segunda-feira, 11 de março de 2013

Insurgente - Divergente 2 (Parte 1)


Capítulo 1

Eu acordo com seu nome na boca.

Will.

Antes de abrir os olhos, eu penso nele desabando na calçada novamente. Morto.

Eu fiz isso.

Tobias se agacha na minha frente, com sua mão no meu ombro esquerdo. O trem dá
solavancos sobre os trilhos e Marcus, Peter e Caleb ficam perto da porta do vagão. Eu respiro
fundo na tentativa de aliviar um pouco da pressão no meu peito.

Há uma hora nada que do aconteceu pareceu real para mim. Agora parece.

Eu solto o ar, mas a pressão continua aqui.

“Venha, Tris”, Tobias me chama com seus olhos procurando os meus. “Nós temos que
pular”.

Está muito escuro para ver onde estamos, mas se estamos saindo novamente,
provavelmente estamos perto da cerca. Tobias me ajuda a levantar e me guia até a porta do
vagão.

Os outros pulam para fora um por um: Primeiro Peter, depois Marcus e Caleb. Eu
seguro a mão de Tobias. O vento nos equilibra enquanto estamos na beirada da porta, como
uma mão me empurrando para trás, em direção à segurança.

Mas nós nos lançamos na escuridão e caímos de mau jeito no chão. O impacto faz a
ferida do tiro no meu ombro doer. Eu mordo meu lábio para evitar chorar e procuro por meu
irmão.

“Tudo bem?” Eu digo quando o vejo sentado na grama há alguns metros, esfregando o
joelho.

Ele acena com a cabeça. Eu o escuto fungar o nariz como se estivesse evitando o
choro, e tenho que me virar.

Nós aterrissamos na grama perto da cerca, muito distantes do caminho gasto pelos
caminhões que a Amizade usa para providenciar comida à cidade, e do portão que os permite
passar – O portão que geralmente está fechado, nos prendendo aqui dentro. A cerca cresce
sobre nós, muito alta e instável para escalarmos e muito resistente para derrubarmos.

“Deveria haver guardas da Audácia aqui” diz Marcus. “Onde eles estão?”

“Provavelmente estavam sendo controlados pela simulação” diz Tobias “e agora
estão...” Ele para. “Ninguém sabe onde, fazendo ninguém sabe o quê”.

Nós paramos a simulação – o peso do disco rígido em meu bolso traseiro me lembra –
mas nós não paramos para ver o que houve depois. O que aconteceu com nossos amigos,
colegas, líderes, facções? Não há como saber.

Tobias se aproxima de uma pequena caixa de metal no lado direito do portão e a abre,
revelando um teclado.

“Vamos torcer para que a Erudição não tenha mudado a combinação”, ele diz
enquanto digita séries de números. Ele para no oitavo número e o portão se abre.

“Como você sabia?” diz Caleb. Sua voz soa grossa de emoção, tão grossa que eu estou
surpresa que isso não o chocou quando ele falou.

“Eu trabalhei na sala de controle da Audácia, monitorando o sistema de segurança.
Nós só trocamos o código duas vezes por ano”.

 “Que sorte”, Caleb fala com um olhar desconfiado para Tobias.


“Sorte não tem nada a ver com isso. Eu só trabalhei lá porque eu queria ter certeza de
que poderia fugir”.

Eu tremo. O modo como ele fala sobre fugir – é como se pensasse que estamos presos.
Eu nunca pensei dessa forma antes, e agora parece besteira.

Nós andamos como um pequeno grupo, Peter embalando seu braço ensanguentado a
seu peito – o braço em que eu atirei – e Marcus com suas mãos no ombro de Peter, o
equilibrando. Caleb enxuga sua face repetidamente, e eu sei que está chorando, mas eu não
sei como confortá-lo, ou por que eu mesma não estou chorando.

Eu tomo a liderança, Tobias silencioso ao meu lado, e embora ele não me toque, ele
me estabiliza.



Feixes de luz são o primeiro sinal de que estamos chegando à sede da Amizade.

Quadrados de luz transformam-se em janelas brilhantes. Um conjunto de edifícios de
madeira e vidro.

Antes de alcançá-los, temos que passar por um pomar. Meus pés afundam no chão, e
acima de mim, os ramos se unem formando uma espécie de túnel. Frutas escuras pairam entre
as folhas, prontas para caírem. O cheiro afiado e doce das maçãs podres se mistura com o
cheiro de terra molhada no meu nariz.

Quando chegamos perto, Marcus solta Peter e anda à frente. “Eu sei para onde ir”, ele
diz.

Ele nos conduz do primeiro para o segundo edifício à esquerda. Todas as construções
exceto as estufas são feitas da mesma madeira escura, sem pintura, áspera. Eu ouço um riso
vindo de uma janela aberta. O contraste entre a risada e o silêncio dentro de mim é chocante.

Marcus abre uma das portas. Eu ficaria chocada com a falta de segurança se não
estivéssemos na sede da Amizade. Muitas vezes eles ultrapassam a linha da confiança, para a
estupidez.

Nesse edifício o único som é de nossos sapatos. Eu não escuto mais Caleb chorando.

Marcus para diante de um quarto aberto, onde Johanna Reyes, representante da
Amizade, está sentada olhando para a janela. Eu a reconheço porque é difícil esquecer seu
rosto quando você já a viu muitas vezes. Uma cicatriz se estende numa linha grossa desde sua
sobrancelha direita até seu lábio, deixando-a cega de um olho e com a língua presa quando
fala. Eu só a vi falando uma vez, mas eu não esqueci. Ela teria sido uma linda mulher se não
tivesse aquela cicatriz.

“Ah, graças a Deus”, ela diz quando vê Marcus. Ela anda até ele com seus braços
abertos. Em vez de abraçá-lo, ela apenas toca seus ombros, como se ela lembrasse o desprezo
da Abnegação por contato físico.

“Os outros membros do seu partido chegaram aqui algumas horas atrás, mas eles não
tinham certeza se você havia conseguido”. Ela está se referindo ao grupo de pessoas da
Abnegação que estavam com meu pai e Marcus na casa segura. Eu não havia nem pensado
neles.

Ela olha sobre o ombro de Marcus, primeiro a Tobias e Caleb, depois a mim e por
último Peter.

“oh...” ela diz com seus olhos vidrados no sangue imerso na camisa de Peter. “Eu vou
chamar um médico. Eu posso garantir que vocês tem permissão para passar esta noite, mas
amanhã, nossa comunidade deve decidir junta. E...” – Ela olha para mim e para Tobias – “eles


não vão ficar entusiasmados com a presença de membros da Audácia em nossa sede. É claro
que devo pedi-los para entregarem quaisquer armas que tiverem”.

Eu imagino como ela sabe que sou da Audácia. Eu ainda estou usando minha blusa
cinza. A blusa do meu pai.

Naquele momento, seu cheiro, que é uma mistura de sabão e suor, enche meu nariz,
enche minha cabeça inteira com ele. Eu aperto minhas mãos tão fortes num punho que
minhas unhas cortam minha pele. Aqui não. Aqui não.

As mãos de Tobias estão sobre sua arma, mas quando eu levo minha mão às costas
para pegar minha própria arma concedida, ele pega minha mão, tirando-a das costas. Ele
entrelaça seus dedos nos meus para justificar o que acabou de fazer.

Eu sei que é inteligente ficar com uma de nossas armas. Mas teria sido um alívio
entregá-la.

“Meu nome é Johanna Reyes”, ela diz estendendo sua mão para mim e Tobias. Um
cumprimento da Audácia. Eu estou impressionada com seu conhecimento sobre os costumes
das outras facções. Eu sempre esqueço como os membros da Amizade são considerados até
que eu veja isso com meus próprios olhos.

“Esse é T”- Marcus começa, mas Tobias o interrompe.

“Meu nome é Quatro”, ele diz “E esses são Tris, Caleb e Peter”.

Alguns dias atrás, “Tobias” era um nome do qual apenas eu sabia, entre os membros
da Audácia, isso era uma parte dele mesmo que ele me deu. Fora da sede, eu me lembro
porque ele escondeu aquele nome do mundo. Isso o liga a Marcus.

“Bem-Vindos a sede da Amizade”, Os olhos de Johanna fixos em meu rosto, e ela dá
um sorriso torto “Deixe-nos cuidar de você”.

Nós os deixamos. Uma enfermeira da Amizade me dá uma pomada – desenvolvida
pera Erudição para acelerar a cura – para colocar em meu ombro, e depois acompanha Peter
até a enfermaria do hospital para cuidar de seu braço. Johanna nos leva até a cafeteria, onde
encontramos alguns da Abnegação que estavam na casa segura com Caleb e meu pai. Susan
está aqui, e alguns de seus vizinhos, e fileiras de mesas de madeira tão grandes quanto o
próprio lugar. Eles nos cumprimentam – especialmente Marcus – com lágrimas e sorrisos
contidos.

Eu me apego ao braço de Tobias. Cedo sobre o peso dos membros da facção de meus
pais, suas vidas, suas lágrimas.

Um dos membros da Abnegação coloca uma xícara de um líquido fumegante em baixo
de meu nariz e diz “Beba isto. Vai te ajudar a dormir, assim como nos ajudou. Sem sonhos”.

O líquido é vermelho-rosado, como morangos. Eu pego a xícara e bebo rápido. Por
alguns segundos o calor do líquido me faz sentir como se estivesse cheia de algo de novo.
Enquanto eu tomo as últimas gotas da xícara, eu me sinto relaxada. Alguém me leva por um
corredor para um quarto com uma cama. Isso é tudo.








Capítulo 2

 Eu abro meus olhos, assustada, minhas mãos agarrando os lençóis. Mas eu não estou
correndo pelas ruas da cidade ou pelos corredores da sede da Audácia. Eu estou numa cama
na sede da Amizade, e sentindo um cheiro de serragem no ar.

 Eu me mexo e estremeço quando algo encosta nas minhas costas. Eu coloco as mãos
para trás e meus dedos envolvem a arma.

 Por um momento eu me lembro de Will parado à minha frente, nossas armas entre
nós – suas mãos, eu poderia ter atirado nelas, porque não fiz isso? Por quê? – e eu quase grito
seu nome.

 E então ele se foi.

 Eu saio da cama e levanto o colchão com uma mão, apoiando-o em meu joelho.
Escondo a arma em baixo dele e deixo-o escondê-la. Uma vez que ela está fora da vista e não
mais se encostando a minhas costas, minha consciência fica mais leve.

 Agora que a adrenalina de ontem passou, e o que quer me fez dormir também, a dor
profunda do tiro em meu ombro está intensa. Eu estou usando as mesmas roupas que usei
ontem à noite. A ponta do disco rígido aparece em baixo de meu travesseiro, onde eu o
escondi antes de cair no sono. Dentro dele estão os dados da simulação que controlou a
Audácia, e o registro do que a Erudição fez. Isso é tão importante que não quero nem tocar
nele, mas não posso deixá-lo aqui, então eu o pego e coloco-o entre a cômoda e a parede.
Uma parte de mim pensa que seria uma boa ideia destruí-lo, mas eu sei que ele contém o
único registro da morte de meus pais, então eu decido mantê-lo escondido.

 Alguém bate em minha porta. Eu sento na beira da cama e tento escovar meu cabelo.

 “Entre”, eu digo.

 A porta abre, e Tobias pisa dentro do quarto, a porta dividindo seu corpo ao meio. Ele
usa os mesmos jeans de ontem, mas uma blusa vermelha escura que ele provavelmente pegou
emprestada de alguém da Amizade. A cor fica estranha nele, muito brilhante, mas quando ele
inclina a cabeça para trás contra o batente da porta, eu percebo que ela destaca ainda mais
seus olhos azuis.

 “Os membros da Amizade vão se reunir daqui a meia hora”, Ele mexe a sobrancelha e
adiciona com um toque melodramático “Para decidir nosso destino”.

 Eu balanço a cabeça. “Nunca pensei que meu destino fosse estar nas mãos de um
bando de pessoas da Amizade”.

 “Eu também não. Ah, eu trouxe algo para você”. Ele desatarraxa a tampa de uma
pequena garrafa e segura um conta-gotas cheio de um líquido claro. “Remédio para dor. Tome
um conta-gotas cheio a cada seis horas”.

 “Obrigada”. Eu borrifo o líquido na parte de trás de minha garganta. O remédio tem
gosto de limão podre.

 Ele coloca o polegar em uma das alças de cinto em sua calça e diz “Como você está
Beatrice?”

 “Você me chamou de Beatrice?”

 “Pensei em fazer uma tentativa”. Ele sorri “Foi ruim?”

 “Talvez em ocasiões especiais. Iniciações, dias da escolha...” Eu paro. Eu estava quase
citando outras datas, mas somente a Abnegação as celebra. A Audácia tem suas próprias


datas, eu acho, mas eu não sei quais são. E de qualquer forma, a ideia de que celebraríamos
qualquer coisa agora é tão ridícula que eu não continuo.

 “É um acordo.” Seu sorriso desaparece. “Como você está, Tris?”

 Não é uma pergunta estranha, depois de tudo o que passamos, mas eu me sinto tensa
quando ele pergunta, preocupada que ele de alguma forma poderia ler minha mente. Eu ainda
não contei sobre Will. Eu quero contar, mas não sei como. Só de pensar em falar isso alto me
faz sentir tão pesada que eu poderia romper o piso.

 “Eu...” Eu balanço a cabeça algumas vezes. “Eu não sei, Quatro. Eu estou acordada.
Eu...” Continuo balançando a cabeça. Ele passa sua mão por minha bochecha, um dedo
ancorado atrás de minha orelha. Então ele vira sua cabeça para baixo e me beija, enviando
uma dor quente por meu corpo. Eu enrolo minhas mãos em torno de seu braço, segurando-o o
máximo que eu posso. Quando ele me toca, o sentimento oco em meu peito e em meu
estômago não é mais perceptível.

 Eu não tenho que contá-lo. Eu posso apenas tentar esquecer – ele pode me ajudar a
esquecer.

 “Eu sei”, ele diz “Desculpe. Eu não devia ter perguntado”.

 Por um momento tudo em que posso pensar é Como você poderia saber? Mas alguma
coisa em sua expressão me lembra de que ele entende de perdas. Ele perdeu sua mãe quando
era jovem. Eu não lembro como ela morreu, apenas que nós fomos ao seu funeral.

 De repente eu me lembro dele segurando as cortinas na sala, com mais ou menos nove
anos, vestindo cinza, com seus olhos fechados e escuros. A imagem é passageira e poderia ser
apenas imaginação, não uma memória.

 Ele me solta. “Eu vou deixar você se arrumar”.



 O banheiro feminino tem duas portas. O piso é de ladrilhos marrons, e cada cabine de
chuveiro tem paredes de madeira e uma cortina de plástico separando-as do corredor central.
Uma placa na parede de trás diz LEMBRE-SE: PARA PRESERVAR AS FONTES, OS CHUVEIROS
APENAS FUNCIONAM POR CINCO MINUTOS.

 O jato de água é frio, então eu não iria querer minutos extras mesmo se eu pudesse tê-
los. Eu me lavo rapidamente com minha mão esquerda, deixando minha mão direita parada ao
meu lado. O remédio para dor que Tobias me deu funcionou rápido – a dor em meu ombro se
transformou em um pequeno incômodo pulsante.

 Quando eu saio do chuveiro, uma muda de roupas espera em minha cama. Elas
contêm vermelho e amarelo, da Amizade, e cinza da Abnegação, cores que eu raramente vejo
lado a lado. Se eu tivesse que adivinhar, eu diria que alguém da Abnegação as empilhou ali. É
algo que eu pensaria em fazer.

 Eu visto uma calça vermelha escura – tão grande que tenho que enrolá-la três vezes –
e uma blusa cinza da Abnegação que também é muito grande para mim. As mangas são
maiores que meu braço e eu tenho que dobrá-las. Sinto dor ao mover minha mão direita,
então mantenho os movimentos suaves.

 Alguém bate na porta. “Beatrice?” A voz suave é de Susan.

 Eu abro a porta para ela. Ela carrega uma bandeja de comida, que ela coloca sobre a
cama. Eu procuro em sua face algum sinal do que ela possa ter perdido – seu pai, um líder da
Abnegação, não havia sobrevivido ao ataque – mas eu só vejo a determinação calma,
característica da minha antiga facção.


 “Eu sinto muito que as roupas não tenham servido”, ela diz “Eu tenho certeza que
podemos achar melhores para você se a Amizade permitir que fiquem”.

 “Elas estão boas”, eu digo “Obrigada”.

 “Eu ouvi dizer que você tomou um tiro. Precisa de minha ajuda com seu cabelo? Ou
seus sapatos?”

 Eu ia recusar, mas realmente preciso de ajuda.

 “Sim, obrigada”

 Eu sento num banco em frente ao espelho, e ela fica atrás de mim, com seus olhos
devidamente treinados a se concentrar na tarefa e nas mãos, e não em seu reflexo. Eles não
levantam nem mesmo por um instante, enquanto ela penteia meu cabelo. E ela não pergunta
sobre meu ombro, como fui baleada, o que aconteceu quando deixamos a casa segura na
Abnegação para parar a simulação. Eu tenho a sensação de que se a talhassem até o fundo, ela
seria toda feita de Abnegação.

 “Você já viu Robert?” Eu digo. Seu irmão, Robert, escolheu a Amizade quando eu
escolhi Audácia, então ele está em algum lugar desse complexo. Eu imagino se o reencontro
deles será alguma coisa como o meu e o de Caleb.

 “Brevemente, na noite passada”, ela diz “Eu o deixei sofrer com sua facção, enquanto
eu sofro com a minha. É legal vê-lo de novo”.

 Eu escuto o tom em sua voz mostrando que o assunto está fechado.

 “É uma pena isso ter acontecido no momento em que aconteceu”, Susan diz “Nossos
líderes estavam prestes a fazer algo maravilhoso”.

 “Sério? O quê?”

 “Eu não sei”. Susan cora. “Eu acabei de ficar sabendo de algumas coisas. Eu não quis
ser curiosa; Eu acabei de notar algumas coisas”.

 “Eu não culparia você por ser curiosa, mesmo se você tivesse sido”.

 Ela acena com a cabeça e continua a pentear meu cabelo. Eu imagino o que os líderes
da Abnegação – incluindo meu pai – estavam fazendo. E eu não posso ajudar, a não ser ficar
maravilhada com a confissão de Susan de que eles estavam fazendo algo maravilhoso. Eu
queria que eu pudesse acreditar nas pessoas de novo.

 Se é que eu já acreditei.

 “Os membros da Audácia deixam o cabelo para baixo, certo?” ela diz.

 “Algumas vezes”, eu digo. “Você sabe fazer uma trança?”

 Então seus dedos hábeis dobram mechas de meu cabelo em uma trança que atinge a
metade da minha espinha. Eu encaro meu reflexo até que ela termine. Eu agradeço a ela
quando termina, e ela deixa o quarto com um sorriso na cara, fechando a porta atrás dela.

 Eu continuo encarando, mas não me vejo. Eu ainda posso sentir seus dedos roçando a
parte de trás de meu pescoço, tão parecidos com os dedos de minha mãe, na última manhã
que estive com ela. Meus olhos se enchem de lágrimas, eu balanço para frente e para trás no
banco, tentando desviar a memória de minha mente. Eu estou com medo de que se eu
começar a chorar, eu não vou mais parar até que murche como uma passa.

 Eu vejo um kit de costura na cômoda. Dentro dele há duas cores de linha, vermelho e
amarelo, e um par de tesouras.

 Eu me sinto calma enquanto desfaço a trança em meu cabelo e o penteio de novo. Eu
divido meu cabelo no meio e verifico se está reto e plano. Fecho a tesoura em meu cabelo, na
altura do queixo.


 Como posso ter a mesma aparência, se ela se foi e está tudo diferente? Eu não posso.

 Corto em linha reta como posso, usando meu queixo como guia. A parte mais difícil é
atrás, onde não consigo ver muito bem, então eu faço o melhor que posso pelo toque em vez
da visão. Mechas de cabelo loiro formam um semicírculo á minha volta no chão.

 Eu deixo o quarto sem olhar para meu reflexo de novo.



 Quando Tobias e Caleb vêm me pegar mais tarde, eles me encaram como se eu não
fosse a pessoa que conheciam ontem.

 “Você cortou seu cabelo”, Caleb diz com suas sobrancelhas levantadas. Trazer fatos no
meio de um choque é bem erudito de sua parte. Seu cabelo gruda em sua pele no lado em que
ele dormiu, e seus olhos estão vermelhos.

 “Sim”, eu digo. “Está... muito quente para um cabelo longo”.

 “Parece justo”.

 Nós andamos até o fim do corredor juntos. O assoalho range sob nossos pés. Eu sinto
falta de como meus passos ecoavam no complexo da Audácia; Eu sinto falta do cheiro do
subterrâneo. Mas, principalmente, eu sinto falta dos medos que tinha semana passada,
tornados pequenos se comparados aos meus medos agora.

 Nós deixamos o edifico. O ar de fora me pressiona como um travesseiro tentando me
sufocar. Ele cheira a verde, como uma folha quando você a rasga ao meio.

 “Alguém sabe que você é filho do Marcus?”, Caleb pergunta “da Abnegação, eu quis
dizer”

 “Não que eu saiba”, diz Tobias, olhando para Caleb “E eu gostaria que você não
mencionasse isto”.

