia com a Sra. Lincoln?

Na Sra. Lincoln.

Eu nunca tinha entendido contra o que estávamos lutando de verdade
até agora. A maior Conjuradora das Trevas da atualidade. Ridley parecia tão
inofensiva em comparação. Não era surpreendente que Lena estivesse com
medo desse dia por tanto tempo.

Sarafine olhou para Lena.

— Você pode pensar que não tem mãe, Lena, mas se isso é verdade, é só
porque sua avó e seu tio tiraram você de mim. Eu sempre amei você. — Era
desconcertante como Sarafine podia ir tão facilmente de um âmbito de
emoções para outro, da sinceridade e arrependimento ao nojo e desprezo,
cada emoção tão vazia quanto a outra.


Os olhos de Lena estavam amargos.

— E por isso que você tem tentado me matar, mãe?

Sarafine tentou parecer preocupada, ou talvez surpresa. Era difícil dizer
por que sua expressão parecia tão artificial, forçada.

— É isso que disseram a você? Eu só estava tentando fazer contato, falar
com você. Se não fossem os Feitiços deles, minhas tentativas nunca teriam
posto você em perigo, e eles sabiam disso. É claro que entendo a preocupação
deles. Sou uma Conjuradora das Trevas, uma Cataclista. Mas Lena, você
sabe tão bem quanto todo mundo que eu não tinha escolha nesse assunto. Foi
decidido por mim. Não muda o que sinto por você, minha única filha.

— Não acredito em você! — gritou Lena. Mas ela parecia insegura, como
se não soubesse em que acreditar.

Olhei para meu celular. 21h59. Duas horas até a meia-noite.

Link estava encostado na árvore, a cabeça nas mãos. Eu não conseguia
tirar os olhos da Sra. Lincoln, sem vida na grama. Lena olhava para ela
também.

— Ela não está... você sabe. Está? — Eu tinha que saber, por Link.

Sarafine tentou parecer solidária. Mas percebi que ela estava perdendo
interesse em Link e em mim, o que não era bom para nenhum de nós.

— Ela voltará ao estado prévio e nada interessante em breve. Que
mulher enjoada. Não estou interessada nela e nem no garoto. Só estava
tentando mostrar à minha filha a verdadeira natureza dos Mortais. O quão
facilmente podem ser influenciados, o quanto são vingativos. Ela se virou
para Lena. — Bastaram apenas algumas palavras da Sra. Lincoln para ver
essa cidade se virar rapidamente contra você. Você não tem lugar no mundo
deles. Seu lugar é comigo.

Sarafine se virou para Larkin.

— Falando em estados desinteressantes, Larkin, por que você não nos
mostra seus bebezinhos?

Larkin sorriu e fechou bem os olhos, esticando os braços sobre a cabeça
como se estivesse se espreguiçando depois de um longo cochilo. Mas quando
abriu os olhos de novo, alguma coisa estava diferente. Ele piscou rapidamente
e a cada piscada seus olhos mudavam. Dava quase para ver as moléculas se
rearrumando. Larkin se transformou e, onde antes estava ele, havia uma
pilha de cobras. As cobras começaram a serpentear e subir umas nas outras,


até que Larkin emergiu de novo daquela massa que se contorcia. Ele esticou
dois braços de cascavéis que sibilavam e rastejaram até a jaqueta de couro e
viraram mãos. Então ele abriu os olhos. Mas em vez dos olhos verdes que eu
estava acostumado a ver, Larkin olhou para nós com os mesmos olhos
dourados de Sarafine e Ridley.

— Verde nunca foi minha cor. Uma das vantagens de ser um Ilusionista.

— Larkin? — Meu coração afundou. Ele era um deles, um Conjurador
das Trevas. As coisas estavam piores do que eu pensava.

— Larkin, o que você é? — Lena parecia confusa, mas só por um
segundo. —- Por quê?

Mas a resposta estava olhando para nós, nos olhos dourados de Larkin.

— Por que não?

— Por que não? Ah, não sei, que tal um pouco de lealdade familiar?

Larkin girou a cabeça, e a grossa corrente de ouro em volta do pescoço
virou uma cobra, a língua encostando em sua bochecha.

— Lealdade não é pra mim.

— Você traiu todo mundo, sua própria mãe. Como pode conviver com
isso?

Ele mostrou a língua. A cobra rastejou até a boca dele e desapareceu. Ele
a engoliu.

— É muito mais divertido ser das Trevas do que ser da Luz, prima. Você
vai ver. Somos o que somos. Isso era o que estava destinado para mim. Não
há razão para lutar contra o destino. — A língua dele tremeu, agora partida
ao meio, como a da cobra dentro dele. — Não sei por que você está tão tensa
com isso. Veja Ridley. Ela está se divertindo.

— Você é um traidor! — Lena estava perdendo o controle. Trovões
soaram sobre nossas cabeças e a chuva aumentou de novo.

— Ele não é o único traidor, Lena. — Sarafine deu alguns passos em
direção a Lena.

— O que você quer dizer?

— Seu amado tio Macon. — A voz dela estava amarga, e eu sabia que
Sarafine não tinha Deixado de perceber que Macon tinha roubado sua filha.

— Você está mentindo.

— É ele quem tem mentido para você esse tempo todo. Deixou você
acreditar que seu destino estava predeterminado, que você não tinha escolha.


Que hoje, no seu décimo-sexto aniversário, você será Invocada para a Luz ou
para as Trevas.

Lena sacudiu a cabeça com teimosia. Ergueu as mãos com as palmas
viradas para fora. Mais um trovão soou, e a chuva começou a cair forte, em
pingos grossos e torrentes. Ela gritou para ser ouvida.

— É o que acontece. Aconteceu com Ridley, com Reece e com Larkin.

— Está certa, mas você é diferente. Esta noite, você não será Invocada.
Terá que Invocar a si mesma.

As palavras ficaram no ar. Invocar a si mesma. Como se as palavras em
si tivessem o poder de parar o tempo.

O rosto de Lena estava pálido. Por um segundo, pensei que ela ia
desmaiar.

— O que você disse? — sussurrou ela.

— Você tem uma escolha. Tenho certeza que seu tio não lhe contou isso.

— Isso é impossível. — Eu mal conseguia ouvir a voz de Lena no vento
uivante.

— Uma escolha dada a você porque você é minha filha, a segunda
Natural nascida na família Duchannes. Posso ser uma Cataclista agora, mas
fui a primeira Natural a nascer na nossa família.

Sarafine fez uma pausa, depois repetiu um verso:

"A Primeira vai ser das Trevas

Mas a Segunda pode escolher outro caminho."

— Não entendo. — As pernas de Lena cederam e ela caiu de joelhos na
lama e na grama alta, o cabelo negro longo pingando ao seu redor.

— Você sempre teve escolha. Seu tio sempre soube disso.

— Não acredito em você! — Lena jogou os braços para cima. Montes de
terra se soltaram do chão entre elas duas, rodopiando na tempestade. Protegi
meus olhos quando pedaços de terra voaram para cima de nós de todas as
direções.

Tentei gritar por cima do som da tempestade, mas Lena mal conseguia
me ouvir.

— Lena, não preste atenção nela. Ela é das Trevas. Não liga pra
ninguém. Você mesma disse isso.

— Por que tio Macon esconderia a verdade de mim? — Lena olhou
diretamente para mim, como se eu fosse o único a saber a resposta. Mas eu


não sabia. Não havia nada que eu pudesse dizer.

Lena bateu o pé no chão a frente dela. O chão começou a tremer e
depois a se deslocar sob meus pés. Pela primeira vez na História, um
terremoto atingiu o condado de Gatlin. Sarafine sorriu. Sabia que Lena
estava perdendo controle e que ela estava vencendo. A tempestade elétrica no
céu piscou sobre nossas cabeças.

— Já chega, Sarafine! — ecoou a voz de Macon pelo campo. Ele
apareceu do nada. — Deixe minha sobrinha em paz.

— Não o bastante. Não estou surpreso por você se associar a alguém
como ela.

Hunting riu, alto e escandaloso.

— Com quem mais você esperaria que eu me associasse? Com um grupo
de Conjuradores da Luz, como você fez? É ridículo. A ideia de que você pode
se afastar do que é. Do legado da sua família.

— Fiz uma escolha, Hunting.

— Uma escolha? É assim que você chama? — Hunting riu de novo,
chegando mais perto de Macon. — Está mais para uma fantasia. Você não
pode escolher o que é, irmão. Você é um Incubus. E quer você escolha se
alimentar de sangue ou não, você ainda é uma Criatura das Trevas.

— Tio Macon, o que ela disse é verdade? — Lena não estava interessada
no reencontro de Macon e Hunting.

Sarafine riu de maneira estridente.

— Pelo menos uma vez na sua vida, Macon, diga a verdade para a
garota.

Macon olhou para ela, teimoso.

— Lena, não é tão simples.

— Mas é verdade? Tenho escolha? — O cabelo dela estava pingando,
enrolado em cachos úmidos. É claro que Macon e Hunting estavam secos.
Hunting sorriu e acendeu um cigarro. Ele estava gostando de tudo aquilo.

— Tio Macon. É verdade? — suplicou Lena.

Macon olhou para Lena, exasperado, e olhou para o outro lado.

— Você tem uma escolha, Lena, uma escolha complicada. Uma escolha
com graves consequências.

De repente, a chuva parou completamente. O ar ficou perfeitamente
parado. Se isso fosse um furacão, estaríamos no olho dele. As emoções de


Lena se agitavam. Eu sabia como ela estava se sentindo, mesmo sem ouvir
sua voz na minha cabeça. Felicidade, porque ela finalmente tinha conseguido
aquilo que sempre quis, a escolha de decidir o próprio destino. Raiva, porque
tinha perdido a única pessoa em quem sempre tinha confiado.