 “Eu não preciso mencionar isso. Qualquer um com olhos pode ver sozinho”, Caleb faz
uma carranca. “Além disso, quantos anos você tem?”

 “Dezoito”.

 “E você não acha que é muito velho para estar com minha irmã mais nova?”

 Tobias solta uma pequena risada. “Ela não é sua nada”

 “Parem vocês dois”, eu digo. Uma multidão de pessoas vestidas em amarelo anda
atrás de nós, em direção a um prédio amplo, feito inteiramente de vidro. A luz do sol refletida
nos painéis é como um beliscão em meus olhos. Eu cubro o rosto com a mão e continuo
andando.

 As portas do edifico estão amplamente abertas. Em volta da estufa redonda, plantas e
árvores crescem em calhas de água ou pequenas piscinas. Dezenas de ventiladores
posicionados em volta da sala servem somente para soprar o ar quente para fora, então já
estou suando. Mas isso dissipa de minha mente, quando vejo o resto da sala.

 No centro dela, cresce uma árvore gigantesca. Seus troncos estão espalhados pela
maior parte da estufa, e suas raízes crescem sobre o solo, formando uma densa teia de casca
de árvore. Nos espaços entre as raízes, eu não vejo terra, mas sim, água e barras de metais
segurando as raízes em seu lugar. Eu não deveria estar surpresa – os membros da Amizade
passam a vida toda realizando façanhas da agricultura como esta, com a ajuda da tecnologia
da Erudição.

 De pé sobre um conjunto de raízes está Johanna Reyes, com seu cabelo caindo sobre o
lado marcado de sua face. Eu aprendi na aula de História das Facções que a Amizade não


reconhece um líder oficial – eles votam em tudo, e o resultado é quase sempre unânime. Eles
são como pequenas partes de uma só mente, e Johanna é a boca deles.

 A Amizade senta-se no chão, a maioria com suas pernas cruzadas, em nós e agrupados,
o que me lembra vagamente as raízes. A Abnegação senta em filas apertadas, a alguns metros
de minha esquerda. Meus olhos procuram alguém na multidão por alguns segundos, antes que
eu perceba que quem eu estou procurando são meus pais.

 Eu engulo em seco, e tento esquecer. Tobias toca minhas costas, me guiando até a
beirada do local de encontro, atrás da Abnegação. Antes de sentarmos, ele leva sua boca até
meu ouvido e diz “Eu gosto do seu cabelo desse jeito”.

 Eu encontro um pequeno sorriso para dar-lhe, e inclino-me para ele enquanto me
sento, meus braços juntos dos seus.

 Johanna levanta suas mãos e inclina a cabeça para baixo. Todas as conversas na sala
cessam antes que eu possa tomar minha próxima respiração. Todos à minha volta, os
membros da Amizade, sentam em silêncio, alguns com os olhos fechados, outros com seus
lábios dizendo palavras que eu não consigo escutar e outros olhando algum ponto distante.

 Cada segundo é irritante. Quando Johanna levanta sua cabeça eu já estou irritada até o
osso.

 “Nós temos diante de nós hoje, uma questão urgente”, ela diz. “que é: Como nós
iremos nos comportar nesses tempos de conflito como pessoas que buscam a paz?”

 Todos da Amizade na sala se viram para a pessoa perto deles e começam a conversar.

 “Como eles conseguem resolver as coisas?”, eu digo, gastando os minutos de
conversa.

 “Eles não ligam para eficiência,” Tobias diz. “Eles ligam para consenso. Olhe”.

 Duas mulheres em vestidos amarelos, alguns metros distantes se levantam e começam
a conversar com um trio de homens. Um jovem homem se desloca de modo que seu pequeno
círculo se torna grande com o grupo de pessoas perto dele. Todos ao redor da sala, as
pequenas multidões tornam-se grandes e se expandem e cada vez menos vozes enchem a sala,
até que sobram apenas três ou quatro. Eu só posso ouvir partes do que falam: “Paz – Audácia
– Erudição – casa segura – envolvimento”.

 “Isso é bizarro”, eu digo.

 “Eu acho que é lindo”, ele diz.

 Eu olho para ele.

 “O quê?” Ele ri um pouco. “Cada um deles tem um papel igual no governo; cada um
deles se sente igualmente responsável. E isso faz com que se preocupem; isso faz deles gentis;
isso é lindo”.

 “Eu acho que isso é insustentável”, eu digo “É claro que funciona para a Amizade. Mas
o que acontece quando nem todos querem dedilhar banjos e cultivar sementes? O que
acontece quando alguém faz algo terrível e apenas falar sobre isso não resolve o problema?”

 Ele dá de ombros “Eu acho que nós vamos descobrir”.

 Eventualmente alguém dos grandes grupos levanta e se aproxima de Johanna,
escolhendo seu caminho cuidadosamente por entre as raízes da grande árvore. Eu espero que
eles abordem o resto de nós, mas eles se mantêm em um círculo com Johanna e os outros
porta-vozes e falam calmamente. Eu começo a pensar que eu nunca vou saber sobre o que
estão falando.

 “Eles não vão nos deixar argumentar com eles, vão?” eu digo.


 “Eu duvido”, ele diz.

 Nós estamos prontos.

 Quando todos já falaram sua parte, eles sentam novamente, deixando Johanna
sozinha no centro da sala. Ela se vira para nós e cruza seus braços à sua frente. Para onde
vamos quando eles nos mandarem sair? Voltaremos para a cidade, onde nada é seguro?

 “Nossa facção tem tido uma relação próxima com a Erudição por tanto tempo quanto
possamos nos lembrar. Nós precisamos um do outro para sobreviver, e sempre cooperamos
um com o outro”, diz Johanna “Mas nós também temos uma relação forte com a Abnegação
no passado, e nós não pensamos que é certo negar a mão da amizade quando ela tem se
estendido por tanto tempo”.

 Sua voz é doce como o mel, e se move como mel também, devagar e cuidadosamente.
Eu seco o suor do meu cabelo com as costas da minha mão.

 “Nós sentimos que a única maneira de preservar nossas relações com as duas facções
é continuando imparciais e sem envolvimentos”, ela continua. “Sua presença aqui, enquanto
bem-vinda, complica isto”.

 E aqui vamos nós, eu penso.

 “Nós chegamos à conclusão de que vamos estabelecer nossa sede como uma casa
segura para membros de todas as facções”, ela diz, “com algumas condições. A primeira,
nenhum tipo de armas é permitido no complexo. A segunda, se qualquer conflito sério surgir,
físico ou verbal, todas as partes envolvidas terão de sair. A terceira, o conflito não deve ser
discutido, nem privadamente, dentro dos limites deste complexo. E a quarta, todos que
ficarem devem contribuir para o estabelecimento trabalhando. Nós vamos reportar isso à
Erudição, Franqueza e Audácia assim que pudermos.”

 Seu olhar se dirige a Tobias e a mim e continua assim.

 “Vocês são bem-vindos para ficar somente se cumprir nossas regras”, ela diz. “Essa é a
nossa decisão”.

 Eu penso na arma que eu escondi em baixo do colchão e a tensão entre mim, Peter,
Tobias e Marcus e minha boca fica seca. Eu não sou muito boa em evitar conflitos.

 “Nós não vamos poder ficar muito tempo”, eu digo a Tobias sob minha respiração.

 Um momento atrás, ele ainda estava levemente sorrindo. Agora os cantos de sua boca
desapareceram em uma carranca. “Não, nós não vamos”.




















Capítulo 3

 À noite eu retorno ao meu quarto e deslizo minha mão por baixo do colchão para me
certificar de que a arma continua ali. Meus dedos passam pelo gatilho e minha garganta aperta
como se estivesse tendo uma reação alérgica. Retiro minha mão e me ajoelho na beirada da
cama, respirando com dificuldade até que a sensação ruim desaparece.

 O que há de errado com você? Eu balanço minha cabeça. Se recomponha.

 E é assim que me sinto: Amarrando cada parte do meu corpo como um cadarço. Sinto-
me sufocada, mas ao menos me sinto forte.

 Vejo um lampejo de movimento na minha visão periférica, e olho para a janela que dá
para o pomar de maçãs. Johanna Reyes e Marcus Eaton andam lado a lado, parando no jardim
de ervas para arrancar folhas de hortelã de suas hastes. Me encontro fora do quarto antes
mesmo de avaliar porque quero segui-los.

 Eu corro pelo edifício para não perdê-los. Assim que estou fora, tenho que ser mais
cuidadosa. Ando ao redor do lado mais distante do pomar e, antes de ver Johanna e Marcus
desaparecer em uma fileira de árvores, eu rastejo para baixo da próxima fileira, torcendo para
que os ramos me escondam caso eles olhem para trás.

 “... me deixando confusa é a hora escolhida para o ataque”, diz Johanna. “Jeanine
finalmente terminou de planejar isto e agiu, ou houve algum tipo acontecimento incitante?”

 Eu vejo o rosto de Marcus dividido pelo tronco de uma árvore. Ele pressiona seus
lábios e diz “Hmm”.

 “Suponho que nunca iremos saber”, Johanna levanta sua sobrancelha boa. “Iremos?”

 “Não, provavelmente não”.

 Johanna coloca a mão em seu braço e se volta para ele. Eu endureço, com medo por
um momento de que ela me veja, mas ela só olha para Marcus. Rastejo em direção a uma das
árvores, para que o tronco me esconda. A casca faz minhas costas coçarem, mas não me mexo.

 “Mas você sabe,” ela diz. “Você sabe porque ela atacou naquele momento. Eu posso
não ser mais da Franqueza, mas ainda consigo perceber quando alguém esconde a verdade de
mim.”

 “A curiosidade é egoísta, Johanna.”

 Se eu fosse Johanna, daria um tapa nele por um comentário como este, mas ela diz
gentilmente, “Minha facção depende de mim para aconselhá-los, e se você sabe de
informações tão cruciais, é importante que eu também saiba para que possa compartilhá-las
com eles. Tenho certeza que pode entender isto, Marcus.”

 “Existe uma razão de você não saber todas as coisas que eu sei. Muito tempo atrás, a
Abnegação foi confiada a informações confidenciais,” diz Marcus. “Jeanine nos atacou para
roubá-las. E se eu não for cuidadoso, ela irá destruí-las. E isso é tudo que posso lhe contar.”

 “Mas certamente -“

 “Não,” Marcus corta sua fala. “Essas informações são muito mais importantes do que
pode imaginar. Muitos líderes dessa cidade arriscaram suas vidas para protegê-las de Jeanine e
morreram, e eu não vou estragar tudo agora para saciar sua curiosidade egoísta.”

 Johanna fica quieta por alguns segundos. Está tão escuro agora que mal consigo ver
minhas próprias mãos. O ar cheira a terra e maçãs e eu tento não respirar tão alto.

 “Me desculpe,” diz Johanna. “Eu devo ter feito algo para não ter sua confiança.”


 “Na última vez em que confiei um representante de uma facção a essas informações,
todos os meus amigos foram assassinados,” ele responde. “Eu não confio em mais ninguém.”

 Eu não consigo assistir a isso – Me inclino para frente para que possa ver ao redor do
tronco da árvore. Ambos Marcus e Johanna estão muito preocupados para conseguirem notar
o movimento. Eles estão perto um do outro, mas não se tocam, e eu nunca vi Marcus tão
cansado ou Johanna com tanta raiva. Mas seu rosto suaviza e ela toca o braço de Marcus de
novo, dessa vez como uma leve carícia.

 “Para ter paz, precisamos ter confiança,” diz Johanna. “Então eu espero que mude de
ideia. Lembre-se que sempre fui sua amiga, Marcus, mesmo quando você não tinha muitos
com quem conversar.”

 Ela se inclina e beija a bochecha dele, depois anda até o fim do pomar. Marcus fica
parado por alguns segundos, aparentemente atordoado, e continua na direção do complexo.

 As revelações da última hora buzinam em minha mente. Pensei que Jeanine tivesse
atacado a Abnegação para tomar o poder, mas ela fez isso para roubar informações –
informações que apenas eles sabiam.

 Então as buzinas param quando me lembro do que Marcus disse: Muitos líderes dessa
cidade arriscaram suas vidas por isso. Teria sido um desses líderes meu pai?

 Preciso saber. Tenho que descobrir o que é importante o bastante para a Abnegação
morrer por isso – e a Erudição matar.



 Eu paro antes de bater na porta de Tobias, e ouço o que acontece lá dentro.

 “Não, não assim,” Tobias diz entre risos.

 “O que você quer dizer com, ‘não assim’? Eu te imitei perfeitamente”. A segunda voz
pertence à Caleb.

 “Não, não imitou”.

 “Bem, então faça de novo”.

 Eu empurro a porta no mesmo instante em que Tobias, que está sentado no chão com
uma perna esticada, lança uma faca de manteiga na parede oposta. Ela fica presa, com o cabo
para fora, em um grande pedaço de queijo que eles colocaram em cima da cômoda. Caleb,
parado atrás dele, encara desacreditado, primeiro o queijo e depois a mim.

 “Diga-me que ele é algum tipo de prodígio da Audácia”, diz Caleb. “Você também
consegue fazer isso?”

 Ele parece melhor do que estava mais cedo – seus olhos não estão vermelhos e alguns
velhos lampejos de curiosidade aparecem nele, como se estivesse interessado no mundo de
novo. Seu cabelo castanho desgrenhado, alguns botões de sua camisa nos buracos errados. Ele
é maravilhoso de um jeito desleixado, como se não tivesse nem ideia de como está na maior
parte do tempo.

 “Com minha mão direita, talvez”, eu digo. “Mas sim, Quatro é um tipo de prodígio da
Audácia. Posso te perguntar por que você está jogando facas num queijo?”

 Os olhos de Tobias se encontram aos meus na palavra “Quatro”. Caleb não sabe que
Tobias mostra sua excelência todo o tempo com seu próprio apelido.

 “Caleb veio para discutir algo”, Tobias diz, inclinando sua cabeça contra a parede
enquanto olha para mim. “E de alguma maneira começamos a jogar facas”.

 “Como acontece muitas vezes”, eu digo, com um pequeno sorriso crescendo em meu
rosto.


 Ele parece tão relaxado, sua cabeça para trás, seu braço pendurado no joelho. Nós nos
olhamos por mais segundos do que é socialmente aceitável. Caleb limpa sua garganta.

 “De qualquer forma, eu deveria voltar para meu quarto”, Caleb diz, olhando de Tobias
para mim e de volta para ele. “Eu estou lendo esse livro sobre os sistemas de filtração da água.
A criança que me deu ele olhou para mim como se eu estivesse louco para lê-lo. Acho que era
para ser um manual, mas é fascinante”. Ele pausa. “Desculpe, vocês provavelmente pensam
que sou louco também”.

 “Não, até que não”, Tobias diz com um tom irônico. “Talvez você devesse ler esse
manual também Tris. Parece algo que você vai gostar”.

 “Eu posso te emprestar”, Caleb diz.

 “Talvez mais tarde”, eu digo. Quando Caleb fecha a porta atrás dele, eu olho para
Tobias reprimindo-o.

 “Obrigada por isso. Agora ele vai ficar falando no meu ouvido sobre filtração da água e
como isso funciona. Acho que é sobre isso que ele vai querer falar comigo o tempo todo
agora”.

 “Ah, e o que é isso?” Tobias levanta suas sobrancelhas. “Aquaponias?”

 “Aqua-o quê?”

 “É uma das formas que eles usam para plantar comida aqui. Você não vai querer
saber”.

 “Você está certo, eu não quero”, eu digo. “Sobre o que ele veio falar com você?”

 “Você”, ele diz. “Acho que foi a ‘conversa de irmão mais velho’, ‘Não mexa com a
minha irmã’, essas coisas”.

 Ele levanta.

 “O que você disse a ele?”

 Ele vem na minha direção.

 “Eu lhe contei como nós ficamos juntos – e foi assim que surgiu o lançamento de
facas”, ele diz. “E eu lhe disse que não estava ‘mexendo com você’”.

 Sinto-me quente em todos os lugares. Ele envolve as mãos em torno dos meus quadris
e me pressiona gentilmente contra a porta. Seus lábios encontram os meus.

 E não lembro mais por que vim aqui em primeiro lugar.

 E eu não ligo.

 Envolvo meu braço machucado ao redor dele, o empurrando contra meu corpo. Meus
dedos encontram a barra de sua camiseta e deslizam por baixo dela, se espalhando pela parte
mais baixa de suas costas. Ele é tão forte.

 Ele me beija novamente, mais insistente desta vez, suas mãos apertando minha
cintura. Sua respiração, minha respiração, seu corpo, meu corpo, estamos tão perto que não
há diferença.

 Ele puxa de volta, apenas alguns centímetros. Eu quase não o deixo ir tão longe.

 “Não foi por isso que você veio aqui”, ele diz.

 “Não”.

 “Por que veio, então?”

 “Quem liga?”

 Eu empurro meus dedos por seu cabeço, e mergulho sua boca na minha novamente.
Ele não resiste, mas depois de alguns segundos, ele resmunga “Tris” contra minha bochecha.


 “Ok, ok”. Eu fecho meus olhos. Eu vim aqui por algo importante: para contá-lo sobre o
que eu ouvi.

 Nós nos sentamos lado a lado na cama de Tobias, e eu começo a falar. Conto a ele
como segui Marcus e Johanna dentro do pomar. Conto a ele a pergunta de Johanna sobre o
momento do ataque da simulação, e a resposta de Marcus, e o argumento que se seguiu.
Enquanto falo, eu assisto sua expressão. Ele não parece chocado ou curioso. Em vez disso, sua
boca fica amargamente franzina, como sempre faz quando Marcus é mencionado.

 “Bem, o que você acha?”, eu digo assim que termino.

 “Eu acho,” ele diz cuidadosamente, “que isso é o Marcus tentando parecer mais
importante do que ele realmente é”.

 Essa não foi a resposta que eu esperava.

 “Então... o quê? Você acha que ele está falando coisas sem sentido?”

 “Eu acho que provavelmente havia informações que a Abnegação sabia e que a
Jeanine queria saber, mas acho que ele está exagerando na importância delas. Tentando
elevar seu próprio ego fazendo Johanna pensar que ele tem algo que ela quer, mas ele não vai
dar a ela”.

 “Eu não...” Eu franzo a testa. “Eu não acho que você está certo. Ele não parecia estar
mentindo”.

 “Você não o conhece como eu. Ele é um excelente mentiroso”.

 Ele está certo – Não conheço Marcus, e certamente não como ele conhece. Mas meu
instinto diz para acreditar em Marcus, e eu geralmente confio em meus instintos.

 “Talvez esteja certo”, eu digo, “mas não deveríamos descobrir o que está
acontecendo? Só para ter certeza?”.

 “Eu acho que é mais importante que lidemos com a situação que temos em mãos”, diz
Tobias. “Voltar para a cidade. Descobrir o que está acontecendo lá. Encontrar um jeito de
diminuir o poder da Erudição. Depois, talvez possamos descobrir do que Marcus estava
falando, depois disso tudo estar resolvido. Ok?”

 Balanço a cabeça. Parece um bom plano – um plano inteligente. Mas eu não acredito
nele – Não acredito que é mais importante ir em frente do que descobrir a verdade. Quando
eu descobri que era Divergente... Quando descobri que a Erudição iria atacar a Abnegação...
Essas revelações mudaram tudo. A verdade muda os planos das pessoas.

 Mas é difícil persuadir Tobias a fazer algo que ele não quer, e ainda mais difícil
justificar meus sentimentos sem nenhuma evidência, exceto minha intuição.

 Então eu concordo. Mas não mudo minha mente.














 Capítulo 4

 “A Biotecnologia sempre esteve presente, mas nunca foi muito eficaz”, diz Caleb. Ele
começa a comer a parte de fora da torrada – ele comeu o meio primeiro, como costumava
fazer quando era pequeno.

 Ele senta em frente a mim na cafeteria, na mesa mais perto das janelas. Riscadas na
borda da mesa de madeira estão as letras “D” e “T” ligadas por um coração, tão pequenas que
quase não as vi. Passo meus dedos sobre os riscos enquanto Caleb fala.

 “Mas cientistas da Erudição desenvolveram essa solução mineral altamente eficaz há
algum tempo. Isso era melhor para as plantas do que terra”, ele diz. “É uma versão mais nova
daquela pomada que colocaram em seu ombro – ela acelera o crescimento de novas células”.

 Seus olhos ficam selvagens com novas informações. Nem todos da Erudição são
famintos por poder e desprovidos de consciência, como sua líder, Jeanine Matthews. Alguns
deles são como Caleb: fascinados por tudo, insatisfeitos até que descubram como algo
funciona.

 Eu descanso meu queixo em minha mão e dou um sorriso a ele. Ele parece otimista
nesta manhã. Estou feliz que achou algo para distraí-lo de sua dor.

 “Então, Erudição e Amizade trabalham juntas?” eu digo.

 “Mais juntas do que quaisquer outras que trabalhem com a Erudição”, ele diz. “Não se
lembra do nosso livro de História das Facções? Ele as chamou de ‘facções essenciais’ – sem
elas, seríamos incapazes de sobreviver. Alguns textos da Erudição as nomearam ‘facções
enriquecedoras’. E uma das missões da Erudição como facção era se tornar ambos – essencial
e enriquecedora”.

 Isso não me agrada muito, o quanto a sociedade precisa da Erudição funcionando. Mas
eles são essenciais – sem eles, haveriam remédios ineficazes, tratamentos médicos
insuficientes e nenhum avanço tecnológico.

 Mordo minha maçã.

 “Você não vai comer sua torrada?”, ele diz.

 “O pão tem um gosto estranho”, eu digo. “Você pode pegar se quiser”.

 “Estou impressionado com a forma com que vivem aqui”, ele diz enquanto pega a
torrada de meu prato. “Eles são completamente autossuficientes. Eles têm sua própria fonte
de poder, seus próprios pomares de maçã, seu próprio sistema de filtração da água, suas
próprias fontes de comida... Eles são independentes”.

 “Independentes”, eu digo, “e não envolvidos. Deve ser legal”.

 Isso é legal, pelo que sei. As grandes janelas ao lado de nossa mesa deixam passar
tanta luz solar que sinto como se estivesse lá fora. Grupos de membros da Amizade sentam-se
em outras mesas, suas roupas brilhantes contra sua pele bronzeada. Em mim o amarelo
parece aborrecido.

 “Então eu presumo que a Amizade não foi uma das facções que você teve aptidão”, ele
diz sorrindo.

 “Não”. O grupo da Amizade a alguns bancos de distância explode em gargalhadas. Eles
nem ao menos olharam na nossa direção desde que sentamos para comer. “Mantenha isso em
segredo, tudo bem? Não é algo que eu queira divulgar”.

 “Desculpe”, ele diz, se inclinando sobre a mesa para que possa falar silenciosamente.
“Então, o que são eles?”


 Fico tensa. “O que você quer saber?”

 “Tris”, ele diz. “Sou seu irmão. Pode me contar qualquer coisa”.

 Seus olhos verdes não vacilam. Ele abandonou os óculos inúteis que usava como
membro da Erudição em troca de uma blusa cinza da Abnegação e de um corte de cabelo
curto. Ele está exatamente como estava alguns meses atrás, quando vivíamos separados
apenas por um corredor, ambos considerando a mudança de facção, mas não confiantes o
suficiente para contar um ao outro. Não confiar nele foi um erro que não quero cometer
novamente.

 “Abnegação, Audácia”, eu digo, “e Erudição”.

 “Três facções?” suas sobrancelhas levantam.

 “Sim, por quê?”

 “É só que parece bastante”, ele diz. “Cada um de nós teve que escolher um foco de
pesquisas na iniciação da Erudição, e a minha foi a simulação do teste de aptidão, então eu sei
bastante sobre como cada um é designado. É muito difícil uma pessoa ter dois resultados – o
programa, na verdade, não permite isto. Mas ter três... Não sei nem como isso é possível”.

 “Bem, a administradora teve que alterar o teste”, eu digo. “Ela forçou-o a passar para
a simulação no ônibus, para que pudesse descartar a Erudição – mas a Erudição não foi
descartada”.

 Caleb apoia o queixo num punho. “Uma sobrecarga no programa”, ele diz. “Eu imagino
como essa administradora sabia fazer isto. Não é algo que eles aprendem”.

 Eu franzo a testa. Tori era uma tatuadora e voluntária para o teste de aptidão – como
ela sabia alterar o programa? Se ela era boa com computadores, era apenas um hobby, e eu
duvido que um hobby fosse capaz de permitir a alguém alterar uma simulação.

 Então algo de uma de nossas conversas me aparece. Meu irmão e eu fomos
transferidos da Erudição.

 “Ela era da Erudição”, eu digo. “Uma transferência de facções. Talvez por isso ela
saiba”.

 “Talvez”, ele diz, batendo seus dedos – da esquerda para a direita – contra sua
bochecha. Nossos cafés da manhã esfriam quase esquecidos à nossa frente. “O que isso
significa acerca de seu cérebro? Ou anatomia?”

 Eu rio um pouco. “Não sei. Tudo o que sei é que sempre estou quase acordada durante
simulações, e algumas vezes eu posso me fazer acordar delas. Às vezes elas nem mesmo
funcionam. Como a simulação do ataque”.

 “Como você se acorda delas? O que você faz?”

 “Eu...”, eu tento lembrar. Parece que faz muito tempo em que estive em uma, embora
tenham sido apenas algumas semanas. “É difícil dizer, porque as simulações da Audácia
deveriam acabar quando conseguíssemos nos acalmar. Mas em uma das minhas... a qual
Tobias descobriu o que eu era... Eu fiz algo impossível. Quebrei um vidro apenas colocando
minha mão nele”.

 A expressão de Caleb se torna distante, como se estivesse olhando para lugares muito
distantes. Nada do que eu havia acabado de explicar aconteceu com ele em seu teste de
aptidão, eu sei. Então talvez ele esteja se perguntando como aquilo deveria ser, ou como era
possível. Minhas bochechas começam a ficar quentes – ele está analisando meu cérebro como
analisaria um computador ou uma máquina.

 “Ei”, eu digo. “Acorde”.


 “Desculpe”, ele diz, focando em mim de novo. “É só que...”

 “Fascinante. Sim, eu sei. Você sempre olha como se alguém tivesse sugado a vida para
fora de você quando alguma coisa lhe fascina”.

 Ele ri.

 “Podemos falar sobre alguma outra coisa?”, eu digo. “Podem não haver traidores da
Erudição ou Audácia por perto, mas ainda parece estranho, falar sobre isso em público assim”.

 “Tudo bem”.

 Antes de continuarmos, a porta da cafeteria abre, e um grupo da Abnegação entra.
Eles usam roupas da Amizade, como eu, mas também como eu, é óbvio de qual facção eles
realmente são. São silenciosos, mas não sombrios – sorriem para o grupo da Amizade por
quem passam, inclinando suas cabeças, alguns deles parando para trocar gentilezas.

 Susan senta perto de Caleb com um pequeno sorriso. Seu cabelo está para trás em um
nó de costume, mas seu cabelo loiro brilha como ouro. Ela e Caleb sentam um pouco mais
perto do que amigos fariam, embora não encostem um no outro. Ela sacode a cabeça para me
cumprimentar.

 “Desculpe-me”, ela diz. “Eu os interrompi?”

 “Não”, Caleb diz. “Como você está?”

 “Estou bem, e você?”

 Estava prestes a fugir da cafeteria, em vez de escutar a conversa politicamente correta
da Abnegação, quando Tobias entra, parecendo incomodado. Ele deveria estar trabalhando na
cozinha esta manhã, como parte de nosso acordo com a Amizade. Terei que trabalhar na
lavanderia amanhã.

 “O que aconteceu?”, eu digo quando ele senta perto de mim.

 “Em seu entusiasmo pela resolução de conflitos, a Amizade aparentemente esqueceu
que a intromissão cria mais conflitos”, diz Tobias. “Se nós ficarmos mais tempo aqui, eu vou
socar alguém, e não será bonito de se ver”.

 Caleb e Susan ambos levantam suas sobrancelhas para ele. Alguns da Amizade na
mesa próxima a nós param de falar para nos olhar.

 “Vocês me ouviram”, Tobias diz a eles. Todos parecem distantes.

 “Como eu havia dito,” eu digo cobrindo minha boca para esconder o sorriso, “o que
aconteceu?”

 “Te falo mais tarde”.

 Isso deve ter alguma coisa a ver com Marcus. Tobias não gosta dos olhares duvidosos
que os membros da Abnegação lhe dirigem quando se refere a Marcus cruelmente, e Susan
está sentada bem na sua frente. Eu fecho minhas mãos em meu colo.

 O grupo da Abnegação senta em nossa mesa, mas não perto de nós – uma distância
respeitosa de dois lugares de distância, embora muitos deles ainda balançassem a cabeça para
nós. Eles eram a família de meus amigos, vizinhos e colegas de trabalho, e antes, sua presença
teria me encorajado a ficar quieta e discreta. Agora, ela faz com que queira falar mais alto, ser
o mais longe possível da minha antiga identidade e da dor que a acompanha.

 Tobias fica completamente parado quando uma mão desce até meu ombro direito,
enviando arrepios de dor em meu braço. Eu cerro os dentes para não gemer.

 “Ela foi baleada nesse ombro”, Tobias diz sem nem olhar para o homem atrás de mim.

 “Minhas desculpas”. Marcus levanta sua mão e senta à minha esquerda. “Olá”.

 “O que você quer?” eu digo.


 “Beatrice”, Susan diz calmamente. “Não há necessidade de –“

 “Susan, por favor.” diz Caleb silenciosamente. Ela pressiona seus lábios numa linha e
olha para longe.

 Eu franzo a testa olhando para Marcus. “Eu lhe fiz uma pergunta”.

 “Eu gostaria de discutir algo com você”, diz Marcus. Sua expressão está calma, mas ele
está nervoso – a tensão em sua voz o trai. “Os outros da Abnegação e eu temos discutido e
decidimos que não devemos ficar aqui. Acreditamos que, dados os inevitáveis conflitos em
nossa cidade, seria egoísta de nossa parte ficar aqui enquanto o que resta de nossa facção está
dentro daquela cerca. Gostaríamos que você nos escoltasse”.

 Eu não esperava por aquilo. Porque Marcus quer que eles retornem à cidade? Isso é
realmente apenas uma decisão da Abnegação, ou ele pretende fazer algo lá – algo que tem a
ver com a informação que a Abnegação tem?

 O encaro por alguns segundos e depois olho para Tobias. Ele estava um pouco
relaxado, mas mantém seus olhos focados na mesa. Não sei por que age assim perto de seu
pai. Ninguém, nem mesmo Jeanine, faz Tobias se acovardar.

 “O que você acha?”, eu digo.

 “Eu acho que devemos sair depois de amanhã”, Tobias diz.

 “Ok. Obrigado”, diz Marcus. Ele levanta e senta no final da mesa com o resto dos
membros da Abnegação.

 Eu me aproximo mais de Tobias, sem ter certeza de como confortá-lo sem fazer as
coisas piorarem. Pego minha maçã com minha mão esquerda, e pego sua mão em baixo da
mesa com a minha mão direita.

 Mas não consigo manter meus olhos longe de Marcus. Quero saber mais sobre o que
ele disse à Johanna. E às vezes, se você quer a verdade, você tem que exigi-la.




























 Capítulo 5

 Depois do almoço, digo a Tobias que estou indo dar uma caminhada, mas em vez disso
eu sigo Marcus. Esperava que ele andasse até o quarto de hóspedes, mas ele atravessa o
campo atrás do corredor e anda até o edifício de filtração de água. Hesito antes de continuar.
Eu realmente quero isto?

 Subo os degraus e passo pela porta que Marcus tinha acabado de fechar atrás dele.

 O edifício da filtração é pequeno, apenas uma sala com algumas grandes máquinas
dentro dela. Pelo que vejo, algumas das máquinas tiram a água suja do complexo, outras
purificam e outras testam a água, e o último conjunto bombeia a água limpa de volta ao
complexo. As tubulações estão todas enterradas, exceto uma, que percorre o chão levando
água à usina, perto da cerca. A usina fornece energia para toda a cidade, usando uma
combinação de energias eólica, hidrelétrica e solar.

 Marcus está em pé perto das máquinas que filtram a água. Lá os tubos são
transparentes. Consigo ver uma água escura entrando em um tubo, desaparecendo dentro da
máquina e emergindo clara. Nós dois assistimos a purificação acontecendo, e eu imagino se
ele está pensando a mesma coisa que eu: que seria legal se a vida funcionasse assim, tirando a
sujeira de nossas vidas e nos levando a um mundo limpo. Mas algumas sujeiras estão
destinadas a ficar.

 Encaro a parte de trás da cabeça de Marcus. Tenho que fazer isso agora.

 Agora.

 “Eu te ouvi, um dia desses”. Eu deixo escapar.

 Marcus gira sua cabeça. “O que você está fazendo, Beatrice?”

 “Eu te segui até aqui”. Cruzo os braços sobre o peito. “Escutei você conversando com
Johanna sobre o que motivou o ataque de Jeanine à Abnegação”.

 “A Audácia te ensinou que é normal invadir a privacidade alheia, ou você ensinou a si
mesma?”

 “Sou uma pessoa naturalmente curiosa. Não mude de assunto”.

 A testa de Marcus está enrugada, especialmente entre as sobrancelhas, e ele tem
linhas grossas perto de sua boca. Ele parece um homem que gastou a maior parte da vida
franzindo a testa. Deve ter sido lindo quando era mais novo – talvez ainda seja, para uma
mulher de sua idade, como Johanna – mas tudo que vejo quando olho para ele são os buracos
negros no lugar dos olhos que vi na paisagem do medo de Tobias.

 “Se você me ouviu conversando com Johanna, então você sabe que não contei nem a
ela sobre isso. Então o que a faz pensar que eu gostaria de compartilhar a informação com
você?”

 Não tenho uma resposta de imediato. Mas então ela vem até mim.

 “Meu pai”, eu digo. “Meu pai está morto”. É a primeira vez que falo isso desde que
contei a Tobias na viagem de trem, que meus pais morreram por minha causa. ‘Morreu’ era só
um fato para mim naquele momento, separado das emoções. Mas ‘morto’, misturado com a
agitação e os ruídos de água borbulhando nesta sala, dá um golpe como um martelo no meu
peito, e o monstro da dor aperta, agarrando meus olhos e minha garganta.

 Forço-me a continuar.

 “Ele pode não ter morrido por essa informação a que você está se referindo”, eu digo.
“Mas eu quero saber se foi alguma coisa pela qual ele arriscou sua vida”.


 Marcus contorce a boca.

 “Sim”, ele diz. “Era”

 Meus olhos se enchem de lágrimas. Pisco até elas sumirem.

 “Bem”, eu digo, quase engasgando “Então o que era isso? Era algo que você estava
tentando proteger? Ou roubar? Ou o quê?”

 “Isso era...”, Marcus balança a cabeça. “Eu não vou te contar isto”.

 Dou um passo em sua direção. “Mas você quer essa coisa de volta. E Jeanine tem a
posse dela”.

 Marcus é um bom mentiroso – ou ao menos, alguém que tem o dom de guardar
segredos. Ele não reage. Queria poder enxergar como Johanna, como os membros da
Franqueza enxergam – Queria poder ler sua expressão. Ele pode estar próximo de me dizer a
verdade. Se eu pressionar o bastante, talvez ele se revele.

 “Poderia ajudá-lo”, eu digo.

 O lábio superior de Marcus dobra. “Você não tem ideia do quão ridículo isso soa”. Ele
cospe as palavras em mim. “Você pode ter tido sucesso desligando a simulação do ataque,
garota, mas foi por pura sorte, não habilidade. Eu ficaria chocado até a morte se você
conseguisse fazer qualquer coisa útil novamente por muito tempo”.

 Esse é o Marcus que Tobias conhece. Aquele que sabe exatamente onde te acertar
para causar o maior dano.

 Meu corpo treme de raiva. “Tobias está certo sobre você”, eu digo. “Você não é nada
além de um arrogante, um pedaço de lixo”.

 “Ele disse isso? Ele disse?” Marcus levanta as sobrancelhas.

 “Não. Ele não te menciona o bastante para dizer qualquer coisa como essa. Eu
descobri isso sozinha”. Eu cerro meus dentes. “Você não é quase nada parecido com ele. E
conforme o tempo passa, vão ficando mais e mais diferentes”.

 Marcus não me responde. Ele vira de volta para o purificador de água. Fico parada por
um momento em meu triunfo, o som da água corrente sincronizado ao meu batimento
cardíaco. Então eu deixo o edifício, e enquanto estou na metade do caminho, cruzando o
campo, percebo que eu não ganhei. Marcus ganhou.

 Qualquer que seja a verdade, eu terei que conseguir em outro lugar, porque não vou
perguntá-lo novamente.



 Naquela noite eu sonhei que estava em um campo, e me deparo com um bando de
corvos agrupados no chão. Quando espanto alguns deles, percebo que estão empoleirados em
cima de um homem, bicando suas roupas, que são da cor cinza. Sem aviso, eles voam para
longe, e eu percebo que o homem é Will.

 Então eu acordo.

 Coloco o rosto no travesseiro e solto, em vez de seu nome, um soluço que joga meu
corpo contra o colchão. Sinto o monstro da dor de novo, escrevendo no espaço vazio onde
meu coração e meu estômago normalmente estariam.

 Eu soluço, pressionando as palmas das mãos contra meu peito. Agora a coisa
monstruosa tem suas garras em minha garganta, espremendo o ar para fora. Viro-me e coloco
a cabeça entre os joelhos, respirando até que o sentimento estrangulador saia de mim.


 Mesmo com o ar quente, eu tremo. Saio da cama e rastejo até o quarto de Tobias no
fim do corredor. Minhas pernas nuas quase brilham no escuro. A porta dele range quando a
empurro, alto o bastante para acordá-lo. Ele me encara por um segundo.

 “Vem aqui”, ele diz sonolento. Ele muda de lugar na cama para dar espaço a mim.

 Deveria ter pensado nisso antes. Eu durmo com uma longa blusa que alguém da
Amizade deixou pra mim. Ela desce um pouquinho abaixo do meu traseiro, e eu não pensei em
colocar um short antes de vir aqui. Os olhos de Tobias encaram minhas pernas nuas, deixando
meu rosto corado. Eu me deito, olhando para ele.

 “Pesadelo?” ele diz.

 Concordo com a cabeça.

 “O que aconteceu?”

 Não posso contar a ele que estou tendo pesadelos com Will, ou teria que explicar por
que. O que ele pensaria de mim, se ele soubesse o que fiz? Como ele olharia para mim?

 Ele mantém sua mão em meu rosto, movendo seu polegar pela minha bochecha.

 “Estamos bem”, ele diz. “Você e eu. Ok?”

 Meu peito dói, e eu concordo com a cabeça.

 “Nada mais está bem”. Seu sussurro faz cócegas em meu rosto. “Mas nós estamos”.

 “Tobias”, eu digo. Mas o que quer que eu fosse dizer se perde em minha mente, e eu
pressiono minha boca na sua, porque eu sei que esse beijo vai me distrair de qualquer coisa.

 Ele me beija de volta. Suas mãos começam em meu rosto, e depois percorrem meu
lado, encaixando na minha cintura, na curva do meu quadril, deslizando por minha perna nua,
fazendo-me tremer. Eu chego mais perto dele e enrolo minha perna ao seu redor. Minha
cabeça fervilha de nervosismo, mas o resto de mim parece saber exatamente o que está
fazendo, porque tudo pulsa no mesmo ritmo, tudo em mim quer a mesma coisa: fugir de mim
mesma e me tornar parte dele.

 Sua boca se move junto a minha, sua mão passa por baixo da minha camiseta, e eu não
o impeço, embora saiba que deveria. Em vez disso, um leve suspiro me escapa, e minhas
bochechas ficam quentes, de constrangimento. Ou ele não me ouviu, ou ele não liga, porque
ele pressiona a palma da mão na parte de baixo das minhas costas, me leva mais para perto.
Seus dedos movem vagarosamente para cima, traçando minha espinha. Minha blusa sobe por
meu corpo, e eu não a puxo para baixo, mesmo quando sinto um frio na barriga.

 Ele beija meu pescoço, e eu seguro seu ombro para me equilibrar, agarrando sua
camiseta em meu punho. Sua mão alcança o topo de minhas costas e se enrola em torno do
pescoço. Minha blusa fica enrolada em seu braço e nossos beijos se tornam desesperados. Eu
sei que minhas mãos estão tremendo por toda a energia nervosa dentro de mim, então eu
aperto minha mão em seu ombro para que ele não note.

 Seus dedos roçam o curativo em meu ombro, e uma flecha de dor passa por dentro de
mim. Não doeu tanto, mas me traz de volta a realidade. Não posso ficar com ele daquele jeito
se uma das razões de querer isso é me distrair da dor.

 Eu me inclino para trás e cuidadosamente puxo a barra da minha blusa para baixo para
que me cubra de novo. Por um segundo nós apenas ficamos deitados ali, nossas respirações
pesadas se misturando. Não faço menção de choro – agora é uma boa hora para chorar; não,
isso tem que parar – mas não consigo colocar as lágrimas para fora de meus olhos, não
importa quantas vezes eu pisque.

 “Desculpe”, eu digo.


 Ele diz quase severamente, “Não peça desculpas”. Ele seca as lágrimas sobre minhas
bochechas.

 Eu sei que estou como um passarinho, pequena e estreita, como se estivesse pronta
para voar, frágil. Mas quando ele me toca como se não suportasse tirar sua mão dali, eu não
desejo que fosse diferente.

 “Eu não queria ser tão bagunçada”, eu digo, minha voz embargada. “Eu só me sinto
tão...” Eu balanço minha cabeça.

 “Isso está errado”, ele diz. “Não importa se seus pais estão em um lugar melhor – eles
não estão aqui com você, e isso está errado, Tris. Não deveria ter acontecido. Isso não deveria
ter acontecido com você. E qualquer um que lhe diga que está tudo bem, é um mentiroso”.

 Um soluço passa por meu corpo de novo, e ele enrola seus braços ao meu redor com
tanta força que é difícil respirar, mas não importa. Meu choro dá lugar a uma feiura total,
minha boca aberta e minha cara contorcida e soa como um animal morrendo vindo de minha
garganta. Se continuar assim, vou me estilhaçar, e talvez assim seja melhor, talvez seria melhor
estilhaçar e não ter que suportar mais nada.

 Ele não fala por um longo tempo, até que fico quieta de novo.