Lena olhou para Macon como se fosse com olhos novos. Eu podia ver a
escuridão surgindo no rosto dela.

— Por que você não me contou? Passei minha vida toda apavorada com
a possibilidade de ir para as Trevas. — Houve outro estrondo de trovão e a
chuva começou a cair de novo, como lágrimas. Mas Lena não estava
chorando, estava furiosa.

— Você tem escolha, Lena. Mas há consequências. Consequências que
você não podia entender quando criança. Você nem pode começar a
entendê-las agora. Ainda assim, passei cada dia da minha vida ponderando
sobre elas, desde antes de você nascer. E como sua querida mãe sabe, as
condições dessa barganha foram determinadas há muito tempo.

— Que tipo de consequências? — Lena olhou para Sarafine, cética.
Cautelosa. Como se sua mente se abrisse a novas possibilidades. Eu sabia o
que ela estava pensando. Se ela não podia confiar em Macon, se ele guardou
esse tipo de segredo a vida toda, talvez sua mãe estivesse falando a verdade.

Eu tinha que fazer com que me escutasse.

Não escute o que ela diz! Lena! Você não pode confiar nela...

Mas não havia nada. Nossa conexão se quebrava na presença de
Sarafine. Era como se ela tivesse cortado a linha telefônica entre nós.

— Lena, você não pode entender a escolha que está sendo pressionada a
fazer. O que está em jogo.

A chuva passou de um gotejar de lágrimas a um aguaceiro exagerado.

— Como se você pudesse confiar nele. Depois de mil mentiras. —
Sarafine olhou com raiva para Macon e depois se virou para Lena. —
Gostaria de ter mais tempo para conversar, Lena. Mas você tem que fazer a
Escolha, e eu sou Obrigada a explicar o que está em jogo. Há consequências;
seu tio não estava mentindo sobre isso. — Ela fez uma pausa. — Se você
escolher ir para as Trevas, todos os Conjuradores da Luz da nossa família vão
morrer.

Lena ficou pálida.

— Por que eu concordaria com isso?


— Porque se você escolher ir para a Luz, todos os Conjuradores das
Trevas e os Lilum da nossa família vão morrer. — Sarafine se virou e olhou
para Macon. — E eu quero dizer todos. Seu tio, o homem que tem sido como
um pai para você, vai deixar de existir. Você vai destruí-lo.

Macon desapareceu e se materializou na frente de Lena, nem um
segundo depois.

— Lena, escute. Estou disposto a fazer o sacrifício. Foi por isso que não
falei para você. Eu não queria que você se sentisse culpada pelo meu fim. Eu
sempre soube o que você escolheria. Faça a escolha. Liberte-se de mim.

Lena estava vacilante. Ela podia mesmo destruir Macon se Sarafine
estivesse dizendo a verdade? Mas se era verdade, que outra escolha ela tinha?
Macon era apenas uma pessoa, apesar de ser uma que ela amava.

— Tem mais uma coisa que posso oferecer — acrescentou Sarafine.

— O que você poderia ter a oferecer que me faria matar vovó, tia Del,
Reece, Ryan?

Sarafine deu uns passos hesitantes na direção de Lena.

— Ethan. Temos um meio de vocês dois poderem ficar juntos.

— De que você está falando? Já estamos juntos.

Sarafine inclinou a cabeça ligeiramente e estreitou o olhar. Alguma coisa
passou pelos por seus olhos dourados. Reconhecimento.

— Você não sabe. Sabe? — Sarafine se virou para Macon e riu. — Você
não contou a ela. Bem, isso não é jogar limpo.

— O que eu não sei? — falou Lena.

— Que você e Ethan nunca vão poder ficar juntos, não fisicamente.
Conjuradores e Lilum não podem se relacionar fisicamente com Mortais. —
Ela sorriu, saboreando o momento. — Pelo menos, não sem matá-los.




















p 11 de fevereiro p

d



A Invocação















C



onjuradores não podem se relacionar fisicamente com Mortais sem matá-
los.

Tudo fazia sentido agora. A conexão primária entre nós. A
eletricidade, a falta de ar sempre que nos beijávamos, o ataque do coração
que quase me matou — não podíamos ficar juntos fisicamente.

Eu sabia que era verdade. Lembrei do que Macon dissera naquela noite
no pântano com Amma, e no meu quarto.

Um futuro entre os dois é uma impossibilidade.

Há coisa que você não vê agora, coisas que estão além do nosso controle.

Lena estava tremendo. Ela também sabia que era verdade.

— O que você disse? — sussurrou ela.

— Que você e Ethan nunca vão poder ficar juntos de verdade. Nunca
poderão se casar, ter filhos. Vocês nunca poderão ter um futuro, pelo menos
não um de verdade. Não acredito que nunca contaram pra você. Sem dúvida
mantiveram você e Ridley numa redoma.

Lena se virou para Macon.

— Por que você não me contou? Sabe que eu o amo.

— Você nunca tinha tido um namorado, muito menos um Mortal.
Nenhum de nós jamais achou que isso seria problema. Não nos demos conta
do quanto sua ligação com Ethan era forte até ser tarde demais.

Eu podia ouvir suas vozes, mas não estava ouvindo. Nunca poderíamos
ficar juntos. Eu nunca poderia ficar próximo o suficiente.

O vento começou a aumentar, espalhando a chuva pelo ar como se fosse
vidro. Um relâmpago partiu o céu. Um trovão soou com tamanho estrondo


que o chão tremeu. Claramente, não estávamos mais no olho da tempestade.
Eu sabia que Lena não ia conseguir se controlar por muito mais tempo.

— Quando vocês iam me contar? — gritou ela acima do vento.

— Depois que você fosse Invocada.

Sarafine viu a oportunidade e a agarrou.

— Mas você não vê, Lena? Temos um jeito. Um jeito de você e Ethan
poderem passar o resto da vida juntos, se casarem, terem filhos. O que você
quiser.

— Ela nunca permitiria isso, Lena — retorquiu Macon. — Mesmo se
fosse possível, Conjuradores das Trevas desprezam os Mortais. Jamais
permitiriam que suas linhagens se diluíssem com sangue Mortal. É uma das
nossas grandes diferenças.

— É verdade. Mas nesse caso, Lena, estaríamos dispostos a abrir uma
exceção, considerando a alternativa. E encontramos um meio de tornar isso
possível. — Ela deu de ombros. — É melhor do que morrer.

Macon olhou para Lena e reagiu.

— Você poderia matar todo mundo da sua família só para estar com
Ethan? Tia Del? Reece? Ryan? Sua própria avó?

Sarafine abriu as mãos poderosas de forma luxuriante, exercitando seus
poderes.

— Depois da Transformação, nem vai ligar para essas pessoas. E você
terá a mim, sua mãe, seu tio e Ethan. Ele não é a pessoa mais importante na
sua vida?

Os olhos de Lena se enevoaram. Chuva e neblina a rodeavam. Era tão
alto que quase abafou o som dos tiros em Honey Hill. Eu tinha esquecido que
podíamos morrer por qualquer uma das duas batalhas em acontecimento ali
esta noite.

Macon segurou Lena pelos braços.

— Ela está certa. Se você concordar com isso, não vai sentir remorso,
porque não vai ser você mesma. A pessoa que você é agora estará morta. O
que ela não está dizendo é que não vai se lembrar dos seus sentimentos por
Ethan. Em poucos meses, seu coração estará tão cheio de Trevas que ele não
representará mais nada para você. A Invocação tem um poder incrivelmente
intenso em uma Natural. Você pode até mesmo matá-lo com suas mãos.
Você será capaz desse tipo de maldade. Não é verdade, Sarafine? Diga para


Lena o que aconteceu com o pai dela, já que você é uma grande defensora da
verdade.

— Seu pai roubou você de mim, Lena. O que aconteceu foi um
infortúnio, um acidente.

Lena parecia chocada. Era uma coisa ouvir que a mãe tinha assassinado
o pai da bola maluca da Sra. Lincoln na reunião do Comitê Disciplinar. Era
outra coisa descobrir que era verdade.

Macon tentou virar as coisas de volta a seu favor.

— Diga para ela, Sarafine. Explique para ela como o pai dela morreu
queimado em sua própria casa, por um incêndio que você desencadeou.
Todos sabemos como você ama brincar com fogo.

Os olhos de Sarafine estavam ferozes.

— Sabe, você interferiu por 16 anos. Acho que devia ficar de fora agora.

De repente, Hunting apareceu a centímetros de Macon. Agora ele
parecia menos com um homem e mais com o que ele era. Um Demônio. O
cabelo liso e preto estava de pé como os pelos das costas de um lobo antes de
atacar, as orelhas estavam pontudas, e quando ele abriu a boca, era a boca de
um animal. Então ele apenas desapareceu, desmaterializando-se.

Hunting reapareceu num piscar de olhos em cima de Macon, tão
rapidamente que nem tive certeza do que vi. Macon segurou Hunting pela
jaqueta e o jogou contra uma árvore. Eu nunca tinha me dado conta do
quanto Macon era forte. Hunting saiu voando, mas em vez de bater na
árvore, passou por ela e rolou no chão do outro lado. No mesmo momento,
Macon desapareceu e reapareceu em cima dele. Macon jogou o corpo de
Hunting no chão, e a força fez o chão rachar embaixo deles. Hunting ficou
deitado, derrotado. Macon se virou para olhar para Lena. Quando ele se
virou de volta, Hunting levantou-se atrás dele com um sorriso. Gritei,
tentando avisar Macon, mas ninguém podia me ouvir com o furacão que
crescia acima de nós. Hunting rosnou com ferocidade, enfiando os dentes na
nuca de Macon como um cachorro numa luta.