 “Durma”, ele diz. “Vou lutar com seus pesadelos se eles voltarem”.

 “Com o que?”

 “Minhas mãos, obviamente”.

 Eu enrosco meu braço em torno da sua cintura e respiro fundo em seu ombro. Ele
cheira como ar fresco e menta, da pomada que ele usa para relaxar os músculos doloridos. Ele
tem cheiro de segurança, também, como passeios ensolarados no pomar e cafés da manhã
silenciosos na sala de jantar. E momentos antes de cair no sono eu quase me esqueço de nossa
cidade em guerra e todos os conflitos que virão até nós em breve, se não os encontrarmos
primeiro.

 Antes de dormir, ouço-o sussurrar, “Eu te amo, Tris”.

 E talvez eu fosse respondê-lo, mas já estou muito longe.
























 Capítulo 6

 Naquela manhã acordo com o zumbido de um barbeador elétrico. Tobias está em
frente ao espelho, sua cabeça de lado para que possa ver a curva da mandíbula.

 Eu abraço meus joelhos, coberta pelo edredom, e assisto-o.

 “Bom dia”, ele diz. “Como você dormiu?”

 “Bem”. Levanto-me, e enquanto ele deita a cabeça para raspar o queixo, eu enrosco
meus braços ao seu redor, pressionando minha testa onde parte da tatuagem da Audácia
aparece.

 Ele solta o barbeador e cruza as mãos sobre as minhas. Nenhum de nós quebra o
silêncio. Escuto sua respiração e ele acaricia meus dedos.

 “Eu tenho que ir me preparar”, eu digo após algum tempo. Fico relutante a sair, mas
eu tenho que trabalhar na lavanderia, e não quero que a Amizade diga que não estou
cumprindo minha parte do acordo.

 “Vou pegar algo para você vestir”, ele diz.

 Ando descalça pelo corredor, poucos minutos depois, vestindo a camiseta com a qual
dormi e um short que Tobias pegou emprestado da Amizade. Quando volto para meu quarto,
Peter está parado perto da minha cama.

 Meu instinto faz com que eu me endireite e começo a procurar por algo pontiagudo no
quarto.

 “Saia”, eu digo o mais calmamente que consigo. Mas é difícil manter minha voz
normal. Não penso em outra coisa que não seja o olhar em seus olhos enquanto ele me
segurou sobre o abismo pela garganta ou me jogou contra a parede na sede da Audácia.

 Ele se vira para olhar para mim. Quando faz isso, está sem seu usual olhar malicioso –
em vez disso ele parece exausto, sua postura desleixada, o braço ferido em uma tipoia. Mas eu
não caio nessa.

 “O que está fazendo no meu quarto?”

 Ele anda para perto de mim. “O que está fazendo seguindo Marcus? Eu vi você depois
do café ontem”.

 Eu enfrento seu olhar com o meu. “Isso não é da sua conta. Saia”.

 “Estou aqui porque eu não sei por que você fica com a posse daquele disco rígido”, ele
diz. “Não que você esteja particularmente estável esses dias”.

 “Eu estou instável?” Eu rio. “Acho isso engraçado, vindo de você”.

 Peter pressiona seus lábios e não diz nada.

 Eu estreito os olhos. “Porque você está tão interessado no disco rígido, afinal?”

 “Não sou burro”, ele diz. “Eu sei que ele contém mais do que os registros da
simulação”.

 “Não, você não é burro, é?” Eu digo. “Você acha que se entregar isto à Erudição, eles
vão perdoar sua indiscrição e deixá-lo voltar”.

 “Eu não quero voltar”, ele diz, dando mais um passo à frente. “Se eu quisesse, eu não
teria te ajudado na sede da Audácia”.

 Eu dou um golpe em seu esterno com meu dedo indicador. “Você me ajudou porque
não queria que atirasse em você de novo”.

 “Posso não ser um traidor que ama a Abnegação” Ele pega meu dedo. “Mas ninguém
me controla, especialmente a Erudição”.


 Puxo minha mão de volta, girando-a pra que ele não consiga agarrá-la. Minhas mãos
estão suadas.

 “Eu não espero que você entenda”. Eu limpo minhas mãos sobre a barra da camiseta
enquanto ando lentamente até a cômoda. “Tenho certeza que se a Franqueza, em vez da
Abnegação, tivesse sido atacada, você deixaria sua família ser baleada sem protestar. Mas eu
não sou assim”.

 “Cuidado com o que fala sobre família, careta”. Ele anda comigo, em direção à
cômoda, mas eu cuidadosamente mudo de lugar, de modo que fique entre ele e as gavetas.
Não vou revelar o lugar onde o disco rígido está tirando-o de lá enquanto Peter ainda está
aqui, mas não quero deixar o caminho para ele limpo também.

 Seus olhos viram em direção à cômoda atrás de mim, no lado esquerdo, onde o disco
rígido está escondido. Eu faço uma carranca para ele, e então percebo algo que não havia visto
antes: uma protuberância retangular em um de seus bolsos.

 “Me dê isso”, eu digo. “Agora”.

 “Não”.

 “Me dê isso, ou eu vou te matar enquanto dorme”.

 Ele sorri. “Se ao menos você pudesse ver o quão ridícula você fica quando ameaça as
pessoas. Como uma garotinha dizendo que vai me estrangular com sua corda de pular”.

 Eu começo a ir a sua direção, e ele se desloca para trás, indo para o corredor.

 “Não me chame de ‘garotinha’”.

 “Eu te chamo do que eu quiser”.

 Eu parto para a ação, mirando meu punho esquerdo no lugar que eu sei que vai doer
mais: o ferimento da bala em seu braço. Ele evita o soco, mas em vez de tentar de novo, eu
seguro seu braço o mais forte que consigo e puxo-o para o lado. Peter grita até o fundo de
seus pulmões, e enquanto ele está distraído com a dor, eu o chuto forte no joelho, e ele cai no
chão.

 Pessoas correm para o corredor, vestindo cinza, preto, amarelo e vermelho. Peter
surge atrás de mim meio agachado, e me dá um soco no estômago. Eu arqueio um pouco, mas
a dor não me para – Deixo sair algo como um gemido e um grito, e me lanço em sua direção,
meu cotovelo esquerdo levantado até a boca, para que possa golpeá-lo na cara.

 Um membro da Amizade me segura pelos braços e meio que me levanta e me tira de
perto de Peter. O ferimento em meu ombro lateja, mas eu dificilmente sinto-o sobre o efeito
da adrenalina. Estou tensa olhando em sua direção e tento ignorar os rostos espantados dos
membros da Amizade e da Abnegação – e Tobias – ao meu redor, e uma mulher se ajoelha ao
lado de Peter, sussurrando palavras em um tom suave. Eu tento ignorar seus gemidos de dor e
a culpa. Eu o odeio. Não ligo. Odeio ele.

 “Tris fique calma!” Tobias diz.

 “Ele está com o disco rígido!” Eu grito. “Ele roubou de mim! Está com ele!”

 Tobias anda até Peter, ignorando a mulher ajoelhada ao seu lado, e pressiona seu pé
na costela dele para mantê-lo no lugar. Então ele tira o disco rígido do bolso.

 Tobias diz para mim – muito calmamente – “Nós não ficaremos em uma casa segura
para sempre, e isso não foi muito esperto de sua parte”. Depois ele vira de costas para mim e
adiciona, “Nem da sua, também. Você quer que sejamos expulsos daqui?”

 Eu faço uma carranca. O homem da Amizade com a mão em meu braço começa a me
levar pelo corredor. Eu tento arrancar meu corpo para fora de seu alcance.


 “O que você pensa que está fazendo? Me solta!”

 “Você violou os termos de nosso acordo de paz”, ele diz. “Devemos seguir o
protocolo”.

 “Apenas vá”, diz Tobias. “Você precisa se acalmar”.

 Procuro nos rostos da multidão que se formou ali. Ninguém discute com Tobias. Seus
olhos me contornam. Então eu deixo os homens da Amizade me escoltarem até o fim do
corredor.

 “Olhe onde pisa”, um deles diz. “As tábuas são desiguais aqui”.

 Minha cabeça dói, um sinal de que estou me acalmando e a adrenalina está passando.
O homem grisalho abre uma porta à esquerda. Uma placa na porta diz SALA DE CONFLITOS.

 “Você está me colocando de castigo, ou algo assim?” Faço uma careta. Isso é algo que
a Amizade faria: me deixar de castigo e depois me ensinar a ter pensamentos positivos.

 A sala é tão clara que tenho que apertar os olhos para ver. A parede oposta tem
janelas largas que dão para todo o pomar. Apesar disso, parece pequena, provavelmente por
que o teto, piso e paredes são todos cobertos de tábuas de madeira.

 “Por favor, sente-se”, o homem mais velho diz, apontando para o banco no meio da
sala. Ele, como todos os outros móveis na sede da Amizade, são feitos de madeira sem
polimento, e parecem robustos, como se ainda estivessem ligados à terra. Eu não sento.

 “Essa briga já acabou” Eu digo. “Não vou fazer de novo. Não aqui”.

 “Nós temos que seguir o protocolo”, o homem mais jovem diz. “Por favor, sente-se e
nós vamos discutir o que aconteceu, e depois deixaremos você ir”.

 Todas as suas vozes são tão suaves. Não silenciosas como as da Abnegação, sempre
pisando em ovos tentando não perturbar. Suaves, macias, baixas – Eu me pergunto se isso é
algo que eles ensinam aos iniciantes aqui. Como falar, andar, sorrir, para encorajar a paz.

 Não quero me sentar, mas o faço, à beira da cadeira para que possa levantar rápido, se
necessário. O homem mais novo para na minha frente. Dobradiças rangem atrás de mim. Olho
por cima do meu ombro – o outro homem está desajeitado com alguma coisa em um
contador.

 “O que está fazendo?”

 “Fazendo chá”, ele diz.

 “Não acho que chá é a solução para isso”.

 “Então nos conte”, o jovem diz, mergulhando minha atenção de volta às janelas. Ele
sorri para mim. “O que você acredita que seja a solução?”

 “Jogar Peter para fora deste complexo”.

 “Parece, para mim”, o homem gentilmente diz, “que você é que o atacou – na
verdade, que você foi quem atirou no braço dele”.

 “Você não tem ideia do que ele fez para merecer essas coisas”. Minhas bochechas
ficam quentes novamente e imitam meu batimento cardíaco. “Ele tentou me matar. E outra
pessoa – ele esfaqueou outra pessoa no olho... com uma faca de manteiga. Ele é mau. Tive
todo o direito de –“

 Sinto uma dor aguda no meu pescoço. Pontos pretos cobrem o homem na minha
frente, escurecendo minha visão de seu rosto.

 “Sinto muito, querida”, ele diz. “Estamos apenas seguindo o protocolo”.

 O homem velho está segurando uma seringa. Algumas gotas do que quer que ele
tenha injetado em mim ainda estão nela. Eles estão verde claro, da cor do vidro. Eu pisco


rapidamente e os pontos pretos desaparecem, mas o mundo continua nadando na minha
frente, como se estivesse em uma cadeira de balanço, inclinando para frente.

 “Como se sente?” O jovem diz.

 “Me sinto...” Brava, eu ia dizer. Brava com Peter, brava com a Amizade. Mas isso não é
verdade, é? Eu sorrio. “Me sinto bem. Um pouco como... como se estivesse flutuando. Ou
balançando. Como você se sente?”

 “As tonturas são um efeito colateral do soro. Você deve querer descansar esta tarde. E
eu estou me sentindo bem. Obrigado por perguntar”, ele diz. “Pode sair agora, se quiser”.

 “Pode me dizer onde acho Tobias?” eu digo. Quando imagino seu rosto, a afeição por
ele borbulha dentro de mim, e tudo o que quero é beijá-lo. “Quatro, eu quero dizer. Ele é
lindo, não é? Não sei por que gosta tanto de mim. Não sou nem legal, sou?”

 “Não, na maior parte do tempo não”, o homem diz. “Mas acho que poderia ser se
tentasse”.

 “Obrigada” eu digo. “É legal da sua parte dizer isso”.

 “Eu acho que vai encontrá-lo no pomar”, ele diz. “Eu o vi saindo depois da briga”.

 Eu rio um pouco. “A briga. Que coisa patética...”

 E ela parece realmente uma coisa patética, bater seu punho no corpo de outra pessoa.
Como um carinho, mas muito forte. Um carinho é muito mais legal. Talvez eu devesse passar
minha mão sobre o braço de Peter. Isso teria sido melhor para nós dois. Meus dedos não iriam
doer agora.

 Levanto e me oriento até a porta. Tenho que me inclinar contra a parede, para
equilibrar, mas ela é firme, então eu não ligo. Tropeço no corredor, rindo da minha
incapacidade de equilibrar-me. Estou desajeitada de novo, como quando era mais nova. Minha
mãe sorria para mim e dizia “Tome cuidado onde você pisa Beatrice. Não quero que se
machuque”.

 Ando para fora e o verde nas árvores parece mais verde, tão forte que quase provo as
folhas. Talvez eu consiga prová-las, é como a grama que eu decidi comer quando era pequena,
só para ver qual era o gosto. Quase caio das escadas por causa do suor e começo a rir quando
a grama faz cócegas em meu pé descalço. Ando em direção ao pomar.

 “Quatro!” Eu chamo. Porque estou chamando um número? Ah, sim. Porque este é seu
nome. Chamo de novo, “Quatro! Onde você está?”

 “Tris?” diz uma voz vinda das árvores à minha direita. Soa quase como se a árvore
estivesse falando comigo. Eu rio, mas é claro que é só o Tobias, esquivando-se sobre um ramo.

 Corro em sua direção, e o chão tem morros de terra, então eu quase caio. Sua mão
toca minha cintura, me acalma. O toque manda um choque por meu corpo, e minhas
entranhas queimam como se seus dedos estivessem inflamando-as. Empurro-me mais para
perto dele, pressionando meu corpo contra o seu, e levanto a cabeça para beijá-lo.

 “O que eles –“ ele começa, mas eu o paro com meus lábios. Ele me beija de volta, mas
muito rápido, então eu suspiro pesadamente.

 “Isto foi sem graça”, eu digo, “Ok, não foi, mas...”

 Eu fico em pé na ponta dos dedos para beijá-lo de novo, e ele pressiona seu dedo em
meus lábios para me parar.

 “Tris”, ele diz. “O que eles fizeram com você? Está agindo como uma lunática”.

 “Isto não é muito legal de se dizer” eu digo. “Eles me deixaram de bom humor, isto é
tudo. E agora eu realmente quero beijá-lo, então se você pudesse apenas relaxar -“


 “Não vou beijá-la. Vou descobrir o que está acontecendo”, ele diz.

 Amuo meu lábio inferior por um segundo, mas então eu sorrio quando as peças se
juntam em minha mente.

 “Por isso você gosta de mim!” Eu exclamo. “Porque não é tão legal também! Faz tanto
sentido agora”.

 “Venha”, ele diz. “Nós vamos ver Johanna”.

 “Eu gosto de você também”.

 “Isto é encorajador”, ele responde categoricamente. “Venha. Ah, pelo amor de Deus.
Eu vou te carregar”.

 Ele me coloca em seus braços, um abaixo de meus joelhos e o outro em minhas costas.
Enrolo meus braços ao redor de seu pescoço e dou um beijo em sua bochecha. Então eu
descubro que o ar tem uma sensação boa quando eu chuto, e começo a mover meus pés para
cima e para baixo enquanto ele nos leva em direção ao edifício em que Johanna trabalha.

 Quando chegamos ao escritório, ela está sentada atrás de uma mesa com uma pilha de
papéis à sua frente, mordendo uma borracha na ponta do lápis. Ela olha para nós, e sua boca
fica entreaberta. Uma mecha de cabelo preto cobre o lado esquerdo de sua cara.

 “Você realmente não deveria esconder sua cicatriz”, eu digo. “Fica mais bonita com o
cabelo fora do rosto”.

 Tobias me coloca no chão pesadamente. O impacto é chocante e fere meu ombro um
pouco, mas eu gosto do som que meu pé faz quando bate no chão. Eu rio, mas nem Johanna
nem Tobias riem comigo. Estranho.

 “O que vocês fizeram com ela?” Tobias diz tenso. “O que, em nome de Deus, vocês
fizeram?”

 “Eu...” Johanna faz uma carranca para mim. “Devem ter dado muito a ela. Ela é muito
pequena; provavelmente eles não levaram sua altura e peso em conta”.

 “Eles devem ter dado muito a ela de quê?”

 “Você tem uma voz legal”, eu digo.

 “Tris”, ele diz. “Por favor fique quieta”.

 “O soro da paz”, Johanna diz. “Em pequenas doses, ele tem um efeito calmo, suave e
melhora o humor. O único efeito colateral são algumas rápidas tonturas. Nós o administramos
para os membros de nossa comunidade que têm problema mantendo a paz”.

 Tobias bufa. “Não sou idiota. Todos os membros de sua comunidade tem problema
mantendo a paz, porque todos eles são humanos. Provavelmente você jogou este soro na
tubulação da água”.

 Johanna não responde por alguns segundos. Ela cruza as mãos à sua frente.

 “Claramente você sabe que não é o caso, ou este conflito não teria acontecido”, ela
diz. “Mas, qualquer coisa que nós decidimos fazer aqui, decidimos juntos, como uma facção.
Se pudesse dar o soro para todos nesta cidade, eu daria. Com certeza você não estaria nessa
situação que está agora se eu tivesse dado”.

 “Ah, claro”, ele diz. “Drogar a população inteira é a melhor solução para nosso
problema. Ótimo plano”.

 “Sarcasmo não é gentil, Quatro”, ela diz gentilmente. “Agora, me desculpe pelo erro
de ter dado muito à Tris. Mas ela violou os termos de nosso acordo, e temo que vocês não
possam ficar aqui por muito mais tempo. O conflito entre ela e o garoto – Peter – não é algo
que possamos esquecer”.


 “Não se preocupe”, diz Tobias. “Nós pretendemos sair o mais rápido possível”.

 “Bom”, ela diz com um pequeno sorriso. “A paz entre Amizade e Audácia só pode
acontecer quando mantemos nossa distância um do outro”.

 “Isso explica muita coisa”.

 “Com licença?”, ela diz. “O que você está insinuando?”

 “Isso explica”, ele diz rangendo os dentes, “porque, sob o pretexto de neutralidade –
como se isso fosse possível – vocês nos deixaram morrer nas mãos da Erudição”.

 Johanna suspira em silêncio e olha pela janela. Além dela, existe um pequeno pátio,
com vinhas crescendo nele. As vinhas fluem pelos cantos da janela, como se estivessem
tentando entrar na conversa.

 “A Amizade não faria algo como isto”, eu digo. “Isto é maldade”.

 “É para o bem da paz que nós nos mantemos afastados –“ Johanna começa.

 “Paz”. Tobias quase cospe a palavra. “Sim, estou certo de que será muito pacífico
quando todos estiverem ou mortos, ou se acovardando sobre uma ameaça de controle da
mente ou em uma simulação sem fim”.

 O rosto de Johanna se contorce, e eu a imito, para ver como é ter minha cara daquela
maneira. Não é muito bom. Não sei por que ela fez isso.

 Ela diz vagarosamente, “A decisão não era minha. Se fosse, talvez estivéssemos tendo
conversas diferentes agora”.

 “Você está dizendo que discorda deles?”

 “Eu estou dizendo”, ela diz. “que não é do meu cargo discordar da política de minha
facção, mas talvez eu o faça, na privacidade do meu próprio coração”.

 “Tris e eu vamos sair em dois dias”, diz Tobias. “Espero que sua facção não mude a
decisão de fazer deste complexo uma casa segura”.

 “Nossas decisões não são facilmente desfeitas. E sobre Peter?”

 “Você terá que lidar com ele separadamente”, ele diz. “porque ele não vem conosco”.

 Tobias pega minha mão, e sua pele parece legal contra a minha, apesar de não ser
suave ou macia. Sorrio pedindo desculpas a Johanna, e sua expressão continua a mesma.

 “Quatro”, ela diz. “Se você e seus amigos quiserem ficar... intocados por nosso soro,
você vai querer evitar o pão”.

 Tobias agradece por cima de seu ombro enquanto fazemos nosso caminho pelo
corredor juntos.


















 Capítulo 7

 O efeito do soro passa cinco horas mais tarde, quando o sol está começando a nascer.
Tobias me tranca em meu quarto pelo resto do dia, checando se estou bem a cada hora. Desta
vez, quando ele entra, estou sentada na cama, olhando para a parede.

 “Graças a Deus”, ele diz, pressionando a testa na porta. “Estava começando a pensar
que ele nunca ia passar e teria que deixá-la aqui para... cheirar flores, ou qualquer coisa que
você quisesse fazer enquanto estava daquele jeito”.

 “Eu vou matá-los”, eu digo. “Eu vou matá-los”.

 “Não se preocupe. Estaremos deixando esse lugar em breve, de qualquer forma”, ele
diz, fechando a porta atrás dele. Ele tira o disco rígido de seu bolso de trás. “Pensei que
pudéssemos escondê-lo atrás de sua cômoda”.

 “Era lá que ele estava antes”.

 “Sim, e é por isso que Peter não vai procurar lá de novo”. Tobias empurra a cômoda
com uma mão e coloca o disco atrás dela com a outra.

 “Porque eu não consegui lutar contra do soro da paz?” eu digo. “Se meu cérebro é
estranho o bastante para resistir ao soro da simulação, por que esse não?”

 “Realmente, eu não sei”. Ele cai ao meu lado na cama, empurrando o colchão. “Talvez
para lutar contra o soro, você tenha que querer isso”.

 “Bem, obviamente eu quis”, eu digo frustrada, mas com convicção. Eu quis? Ou era
legal esquecer a raiva, a dor, esquecer tudo por algumas horas?

 “Algumas vezes”, ele diz, passando seus braços por meus ombros, “as pessoas só
querem ser felizes, mesmo se não for real”.

 Ele está certo. Mesmo agora, essa paz entre nós existe porque não falamos sobre as
coisas – sobre Will, ou meus pais, ou eu quase atirando nele na cabeça, ou Marcus. Mas eu não
me atrevo a perturbar a paz com a verdade, porque eu estou muito ocupada me agarrando a
ela em busca de apoio.

 “Você deve estar certo”.

 “Você está admitindo?” ele diz sua boca aberta em uma falsa expressão de surpresa.
“Parece que o soro fez alguma coisa boa, apesar de tudo”.

 O empurro o mais forte que posso. “Retire isso. Retire isto agora”.

 “Ok, ok!” Ele coloca suas mãos para o alto. “É só que... Eu não sou tão legal também,
sabe. É por isso que eu gosto de você –”.

 “Fora!” Eu grito, apontando para a porta.

 Rindo de si mesmo, Tobias beija minha bochecha e deixa o quarto.



 Naquela noite, eu me sinto muito envergonhada pelo que aconteceu para ir jantar,
então passo o tempo nos troncos de uma árvore de maçã no final longínquo do pomar,
colhendo maçãs maduras. Subo o mais alto que posso para colhê-las, meus músculos
queimando. Descobri que ficar sentada abre pequenos espaços para a dor entrar, então me
mantenho ocupada.

 Estou secando minha testa com a barra da minha blusa, em pé sobre um tronco,
quando escuto o som. É fraco, num primeiro momento, junto com o canto das cigarras. Fico
imóvel para escutar, e depois de um momento, percebo de onde vem: carros.


 A Amizade tem mais ou menos uma dúzia de caminhões que eles usam para
transportar mercadorias, mas eles só fazem isso no final de semana. Minha nuca começa a
formigar. Se não é a Amizade, provavelmente é a Erudição. Mas tenho que ter certeza.

 Seguro o tronco acima de mim com as duas mãos, mas me impulsiono para cima
apenas como o braço esquerdo. Estou surpresa que ainda possa fazer isso. Fico encurvada,
com galhos e folhas emaranhados em meu cabelo. Algumas maçãs caem no chão quando
mudo meu pé de lugar. Macieiras não são muito altas; Talvez eu não consiga enxergar longe o
suficiente.

 Uso os troncos mais próximos como degraus, usando as mãos para me equilibrar,
girando e me inclinando ao redor do labirinto em que a árvore se tornou. Isso me faz lembrar a
escalada na roda gigante no cais, meus músculos tremendo, minhas mãos latejando. Estou
ferida agora, mas mais forte, e a escalada parece mais fácil.

 Os galhos se tornam mais finos, mais fracos. Lambo meus lábios e olho para o próximo.
Preciso chegar o mais alto possível, mas o galho à minha frente é pequeno e parece flexível.
Coloco meu pé nele, testando sua força. Ele inclina, mas se mantém. Começo a subir nele,
colocando meu outro pé, e o galho quebra.

 Eu suspiro quando caio para trás, agarrando o tronco da árvore no último segundo.
Esse lugar vai ter que ser alto o bastante. Fico na ponta dos pés e olho na direção do som.

 Primeiramente não vejo nada além de um trecho de terra, uma faixa de terreno vazia,
e os campos e começos dos edifícios que se encontram atrás deles. Mas próximos ao portão há
alguns vultos se movendo – pratas, quando a luz os atinge. Carros com teto preto e painéis
solares, o que só pode significar uma coisa. Erudição.

 Um sopro sibila entre meus dentes. Não me permito pensar; Só coloco um pé para
baixo, depois o outro, tão rápido que cascas dos galhos caem. Assim que meu pé toca o chão,
eu corro.

 Conto as fileiras de árvores pelas quais eu passo. Sete, oito. Os galhos ficam mais
baixos e eu passo bem abaixo deles. Nove, dez. Seguro meu braço direito contra meu peito
quando corro mais rápido, a ferida da bala em meu ombro latejando a cada passo. Onze, doze.

 Quando alcanço a décima terceira fileira, lanço-me para a direita, para baixo de um
dos corredores. As árvores ficam mais perto umas das outras nessa fileira. Seus galhos crescem
um dentro do outro, criando um labirinto de folhas, galhos e maçãs.

 Meus pulmões ardem com a falta de oxigênio, mas não estou muito longe do fim do
pomar. Suor escorre por minhas sobrancelhas. Alcanço a sala de jantar e escancaro a porta,
abrindo caminho por entre um grupo de homens da Amizade, e ele está lá; Tobias senta no fim
da cafeteria com Peter, Caleb e Susan. Mal consigo vê-los entre os pontos em minha visão,
mas Tobias toca meu ombro.

 “Erudição” é tudo que consigo dizer.

 “Vindo para cá?” ele diz.

 Confirmo com a cabeça.

 “Temos tempo para correr?”

 Não tenho certeza sobre isso.

 Nesse momento, os membros da Abnegação do outro lado da mesa estão prestando
atenção. Eles se reúnem em torno de nós.

 “Por que precisamos correr?” diz Susan. “A Amizade decretou este lugar como uma
casa segura. Conflitos não são permitidos”.


 “A Amizade terá problemas para impor essa política”, diz Marcus. “Como você evita
um conflito, sem conflitos?”

 Susan concorda.

 “Mas não podemos sair”, Peter diz. “Não temos tempo. Eles nos verão”.

 “Tris tem uma arma”, Tobias diz. “Podemos tentar lutar para sair”.

 Ele começa a andar em direção ao quarto.

 “Espere”, eu digo. “Tenho uma ideia”. Eu olho para o grupo da Abnegação. “Disfarces.
A Erudição não tem certeza se ainda estamos aqui. Podemos fingir ser da Amizade”.

 “Aqueles que não estão vestidos como membros da Amizade devem ir aos
dormitórios, então”, diz Marcus. “O resto de vocês, soltem seus cabelos; tentem imitar o
comportamento deles”.

 Membros da Abnegação que estão vestidos em cinza deixam a sala de jantar em
bandos e atravessam o pátio em direção aos quartos. Uma vez lá dentro, eu corro para meu
quarto e alcanço a parte de baixo do colchão procurando a arma.

 Alguns segundos depois eu a encontro e, quando faço isso, minha garganta fecha e não
consigo engolir. Não quero tocar a arma. Não quero tocá-la de novo.

 Vamos lá, Tris. Enfio a arma no cós da minha calça vermelha. Felizmente, ela é bem
larga. Observo os frascos de pomada e remédio na mesa ao lado da cama e guardo-os em meu
bolso, para o caso de nós não conseguirmos escapar.

 Então eu procuro o disco rígido atrás da cômoda.

 Se a Erudição nos pegar – o que é provável – eles vão nos revistar, e eu não quero
entregar a simulação do ataque de novo. Mas esse disco também contém as imagens de
vigilância do ataque. A gravação de nossas perdas. Da morte de meus pais. A única parte deles
que me sobrou. E porque a Abnegação não tira fotos, a única documentação que eu tenho de
como eles eram.

 Daqui a alguns anos, quando minhas lembranças começarem a desaparecer, o que vou
ter para me lembrar de sua aparência? Seus rostos vão mudar em minha cabeça. Nunca vou
vê-los de novo.

 Não seja estúpida. Isso não é importante.

 Aperto o disco rígido tão forte que ele me machuca.

 Então porque sinto como se fosse tão importante?

 “Não seja estúpida”, eu digo em voz alta. Eu cerro os dentes e pego a lâmpada de
minha mesa de cabeceira. Arranco o plugue da tomada, jogo o abajur em cima da cama e me
agacho sobre o disco rígido. Com lágrimas caindo de meus olhos, eu bato com a base da
lâmpada nele, criando uma cavidade.

 Bato nele de novo, e de novo, e de novo, até que o disco rígido quebra e pedaços dele
se espalham pelo chão. Eu chuto os cacos para baixo da cômoda, coloco a lâmpada de volta e
ando pelo corredor, secando minhas lágrimas com a parte de trás das mãos.

 Alguns minutos depois, uma pequena multidão de homens e mulheres vestidos de
cinza – e Peter – estão parados no corredor, separando pilhas de roupas.

 “Tris”, diz Caleb. “Você ainda está usando cinza”.

 Olho para a camisa do meu pai e hesito.

 “É de nosso pai”, eu digo. Se eu a tirar, vou ter que deixá-la para trás. Mordo meu lábio
até que a dor me estabilize. Tenho que tirar ela. É só uma blusa. É tudo que isso é.

 “Vou colocar por baixo da minha”, Caleb diz. “Eles nunca vão vê-la”.


 Concordo com a cabeça e pego uma blusa vermelha da pilha cada vez menor de
roupas. É grande o bastante para esconder a protuberância da arma. Entro no quarto mais
próximo para me trocar, e dou a blusa cinza a Caleb. A porta está aberta, e através dela eu vejo
Tobias colocando as roubas da Abnegação no lixo.

 “Você acha que a Amizade vai mentir por nós?” Eu pergunto a ele, inclinando-me pela
porta aberta.

 “Para evitar um conflito?” Tobias concorda com a cabeça. “Absolutamente”.

 Ele veste uma blusa vermelha e um jeans desgastado nos joelhos. A combinação
parece ridícula nele.

 “Camisa legal”, eu digo.

 Ele enruga o nariz para mim. “Era a única que cobria a tatuagem do pescoço, ok?”

 Sorrio nervosamente. Esqueci-me de minhas tatuagens, mas a blusa as esconde bem o
bastante.

 Os carros da Erudição chegam ao complexo. São cinco deles, todos pratas com teto
preto. Seus motores parecem ronronar enquanto as rodas passam por um terreno
desnivelado. Entro no edifício, deixando a porta aberta atrás de mim, e Tobias se ocupa com a
trava na lata de lixo.

 Os carros param e as portas abrem, revelando ao menos cinco homens e mulheres
vestidos com o azul da Erudição.

 E mais ou menos quinze vestidos com o preto da Audácia.

 Quando os membros da Audácia chegam mais perto, vejo tiras de tecido azul
amarrados em seus braços, que só podem significar que são aliados da Erudição. A facção que
escravizou suas mentes.

 Tobias pega minha mão e me leva ao dormitório.

 “Não pensei que nossa facção seria tão idiota”, ele diz. “Você está com a arma, certo?”

 “Sim”, eu digo. “Mas não há garantia que possa atirar com precisão usando minha mão
esquerda”.

 “Você devia trabalhar nisso”, ele diz. Sempre um instrutor.

 “Eu vou”. Movo-me um pouco quando adiciono “Se nós sobrevivermos”.

 Suas mãos roçam meus braços nus. “Basta saltar um pouco enquanto você anda”, ele
diz, beijando minha testa, “e finja que está com medo das armas deles” – outro beijo no
espaço entre minhas sobrancelhas – “aja como uma violeta delicada” – um beijo em minha
bochecha – “e você vai ficar bem”.

 “Ok”, eu digo. Minhas mãos tremem quando eu agarro o colarinho de sua camisa. Eu
puxo sua boca de encontro à minha.

 Um sino toca uma, duas, três vezes. É um chamado para a sala de jantar, onde a
Amizade se reúne para ocasiões menos formais do que a que estamos indo. Entramos na
multidão de membros da Abnegação – todos nos passando por membros da Amizade.

 Eu tiro os prendedores do cabelo de Susan – o visual estava muito severo para a
Amizade. Ela me da um pequeno sorriso de agradecimento e seu cabelo cai sobre seus
ombros, a primeira vez que o vi daquela forma. Esse visual suaviza sua mandíbula quadrada.

 Devo ser mais corajosa que aqueles membros da Abnegação, mas eles não parecem
tão preocupados quanto eu. Oferecem sorrisos uns aos outros e andam em silêncio – silêncio
até de mais. Faço meu caminho entre eles e cutuco uma das mulheres mais velhas no ombro.

 “Diga para as crianças brincarem de ‘pega-pega’”


 “Pega-pega?” ela diz.

 “Elas estão agindo respeitosamente e... como caretas”, eu digo, chorando quando eu
digo a palavra que era meu apelido na Audácia. “E crianças da Amizade estariam causando
tumulto. Apenas faça-o, ok?”

 A mulher toca uma das crianças e sussurra algo ao garoto, e alguns segundos depois
um pequeno grupo de crianças correm pelo corredor, esquivando-se dos pés dos membros da
Amizade e gritando “Eu te peguei! Está com você!” “Não, você pegou a manga da blusa!”

 Caleb nos alcança, espetando Susan nas costelas e ela grita dando uma risada. Tento
relaxar, pulando a cada passo, como Tobias havia sugerido, deixando meus braços balançarem
enquanto vou seguindo o caminho. É incrível como fingir que está em outra facção muda tudo
– até mesmo o jeito de andar. Deve ser por isso que é tão estranho o meu teste de aptidão
indicar que eu poderia facilmente pertencer a três delas.

 Alcançamos os membros da Amizade à nossa frente quando atravessamos o pátio,
indo à sala de jantar, e nos dispersamos no meio deles. Mantenho Tobias em minha visão
periférica, evitando ficar muito longe dele. As pessoas da Amizade não fazem perguntas,
apenas deixam-nos dissolver em meio à facção deles.

 Um par de traidores da Audácia está parado próximo à porta da sala, suas armas em
mãos, e eu endureço. Cai a ficha, de repente, que estou sendo levada para um prédio cercado
de membros da Erudição e da Audácia, e se eles me descobrirem, não haverá local nenhum
para ir. Vão atirar em mim no próprio local.

 Penso em uma rota de fuga, mas onde eu poderia ir que eles não me encontrariam?
Tento respirar normalmente. Estou quase passando por eles – não olhe, não olhe. Alguns
passos à frente – olhos para longe, olhos para longe.

 Susan entrelaça seu braço com o meu.

 “Estou te contando uma piada”, ela diz. “que você acha muito engraçada”.

 Cubro minha boca com a mão e forço uma risada que soa estridente e forasteira, mas
julgando pelo sorriso que ela me dá, foi convincente. Seguramos uma na outra da forma como
as garotas da Amizade fazem, olhando para os membros da Audácia e rindo novamente. Estou
impressionada em como eu consigo fazer isto, com o sentimento de chumbo dentro de mim.

 “Obrigada”, eu murmuro, uma vez que estamos dentro.

 “De nada”, ela responde.

 Tobias senta na minha frente em uma das grandes mesas, e Susan senta ao meu lado.
O resto dos membros da Abnegação se espalharam pela sala, e Caleb e Peter estão há alguns
assentos de mim.

 Bato meus dedos em meus joelhos enquanto esperamos que algo aconteça. Por um
longo tempo nós apenas sentamos ali, e fingimos estar ouvindo uma garota da Amizade
contando uma história à minha esquerda. Mas várias vezes eu olho para Tobias, e ele olha de
volta para mim, como se estivéssemos passando o medo de um para o outro.

 Finalmente Johanna entra ao lado de uma mulher da Erudição. Sua blusa azul brilhante
parece brilhar mais ainda contra sua pele, que é marrom escura. Ela procura pela sala
enquanto fala com Johanna. Seguro minha respiração quando seus olhos encontram os meus –
e solto quando ela continua andando sem hesitar nem por um segundo. Ela não me
reconheceu.

 Pelo menos, ainda não.


 Alguém bate em uma mesa, e a sala fica em silêncio. É isso. Esse é o momento em que
ela nos entrega ou não.

 “Nossos amigos da Erudição e da Audácia estão procurando por algumas pessoas”,
Johanna diz. “Muitos membros da Abnegação, três membros da Audácia, e um iniciante da
Erudição”. Ela sorri. “Com interesse em total cooperação, eu contei a ela que as pessoas por
quem estão procurando estiveram, de fato, aqui, mas já deixaram o complexo. Eles querem a
permissão para buscas no local, o que significa que temos que votar. Alguém é contra a
busca?”

 A tensão em sua voz sugere que se alguém for contra, essa pessoa deve ficar de boca
calada. Eu não sei se eles entenderam isso, mas ninguém diz nada. Johanna concorda com a
cabeça olhando para a mulher da Erudição.

 “Três de vocês fiquem por perto”, a mulher diz para os guardas da Audácia parados na
entrada. “O restante, procurem em todos os edifícios e reportem-nos se acharem algo. Vão”.

 Tem tanta coisa que eles poderiam achar. Os pedaços do disco rígido. Roupas que
esqueci de jogar fora. A falta de bijuterias e decorações em nossos quartos. Sinto meu pulso
atrás de meus olhos quando os três soldados da Audácia que estavam atrás, olham para cima e
para baixo em cada mesa.

 Minha nuca formiga quando um deles anda atrás de mim, seus passos altos e pesados.
Não é pela primeira vez na vida, que estou feliz em ser pequena e simples. Eu não atraio os
olhares das pessoas para mim.

 Mas Tobias atrai. Ele demonstra seu orgulho em sua postura, no modo como seus
olhos se afirmam sobre tudo o que ele olha. Isso não é uma característica da Amizade. Só pode
ser da Audácia.

 A mulher da Audácia que anda em sua direção olha para ele de imediato. Seus olhos se
estreitam enquanto ela se aproxima, e depois para diretamente atrás dele.

 Queria que o colarinho de sua blusa fosse maior. Queria que ele não tivesse tantas
tatuagens. Queria que...

 “Seu cabelo é bem pequeno para alguém da Amizade”, ela diz.

 ...ele não cortou seu cabelo como os da Abnegação.

 “Está calor”, ele diz.

 A desculpa poderia ter funcionado se ele soubesse como dizê-la, mas ele diz como um
estalo.

 Ela levanta sua mão e abaixa o colarinho da blusa dele e vê sua tatuagem.

 E Tobias se move.

 Ele pega o pulso da mulher, puxando-a para frente para que ela perca o equilíbrio. Ela
bate a cabeça contra a borda da mesa e cai. Do outro lado da sala, uma arma dispara, alguém
grita, e todos se escondem em baixo das mesas ou agacha ao lado dos bancos.

 Todos exceto eu. Sento onde estava antes do tiro soar, segurando a borda da mesa. Sei
que é ali que estou, mas não vejo a cafeteria mais. Vejo o beco pelo qual escapei depois que
minha mãe morreu. Encaro a arma em minha mão, e a pele lisa entre as sobrancelhas de Will.

 Um pequeno murmúrio surge em minha garganta. Teria sido um grito se meus dentes
não estivessem bem fechados. O flash de memória acaba, mas ainda não consigo me mover.

 Tobias segura a mulher da Audácia pela nuca e coloca-a de pé. Ele está com sua arma
em mãos. Usa a mulher como escudo enquanto atira sobre seu ombro no soldado da Audácia
do outro lado da sala.


 “Tris!” ele grita. “Uma ajudinha aqui?”

 Levanto minha blusa até alcançar o cabo da arma, e meus dedos encontram o metal.
Está tão frio que fere meus dedos, mas não pode ser verdade; está tão quente aqui. Um
homem da Audácia no fim do corredor mira seu revólver em mim. A mancha negra na
extremidade do cano cresce ao meu redor, e só consigo ouvir meu coração.

 Caleb vem em minha direção e pega minha arma. Ele segura-a com as duas mãos e
atira nos joelhos do homem da Audácia que estava alguns metros de distância dele.

 O homem grita e cai com as mãos cobrindo as pernas, o que dá a Tobias a
oportunidade de atirar nele na cabeça. Sua dor é momentânea.

 Meu corpo inteiro está tremendo e eu não consigo fazer isso parar. Tobias ainda
segura a mulher pela garganta, mas dessa vez, ele mira a arma na mulher da Erudição.

 “Diga mais uma palavra”, Tobias diz, “e eu atiro”.

 A mulher abre a boca, mas não fala.

 “Quem estiver conosco deve começar a correr”, Tobias diz com sua voz preenchendo a
sala.

 Todos de uma vez, os membros da Abnegação saem de seus lugares abaixo de mesas e
bancos e vão em direção à porta. Caleb me puxa do banco e me leva à porta também.

 Então eu vejo algo. Um lampejo de movimento. A mulher da Erudição levanta uma
pequena arma, aponta para um homem de amarelo à minha frente. O instinto, sem pensar,
me empurra para um mergulho. Minhas mãos colidem com o homem e a bala acerta a parede,
em vez de nós.

 “Abaixe a arma”, diz Tobias, apontando seu revólver na direção da mulher. “Tenho
uma mira muito boa, e aposto que você não”.

 Pisco algumas vezes para tirar o borrão de meus olhos. Peter me encara de volta.
Acabei de salvar sua vida. Ele não me agradece, e eu finjo não o reconheçer.

 A mulher solta a arma. Juntos, Peter e eu andamos em direção à porta. Tobias nos
segue, andando de costas para manter a mira na mulher até o último segundo, e bate a porta.

 E todos nós corremos.