Macon gritou, um som profundo e gutural, e desapareceu. Ele se foi.
Mas Hunting deve ter ficado preso a ele, pois desapareceu com Macon, e
quando eles reapareceram na beirada da clareira, Hunting ainda estava
agarrado ao pescoço de Macon.

O que ele estava fazendo? Se alimentando? Eu não sabia o bastante para


saber como ou se isso era ao menos possível. Mas seja lá o que Hunting
estivesse absorvendo, pareceu enfraquecer Macon. Lena gritou, e foram gritos
altos e apavorantes.

Hunting se afastou do corpo de Macon com um empurrão. Macon ficou
caído na lama, a chuva caindo sobre ele. Outra rajada de tiros foi ouvida. Me
encolhi, assustado pela proximidade de tipos de verdade. A Encenação estava
vindo em nossa direção, na direção de Greenbrier. Os Confederados estavam
fazendo a defesa final.

O barulho dos tiros abafou o rosnado, por um lado totalmente diferente,
mas ainda um som familiar. Boo Radley. Ele uivou e pulou no ar na direção
de Hunting, pronto para defender seu dono. Quando o cachorro saltou em
direção a Hunting, o corpo de Larkin começou a se contorcer, se
transformando em uma pilha de cobras na frente de Boo. As cobras
sibilaram, serpenteando umas sobre as outras.

Boo não se deu conta de que as cobras eram uma ilusão, de que ele podia
correr por entre elas. Ele retrocedeu, latindo, atento às cobras serpenteantes,
o que era a oportunidade que Hunting precisava. Ele desmaterializou e
apareceu atrás de Boo, enforcando o cachorro com sua força sobrenatural. O
corpo de Boo se contorceu enquanto ele tentava lutar com Hunting, mas era
inútil. Hunting era forte demais. Ele jogou o corpo inerte do cachorro para o
lado, ao lado de Macon. Boo estava imóvel.

O cachorro e seu dono estavam deitados lado a lado na lama. Sem se
mexer.

— Tio Macon! — gritou Lena.

Hunting passou as mãos pelo cabelo liso e sacudiu a cabeça, revigorado.
Larkin voltou a vestir a jaqueta de couro, em sua forma familiar. Os dois
pareciam drogados depois de tomar uma dose.

Larkin olhou para a lua, depois para o relógio.

— Está quase na hora. A meia-noite está chegando.

Sarafine esticou os braços como se fosse abraçar o céu.

— A Décima-Sexta Lua, o Décimo-Sexto Ano.

Hunting sorriu para Lena com sangue e lama no rosto.

— Bem-vinda à família.










Lena não tinha a menor intenção de ser parte daquela família. Eu podia ver
isso agora. Ela se levantou, encharcada, coberta com lama da tempestade
torrencial. O cabelo preto chicoteava ao redor. Ela mal conseguia ficar de pé
contra o vento, e se inclinou na direção dele, como se a qualquer momento
seus pés fossem sair do chão e ela fosse desaparecer no céu negro. Talvez
pudesse. A essa altura, nada me surpreenderia.

Larkin e Hunting se moveram silenciosamente nas sombras, até que
estavam flanqueando Sarafine, de cara para Lena. Sarafine chegou mais
perto.

Lena ergueu uma mão espalmada.

— Pare. Agora.

Sarafine não parou. Lena fechou a mão. Uma linha de fogo surgiu na
grama alta. As chamas rugiram, separando mãe e filha. Sarafine ficou
paralisada. Não esperava que Lena fosse capaz de muito mais do que ela
provavelmente considerava ser um pouco de vento e chuva. Lena a tinha
pego de surpresa.

— Nunca vou esconder nada de você, como todo mundo em nossa
família fez. Expliquei suas opções e falei a verdade. Você pode me odiar, mas
ainda sou sua mãe. E posso oferecer uma coisa que eles não podem. Um
futuro com o Mortal.

As chamas aumentaram. O fogo se espalhou como se tivesse vontade
própria, até que as chamas cercaram Sarafine, Larkin e Hunting. Lena riu.
Uma risada sombria, como a da mãe. Até mesmo do outro lado da clareira,
ela me fez tremer.

— Você não precisa fingir que se importa comigo. Todos sabemos a
megera que você é, mãe. É a única coisa com a qual todos podemos
concordar.

Sarafine juntou os lábios e soprou, como se estivesse soprando um beijo.
Só que o fogo soprou junto, mudando a direção, correndo pela vegetação
para cercar Lena.

— Tente ser mais convincente, querida. Se esforce.

Lena sorriu.

— Queimar uma bruxa? Mas que clichê.


— Se eu quisesse queimar você, Lena, já estaria morta. Lembre-se, você
não é a única Natural.

Lentamente, Lena esticou o braço e colocou uma mão nas chamas. Não
fez nenhuma careta, ficou completamente sem expressão. Então enfiou outra
mão no fogo. Ergueu as mãos acima da cabeça e segurou o fogo como se fosse
uma bola. Depois jogou as chamas com o máximo de força que conseguiu.
Bem na minha direção.

O fogo bateu no carvalho atrás de mim, acendendo os galhos mais
rápido do que lenha seca. As chamas desceram pelo tronco. Cambaleei para
a frente, tentando sair do caminho. Continuei me mexendo até que cheguei à
parede da minha prisão invisível. Mas dessa vez, ela não estava lá. Arrastei as
pernas pelos centímetros de lama através do campo. Olhei para o lado e vi
Link caído. O carvalho atrás dele queimava com mais intensidade que o meu.
As chamas atingiram o céu negro e começaram a se espalhar no campo ao
redor. Corri na direção de Lena. Não conseguia pensar em outra coisa. Link
cambaleou na direção da mãe dele. Só havia Lena e a linha de fogo entre
Sarafine e nós. Por um momento, pareceu o bastante.

Toquei o ombro de Lena. Na escuridão, ela deveria ter tido um
sobressalto, mas sabia que era eu. Ela nem olhou para mim.



Amo você, L.

Não diga nada, Ethan. Ela consegue ouvir tudo. Não tenho certeza, mas
acho que sempre ouviu.



Olhei para o outro lado do campo, mas não conseguia ver Sarafine,
Hunting e nem Larkin por trás das chamas. Sabia que eles estavam lá, e sabia
que provavelmente tentariam matar todos nós. Mas eu estava com Lena e,
por apenas um segundo, era tudo que importava.

— Ethan! Vá buscar Ryan. Tio Macon precisa de ajuda. Não posso
segurá-la por muito tempo.

Saí em disparada antes que Lena pudesse dizer outra palavra. Seja lá o
que Sarafine tivesse feito para romper nossa ligação, não mais importava.
Lena estava de volta no meu coração e na minha cabeça. Enquanto eu corria
pelos campos irregulares, era só isso que importava.

Exceto pelo fato de que era quase meia-noite. Corri mais rápido.


Amo você também. Vá rápido...











Olhei para meu celular: 23h25. Bati na porta de Ravenwood e empurrei
freneticamente a lua crescente acima da porta. Nada aconteceu. Larkin devia
ter feito alguma coisa para selar o portal, não que eu tivesse alguma ideia
como.

— Ryan! Tia Del! Vovó!

Eu tinha que encontrar Ryan. Macon estava ferido. Lena podia ser a
próxima. Eu não tinha como prever o que Sarafine faria quando Lena
recusasse a proposta dela. Link cambaleou no degrau atrás de mim.

— Ryan não está aqui.

— Ryan é médica? Temos que ajudar minha mãe.

— Não. Ela... Explico depois.

Link estava andando de um lado para o outro na varanda.

— Alguma parte daquilo foi real?

Pense. Eu tinha que pensar. Estava nisso sozinho. Ravenwood era uma
verdaDeira fortaleza esta noite. Ninguém podia invadir, pelo menos não um
Mortal, e eu não podia decepcionar Lena.

Liguei para a única pessoa em que pude pensar que não teria problemas
em lidar com dois Conjuradores das Trevas e um Incubus de Sangue, no
meio de um furacão sobrenatural. Uma pessoa que era meio que um furacão
sobrenatural por si só. Amma.

Ouvi o toque do telefone no outro lado da linha.

— Ela não atende. Amma ainda deve estar com meu pai.

23h30. Só havia uma outra pessoa que podia me ajudar, e era um tiro no
escuro. Liguei para a Biblioteca do Condado de Gatlin.

— Marian também não está lá. Ela saberia o que fazer. Que diabos? Ela
nunca sai da biblioteca, mesmo tarde.

Link andava de um lado para o outro, desesperado.

— Nada está aberto. É uma porcaria de feriado. É a Batalha de Honey
Hill, lembra? Talvez devêssemos ir para a Zona Segura e procurar


paramédicos.

Olhei para ele como se um relâmpago tivesse acabado de sair da sua
boca e me atingido na cabeça.

— É feriado. Nada está aberto — repeti.

— É. Eu acabei de dizer isso. Então o que a gente faz? — Ele parecia
infeliz.

— Link, você é um gênio. Um gênio incrível.

— Eu sei, cara, mas o que isso tem a ver com tudo?

— Está com o Lata-Velha?

Ele assentiu.

— Temos que sair daqui.

Link ligou o carro. Ele estalou mas pegou, como sempre. Os Holy
Rollers soavam nos alto-falantes, e que fique registrado que agora eles eram
péssimos. Ridley deve mesmo ser boa nesse lance de Sirena.

Link desceu o caminho de cascalho, depois olhou para mim de lado.

— Pra onde vamos mesmo?

— Pra biblioteca.

— Pensei que você tivesse dito que está fechada.