 Aceleramos em direção ao corredor central do pomar em um bando sem fôlego. O ar
da noite está pesado como um cobertor e cheira a chuva. Gritos nos seguem. Portas de carros
batem. Corro o mais rápido que consigo como se estivesse respirando adrenalina em vez de ar.
O ronronar dos motores me persegue nas árvores. A mão de Tobias fecha ao redor da minha.

 Corremos através de um campo de milho em uma longa fila. A essa hora, os carros já
nos alcançaram. Os faróis rastejam pelos altos talos, iluminando uma folha aqui, uma espiga
de milho ali.

 “Dividam-se” alguém grita, soa como a voz de Marcus.

 Espalhamos-nos pelo campo como água corrente. Seguro o braço de Caleb. Escuto
Susan ofegante atrás dele.

 Batemos de frente com talos de milho. As folhas pesadas cortam minhas bochechas e
braços. Eu vejo lâminas entre os ombros de Tobias enquanto corremos. Escuto um baque
pesado e um grito. Há gritos para todos os lados, para a esquerda, direita. Tiros. Os membros
da Abnegação estão morrendo de novo, morrendo como estavam quando eu fingia estar sob
efeito da simulação. E tudo o que estou fazendo é correr.

 Finalmente alcançamos a cerca. Tobias anda ao longo dela, até que acha um buraco.
Ele segura o metal para que Caleb, Susan e eu possamos passar por ele. Antes de continuar


correndo, eu paro e olho para o campo que acabamos de deixar. Vejo faróis distantes
brilhando. Mas não escuto nada.

 “Onde estão os outros?” Susan sussurra.

 Eu digo “Mortos”.

 Susan soluça. Tobias me puxa mais ou menos para seu lado e começa a andar. Meu
rosto queima com os cortes rasos das folhas do milho, mas meus olhos estão secos. As mortes
da Abnegação são apenas mais um peso que sou incapaz de lidar.

 Ficamos longe da estrada de terra que a Erudição e a Audácia usaram para chegar ao
complexo da Amizade, seguindo os trilhos do trem em direção à cidade. Não há lugar para
esconder, sem árvores ou prédios que possam nos proteger, mas isso não importa. Os
membros da Erudição não podem passar pela cerca, de qualquer forma, e vai demorar um
tempo para alcançarem o portão.

 “Eu tenho que... parar...” Susan diz, vindo de algum lugar na escuridão atrás de mim.

 Nós paramos. Susan cai no chão, chorando, e Caleb agacha perto dela. Tobias e eu
olhamos para a cidade, que ainda está iluminada, porque não é meia noite. Quero sentir algo.
Medo, raiva, dor. Mas não sinto. Tudo o que sinto é a necessidade de continuar andando.

 Tobias se vira para mim.

 “O que foi aquilo, Tris?”, ele diz.

 “O que?” eu digo, e estou envergonhada pela forma fraca que minha voz soa. Não sei
se ele está falando de Peter ou o que aconteceu antes, ou qualquer outra coisa.

 “Você congelou! Alguém estava quase matando você e você apenas ficou sentada lá!”
Ele está gritando agora. “Pensei que pudesse contar com você pelo menos para salvar sua
própria vida!”

 “Ei!”, diz Caleb. “Dê um tempo a ela, está bem?”

 “Não”, diz Tobias, me encarando. “Ela não precisa de um tempo”. Sua voz suaviza. “O
que aconteceu?”

 Ele ainda acredita que sou forte. Tão forte que não preciso de sua simpatia. Achava
que ele estava certo, mas agora não tenho certeza. Eu limpo minha garganta.

 “Eu entrei em pânico”, eu digo. “Não vai acontecer de novo”.

 Ele levanta uma sobrancelha.

 “Não vai”, eu digo de novo, mais alto desta vez.

 “Ok”. Ele olha ainda sem acreditar. “Temos que achar um lugar a salvo. Eles vão se
reunir de novo e começar a nos procurar”.

 “Você acha que eles ligam tanto para nós?” eu digo.

 “Nós, sim”, ele diz. “Somos provavelmente os únicos que eles realmente estavam
procurando, exceto Marcus, que provavelmente está morto”.

 Não sei como eu esperava que ele dissesse isso – com alívio, talvez, porque Marcus,
seu pai e a ameaça de sua vida, está finalmente morto. Ou com dor e tristeza, por que seu pai
deve ter morrido, e algumas vezes a dor não faz muito sentido. Mas ele diz como se fosse
apenas um fato, como se dissesse a direção que estamos seguindo, ou a hora do dia.

 “Tobias...” eu começo a falar, mas então eu percebo que não sei o que vem depois.

 “Hora de ir” Tobias fala sobre seu ombro.

 Caleb levanta Susan. Ela anda com a ajuda do braço dele em suas costas,
pressionando-a a continuar andando.


 Não percebi até aquele momento que a iniciação da Audácia havia me ensinado uma
lição importante: como seguir em frente.






















































 Capítulo 8

 Decidimos seguir os trilhos do trem até a cidade, porque nenhum de nós tem um bom
senso de direção. Vou andando tábua por tábua, Tobias se equilibrando nos trilhos, quase
caindo algumas vezes, e Caleb e Susan embaralhados atrás de nós. Estremeço a cada barulho
diferente, fico tensa até perceber que é só o vento, ou o barulho dos sapatos de Tobias no
trilho. Queria que pudéssemos continuar correndo, mas já é um grande feito que minhas
pernas estejam movendo a esse ponto.

 Ouvimos um gemido baixo vindo dos trilhos.

 Me curvo para baixo e coloco as mãos no trilho, fechando meus olhos para focar na
sensação do metal em minhas mãos. A vibração é como um suspiro passando por meu corpo.
Olho para os trilhos, por entre os joelhos de Susan, e não vejo nenhuma luz de trem, mas isso
não significa nada. Ele pode estar andando sem faróis ou buzinas para não anunciar sua
chegada.

 Vejo o brilho de um pequeno comboio do trem, muito longe daqui, mas se
aproximando rapidamente.

 “Ele está vindo”, eu digo. É um esforço para me colocar de pé quando tudo o que
quero é sentar, mas eu me levanto e limpo as mãos em meu jeans. “Acho que deveríamos
entrar nele”.

 “Mesmo se for da Erudição?” diz Caleb.

 “Se a Erudição estivesse controlando o trem, eles o teriam levado para a sede da
Amizade para nos procurar”, Tobias diz. “Acho que vale o risco. Podemos nos esconder na
cidade. Aqui estamos apenas esperando que nos peguem”.

 Saímos dos trilhos. Caleb ensina um ‘passo-a-passo’ a Susan de como entrar em um
trem em movimento, do modo como apenas um iniciante da Erudição poderia ensinar. Assisto
o primeiro vagão se aproximando; escuto o som rítmico dele sobre os trilhos, o sussurro do
metal das rodas contra o metal do trilho.

 Quando o primeiro vagão passa por mim, começo a correr. Ignoro a queimação em
minhas pernas. Caleb ajuda Susan a entrar no vagão do meio primeiro e depois pula para
dentro. Respiro rapidamente e jogo meu corpo para a direta, batendo no chão do vagão com
minhas pernas balançando para fora. Caleb segura meu braço esquerdo e me puxa para
dentro. Tobias usa uma alça para entrar depois de mim.

 Olho para cima e paro de respirar.

 Olhos brilhando na escuridão. Formas escuras sentadas no vagão, mais numerosas que
nós.

 O s sem facção.



 O vento assovia. Todos estão de pé e armados – exceto Susan e eu, que não temos
armas. Um homem sem facção com tapa-olho aponta sua arma para Tobias. Pergunto-me
como ele a conseguiu.

 Ao seu lado, uma mulher mais velha segura uma faca – do tipo que eu usava para
cortar pães. Atrás dele, mais alguém segura uma grande tábua de madeira, com um prego
saindo dela.

 “Nunca havia visto membros da Amizade armados”, a mulher com a faca diz.


 O homem com a arma parece familiar. Ele usa roupas esfarrapadas de diferentes cores
– uma camiseta preta com um casaco rasgado da Abnegação por cima, jeans azuis
remendados com pano vermelho, botas marrons. As roupas de todas as facções são
representadas à minha frente: calças pretas da Franqueza combinadas com blusas pretas da
Audácia, vestidos amarelos com camisolas azuis sobre eles. A maioria dos itens estão
esfarrapados ou rasgados de alguma maneira, mas alguns não. Roubados recentemente, ou
imagino.

 “Eles não são da Amizade”, o homem com a arma diz. “São da Audácia”.

 Então eu o reconheço: ele é Edward, um colega iniciante que deixou a Audácia depois
que Peter o atacou com a faca de manteiga. É por isso que ele usa um tapa-olho.

 Lembro-me de segurar sua cabeça enquanto ele deitava gritando no chão, e de limpar
o sangue que ele deixou no piso.

 “Olá Edward”, eu digo.

 Ele inclina sua cabeça para mim, mas não abaixa a arma. “Tris”.

 “Quem quer que seja” a mulher diz, “você vai ter que sair desse trem se quiser
continuar viva”.

 “Por favor” diz Susan com os lábios tremendo. Seus olhos cheios de lágrimas.
“Estivemos correndo... e o resto deles está morto e eu não...” Ela começa a soluçar de novo.
“Não acho que consigo continuar, eu...”

 Tenho a vontade estranha de bater a cabeça contra a parede. O soluço de outras
pessoas me deixa desconfortável. É egoísta da minha parte, talvez.

 “Estamos fugindo da Erudição”, diz Caleb. “Se sairmos, vai ser fácil para eles nos
acharem. Então nós agradeceríamos se nos deixassem ficar até a cidade com vocês”.

 “Aé?” Edward inclina a cabeça. “O que vocês já fizeram para nós?”

 “Eu te ajudei quando ninguém mais o ajudou” eu digo. “Lembra?”

 “Você, talvez. Mas os outros?” diz Edward. “Nem tanto”.

 Tobias da um passo a frente, mas a arma de Edward já está quase em sua garganta.

 “Meu nome é Tobias Eaton”, Tobias diz. “Não acho que queira me jogar para fora
deste trem”.

 O efeito de seu nome nas pessoas do vagão é imediato e desconcertante: eles abaixam
suas armas. Trocam olhares significativos.

 “Eaton? Sério?” Edward diz, com as sobrancelhas levantadas. “Tenho que admitir, eu
não esperava por essa”. Ele limpa a garganta. “Tudo bem, vocês podem vir. Mas quando
chegarmos à cidade terão que vir conosco”.

 Então ele sorri um pouco. “Sabemos de alguém que esteve procurando por você,
Tobias Eaton”.



 Tobias e eu sentamos na beira do vagão com nossas pernas balançando para fora.

 “Você sabe quem é”.

 Tobias concorda com a cabeça.

 “Quem, então?”

 “É difícil explicar”, ele diz. “Tenho muita coisa para te contar”.

 Inclino-me contra ele

 “Sim. Eu também”.




 Não sei quanto tempo passa antes que digam para sairmos. Mas quando eles chamam,
estamos na parte da cidade que os sem facção vivem, quase dois quilômetros de distância de
onde eu cresci. Reconheço cada edifício que passamos, como um em que eu sempre passava
quando perdia o ônibus para a escola. O que tem tijolos quebrados, com um poste caído
encostado nele.

 Estamos na porta do vagão, todos os quatro em uma linha. Susan choraminga.

 “E se nos machucarmos?” ela diz.

 Seguro sua mão. “Vamos pular juntas. Você e eu. Já fiz isso várias vezes e nunca me
machuquei”.

 Ela concorda e aperta meus dedos tão forte que machuca.

 “No três. Um” eu digo. “Dois. Três”.

 Eu pulo, e puxo-a comigo. Meus pés batem no chão e continuam para frente, mas
Susan cai na calçada e rola para o lado. Exceto por um joelho ralado, ela parece estar bem. Os
outros pulam sem dificuldade – mesmo Caleb, que só pulou de um trem uma vez antes, pelo
que sei.

 Não tenho certeza de quem poderia conhecer Tobias além dos sem facção. Poderia ser
Drew ou Molly, que falharam na iniciação da Audácia – mas eles nem sabiam o nome real de
Tobias, e, além disso, Edward provavelmente teria matado eles, julgando pelo quão pronto ele
estava para atirar em nós. Deve ser alguém da Abnegação, ou da escola.

 Susan parece ter se acalmado. Ela anda sem ajuda agora, perto de Caleb, e suas
bochechas estão secas sem nenhuma lágrima para molhá-las agora.

 Tobias anda ao meu lado, tocando meu ombro levemente.

 “Tem muito tempo que eu não checo esse ombro”, ele diz. “Como está?”

 “Ok. Eu trouxe o remédio para dor”, eu digo. Estou contente de poder falar sobre algo
leve – leve como uma ferida pode ser. “Não acho que vou conseguir deixá-lo sarar muito bem.
Continuo usando meu braço, ou me apoiando nele”.

 “Vai haver bastante tempo para ele sarar, depois que tudo isso terminar”.

 “Sim”. Ou não vai importar se sarar, eu adiciono silenciosamente, porque eu vou estar
morta.

 “Aqui”, ele diz, tirando uma pequena faca de seu bolso traseiro e oferecendo-a para
mim. “Para o caso de você precisar”.

 Coloco-a em meu bolso. Sinto-me mais nervosa ainda agora.

 Os sem facção nos guiam pela rua e à esquerda em um beco escuro que fede a lixo.
Ratos dispersam em nossa frente com gritos de terror, e eu só vejo suas caudas, deslizando
por entre caixas de papelão encharcadas e latas de lixo vazias. Respiro pela boca para não
vomitar.

 Edward para perto de um dos edifícios de tijolos em ruína e força uma porta de aço a
abrir. Estremeço meio que esperando o edifício inteiro cair se ele empurrar muito forte. As
janelas estão tão grossas com poeira que quase nenhuma luz penetra nelas. Seguimos Edward
em uma sala úmida. No brilho pequeno de uma lanterna, eu vejo... Pessoas.

 Pessoas sentadas perto de rolos de cama. Pessoas bisbilhotando latas abertas de
comida. Pessoas bebericando garrafas de água. E crianças, entrelaçadas no meio dos adultos,
não confinadas a apenas uma cor de roupa – crianças sem facção.

 Estamos no armazém dos sem facção, e eles, que deveriam estar dispersos, isolados,
sem comunidade... Estão juntos ali dentro. Estão juntos, como uma facção.


 Não sei o que esperava deles, mas estou surpresa com o quão normal eles parecem.
Não brigam um com o outro e não se evitam. Alguns contam piadas, outros conversam
calmamente. Gradualmente, todos percebem que não deveríamos estar ali.

 “Venham”, Edward diz, dobrando o dedo para nos levar com ele. “Ela está aqui atrás”.

 Recebemos olhares e silêncio, enquanto seguimos Edward mais fundo no edifício que
deveria estar abandonado. Finalmente, não consigo mais reter minhas perguntas.

 “O que está acontecendo aqui? Porque todos estão juntos assim?”

 “Você pensou que eles – nós – nós fossemos divididos” Edward diz sobre seu ombro.
“Bem, eles eram, por um tempo. Muito famintos para fazer qualquer coisa que não fosse
procurar por comida. Mas os caretas começaram a dar-lhes comida, roupas, ferramentas,
tudo. E eles ficaram fortes, e esperaram. Estavam dessa forma quando os encontrei, e eles me
receberam bem”.

 Andamos em um corredor escuro. Sinto-me como em casa, na escuridão e no silêncio
dos túneis da sede da Audácia. Tobias, entretanto, enrola um fio solto de sua camisa em seu
dedo várias vezes. Ele sabe quem vamos encontrar, mas eu ainda não tenho ideia. Como eu sei
tão pouco sobre o garoto que diz que me ama – o garoto que tem o nome tão poderoso que
nos mantém vivos num vagão cheio de inimigos?

 Edward para na frente de uma porta de metal e bate nela com seu punho.

 “Espere, você disse que eles estavam esperando?”, diz Caleb. “O que eles estão
esperando, exatamente?”

 “Que o mundo desmoronasse”, Edward diz. “E agora isso aconteceu”.

 A porta abre, e uma mulher com o aspecto severo e um olho deficiente aparece. Seu
olho normal nos revista.

 “Perdidos?” ela diz.

 “Não muito, Therese”. Edward passa o polegar sobre seu ombro, na direção de Tobias.
“Esse aí é Tobias Eaton”.

 Therese encara Tobias por alguns segundos, depois concorda. “Certamente ele é.
Espere aqui”.

 “Você sabe quem ela vai chamar, não sabe” diz Caleb a Tobias.

 “Caleb” Tobias diz. “Por favor, cale a boca”.

 Para minha surpresa, meu irmão contém sua curiosidade erudita.

 A porta abre de novo, e Theresa nos deixa entrar. Andamos por uma antiga sala de
caldeira com máquinas que emergem da escuridão, então do nada eu bato nelas com joelhos e
calcanhares. Therese nos guia pelo labirinto de metal até a parte de trás da sala, onde várias
há várias lâmpadas dependuradas no teto sobre uma mesa.

 Uma mulher de meia-idade está atrás da mesa. Ela tem um cabelo preto encaracolado
e a pele morena. Suas características são duras, tão ossudas que quase a deixam atrativa, mas
não muito.

 Tobias agarra minha mão. Naquele momento eu percebo que ele a mulher têm o
mesmo nariz – curvos, um pouco grandes de mais no rosto dela, mas do tamanho certo no
dele. Eles também têm a mesma mandíbula forte, queixo distinto, lábio superior livre. Apenas
os olhos dela são diferentes – em vez de azuis, são tão escuros que parecem pretos.

 “Evelyn”, ele diz, sua voz tremendo um pouco.

 Evelyn era o nome da esposa de Marcus e mãe de Tobias. Meu aperto na mão de
Tobias se solta. Apenas alguns dias atrás eu estava relembrando o funeral dela. Seu funeral. E


agora ela está na minha frente, seus olhos mais frios que os olhos de qualquer mulher da
Abnegação que eu já tenha visto.

 “Olá”. Ela anda ao redor da mesa, observando ele. “Você parece mais velho”.

 “Sim. O passar do tempo tende a fazer isso com as pessoas”.

 Ele já sabia que ela estava viva. Há quanto tempo ele descobriu?

 Ela sorri. “Então você finalmente veio-“

 “Não pela razão que você pensa”, ele a interrompe. “Estamos fugindo da Erudição, e a
nossa única chance de escapar me obrigou a dizer aos seus lacaios pobremente armados o
meu nome”.

 Ela deve tê-lo deixado nervoso de alguma maneira. Mas não consigo parar de pensar
que se eu descobrisse que minha mãe estava viva depois de pensar que ela havia morrido por
tanto tempo, eu nunca falaria com ela do modo como Tobias fala agora, não importa o que ela
tenha feito.

 A verdade desse pensamento me faz sentir dor. Empurro-a para fora e me foco no que
está a minha frente. Na mesa atrás de Evelyn há um grande mapa com marcadores por todo
ele. Um mapa da cidade, obviamente, mas não tenho certeza do que os marcadores
significam. Na parece atrás dela há um quadro com um gráfico sobre ele. Não consigo decifrar
a informação no gráfico; está escrito em taquigrafia, que eu não sei ler.

 “Eu vejo”. O sorriso de Evelyn continua, mas sem seu toque antigo de diversão.
“Introduza-me a seus colegas refugiados, então”.

 Seus olhos miram nossas mãos entrelaçadas. Os dedos de Tobias saltam para fora. Ele
gesticula para mim primeiro. “Essa é Tris Prior, seu irmão Caleb e a amiga deles Susan Black”.

 “Prior”, ela diz. “Conheço vários Priors, mas nenhum deles tem o nome de Tris.
Beatrice, entretanto...”

 “Bem”, eu digo. “Eu conheço vários Eatons vivos, mas nenhum deles se chama Evelyn”.

 “Evelyn Johnson é o nome que eu prefiro. Principalmente misturada com um bando de
membros da Abnegação”.

 “Tris é o nome que eu prefiro”, eu respondo. “E nós não somos da Abnegação. Não
todos nós”.

 Evelyn olha para Tobias. “Você fez amigos interessantes”.

 “Isso são contagens da população?” diz Caleb atrás de mim. Ele anda para frente, sua
boca aberta. “E... o que? Casas seguras para sem facções?” Ele aponta para a primeira linha no
gráfico, que mostra 7...Cs Sgr. “Quer dizer, esses lugares, no mapa? São casas seguras, como
essa aqui, certo?”

 “São muitas perguntas”, diz Evelyn levantado uma sobrancelha. Reconheço a
expressão. Ela pertence a Tobias – assim como seu desgosto por perguntas. “Por questões de
segurança, não vou responder nenhuma delas. De qualquer maneira, é hora do jantar”.

 Ela gesticula para a porta. Susan e Caleb vão em direção a ela, seguidos por mim, e
Tobias e sua mãe estão por último. Passamos pelo labirinto de máquinas de novo.

 “Não sou estúpida”, ela diz em uma voz baixa. “Seu que você não quer nada comigo –
mesmo eu ainda não entendendo porque –“

 Tobias bufa.

 “Mas”, ela diz. “Vou estender meu convite de novo. Podíamos usar sua ajuda aqui, e
eu sei que você tem a mesma opinião que eu sobre o sistema de facções-“.

 “Evelyn”, Tobias diz. “Eu escolhi a Audácia”.


 “Escolhas podem ser feitas de novo”.

 “O que a faz pensar que estou interessado em passar meu tempo em qualquer lugar
perto de você?” ele pergunta. Escuto seus passos pararem, e diminuo meu passo para que
possa escutar como ela responde.

 “Porque sou sua mãe”, ela diz, e sua voz quase quebra com as palavras,
estranhamente vulnerável. “Porque você é meu filho”.

 “Você realmente não entende”, ele diz. “Você não tem a mais vaga noção do que fez
comigo”. Ele soa parecendo estar com falta de ar. “Não quero entrar em seu pequeno bando
de sem facções. Quero sair daqui o mais rápido possível”.

 “Meu pequeno bando de sem facções é duas vezes o tamanho da Audácia”, diz Evelyn.
“Você faria bem em levar isso a sério. Suas ações podem determinar o futuro dessa cidade”.

 Dito isso, ela passa a frente dele, e a minha frente. Suas palavras ecoam em minha
mente: Duas vezes o tamanho da Audácia. Quando eles ficaram tão grandes?

 Tobias olha para mim, sobrancelhas abaixadas.

 “Há quanto tempo você sabe?” eu digo.

 “Cerca de um ano”. Ele cai sobre a parede e fecha os olhos. “Ela me enviou uma
mensagem codificada para mim na Audácia, dizendo para encontrá-la no jardim do trem. Eu
fui, porque estava curioso, e lá estava ela. Viva. Não foi uma reunião feliz, como você deve
imaginar”.

 “Porque ela deixou a Abnegação?”

 “Ela tinha um amante”. Ele balança a cabeça. “Não é de admirar, já que meu pai...” Ele
balança a cabeça de novo. “Bem, vamos dizer que ele não era mais legal com ela do que
comigo”.

 “É... por isso que está com raiva dela? Porque ela foi infiel a ele?”

 “Não”, ele diz muito severamente, seus olhos abrindo. “Não, não é por isso que estou
com raiva”.

 Ando em sua direção como se estivesse aproximando de um animal selvagem, cada
passo cuidadosamente no chão de cimento. “Então por quê?”

 “Ela teve que deixar meu pai, eu entendo isso”, ele diz. “Mas ela pensou em me levar
com ela?”

 Eu fecho meus lábios. “Ela deixou você com ele”.

 Ela o deixou sozinho com seu pior pesadelo. Dá para imaginar por que ele a odeia.

 “Sim”. Ele chuta o chão. “Ela deixou”.

 Meus dedos acham os dele, tateando, e ele segura minha mão. Sei que já são
perguntas o bastante, por agora, então deixo o silêncio permanecer entre nós, até que ele
decide quebrá-lo.

 “Acho”, ele diz. “que os sem facção são melhores como amigos do que inimigos”.

“Talvez. Mas qual seria o custo dessa amizade?” eu digo.

 Ele balança a cabeça. “Não sei. Mas talvez não tenhamos outra opção”.










 Capítulo 9

 Um sem facção fez uma fogueira para esquentarmos nossa comida. Aqueles que
querem comer sentam em um círculo ao redor de uma grande bacia de metal que contém o
fogo, primeiro aquecendo as latas, depois distribuindo garfos e colheres, e depois passando as
latas para que todos tenham um pouco de cada comida. Tento não pensar em quantas
doenças poderiam se espalhar dessa forma enquanto encho minha colher de sopa.

 Edward senta ao meu lado e pega a lata de sopa de minhas mãos.

 “Então vocês são todos da Abnegação?” Ele leva a colher com macarrão e um pedaço
de cenoura em sua boca, e passa a lata para a mulher à sua esquerda.

 “Nós éramos”, eu digo. “Mas obviamente Tobias e eu nos transferimos, e...” De
repente me ocorre que não deveria contar a ninguém que Caleb foi para a Erudição. “Caleb e
Susan ainda são da Abnegação”.

 “E ele é seu irmão. Caleb”, ele diz. “Você abandonou sua família para se transferir para
a Audácia?”

 “Você soa como alguém da Franqueza”, digo irritada. “Se importa de ficar com seus
julgamentos para você mesmo?”

 Therese se inclina em nossa direção. “Ele era da Erudição, na verdade. Não
Franqueza”.

 “Sim, eu sei”, eu digo. “Eu-“

 Ela me interrompe. “Eu também era. Tive que deixá-los”.

 “O que aconteceu?”

 “Eu não era inteligente o bastante”. Ela se encolhe e toma a lata de feijão de Edward,
colocando sua colher nela. “Não consegui uma nota alta o suficiente em meu teste de
inteligência da iniciação. Então eles disseram, ‘Passe sua vida inteira limpando os laboratórios,
ou saia’ E eu saí”.

 Ela olha para baixo e lambe sua colher até deixá-la limpa. Pego a lata de feijões dela e
passo para Tobias, que está encarando o fogo.

 “Muitos de vocês são da Erudição?” eu digo.

 Therese balança a cabeça. “A maioria é da Audácia, na verdade”. Ela empurra a cabeça
na direção de Edward, que faz uma carranca. “Depois Erudição, Franqueza e um punhado da
Amizade. Ninguém falha no teste de iniciação da Abnegação, então temos pouquíssimos deles,
exceto por um bando que sobreviveu à simulação do ataque e veio até nós procurando por
refúgio”.

 “Imagino que eu não deveria estar surpresa com a Audácia”, eu digo.

 “Bem, é. Vocês têm uma das piores iniciações, e tem aquela coisa da velhice”.

 “Coisa da velhice?” eu digo. Olho para Tobias. Ele está escutando agora, e parece
quase normal de novo, seus olhos cheios de pensamentos e escuros na luz do fogo.

 “Uma vez que o membro da Audácia atinge certo nível de deterioração física,” ele diz,
“ele é convidado a sair. De um jeito ou de outro”.

 “Qual o outro jeito?” Meu coração bate, como se já soubesse a resposta.

 “Vamos dizer”, diz Tobias, “que para alguns, a morte é melhor do que virar um sem
facção”.

 “Essas pessoas são idiotas”, diz Edward. “Eu prefiro ser sem facção a ser um membro
da Audácia”.


 “Que sorte que você acabou no lugar que queria, então”, diz Tobias friamente.

 “Sorte?” Edward bufa. “É. Sou tão sortudo, com meu único olho e tal”.

 “Lembro-me de ouvir rumores de que você provocou aquele ataque”, diz Tobias.

 “Do que estão falando?” eu digo. “Ele estava ganhando, isso é tudo, e Peter estava
com inveja, então ele...”

 Vejo o sorriso no rosto de Edward e paro de falar. Talvez eu não saiba tudo o que
aconteceu durante a iniciação.

 “Houve um acidente incitante”, diz Edward. “No qual Peter não saiu vitorioso. Mas
certamente isso não justifica uma faca de manteiga no olho”.

 “Sem discussões aqui”, diz Tobias. “Se isso te faz sentir melhor, ele tomou um tiro no
braço a um metro de distância durante a simulação do ataque”.

 E isso parece mesmo deixar Edward melhor, porque seu sorriso esculpe uma profunda
linha em seu rosto.

 “Quem fez isso?”, ele diz. “Você?”

 Tobias balança a cabeça. “Foi a Tris”.

 “Muito bem”, Edward diz.

 Eu concordo, mas me sinto meio estranha por receber parabéns por isso.

 Bem, não tão estranha. Era o Peter, afinal.

 Encaro as chamas envoltas nos pedaços de madeira que as mantém vivas. Elas se
movem e giram, como meus pensamentos. Percebo pela primeira vez que nunca havia visto
um idoso na Audácia. E que meu pai seria muito velho para escalar o atalho no Fosso. Agora eu
entendo mais sobre isso do que gostaria.

 “Você sabe mais alguma coisa?” Tobias pergunta a Edward. “Todos da Audácia se
uniram à Erudição? A Franqueza fez algo?”

 “A Audácia está dividida”, Edward diz com a boca cheia de comida. “Metade na sede
da Erudição e metade na sede da Franqueza. Os que restaram da Abnegação estão conosco.
Nada de mais aconteceu até agora. Exceto pelo que deve ter acontecido com vocês”.

 Tobias concorda com a cabeça. Sinto-me um pouco aliviada de saber que metade da
Audácia, ao menos, não tem traidores.

 Vou comendo colherada após colherada, até que meu estômago fica cheio. Então
Tobias nos consegue alguns cobertores e um palete, e eu encontro um local vazio para
dormirmos. Quando ele agacha para desamarrar os sapatos, vejo o símbolo da Amizade em
suas costas, os galhos da árvore ondulando sobre sua espinha. Quando se endireita, atravesso
os cobertores colocando meus braços ao redor dele, roçando a tatuagem com os dedos.

 Tobias fecha os olhos. Espero que o fogo diminua para disfarçar-nos enquanto passo
minha mão por suas costas, tocando cada tatuagem sem vê-las. Imagino o olhar da Erudição, a
balança desequilibrada da Franqueza, as mãos cruzadas da Abnegação e as chamas da
Audácia. Com minha outra mão, encontro as chamas de fogo tatuadas sobre sua caixa torácica.
Sinto sua respiração pesada contra minha bochecha.

 “Queria que estivéssemos sozinhos”, ele diz.

 “Quase sempre quero isso”, eu digo.



 Eu caio no sono, carregada pelo som das conversas distantes. Nesses dias é mais fácil
para eu dormir quando há barulho ao meu redor. Consigo focar no som em vez de quaisquer


pensamentos rastejando em minha mente silenciosa. Barulho e atividade são refúgios dos
desolados e dos culpados.

 Acordo quando o fogo é apenas um brilho, e apenas alguns dos sem facção ainda estão
acordados. Demora alguns segundos até que eu descubra porque acordei: Ouvi as vozes de
Evelyn e Tobias, alguns metros de distância de mim. Mantenho-me parada e torço para que
não descubram que estou acordada.

 “Você vai ter que me contar o que está acontecendo aqui se espera que eu considere
te ajudar”, ele diz. “Embora eu ainda não saiba ao certo porque você precisa de mim”.

 Vejo a sombra de Evelyn na parede, piscando com o fogo. Ela é magra e forte, assim
como Tobias. Seus dedos torcem seu cabelo enquanto fala.

 “O que gostaria de saber, exatamente?”

 “Conte-me sobre o gráfico. E o mapa”.

 “Seu amigo estava certo em pensar que o mapa e o gráfico listam todas as nossas
casas seguras”, ela diz. “Ele estava errado sobre a contagem da população... mais ou menos.
Os números não documentam todos os sem facção – apenas alguns deles. E aposto que sabe
quem são esses”.

 “Não estou com humor para adivinhar”.

 Ela suspira. “Os Divergentes. Estamos documentando os Divergentes”.

 “Como sabem quem são eles?”

 “Antes da simulação do ataque, parte do esforço de ajuda da Abnegação envolveu
testes nos sem facção procurando certa anomalia”, ela diz. “Algumas vezes esses testes
envolveram readministrar o teste de aptidão. Algumas vezes era mais complicado do que isso.
Mas eles nos explicaram que suspeitavam que tivéssemos um maior número de Divergentes
do que qualquer grupo na cidade”.

 “Eu não entendo. Por que-“

 “Porque os sem facção teriam um grande número de Divergentes?” Soa como se ela
estivesse sorrindo. “Obviamente aqueles que não conseguem se confinar a uma forma
particular de pensamento, seriam mais propensos a deixar uma facção ou falhar em sua
iniciação, certo?”

 “Não era isso que eu ia perguntar”, ele diz. “Quero saber por que você liga para o
número de Divergentes”.

 “A Erudição procura por mão de obra. Eles a acharam temporariamente na Audácia.
Agora eles vão procurar mais, e somos o lugar óbvio, a menos que eles percebam que temos
mais Divergentes do que qualquer outro grupo. No caso de não perceberem, quero saber
quantas pessoas temos que são resistentes a simulações”.

 “Muito bem”, ele diz. “mas porque a Abnegação estava tão preocupada em encontrar
Divergentes? Não era para ajudar Jeanine, era?”

 “É claro que não”, ela diz. “Mas eu não sei o porquê. A Abnegação era relutante em
fornecer informações que só serviam para sanar a curiosidade. Nos contaram tudo o que eles
julgavam que deveríamos saber”.

 “Estranho”, ele murmura.

 “Talvez devesse perguntar seu pai sobre isso”, ela diz. “Foi ele que me contou sobre
você”.

 “Sobre mim”, Tobias diz. “O que sobre mim?”


 “Que ele suspeitava que você fosse Divergente”, ela diz. “Ele estava sempre olhando
por você. Notando seu comportamento. Ele era muito atento a você. Por isso... por isso pensei
que fosse ficar a salvo com ele. Mais do que comigo”.

 Tobias não diz nada.

 “Vejo agora que eu devia estar errada”.

 Ele continua sem falar.

 “Eu queria-“ ela começa.

 “Não se atreva a pedir desculpas” Sua voz treme. “Isso não é algo que você possa curar
com uma palavra ou duas, alguns abraços ou algo do tipo”.

 “Ok”, ela diz. “Ok. Eu não vou”.

 “Com que propósito os sem facção estão se unindo?”, ele diz. “O que pretendem
fazer?”

 “Queremos usurpar a Erudição”, ela diz. “Uma vez que nos livrarmos deles, não há
muita coisa que possa nos impedir de assumir o governo”.

 “E é nisso que espera que eu lhe ajude. Derrubar um governo corrupto e instituir
algum tipo de tirania sem facção”. Ele bufa. “Sem chance”.

 “Não queremos ser tiranos”, ela diz. “Queremos estabelecer uma nova sociedade. Sem
facções”.

 Minha boca seca. Sem facções? Um mundo no qual ninguém sabe quem são ou onde
se encaixam? Não consigo nem imaginar isso. Só consigo imaginar caos e isolação.

 Tobias solta uma risada. “Certo. Então você vai usurpar a Erudição?”

 “Às vezes mudanças drásticas requerem medidas drásticas”. A sombra de Evelyn
levanta um ombro. “Imagino que isso vá envolver um alto nível de destruição”.

 Estremeço com a palavra ‘destruição’. Em algum lugar nas minhas partes mais escuras,
eu imploro por destruição, com tanto que seja a Erudição que vá ser destruída. Mas a palavra
carrega um novo significado para mim, agora que vi como ela pode parecer: corpos vestidos
com cinza pendurados no meio-fio e na calçada, líderes da Abnegação baleados, perto de
caixas de correio. Pressiono meu rosto no palete em que estou dormindo, tão forte que minha
testa dói, para forçar a memória para fora, fora, fora.

 “Por isso nós precisamos de você”, Evelyn diz. “Para fazer isso, vamos precisar da ajuda
da Audácia. Eles têm as armas e a experiência de combate. Você poderia fazer a ponte entre
nós e eles”.

 “Você pensa que sou importante para a Audácia? Porque eu não sou. Sou apenas mais
um que não tem muitos medos”.

 “O que estou sugerindo”, ela diz. “é que você se torne importante”. Ela está parada,
sua sombra se estende do teto ao chão. “Tenho certeza que pode achar uma maneira, se
quiser. Pense sobre isso”.

 Ela puxa seu cabelo enrolado e amarra-o em um nó. “A porta está sempre aberta”.

 Alguns minutos depois ele deita comigo de novo. Não quero admitir que estava
escutando, mas quero dizer para ele não confiar em Evelyn, ou nos sem facção, ou em
qualquer um que fale tão casualmente sobre demolir uma facção inteira.

 Antes que eu consiga reunir a coragem para falar, sua respiração fica equilibrada, e ele
dorme.




 Capítulo 10

 Passo minha mão pela nuca, para tirar o cabelo que está preso ali. Meu corpo inteiro
dói, especialmente minhas pernas, que queimam com ácido lático mesmo quando não estou
me movendo. E eu não cheiro muito bem. Tenho que tomar banho.

 Ando pelo corredor e entro no banheiro. Não sou a única pessoa com banho na cabeça
– um grupo de mulheres está parado na frente das pias, metade delas nuas, a outra metade
não se importa nem um pouco com isso. Encontro uma pia livre e enfio a cabeça em baixo da
torneira, deixando a água fria derramar sobre meus ouvidos.

 “Olá”, Susan diz. Viro minha cabeça para o outro lado. A água passa por minha
bochecha e entra em meu nariz. Ela está carregando duas toalhas, uma branca e uma cinza,
ambas desgastadas na ponta.

 “Oi”, eu digo.

 “Tenho uma ideia”. Ela vira de costas e levanta a toalha, bloqueado minha visão do
resto do banheiro. Eu bufo de alívio. Privacidade. Ou o máximo que é possível ter.

 Tiro a roupa rapidamente e pego o sabão perto da pia.

 “Como você está?” ela diz.

 “Bem”. Sei que ela está perguntando isso só por que as regras de sua facção ditam que
ela o faça. Queria que ela pudesse conversar comigo livremente. “Como está você, Susan?”

 “Melhor. Therese me contou que tem um grande grupo de refugiados da Abnegação
em uma das casas seguras dos sem facção”, diz Susan enquanto eu passo sabão em meu
cabelo.

 “Oh”, eu digo. Enfio minha cabeça sob a torneira de novo, dessa vez massageando o
couro cabeludo para tirar o sabão. “Você vai?”

 “Sim”, diz Susan. “A menos que precise de minha ajuda”.

 “Obrigada pela oferta, mas acho que sua facção precisa mais de você”. Fecho a
torneira. Queria que não tivesse que me vestir. Mas eu pego a outra toalha do chão e me seco
rapidamente.

 Visto a blusa vermelha que estava usando antes. Não quero colocar algo sujo de novo,
mas não tenho outra escolha.

 “Suspeito que algumas mulheres sem facção tenham roupas disponíveis”, diz Susan.

 “Você provavelmente está certa. Ok, sua vez”.

 Fico parada segurando a toalha enquanto Susan se lava. Meus braços começam a doer
depois de um tempo, mas ela ignorou a dor por mim, então faço o mesmo por ela. Água cai em
meus tornozelos enquanto ela lava o cabelo.

 “Essa é uma situação que nunca pensei que nós estaríamos juntas”, eu digo depois de
um tempo. “Tomando banho em uma pia num edifício abandonado, fugindo da Erudição”.

 “Pensei que viveríamos perto uma da outra”, diz Susan. “Ir a encontros sociais juntas.
Nossos filhos andariam até o ônibus escolar juntos”.

 Eu mordo meu lábio. É minha culpa, obviamente, que isso nunca seria possível, porque
escolhi outra facção.

 “Eu sinto muito, não foi minha intenção discutir isso”, ela diz. “Só me arrependo de
não ter prestado mais atenção. Se tivesse, talvez soubesse pelo que você estava passando. Eu
fui egoísta”.


 Eu dou uma pequena risada. “Susan, não há nada de errado com a forma com a qual
você agiu”.

 “Estou pronta”, ela diz. “Pode me passar essa toalha?”

 Fecho meus olhos e me viro pra que ela pegue a toalha de minhas mãos. Quando
Therese entra no banheiro, alisando seu cabelo em uma trança, Susan pede as roupas novas.

 Quando saímos do banheiro, estou usando jeans e uma blusa preta que é tão aberta
em cima que cai por meus ombros, e Susan usa um jeans largo e uma blusa branca da
Franqueza com colarinho. Ela o abotoa até a garganta. A Abnegação é modesta a ponto de ser
desconfortável.

 Quando entro na sala grande de novo, alguns dos sem facção estão saindo com baldes
de tinta e pincéis. Eu os assisto até que a porta fecha atrás deles.

 “Eles vão escrever uma mensagem para as outras casas seguras”, diz Evelyn atrás de
mim. “Em um dos cartazes. Códigos formados de informações pessoais – cor favorita, o animal
de estimação da infância de alguém”.

 Não sei por que ela escolheria a mim para contar sobre os códigos dos sem facção até
que eu me viro. Vejo um olhar familiar em seus olhos – o mesmo que Jeanine tinha quando ela
contou a Tobias que havia desenvolvido um soro que podia controlá-lo: Orgulho.

 “Inteligente”, eu digo. “Sua ideia?”

 “Foi sim”. Ela encolhe os ombros, mas eu não sou boba. Ela é qualquer coisa menos
indiferente. “Eu era da Erudição antes de entrar para a Abnegação”.

 “Oh”, eu digo. “Imagino que você não conseguiu lidar com uma vida de academia
então?”

 Ela não mordeu a isca. “Algo do tipo, sim”. Ela para. “Acho que seu pai saiu de lá pela
mesma razão”.

 Quase me viro para finalizar a conversa, mas suas palavras criam um tipo de pressão
dentro de minha mente, como se ela estivesse apertando meu cérebro entre suas mãos. Eu a
encaro.

 “Você não sabia?” Ela encolhe os ombros. “Desculpe-me; Esqueci que membros de
facções raramente discutem suas antigas facções”.

 “O quê?” Eu digo, minha voz falhando.

 “Seu pai nasceu na Erudição”, ela diz. “Os pais dele eram amigos dos pais de Jeanine
Matthews, antes de morrerem. Seu pai e Jeanine brincavam juntos quando eram crianças. Eu
assistia-os lendo livros na escola”.

 Eu imagino meu pai, um homem crescido, sentando perto de Jeanine, uma mulher
crescida, numa mesa de lanches em minha antiga cafeteria, um livro entre eles. A ideia é tão
ridícula para mim que eu ronco meio que rindo. Não pode ser verdade.

 Exceto.