— Pra outra biblioteca.

Link assentiu como se tivesse entendido, mas não tinha. Mesmo assim,
ele fez o que falei, como nos velhos tempos. O Lata-Velha se sacudiu pela
estrada de cascalho como se fosse segunda-feira de manhã e estivéssemos
atrasados para o primeiro tempo. Só que não era.

Eram 23h40.









Quando paramos de repente na frente da Sociedade Histórica, Link nem
tentou entender. Saí do carro antes que ele pudesse desligar o som que tocava
Holy Rollers. Ele me alcançou quando eu virava a esquina e entrava na
escuridão atrás do segundo prédio mais antigo de Gatlin.

— Aqui não é a biblioteca.

— Aham.

— É o FRA.


— Aham.

— Que você Odeia.

— Aham.

— Minha mãe vem aqui, tipo, todo dia.

— Aham.

— Cara. O que estamos fazendo aqui?

Andei até a grade e enfiei a mão por ela. Ela penetrou o metal, o que
parecia metal, Deixando meu braço parecendo amputado no punho.

Link me segurou.

— Cara, Ridley deve ter colocado alguma coisa no meu refrigerante.
Porque eu juro, seu braço, acabei de ver seu braço... Esqueça, estou
alucinando.

Puxei o braço de volta e mexi os dedos em frente ao seu rosto.

— Fala sério, cara. Depois de tudo que você viu hoje, agora você acha
que está alucinando? Agora?

Olhei para meu celular. 23h45.

— Não tenho tempo de explicar, mas só vai ficar mais estranho de agora
em diante. Vamos descer para a biblioteca, mas não é bem uma biblioteca. E
você vai ficar apavorado a maior parte do tempo. Então se quiser esperar no
carro, tudo bem.

Link estava tentando absorver o que eu estava dizendo tão rapidamente
quanto eu falava, o que era uma coisa difícil.

— Vai ou não vai?

Link olhou para a grade. Sem dizer palavra alguma, enfiou a mão. Ela
desapareceu.

Ele ia.









Me abaixei para passar pela porta e comecei a descer a velha escadaria de
pedra.

— Vamos. Temos que voar.

Link riu nervosamente enquanto cambaleava atrás de mim.

— Entendeu? Voar? Bruxas?


As tochas se acenderam enquanto descíamos para a escuridão. Peguei a
base de metal de uma e a passei para Link. Peguei outra e pulei os últimos
degraus para o aposento que parecia uma cripta. Uma a uma, as tochas da
parede se acenderam quando chegamos ao meio da câmara. As colunas
apareceram, junto com as sombras, na luz bruxuleante das tochas nas
paredes. As palavras DOMUS LUNAE LIBRI reapareceram nas sombras da
entrada, onde eu as tinha visto da última vez.

— Tia Marian! Você está aqui?

Ela bateu no meu ombro por trás. Quase pulei até o teto e esbarrei em
Link.

Link gritou, Deixando a tocha cair. Pisei nas chamas.

— Nossa, Dra. Ashcroft. Você me deu um susto de matar.

— Desculpe, Wesley... E Ethan, você enlouqueceu? Tem alguma
recordação de quem é a mãe desse pobre garoto?

— A Sra. Lincoln está inconsciente. Lena está em perigo. Macon foi
ferido. Preciso entrar em Ravenwood, não consigo achar Amma e não
consigo entrar lá. Preciso ir pelos Túneis. — Eu era um garotinho de novo e
falei tudo correndo. Falar com Marian era como falar com minha mãe, ou
pelo menos falar com alguém que sabia como era falar com minha mãe.

— Não posso fazer nada. Não posso ajudar. De qualquer modo, a
Invocação acontece à meia-noite. Não posso parar o relógio. Não posso
salvar Macon, nem a mãe de Wesley, nem ninguém. Não posso me envolver.
— Ela olhou para Link. — E lamento por sua mãe, Wesley. Não tive a
intenção de desrespeitá-lo.

— Sim, senhora. — Link parecia derrotado.

Balancei a cabeça e dei a Marian a tocha mais próxima na parede.

— Você não entendeu. Não quero que você faça nada além do que a
bibliotecária Conjuradora faz.

— O quê?

Olhei para ela expressivamente.

— Preciso entregar um livro em Ravenwood. — Me inclinei e peguei um
na pilha mais próxima, queimando as pontas dos meus dedos. — O Guia
Completo de Ervas e Verbiagem Venenosas.

Marian parecia cética.

— Hoje?


— Sim, hoje. Agora mesmo. Macon me pediu que levasse para ele
pessoalmente. Antes da meia-noite.

— Uma bibliotecária Conjuradora é a única Mortal que sabe como
acessar os Túneis da Lunae Libri. — Marian olhou para mim com astúcia e
pegou o livro das minhas mãos. — Que bom que por acaso sou uma.









Link e eu seguimos Marian pelos túneis cheios de curvas da Lunae Libri. Em
um ponto contei as portas de carvalho pelas quais passávamos, mas parei
depois que chegamos a dezesseis. Os Túneis eram como um labirinto, e cada
um era diferente. Havia passagens de teto baixo, onde Link e eu tivemos que
nos abaixar para poder passar, e corredores de teto alto onde não parecia
haver teto algum sobre nossas cabeças. Era literalmente um outro mundo.
Algumas passagens eram rústicas, adornadas com nada além da modesta
construção em si, enquanto outras pareciam corredores de um castelo ou
museu, com tapeçarias, mapas antigos emoldurados e pinturas a óleo
penduradas na parede. Em circunstâncias diferentes, eu teria parado para ler
as placas embaixo de cada retrato. Talvez fossem Conjuradores famosos,
quem sabe. A única coisa que as passagens tinham em comum era o cheiro de
terra e de tempo, e o número de vezes em que Marian mexeu na chave de
lunae crescente, o círculo de ferro que ela usava preso na cintura.

Depois do que pareceu uma eternidade, chegamos à porta. Nossas tochas
estavam quase se apagando, e tive que levantar a minha para conseguir ler
Ravenwood entalhado numa tábua vertical. Marian girou a chave pela última
fechadura e a porta se abriu. Degraus entalhados levavam à casa e percebi
com uma olhada no teto que estávamos no térreo.

Me virei para Marian.

— Obrigado, tia Marian. — Estiquei a mão para pegar o livro. —
Entregarei isso a Macon.

— Não tão rápido. Ainda preciso ver o cartão da biblioteca com seu
nome, EW. — Ela piscou para mim. — Eu mesma entrego esse livro.

Olhei para meu celular. 23h45 de novo. Era impossível.

— Como pode ser a mesma hora que era quando chegamos à Lunae


Libri.

— Tempo lunar. Vocês jovens nunca ouvem. As coisas não são sempre o
que parecem lá embaixo.

Link e Marian me seguiram escada acima e até o saguão de entrada.
Ravenwood estava como quando saímos, até pelo bolo nos pratos, o aparelho
de chá e a pilha de presentes de aniversário ainda embrulhados.

— Tia Del! Reece! Vovó! Alô? Onde está todo mundo? — gritei, e elas
apareceram saídas do nada. Dei estava posicionada perto da escada, seg-
rando um abajur sobre a cabeça como se fosse jogá-lo na cabeça de Marian
em um segundo. Vovó estava na porta, protegendo Ryan com o braço. Reece
estava escondida debaixo da escada, segurando um facão.

Todas começaram a falar ao mesmo tempo.

— Marian! Ethan! Estávamos tão preocupadas. Lena desapareceu, e
quando ouvimos o sino dos Túneis, pensamos que era...

— Vocês a viram? Ela está lá fora?

— Vocês viram Lena? Quando Macon não voltou, começamos a nos
preocupar.

— E Larkin. Ela não feriu Larkin, feriu?

Olhei para elas sem acreditar, tirando o abajur das mãos de tia Del e
passando-o para Link.

— Um abajur? Você achou mesmo que um abajur ia salvar você?

Tia Del deu de ombros.

— Barclay foi para o sótão para Mutar algumas armas a partir de trilhos
de cortina e objetos de decoração velhos. Foi tudo que consegui encontrar.

Fiquei de joelhos na frente de Ryan. Não havia muito tempo, aproxima-
damente 14 minutos, para ser exato.

— Ryan. Você se lembra quando eu estava ferido e você me ajudou?
Preciso que você venha fazer isso agora, lá em Greenbrier. Tio Macon caiu, e
ele e Boo estão feridos.

Ryan parecia que ia chorar.

— Boo está ferido também?

Link limpou a garganta no fundo do aposento.

— E minha mãe. Quero dizer, sei que ela é um saco e tudo mais, mas
será que ela... será que ela pode ajudar minha mãe?

— E a mãe de Link.


Vovó puxou Ryan para trás de si, dando tapinhas carinhosos em sua
bochecha. Ajeitou o suéter e esticou a saia.

— Vamos lá. Del e eu iremos. Reece, fique aqui com sua irmã. Diga para
seu pai aonde fomos.

— Vovó, preciso de Ryan.

— Pois hoje, eu sou Ryan, Ethan. — Ela pegou a bolsa.

— Não saio daqui sem Ryan. — Bati o pé. Havia muita coisa em jogo.

— Não podemos levar uma criança ainda não Invocada lá para fora, não
na décima-sexta lua. Ela poderia ser morta. — Reece olhou para mim como
se eu fosse um idiota. Eu estava por fora dos conhecimentos Conjuradores de
novo.

Del pegou meu braço para me tranquilizar.

— Minha mãe é uma Empática. Ela é muito sensível aos poderes dos
outros e pode pegar esses poderes emprestados por um tempo. Agora, pegou
o de Ryan. Não vai durar muito, mas é capaz de fazer qualquer coisa que
Ryan faça. E vovó foi Invocada, obviamente há bastante tempo. Então ela vai
com você.

Olhei para meu celular: 23h49.

— E se não chegarmos a tempo?

Marian sorriu e ergueu o livro.

— Não faço uma entrega em Greenbrier desde, bem, nunca. Dei, você
acha que consegue encontrar o caminho?

Tia Del assentiu, colocando os óculos.

— Palimpsestas sempre conseguem achar antigas portas escondidas. São
as novas as que nos causam dificuldades. — Ela desapareceu no Túnel, com
Marian e vovó atrás. Link e eu nos esforçamos para acompanhá-las.

— Para um grupo de senhoras — falou Link, ofegante —, elas realmente
conseguem andar rápido.









Dessa vez, a passagem era pequena e estava desabando, e tinha musgo verde
e preto crescendo nas paredes e no teto. Provavelmente no chão também,
mas eu não podia ver nas sombras. Éramos cinco tochas sacolejantes no meio


da escuridão total. Como eu e Link estávamos no fim da fila, a fumaça
entrava nos meus olhos, fazendo-os lacrimejar e arder.

Conforme íamos nos aproximando de Greenbrier, eu sabia que
estávamos chegando por causa da fumaça que começou a entrar pelos
Túneis, não das nossas tochas, mas de aberturas escondidas que levavam ao
mundo lá fora.

— É aqui. — Tia Del tossiu, tateando nas beiradas de um corte
retangular nas paredes de pedra. Marian raspou o musgo, revelando uma
porta. A chave lunae se encaixou perfeitamente, como se ela tivesse sido
aberta há poucos dias, em vez de centenas de milhares de dias atrás. A porta
não era de carvalho, e sim de pedra. Eu não consegui acreditar que tia Del
tinha força para empurrá-la e abri-la.

Tia Del parou na escadaria e fez sinal para que eu passasse. Ela sabia que
estávamos quase sem tempo. Baixei a cabeça para passar pelo musgo
pendurado e senti o cheiro úmido do ar quando subi pelos degraus de pedra.
Saí do túnel, mas quando cheguei ao topo, fiquei paralisado. Eu podia ver a
mesa de pedra da cripta, onde O Livro das Luas tinha ficado por tantos anos.

E eu sabia que era a mesma mesa, porque o Livro estava sobre ela agora.

O mesmo livro que tinha sumido da prateleira do meu armário hoje de
manhã. Eu não tinha ideia de como ele tinha chegado aqui, mas não havia
tempo de perguntar. Pude ouvir o fogo antes mesmo de vê-lo.

Fogo é alto, cheio de fúria e destruição. E havia fogo ao redor de mim. A
fumaça no ar estava tão densa que estava me sufocando. O calor estava
queimando os pelos dos meus braços. Era como uma visão do medalhão, ou
pior, como o último dos meus pesadelos — aquele em que Lena era
consumida por fogo.

A sensação de que eu a estava perdendo. Estava acontecendo.

Lena, onde você está?

Ajude tio Macon.

A voz dela estava ficando indistinta. Tentei afastar a fumaça com a mão
para enxergar o visor do celular.

23h53. Sete minutos para meia-noite. O tempo estava acabando.

Vovó pegou minha mão.

— Não fique apenas parado aí. Precisamos de Macon.




***



Vovó e eu corremos, de mãos dadas, para cima do fogo. A longa fileira de
salgueiros que emoldurava a passagem levando ao cemitério e aos jardins
estava em chamas. A vegetação, os carvalhos, as palmeiras, o alecrim, os
limoeiros — tudo estava em chamas. Eu podia ouvir os últimos sons de tiro ao
longe. Honey Hill estava terminando, e eu sabia que os atores co-meçariam
os fogos de artifício em breve, como se os fogos de artifício na Zona Segura
pudessem de alguma maneira se comparar aos fogos acontecendo aqui. O
jardim inteiro e a clareira estavam em chamas em torno da cripta.

Cambaleamos pela fumaça até que chegamos perto dos carvalhos em
chamas, e encontrei Macon caído onde ele estava antes. Vovó se inclinou
sobre ele e tocou sua bochecha com a mão.

— Ele está fraco, mas vai ficar bem.

No mesmo momento, Boo Radley rolou de lado e ficou de pé nas quatro
patas. Depois se abaixou e Deitou sobre a barriga ao lado do dono.

Macon fez um esforço para virar a cabeça em direção à vovó. A voz dele
mal passava de um sussurro.

— Onde está Lena?

— Ethan vai encontrá-la. Descanse. Vou ajudar a Sra. Lincoln.

Link estava ao lado da mãe e vovó andou rapidamente em direção a eles
sem dizer outra palavra. Fiquei de pé, procurando Lena no meio do fogo.
Não conseguia ver nenhum deles em lugar algum. Nem Hunting, nem
Larkin, nem Sarafine, ninguém.

Estou aqui em cima. Em cima da cripta. Mas acho que estou presa.

Aguente, L. Estou indo.

Tentei achar o caminho entre as chamas, procurando me manter na
direção que eu lembrava das vezes que vim a Greenbrier com Lena. Quanto
mais perto eu chegava da cripta, mais quente eram as chamas. Minha pele
parecia estar descascando, mas eu sabia que estava mesmo era queimando.

Subi em um túmulo sem nome, encontrei um buraco para apoiar o pé na
parede de pedra em ruínas e me impulsionei o mais alto que consegui. Em
cima da cripta havia uma estátua, algum tipo de anjo, com parte do corpo
quebrado. Segurei em alguma parte dele, não sei qual, talvez uma canela, e
me puxei para a beirada.


Ande, Ethan! Preciso de você.

Foi quando me vi cara a cara com Sarafine. Que enfiou uma faca na
minha barriga. Uma faca de verdade, na minha barriga, de verdade. O final
do sonho que nunca tinham nos Deixado ver. Só que agora não era um
sonho. Eu sei, porque era a minha barriga, e senti cada centímetro da lâmina.

Surpreso, Ethan? Você acha que Lena é a única Conjuradora nesse
canal?

A voz de Sarafine começou a sumir.

Vamos ver se ela vai querer ir para a Luz agora.

Enquanto eu perdia a consciência, só conseguia pensar que, se me
vestissem com um uniforme da Confederação, eu seria Ethan Carter Wate.
Até com o mesmo ferimento na barriga, com o mesmo medalhão no bolso.
Ainda que a única coisa de que eu tivesse desertado fosse o time de basquete
da Jackson High, em vez do exército de Lee.

Sonhando com uma garota Conjuradora que eu sempre amaria. Assim
como o outro Ethan. Ethan! Não!











Não! Não! Não!

Em um minuto, eu estava gritando; no outro, o som estava preso na
minha garganta.

Eu me lembro de Ethan caindo. Eu me lembro de minha mãe sorrindo.
O brilho da faca e o sangue.

O sangue de Ethan.

Não podia estar acontecendo.

Nada se movia, nada. Tudo estava perfeitamente congelado, como uma
cena num museu de cera. As ondas de fumaça continuaram sendo ondas.
Eram fofas e cinzentas, mas não iam para lugar algum, nem para cima nem
para baixo. Apenas ficaram paradas no ar, como se fossem feitas de cartolina,
parte do cenário de uma peça. As línguas de fogo ainda estavam
transparentes, ainda quentes, mas não queimavam nada e não faziam som
algum. Nem o ar se movia. Tudo estava exatamente como no segundo


anterior.

Vovó estava inclinada sobre a Sra. Lincoln, prestes a tocar na bochecha
dela, a mão suspensa no ar. Link estava segurando a mão da mãe, ajoelhado
na lama como um garotinho assustado. Tia Del e Marian estavam encolhidas
nos degraus da passagem da cripta, protegendo o rosto da fumaça.

Tio Macon estava deitado no chão, com Boo agachado junto a ele.
Hunting estava recostado numa árvore a alguns metros, admirando seu
trabalho. A jaqueta de couro de Larkin estava em chamas e ele olhava na
direção errada, a meio caminho da estrada na direção de Ravenwood. Como
era de se imaginar, correndo da ação, em vez de indo em direção a ela.

E Sarafine. Minha mãe segurava uma adaga entalhada, uma coisa antiga
das Trevas, bem acima da cabeça. Seu rosto estava febril de fúria e fogo e
ódio. A lâmina ainda pingava sangue sobre o corpo sem vida de Ethan. Até
mesmo as gotas de sangue estavam congeladas no ar.

O braço de Ethan estava esticado sobre a beirada do teto da cripta.
Estava pendurado, inerte, na direção do cemitério abaixo.

Como em nosso sonho, mas ao contrário.

Eu não tinha caído dos braços dele. Ele foi arrancado dos meus.

Abaixo da cripta, estiquei o braço para cima, afastando chama e fumaça,
até que meus dedos se entrelaçaram com os de Ethan. Eu estava na ponta dos
pés, mas mal conseguia alcançá-lo.

Ethan, eu amo você. Não me Deixe. Não consigo fazer isso sem você.

Se houvesse luz da lua, eu poderia ter visto o rosto dele. Mas não havia
lua, não nesse momento, e a única luz vinha do fogo, ainda congelado, que
me cercava de todos os lados. O céu estava vazio, completamente negro. Não
havia nada. Eu tinha perdido tudo esta noite.

Solucei até não conseguir mais respirar e meus dedos escorregarem dos
dele, sabendo que eu jamais sentiria aqueles dedos nos meus cabelos de novo.

Ethan.

Eu queria gritar o nome dele apesar de ninguém poder me ouvir, mas
não tinha um grito sequer dentro de mim. Não tinha mais nada em mim
além dessas palavras. Lembrei das palavras das visões. Lembrei de cada uma
delas.

Sangue do meu coração.

Vida da minha vida.


Corpo do meu corpo.

Alma da minha alma.











— Não faça isso, Lena Duchannes. Não se meta com aquele Livro das Luas e
recomece essa escuridão toda de novo.

Abri meus olhos. Amma estava ao meu lado, no fogo. O mundo ao redor
de nós ainda estava congelado.

Olhei para Amma.

— Os Grandes fizeram isso?

— Não, criança, Isso é coisa sua. Os Grandes só me ajudaram a chegar.

— Como eu posso ter feito isso?

Ela sentou ao meu lado na terra.

— Você ainda não sabe do que é capaz, sabe? Melchizedek estava certo
sobre isso, pelo menos.

— Amma, do que você está falando?

— Sempre falei para Ethan que ele podia fazer um buraco no céu algum
dia. Mas acho que foi você quem fez isso.

Tentei limpar as lágrimas do meu rosto, mas outras surgiam. Quando
chegaram aos meus lábios, pude sentir a fuligem na boca.

— Eu sou... Eu sou das Trevas?

— Ainda não, agora não.

— Sou da Luz?

— Não. Não posso dizer que você seja isso também.

Olhei para o céu. A fumaça cobria tudo — as árvores, o céu, e onde
devia haver uma lua e estrelas, só havia um cobertor escuro e grosso de nada.
Cinzas e fogo e fumaça e nada.

— Amma.

— Sim?

— Onde está a lua?

— Bem, se você não sabe, criança, eu com certeza não saberei. Num
minuto eu estava olhando para sua Décima-Sexta Lua. E você estava parada


embaixo dela, olhando para as estrelas como se só Deus lá no Céu pudesse
ajudá-la, com as palmas erguidas como se estivesse segurando o céu. Depois,
nada. Só isso.

— E a Invocação?

Ela fez uma pausa, refletindo.

— Bem, não sei o que acontece se não houver Lua no seu aniversário do
Décimo-Sexto Ano, à meia-noite. Nunca aconteceu antes, pelo que eu saiba.
Parece que não pode haver Invocação se não houver Décima-Sexta Lua.

Eu devia ter sentido alívio, felicidade, confusão. Mas só sentia dor.

— Acabou então?

— Não sei.

Ela esticou a mão e me ergueu, até que estávamos as duas de pé. A mão
dela era quente e forte, e eu me senti menos confusa. Como se nós duas
soubéssemos o que eu ia fazer. Como suspeito que Ivy soubera o que
Genevieve ia fazer, nesse lugar, há mais de cem anos.











Quando abrimos a capa rachada do Livro, eu soube imediatamente em qual
página abrir, como se sempre tivesse sabido.

— Você sabe que não é natural. E você sabe que deve haver
consequências.

— Eu sei.

— E você sabe que não há garantia de que vá funcionar. Não deu muito
certo da última vez. Mas posso dizer o seguinte: minha tatara-tia Ivy está lá
com os Grandes, e eles vão nos ajudar se puderem.

— Amma. Por favor. Não tenho escolha.

Ela olhou nos meus olhos. Finalmente, assentiu.

— Não posso dizer que consigo impedir que você o faça. Porque você
ama meu menino. E porque eu amo meu menino, vou ajudar você.

Olhei para ela e entendi.

— E foi por isso que você trouxe O Livro das Luas para cá hoje.

Amma assentiu, lentamente. Esticou a mão em direção ao meu pescoço,


e puxou o anel de dentro do moletom de Ethan da Jackson High que eu
ainda estava usando.

— Esse era o anel de Lila. Ele devia que amá-la muito para dá-lo a você.

Ethan, amo você.

— O amor é uma coisa poderosa, Lena Duchannes. O amor de uma mãe
não é uma coisa com que se brinque. Parece que Lila tem tentado ajudar
vocês do melhor jeito que pode.

Ela arrancou o anel do meu pescoço. Pude sentir o ponto onde a
corrente arrebentou e um corte me ardia a pele. Ela enfiou o anel no meu
dedo do meio.

— Lila teria gostado de você. Você tem a única coisa que Genevieve
nunca teve quando usou o Livro. O amor das duas famílias.

Fechei meus olhos, sentindo o metal frio contra minha pele.

— Espero que você esteja certa.

— Espere. — Amma se abaixou e pegou o medalhão de Genevieve, ainda
embrulhado no lenço da família dela, de dentro do bolso de Ethan. — Só
para lembrar a todos que você já tem a maldição. — Ela suspirou
desconfortavelmente. — Não queremos que você seja julgada duas vezes pelo
mesmo crime.

Colocou o medalhão sobre o livro.

— Dessa vez, vamos fazer direito.

Então ela tirou o amuleto gasto do próprio pescoço e o colocou sobre o
livro, ao lado do medalhão. O pequeno disco de ouro parecia uma moeda, a
imagem apagada pelo tempo e uso.

— Para lembrar a todos que, se estiverem mexendo com meu menino,
estão mexendo comigo.

Ela fechou os olhos. Fechei os meus. Toquei nas páginas com minhas
mãos e comecei a recitar, a princípio lentamente, depois cada vez mais alto.

— CRUOR PECTORIS MEI, TUTELA TUA EST.

VITA VITAE MEAE, CORRIPIENS TUAM, CORRIPIENS MEAM.

Falei as palavras com confiança. Uma certa confiança que só vem de não
ligar mesmo se você vai viver ou morrer.

—- CORPUS CORPORIS MEI, MEDULLA MENSQUE,

ANIMA ANIMAE MEAE, ANIMAM NOSTRAM CONECTE.

Gritei as palavras para o cenário congelado, apesar de não haver


ninguém além de Amma para ouvir.

— CRUOU PECTORIS MEI, LUNA MEA, AESTUS MEUS.

CRUOR PECTORIS MEI, FATUM MEUM, MEA SALUS.











Amma esticou o braço em minha direção e pegou minhas mãos trêmulas em
suas mãos fortes, e recitamos o Conjuro de novo, juntas. Dessa vez falamos na
língua de Ethan e da mãe dele, Lila, de tio Macon e tia Del e Amma e Link e
da pequena Ryan e de todo mundo que amava Ethan e nos amava. Dessa
vez, o que dissemos virou uma música.

Uma música de amor — para Ethan Lawson Wate, das duas pessoas que
mais o amavam. E sentiriam mais falta dele se falhássemos.



— SANGUE DO MEU CORAÇÃO, A PROTEÇÃO É TUA.

VIDA DA MINHA VIDA, TIRA A TUA, TIRA A MINHA.

CORPO DO MEU CORPO, ESSÊNCIA E MENTE,

ALMA DA MINHA ALMA, UNA OS NOSSOS ESPÍRITOS.

SANGUE DO MEU CORAÇÃO, MINHAS MARÉS, MINHA LUA.

SANGUE DO MEU CORAÇÃO, MINHA SALVAÇÃO, MINHA
PERDIÇÃO.



Um relâmpago atingiu a mim, ao Livro, à cripta e a Amma. Pelo menos,
foi isso que pensei que tivesse acontecido. Mas então me lembrei que foi assim
que tudo pareceu a Genevieve também nas visões. Amma foi jogada contra a
parede da cripta e sua cabeça bateu na pedra com força.

Senti a eletricidade percorrer meu corpo e relaxei, aceitando o fato de
que se eu morresse, pelo menos seria com Ethan. Eu o sentia, sentia como ele
estava perto de mim, sentia o quanto eu o amava. Senti o anel, queimando no
meu dedo, e o quanto ele me amava.

Senti meus olhos ardendo, e para todo lado que eu olhava, via uma
névoa de luz dourada, como se viesse de mim de alguma forma.

Ouvi Amma sussurrar:


— Meu menino.

Me virei na direção de Ethan. Ele estava banhado em luz dourada, assim
como todo o resto. Ainda estava imóvel. Olhei para Amma em pânico.

— Não funcionou.

Ela se reclinou no altar de pedra, fechando os olhos.

Eu gritei:

— Não funcionou!

Cambaleei para longe do Livro, entrei na lama. Olhei para o alto. A lua
estava lá de novo. Ergui os braços acima da cabeça, em direção aos céus. Um
calor corria pelas minhas veias, onde deveria haver sangue. A raiva cresceu
dentro de mim, sem ter lugar para ir. Eu podia senti-la me consumindo.
Sabia que se não achasse um meio de aliviá-la, ela me destruiria.

Hunting. Larkin. Sarafine.

O predador, o covarde e minha mãe assassina, que vivia para destruir a
própria filha. Os galhos retorcidos da minha árvore genealógica Conjuradora.

Como eu podia me Invocar quando eles já tinham retirado de mim a
única coisa que me importava? O calor explodiu nas minhas mãos, como se
tivesse vontade própria. Um relâmpago cortou o céu. Eu sabia para onde ele
ia antes mesmo de cair.

Três pontos na bússola, sem o norte para me guiar.

O relâmpago explodiu em chamas, atingindo os três alvos
simultaneamente — os que tiraram tudo de mim hoje. Eu devia ter tido
vontade de olhar para o outro lado, mas não tive. A estátua que tinha sido
minha mãe um momento antes era estranhamente bonita, envolvida em
chamas à luz da lua.

Baixei os braços, limpando terra, cinzas e dor dos meus olhos, mas
quando olhei de novo, ela tinha sumido.

Todos tinham sumido.

A chuva começou a cair; e minha visão embaçada se aguçou até que
pude ver as rajadas de chuva atingindo os carvalhos fumegantes, os campos, o
bosque. Eu podia ver claramente pela primeira vez em muito tempo, talvez
melhor do que nunca. Caminhei de volta à cripta, na direção de Ethan.

Mas ele tinha sumido.

Onde seu corpo estava minutos antes, agora havia outra pessoa. Tio
Macon.


Não entendi. Me virei para Amma para obter respostas. Os olhos dela
estavam enormes, assustados.

— Amma, onde está Ethan? O que aconteceu?

Mas ela não me respondeu. Pela primeira vez na vida, Amma estava sem
palavras. Estava olhando para o corpo de tio Macon, confusa.

— Nunca achei que ia terminar assim, Melchidezek. Depois de todos
esses anos carregando o peso do mundo nos nossos ombros, juntos. — Ela
estava falando com ele como se ele pudesse ouvi-la, apesar de sua voz estar
mais baixa do que eu jamais tinha ouvido. — Como vou segurar tudo
sozinha?

Segurei-a pelos ombros, os ossos pontudos dela machucando as palmas
das minhas mãos.

— Amma, o que está acontecendo?

Ela ergueu os olhos para olhar nos meus, a voz mal passando de um
sussurro.

— Você não pode obter uma coisa do Livro sem dar algo em troca. —
Uma lágrima rolou por sua bochecha enrugada.

Não podia ser verdade. Me ajoelhei ao lado de tio Macon e estiquei a
mão lentamente para tocar seu rosto perfeitamente barbeado. Normalmente,
eu encontraria um calor enganador, associado com seres humanos,
alimentado pela energia de esperanças e sonhos de Mortais, mas não hoje.
Hoje, a pele dele estava gelada. Como a de Ridley. Como dos mortos.

Sem dar algo em troca.

— Não... Por favor, não. — Eu tinha matado tio Macon. E nem tinha me
Invocado ainda. Nem tinha escolhido ir para a Luz, e ainda assim o tinha
matado.

A fúria começou a crescer dentro de mim de novo, o vento soprando
com força em volta de nós, se revirando como minhas emoções. Isso estava
começando a ser um sentimento familiar, como um velho amigo. O Livro
tinha feito algum tipo de troca terrível, uma que eu não pedi. E então me dei
conta.

Uma troca.

Se tio Macon estava aqui, onde Ethan estava deitado morto, poderia isso
significar que talvez Ethan estivesse vivo em algum lugar?

Fiquei de pé e corri em direção à cripta. A paisagem paralisada brilhava


com a luz dourada. Eu podia ver Ethan ao longe deitado na grama ao lado de
Boo, onde tio Macon estava momentos antes. Corri até ele, peguei na mão,
mas ela estava fria. Ethan ainda estava morto e agora tio Macon estava
também.

O que eu tinha feito? Tinha perdido os dois. Ajoelhada na lama, afundei
a cabeça no peito de Ethan e chorei. Segurei as mãos dele contra minha
bochecha. Pensei em todas as vezes em que ele se recusou a aceitar o meu
destino, se recusou a desistir, a dizer adeus.

Agora era minha vez.

— Não vou dizer adeus. Não vou. — Tinha chegado a esse ponto, apenas
um sussurro em um campo de vegetação fumegante.

Então eu senti. Os dedos de Ethan começaram a mexer, procurando os
meus.

L?

Eu mal podia ouvi-lo. Sorri e chorei, e beijei a palma da sua mão.

Você está aí, Lena?

Entrelacei meus dedos nos dele, e jurei que nunca soltaria. Ergui meu
rosto e Deixei a chuva cair nele, lavando a fuligem.

Estou aqui.

Não vá.

Não vou a lugar algum. E nem você.






























p 12 de fevereiro p

d



Um raio de esperança















O



lhei para meu celular. Estava quebrado.

O relógio ainda marcava 23h59.

Mas eu sabia que passava da meia-noite, porque os fogos finais
tinham começado, apesar de estar chovendo. A Batalha de Honey Hill estava
acabada até o ano que vem.

Fiquei Deitado no meio do campo enlameado, Deixando a chuva me
molhar. Enquanto observei os modestos fogos de artifício tentarem explodir
no céu úmido da noite, tudo estava enevoado. Minha mente não conseguia se
concentrar. Eu tinha caído, batido a cabeça e algumas outras partes do corpo
também. Minha barriga, meu quadril, meu lado esquerdo todo doía. Amma
ia me matar quando eu chegasse em casa detonado desse jeito.

Só me lembrava que em um segundo eu estava me apoiando naquela
estátua de anjo idiota e no seguinte eu estava deitado de costas na lama, aqui.
Achei que um pedaço da estátua tinha se partido quando eu tentava subir
para o topo da cripta, mas não tinha certeza. Link devia ter me carregado até
aqui depois que caí e fiquei inconsciente como um idiota. Fora isso, parecia
que minha memória tinha sido limpa.

Acho que foi por isso que não entendi por que Marian, vovó e tia Del
estavam agachadas perto da cripta, chorando. Nada podia ter me preparado
para o que vi quando finalmente cambaleei até lá.

Macon Ravenwood. Morto.

Talvez ele sempre tivesse estado morto e eu não sabia, mas agora ele se
fora. Eu sabia isso. Lena se jogou sobre o corpo dele, a chuva encharcando os
dois.


Macon, molhado de chuva pela primeira vez.













Na manhã seguinte, juntei algumas peças sobre a noite do aniversário de
Lena. Macon foi a única morte. Ao que tudo indicava, Hunting o tinha
vencido depois que perdi a consciência. Vovó explicou que se alimentar de
sonhos era muito menos substancial do que se alimentar de sangue. Acho que
ele nunca teve chance contra Hunting. Mas isso não o impediu de tentar.

Macon sempre dizia que faria qualquer coisa por Lena. No final, ele foi
um homem de palavra.

Todas as outras pessoas pareciam estar bem, pelo menos fisicamente. Tia
Del, vovó e Marian se arrastaram de volta a Ravenwood, com Boo atrás
delas, choramingando como um filhote. Tia Del não conseguia entender o
que tinha acontecido com Larkin. Ninguém sabia como dar a ela a notícia de
que tinha não uma, mas duas maçãs podres na família, então ninguém disse
nada.

A Sra. Lincoln não se lembrava de nada, e Link teve dificuldade para
explicar o que ela fazia no meio do campo de batalha de calçola e meias. Ela
ficou estupefata de estar na companhia da família de Macon Ravenwood,
mas foi educada enquanto Link a ajudava a chegar até o Lata-Velha. Link
tinha muitas perguntas, mas eu achava que elas podiam esperar até a aula de
Álgebra II. Daria a nós dois o que fazer quando as coisas voltassem ao
normal, seja lá quando fosse.

E Sarafine.

Sarafine, Hunting e Larkin sumiram. Eu sabia disso porque quando
recuperei a consciência, eles tinham desaparecido, e Lena estava lá, apoiada
em mim enquanto andávamos de volta para Ravenwood. Eu não sabia
direito os detalhes, assim como todo mundo, mas parecia que Macon e todos
nós tínhamos subestimado os poderes de Lena como uma Natural. Ela tinha
de alguma forma conseguido bloquear a lua e se salvar de ser Invocada. Sem
a Invocação, parecia que Sarafine, Hunting e Larkin tinham fugido, ao


menos por enquanto.

Lena ainda não falava do acontecido. Ainda não estava falando muito.
Adormeci no chão do quarto dela, ao seu lado, nossas mãos ainda
entrelaçadas. Quando acordei, ela tinha saído e eu estava sozinho. As paredes
do quarto, as mesmas que estiveram tão cobertas de palavras que não dava
para ver dois centímetros de parede sob a tinta preta, agora estavam
completamente limpas. Exceto por uma, a parede defronte à janela, que
estava coberta do chão ao teto com palavras, só que a caligrafia não parecia
mais a de Lena. A caligrafia de menina tinha sumido. Toquei a parede com
se pudesse sentir as palavras, e eu sabia que ela tinha ficado acordada a noite
inteira, escrevendo.



Macon Ethan,

apoiei a minha cabeça no peito dele e chorei porque ele viveu e porque
ele morreu.

um oceano seco, um deserto de emoção

feliztriste trevasluz daralegria tomaram conta de mim, de mim toda

eu podia ouvir o som mas não entendia as palavras

e então percebi que o som era eu me partindo

em um momento eu sentia tudo e não sentia nada

estava em pedaços, estava salva, perdi tudo, ganhei

tudo mais

alguma coisa em mim morreu, alguma coisa em mim nasceu, eu sósabia

que a garota foi embora

seja lá quem eu fosse agora, eu jamais seria ela de novo é assim

que o mundo termina não – com um estrondo – mas com um gemido-

invoque a si mesma invoque a si mesma invoque a si mesma invoque

gratidão fúria amor desespero esperança ódio

primeiro o verde é dourado mas nada que seja verde pode permanecer

não

tente

nada

verde

pode

permanecer






T.S. Eliot. Robert Frost. Bukowski. Reconheci alguns dos poetas das suas
prateleiras e paredes. Com exceção de Frost, que Lena tinha citado errado, o
que não era o tipo de coisa que ela fazia. Nada dourado pode permanecer, o
poema é assim. Não verde.

Talvez tudo parecesse igual para ela agora.















Desci vacilante até a cozinha, onde tia Del e vovó estavam conversando
baixinho sobre preparativos. Lembrei das vozes baixas e dos preparativos
quando minha mãe morreu. Odiava os dois. Lembrei do quanto doeu seguir
com a vida, para que tias e avós fizessem planos, ligassem para parentes,
limpassem os pedaços, quando tudo que você queria era rastejar para dentro
do caixão também. Ou talvez plantar um limoeiro, fritar tomates, construir
um monumento com suas próprias mãos.

— Onde está Lena? — Não falei baixo, e assustei tia Del. Nada podia
assustar vovó.

— Ela não está no quarto dela? — Tia Del ficou confusa. Vovó
calmamente se serviu de outra xícara de chá.

— Acho que você sabe onde ela está, Ethan.

Eu sabia.













Lena estava Deitada na cripta, bem onde tínhamos encontrado Macon.
Estava olhando para o céu cinzento da manhã, enlameada e molhada, ainda


com as roupas da noite anterior. Eu não sabia para onde tinham levado o
corpo dele, mas entendi o impulso dela de estar aqui. Para estar com ele,
mesmo sem ele.

Ela não olhou para mim, apesar de saber que eu estava lá.

— Aquelas coisas odiosas que eu disse, nunca vou poder consertar. Ele
nunca soube o quanto eu o amava.

Me Deitei ao lado dela na lama, meu corpo dolorido gemendo. Olhei
para ela, para o cabelo preto encaracolado e para as bochechas sujas e
molhadas. As lágrimas correram por seu rosto, mas ela não tentou limpá-las.
Nem eu.

— Ele morreu por minha causa.

Ela olhava para o céu cinzento, sem piscar. Eu queria que tivesse alguma
coisa que eu pudesse dizer para fazê-la se sentir melhor, mas sabia melhor do
que ninguém que palavras assim não existiam. Então, não disse nada. Em vez
disso, beijei os dedos da mão de Lena. Parei quando senti o gosto de metal, e
então vi. Ela estava usando o anel de minha mãe na mão direita.

Ergui a mão dela.

— Eu não queria perdê-lo. O cordão quebrou ontem à noite.

Havia nuvens pretas no céu. Ainda não tínhamos visto o fim da
tempestade, eu sabia. Fechei minha mão ao redor da dela.

— Nunca amei você mais do que a amo nesse exato segundo. E nunca
vou amar você menos do que a amo nesse exato segundo.

O céu cinzento era apenas um momento de calmaria sem sol, entre a
tempestade que tinha mudado nossas vidas para sempre e a que ainda viria.

— Isso é uma promessa?

Apertei a mão dela.

Não solte.

Nunca.

Nossas mãos se torceram e viraram uma. Ela virou a cabeça, e quando
olhei em seus olhos, reparei pela primeira vez que um estava verde e o outro
cor de mel — na verdade, parecia mais dourado.










Era quase meio-dia quando comecei a longa caminhada para casa. O céu
azul estava manchado de cinza escuro e dourado. A pressão estava
aumentando, mas parecia que ia demorar algumas horas até a chuva. Acho
que Lena ainda estava em choque. Mas eu estava pronto para a tempestade.
E quando ela viesse, faria a temporada de furacões de Gatlin parecer Uma
chuva de primavera.

Tia Del tinha se oferecido para me levar para casa de carro, mas eu
queria andar. Apesar de cada osso do meu corpo estar doendo, eu precisava
clarear as ideias. Enfiei as mãos nos bolsos do jeans e senti o volume familiar.
O medalhão. Lena e eu teríamos que encontrar um meio de devolvê-lo para
o outro Ethan Wate, o que estava morto no túmulo, como Genevieve queria
que fizéssemos. Talvez fosse dar a Ethan Carter um pouco de paz. Devíamos
isso aos dois.

Desci a rua inclinada que levava a Ravenwood e me vi mais uma vez na
bifurcação na estrada, a que tinha parecido tão assustadora antes de eu
conhecer Lena. Antes de eu saber para onde estava indo. Antes de eu saber
como era a vida real e o amor verdadeiro.

Passei pelos campos e desci a autoestrada 9, pensando naquela primeira
ida, naquela primeira noite na tempestade. Pensei em tudo, em como quase
tinha perdido meu pai e Lena. Em como tinha aberto os olhos e a vi me
encarando, e tudo que conseguia pensar era no quanto eu tinha sorte. Antes
de me dar conta de que tínhamos perdido Macon.

Pensei em Macon, em seus livros amarrados com papel e barbante, nas
camisas perfeitamente passadas, e na serenidade ainda mais perfeita. Pensei
no quanto as coisas iam ser difíceis para Lena, sentindo saudade dele,
desejando poder ouvir sua voz mais uma vez. Mas eu estaria ao lado dela,
assim como desejei que alguém estivesse ao meu lado quando perdi minha
mãe. E depois dos últimos meses, depois que minha mãe nos mandou aquela
mensagem, eu não achava que Macon tivesse partido de verdade. Talvez ele
ainda estivesse por aí em algum lugar, tomando conta de nós. Ele tinha se
sacrificado por Lena, eu tinha certeza disso.

O certo e o fácil nunca são a mesma coisa. Ninguém sabia disso melhor
do que Macon.

Olhei para o céu. As nuvens cinzentas percorriam o azul, tão azul quanto
a tinta no teto do meu quarto. Me perguntei se esse tom de azul realmente


impedia que as abelhas carpinteiras fizessem ninho. Me perguntei se essas
abelhas acreditavam que era o céu.

É louco o que se vê quando não se está olhando.

Tirei meu iPod do bolso e liguei. Havia uma nova música na lista de
músicas.

Olhei para ela um tempão.

Dezessete Luas.

Apertei play.









Dezessete luas,

dezessete anos,

Olhos onde Trevas ou Luz aparecem,

Dourado para o sim e verde para o não,

Dezessete, o último a saber.









FIM

a série Beautiful Creatures continua em Dezessete Luas






























Agradecimentos







SÓ LEVAMOS TRÊS MESES PARA ESCREVER o primeiro rascunho de
Dezesseis Luas. Porém, escrever foi a parte fácil. Acertar os detalhes foi a
parte difícil, e foi preciso a ajuda de muitas outras pessoas. Essa é a árvore
genealógica de Dezesseis Luas:

RAPHAEL SIMON & HILARY REYL,

que o viram antes que houvesse o que ver.

SARAH BURNES, DA GERNERT COMPANY,

UMA AGENTE EXTRAORDINÁRIA,

que leu e entendeu desde o começo.

COURTNEY GATEWOOD,

DA GERNERT COMPANY, AGENTE 007,

que o levou através do lago e além.

JENNIFER HUNT & JULIE SCHEINA

O TIME EDITORIAL CRUELMENTE GENIAL DA LITTLE
BROWN,

que nos fizeram suar e chorar até acertarmos.

DAVE CAPLAN, NOSSO DESIGNER TALENTOSO E MÉDIUM,

que criou a estrada até Ravenwood do jeito que imaginamos.

MATTHEW CHUPACK,

que traduziu nosso latim macarrônico para latim de verdade.

ALEX HOERNER, FOTÓGRAFO DAS ESTRELAS (E NOSSO),

que nos fez ficar bonitas sem nenhum Conjuro.

Nossos PARENTES NA CAROLINA DO NORTE,

PRINCIPALMENTE HAYWOOD AINSLEY EARLY,
GENEALOGISTA,


que nos ajudou a plantar nossas árvores genealógicas.

& ANNA GATLIN HARMON,

NOSSA FlLHA O A CONFEDERAÇÃO FAVORITA,

que nos emprestou seu nome de solteira e nos ajudou a falá-lo
corretamente.



E Nossos LEITORES:

HANNAH, ALEX C, TORI, YVETTE, SAMANTHA, MARTINE,
JOYCE,

OSCAR, DAVID, ASH, VIRGÍNIA, JEAN X 2, KERRI, DAVE,

MADEIINE, PHILLIP, DEREK, ERIN, RUBY,

AMANDA & MARCOS,

cuja vontade de saber o que acontecia depois

mudou o que acontecia depois.

ASHLY, TAMBÉM CONHECIDA COMO RAINHA VAMPIRA
ADOLESCENTE SUSAN & ]OHN, ROBERT & CELESTE, BURTON &
MARÉ,

que ouviram e nos estimularam, como sempre fizeram em toda nossa
vida.

MAY & EMMA,

que faltaram a escola duas vezes para cortar os excessos,

e que perceberam o pedaço que faltava no final

como só meninas de 13 e 15 anos conseguiriam fazer.

KATE P E NICK & STELLA G,

que adormeceram todas as noites com o som das teclas do laptop.



E É CLARO,

ALEX & LEWIS,

que acharam todos os buracos

e cuidaram para que o universo não caísse por eles,

que aguentaram tudo citado acima

e mais um pouco.



* * *




























shadow

Hunters







http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=115704816


Um comentário:

  1. Olá pessoal meu nome é Jessica Hiltom, Esta é a coisa mais maravilhosa que eu já experimentei e eu preciso compartilhar este grande testemunho ... Eu só quero dizer graças ao Dr.GUKU por ter tempo para me ajudar a lançar o feitiço que traz De volta meu ex amante {agora meu namorado}, que de repente perdeu o interesse em mim depois de seis meses de noivado, mas hoje estamos casados ​​com um garoto e estamos mais felizes do que nunca, eu estava verdadeiramente espantado e chocado quando meu ex amante Ryan Começar a implorar perdão e para mim aceitá-lo de volta .. Eu sou realmente curto de palavras e alegre, e eu não sei o quanto para transmitir o meu apreço para você Dr.OGUKU você é um Deus enviado para restaurar relacionamento broken.he Desfrutar profundamente ajudando as pessoas a alcançar seus desejos, encontrar o amor verdadeiro, obter seus ex amantes de volta, parar relacionamentos abusivos, encontrar o sucesso, atrair a felicidade, encontrar almas gêmeas e muito mais, entre em contato com ele hoje. E deixá-lo mostrar-lhe as maravilhas eo espanto de seu Sistema de Magia de Amor. Ele oferece resultados no seu melhor em feitiços reais, e-mail drogukusolutionhome@gmail.com ou ligue para +2348119020294 .//

    ResponderExcluir