 Exceto: Ele nunca falou sobre sua família ou sua infância.

 Exceto: Ele não tem o jeito quieto de alguém que nasce na Abnegação.

 Exceto: Seu ódio pela Erudição era tão veemente que deve ter sido pessoal.

 “Sinto muito, Beatrice”, Evelyn diz. “Não quis abrir feridas fechadas”.

 Eu franzo a testa. “Sim, você abriu”.

 “O que você quer dizer –“


 “Ouça com atenção”, eu digo, abaixando a voz. Checo sobre seu ombro, procurando
Tobias, para ter certeza que ele não está escutando. Tudo que vejo são Caleb e Susan no chão,
passando uma vasilha de manteiga de amendoim para frente e para trás. Sem Tobias.

 “Não sou burra”, eu digo. “Posso ver que está tentando usá-lo. E vou lhe contar isso, se
ele ainda não tiver notado”.

 “Minha querida menina”, ela diz. “eu sou a família dele. Sou permanente. Você é
temporária”.

 “É”, eu digo. “A mãe dele o abandonou, e o pai dele bateu nele. Como a lealdade dele
não estaria em seu sangue, com uma família igual a essa?”

 Eu saio andando, minhas mãos tremendo, e sento-me perto de Caleb no chão. Susan
está agora no meio da sala, ajudando um dos sem facção com a limpeza. Ele passa para mim a
vasilha de manteiga de amendoim. Lembro-me das fileiras de plantação de amendoim nas
estufas da Amizade. Eles plantam amendoins porque tem muitas proteínas e gorduras, que são
importantes para os sem facções em particular. Pego um pouco da manteiga de amendoim
com o dedo e como.

 Eu deveria contar a ele o que Evelyn acabou de me contar? Não quero fazê-lo pensar
que ele tem a Erudição em seu sangue. Não quero dar a ele nenhuma razão para querer voltar
para lá.

 Decido guardar isso para mim por enquanto.

 “Queria falar com você”, diz Caleb.

 Eu concordo com a cabeça, ainda tentando tirar o amendoim do céu da boca.

 “Susan quer ir ver o resto dos membros da Abnegação”, ele diz. “E eu também quero.
Quero ter certeza que ela estará bem. Mas não quero te deixar”.

 “Está tudo bem”, eu digo.

 “Por que você não vem conosco?”, ele pergunta. “A Abnegação receberia você de
volta; Tenho certeza disso”.

 Eu também tenho – a Abnegação não guarda rancor. Mas estou oscilando à beira da
boca da dor, e se eu voltasse para a facção de meus pais, ela iria me engolir.

 Balanço a cabeça. “Tenho que ir para a sede da Franqueza e descobrir o que está
acontecendo”, eu digo. “Estou ficando louca, sem saber” Eu forço um sorriso. “Mas você deve
ir. Susan precisa de você. Ela parece melhor, mas ainda precisa de você”.

 “Ok”, Caleb concorda. “Bem, tentarei acompanhá-la em breve. Seja cuidadosa”.

 “Eu sou sempre, não sou?”

 “Não, eu acho que a palavra que define você geralmente é ‘irresponsável’”.

 Caleb aperta meu ombro bom levemente. Como mais uma dedada de manteiga de
amendoim.

 Tobias sai do banheiro masculino alguns minutos depois, sua camisa vermelha da
Amizade substituída por uma camiseta preta, e seu cabelo pequeno brilhando com água.
Nossos olhos se encontram, e eu sei que é hora de sairmos.



 A sede da Franqueza é grande o suficiente para conter um planeta inteiro. Ou pelo
menos parece para mim.

 É uma construção gigante com vista ampla para o que antes era o rio. A placa diz MP I
COME – normalmente estaria escrito “Empório Comercial”, mas muitas pessoas se referem a


isto como o Comércio Impiedoso, porque os membros da Franqueza são impiedosos, mas
honestos. Eles parecem ter aderido ao apelido.

 Não sei o que esperar, porque nunca estive lá dentro. Tobias e eu paramos fora das
portas e olhamos um para o outro.

 “Aqui vamos nós”, ele diz.

 Não consigo ver nada além de meu reflexo nas portas de vidro. Pareço cansada e suja.
Pela primeira vez, ocorre-me que nós não temos que fazer nada. Poderíamos ficar com os sem
facção e deixar o resto deles lidar com essa bagunça. Poderíamos ser ninguéns, seguros,
juntos.

 Ele ainda não me contou sobre a conversa que ele teve com sua mãe na noite passada,
e eu não acho que ele vá contar. Ele parecia tão determinado a chegar à sede da Franqueza
que eu me pergunto se ele está planejando alguma coisa sem mim.

 Não sei por que eu passo pelas portas. Pode ser que já que viemos tão longe,
devemos, então, ver o que está acontecendo. Mas suspeito que é mais porque eu sei o que é
verdade e o que não é. Sou Divergente, então não sou qualquer um, não há coisas como
“segurança”, e eu tenho outras coisas em minha mente do que brincar de casinha com Tobias.
E, aparentemente, ele também tem.

 O lobby é grande e bem iluminado, com piso de mármore negro que se estende até
um banco de elevador. Um anel de mármore branco no centro da sala, forma o símbolo da
Franqueza: Um conjunto de balanças desequilibradas, feito para simbolizar o peso da verdade
contra a mentira. A sala está cheia de membros da Audácia armados.

 Uma soldada da Audácia com o braço em uma tipoia se aproxima, segurando uma
arma, o cano fixo em Tobias.

 “Identifiquem-se”, ela diz. Ela é nova, mas não nova o suficiente para conhecer Tobias.

 Os outros se reúnem atrás dela. Alguns nos olham suspeitosamente, o resto com
curiosidade, mas mais estranho do que eles é a luz que vejo nos olhos de outros.
Reconhecimento. Eles devem conhecer Tobias, mas como eles poderiam me reconhecer?

 “Quatro”, ele diz. Ele balança a cabeça em minha direção. “E essa é Tris. Ambos da
Audácia”.

 Os olhos da soldada se ampliam, mas ela não abaixa a arma.

 “Uma ajuda aqui?” ela diz. Alguns dos membros da Audácia andam para frente, mas
cuidadosamente, como se fossemos perigosos.

 “Tem algum problema?” Tobias diz.

 “Vocês estão armados?”

 “É claro que estou armado. Sou da Audácia, não sou?”

 “Coloque as mãos atrás da cabeça”. Ela diz ferozmente, como se esperasse que nós
recusássemos. Eu olho para Tobias. Porque todos estão agindo como se estivéssemos prontos
para atacá-los?

 “Nós entramos pela porta da frente”, eu digo calmamente. “Vocês acham que
faríamos isso se fossemos machucar vocês?”

 Tobias não olha de volta para mim. Ele apenas coloca seus dedos atrás da cabeça.
Depois de um momento, eu faço o mesmo. Os soldados se amontoam ao nosso redor. Um
deles dá um tapinha na perna de Tobias enquanto o outro pega a arma abaixo de seu cós. O
outro, um garoto com a cara redonda e bochechas rosadas, olha para mim se desculpando.


 “Tenho uma faca em meu bolso traseiro”, eu digo. “Coloque suas mãos em mim e eu
farei você se arrepender disto”.

 Ele murmura algum tipo de pedido de desculpas. Seus dedos puxam a faca, com
cuidado para não encostar-se a mim.

 “O que está acontecendo?”, diz Tobias.

 A primeira soldada troca olhares com alguns dos outros.

 “Desculpe-me”, ela diz. “Mas fomos instruídos a prendê-los assim que chegassem”.
















































 Capítulo 11

 Eles nos cercam, sem nos algemar, e nos levam até o elevador. Não importa quantas
vezes eu pergunte por que estamos presos, ninguém fala nada ou se quer olha em minha
direção. Então eu desisto e fico quieta, como Tobias.

 Vamos até o terceiro andar, onde eles nos guiam até um pequeno quarto com um piso
de mármore branco em vez do preto. Não há nenhuma mobília, exceto uma bancada ao longo
da parede de trás. Toda facção supostamente deve ter um quarto para aqueles que causam
problemas, mas nunca estive dentro de um antes.

 A porta é trancada atrás de nós, e estamos sozinhos de novo.

 Tobias senta na bancada, com o cenho franzido. Eu balanço para frente e para trás na
frente dele. Se ele tivesse alguma ideia de por que estamos aqui, ele me contaria, então eu
não pergunto. Ando cinco passos para frente e cinco para trás, cinco para frente e cinco para
trás, no mesmo ritmo, torcendo para que isso me ajude a pensar em algo.

 Se a Erudição não controlou a Franqueza – e Edward nos disse que não – por que eles
estão nos prendendo? O que nós fizemos para eles?

 Se a Erudição não controlou, o único crime real que sobra é aliar-se a eles. Eu fiz
qualquer coisa que pudesse ser interpretada como uma aliança com eles? Meus dentes
apertam meu lábio inferior tão forte que eu estremeço. Sim, eu fiz. Eu atirei em Will. Eu atirei
em vários outros da Audácia. Eles estavam sob a simulação, mas talvez a Franqueza não saiba
disso ou não ache que é uma razão boa o suficiente.

 “Você pode se acalmar?” Tobias diz. “Está me deixando nervoso”.

 “Isso está me acalmando”.

 Ele se inclina para frente, descansando os cotovelos nos joelhos, e olha por entre seus
tênis. “A ferida em seu lábio diz outra coisa”.

 Sento-me ao seu lado e abraço meus joelhos em meu peito com um braço, o outro
parado ao meu lado. Por um longo tempo, ele não diz nada, e meu braço aperta mais e mais
minhas pernas. Parece que à medida que diminuo, fico mais segura.

 “Às vezes”, ele diz. “Eu penso que você não confia em mim”.

 “Eu confio em você”, eu digo. “É claro que eu confio. Porque pensaria o contrário?”

 “Só parece que tem alguma coisa que não está me contando. Eu contei coisas a
você...” Ele balança a cabeça. “que eu nunca teria contado para qualquer pessoa. Alguma coisa
está acontecendo, e você ainda não me contou”.

 “Tem muita coisa acontecendo. Você sabe disso”, eu digo. “E você? Eu poderia dizer a
mesma coisa”.

 Ele toca minha bochecha, seus dedos em meu cabelo. Ignorando minha pergunta da
mesma forma que ignorei a dele.

 “Se é só sobre seus pais”, ele diz suavemente, “conte-me e eu vou acreditar em você”.

 Seus olhos deviam estar selvagens e apreensivos, dado o lugar em que estamos, mas
eles estão normais e escuros. Eles me transportam para lugares familiares. Lugares seguros,
onde confessar que eu atirei em meus melhores amigos seria fácil, onde eu não teria medo do
modo como Tobias olharia para mim quando ele descobrir o que eu fiz.

Eu cubro a mão dele com a minha. “É isso”, eu digo fracamente.

“Ok”, ele diz. Ele toca sua boca na minha. A culpa aperta meu estômago.


A porta abre. Algumas pessoas entram – dois, com armas; um homem velho com pele
escura, também da Franqueza; uma mulher da Audácia que eu não reconheço. E depois: Jack
Kang, representante da Franqueza.

Pelos padrões da maioria das facções, ele é um líder jovem – apenas trinta e nove
anos. Mas pelos padrões da Audácia, isso não é nada. Eric se tornou um líder aos dezessete. É
provavelmente por isso que as outras facções não levam nossas opiniões a sério.

Jack é lindo, com cabelo preto curto e olhos puxados, quentes, como os de Tori, e
maçãs do rosto salientes. Apesar de sua boa aparência, ele não é conhecido por ser charmoso,
provavelmente porque é da Franqueza, e eles veem o charme como enganação. Eu confio nele
para nos contar o que está acontecendo sem gastar tempo com apresentações.

“Eles me disseram que vocês pareciam confusos sobre por que estão presos”, ele diz.
Sua voz é profunda, mas estranhamente lisa, como se não pudesse criar eco mesmo na borda
de uma caverna vazia. “Para mim isso significa que ou vocês estão sendo falsamente acusados
ou são bons mentirosos. A única-“

“Do que somos acusados?” Eu o interrompo.

“Ele é acusado de crimes contra a humanidade. Você é acusada de ser cúmplice”.

“Crimes contra a humanidade?” Tobias finalmente soa nervoso. Ele dá um olhar de
nojo a Jack. “O que?”

“Nós vimos um vídeo do ataque. Você estava comandando a simulação do ataque”, diz
Jack.

“Como vocês podem ter visto o vídeo? Nós levamos os registros”, diz Tobias.

“Vocês levaram uma cópia dos registros. Toda a filmagem do complexo da Audácia
gravada durante o ataque também foi enviada para outros computadores na cidade”, diz Jack.
“Tudo o que vimos foi você controlando a simulação e ela quase apanhando até a morte antes
de desistir. Então você parou, tiveram uma reconciliação abrupta de amantes, e roubaram o
disco rígido juntos. Uma possível razão é que a simulação havia acabado e vocês não queriam
que colocássemos nossas mãos nela”.

Eu quase dou uma risada. Meu incrível ato de heroísmo, a única coisa importante que
eu já fiz, e eles pensam que eu estava trabalhando para a Erudição quando fiz isso.

“A simulação não acabou”, eu digo. “Nós a paramos, você-“

Jack levanta sua mão. “Não estou interessado no que você tem a dizer agora. A
verdade vai vir quando os dois forem interrogados sobre influência do soro da verdade”.

Christina me contou sobre o soro uma vez. Ela disse que a parte mais difícil da
iniciação da Franqueza era responder perguntas pessoais na frente de todos da facção sob o
efeito do soro da verdade. Não preciso procurar muito fundo em mim mesma, para saber que
isso é a última coisa que eu quero em meu corpo.

“Soro da verdade?” Eu balanço a cabeça. “Não. Sem chance”.

“Você tem algo a esconder?” Jack diz, levantando as duas sobrancelhas.

Eu quero dizer a ele que qualquer um com dignidade quer manter algumas coisas para
si mesmo, mas não quero levantar suspeitas. Então balanço a cabeça.

“Tudo bem, então”. Ele checa o relógio. “Agora é meio-dia. A interrogação será às sete.
Não se preocupem em preparar-se para isso. Vocês não podem esconder informações
enquanto estão sobre efeito do soro da verdade”.

Ele vira as costas e sai do quarto.

“Que homem agradável”, diz Tobias.




Um grupo de membros da Audácia armados nos escolta até o banheiro no início da
tarde. Eu demoro bastante, deixando as mãos ficarem vermelhas sob a água quente da
torneira e encarando meu reflexo. Quando estava na Abnegação e não era autorizada a olhar
para espelhos, eu pensava que muita coisa podia mudar na aparência de uma pessoa em três
meses. Mas só demoraram alguns dias para me mudar dessa vez.

Eu pareço mais velha. Talvez seja o cabelo curto ou talvez seja só porque uso tudo o
que aconteceu como máscara. De qualquer jeito, sempre pensei que seria feliz quando
deixasse de parecer uma criança. Mas tudo o que sinto é um nó na garganta. Não sou mais a
filha que meus pais conheciam. Eles nunca me reconheceriam pelo que sou agora.

Saio de perto do espelho e empurro a porta para o corredor com as mãos.

Quando os membros da Audácia me deixam no quarto de espera, eu fico perto da
porta. Tobias está parecido com a primeira vez em que o vi – camiseta preta, cabelo curto,
expressão severa. Olhar para ele costumava me encher de uma excitação nervosa. Eu me
lembro de quando segurei a mão dele fora da sala de treinamento, apenas por alguns
segundos, e quando sentamos juntos nas pedras ao lado do abismo, e eu sinto uma pontada
de saudade de como as coisas eram.

“Com fome?” ele diz. Oferece-me um sanduíche do prato ao lado.

Eu aceito e me sento, inclinando-me em seu ombro. Tudo o que nos resta é esperar,
então é isso que fazemos. Comemos até que a comida acabe. Sentamos até nos sentirmos
desconfortáveis. Então deitamos um ao lado do outro no chão, com os ombros encostando,
encarando o mesmo pedaço de teto branco.

“O que você tem medo de dizer?” ele diz.

“Qualquer coisa. Tudo. Não quero revelar nada”.

Ele concorda com a cabeça. Fecho meus olhos e finjo que estou dormindo. Não há
relógio no quarto, então não posso contar os minutos antes da interrogação. Tempo também
não deve existir nesse quarto, exceto por eu senti-lo pressionando contra mim quando as sete
horas inevitavelmente se aproximam, empurrando-me para o piso.

Talvez o tempo não pareceria tão pesado se eu não tivesse essa culpa – a culpa de
saber a verdade e escondê-la onde ninguém pode ver, nem Tobias. Talvez eu não devesse ter
tanto medo de dizer qualquer coisa, porque a honestidade vai me fazer sentir mais leve.

Eu devo ter caído no sono, porque acordo assustada com o som da porta abrindo.
Alguns da Audácia entram enquanto nos levantamos, e um deles diz meu nome. Christina abre
caminho por entre os outros e joga seus braços ao meu redor. Seus dedos apertam minha
ferida no ombro, e eu choramingo.

“Tomei um tiro”, eu digo. “Ombro. Ai”.

“Oh, Deus!” Ela me solta. “Desculpe Tris”.

Ela não se parece com a Christina que eu me lembro. Seu cabelo está menor, como de
um menino, e sua pele está cinzenta em vez de um marrom quente. Ela sorri para mim, mas o
sorriso não viaja por seus olhos, que ainda parecem cansados. Tento sorrir de volta, mas estou
muito nervosa. Christina vai estar lá na interrogação. Ela vai escutar o que eu fiz para Will. Ela
nunca vai me perdoar.

A menos que eu lute contra o soro, engula a verdade – se eu conseguir.

Mas é realmente isso que eu quero? Deixar isso deixar isso apodrecer dentro de mim
para sempre?


“Você está bem? Eu ouvi que estava aqui então pedi para te escoltar”, ela diz
enquanto deixamos o quarto de espera. “Eu sei que você não fez isso. Você não é uma
traidora”.

“Estou bem”, eu digo. “E obrigada. Como você está?”

“Oh, eu estou...” A voz dela treme um pouco, e ela morde o lábio. “Alguém te contou...
Quer dizer, talvez agora não seja a hora certa, mas...”

“O que? O que foi?”

“Hum... Will morreu no ataque”, ela diz.

Ela me dá um olhar preocupado, e expectante. Esperando o que?

Oh. Eu não deveria saber que Will está morto. Poderia fingir, mas provavelmente eu
não seria convincente. É melhor admitir que eu já sei. Mas não sei como explicar sem contar
tudo a ela.

De repente eu me sinto mal. Estou realmente avaliando a melhor forma de enganar
minha amiga?

“Eu sei”, eu digo. “Eu o vi nos monitores quando estava na sala de controle. Sinto
muito Christina”,

“Oh”. Ela concorda com a cabeça. “Bem, eu estou... feliz que você já sabia. Eu
realmente não queria dar o noticiário em um corredor”.

Uma risada curta. Um sorriso rápido. Nenhum deles como costumava ser.

Nós entramos no elevador. Posso sentir Tobias me encarando – ele sabe que eu não vi
Will nos monitores, e ele não sabia que Will estava morto. Eu encaro a minha frente e finjo
que seus olhos não estão me queimando.

“Não se preocupe com o soro”, ela diz. “É fácil. Você quase não percebe o que está
acontecendo quando está sob efeito dele. Somente quando você acorda é que percebe o que
disse. Eu passei por isso quando era criança. É um lugar muito comum na Franqueza”.

Os outros da Audácia no elevador se entreolham. Em circunstâncias normais, alguém
provavelmente iria reprimi-la por discutir sobre sua facção antiga, mas essas não são
circunstâncias normais. Em momento algum na vida de Christina ela vai escoltar sua melhor
amiga, agora suspeita de ser traidora, para uma interrogação pública.

“Todos os outros estão bem?” Eu digo. “Uriah, Lynn, Marlene?”

“Todos aqui”, ela diz. “Exceto o irmão de Uriah, Zeke, que está com os outros da
Audácia”.

“O que?” Zeke, que ajudou a olhar meus cintos quando saltei do prédio da Audácia,
um traidor?

O elevador para no piso mais alto, e os outros saem.

“Eu sei”, ela diz. “Ninguém previu isso”.

Ela segura meu braço e me leva na direção das portas. Andamos por um corredor de
mármore preto – deve ser fácil se perder na sede da Franqueza, já que tudo tem a mesma
aparência. Andamos por outro corredor e por um conjunto de portas duplas.

Do lado de fora, o Comércio Impiedoso é um bloco atarracado com uma porção
estreita levantada no centro. Do lado de dentro, a porção levantada é uma sala de três
andares com espaços vazios nas paredes em vez de paredes. Eu vejo o céu escurecendo a cima
de mim, sem estrelas.


Aqui o mármore no chão é branco, com o símbolo preto da Franqueza no centro da
sala, e as paredes são iluminadas com fileiras de luzes amarelas escuras, então a sala inteira
brilha. Todas as vozes ecoam.

A maioria dos membros da Franqueza e da Audácia já estão reunidos. Alguns deles
sentam nos bancos que se espalham pelos cantos da sala, mas não há espaço suficiente para
todos, então o restante está amontoado ao redor do símbolo da Franqueza. No centro do
símbolo, entre as duas balanças, há duas cadeiras vazias.

Tobias alcança minha mão. Eu entrelaço meus dedos nos dele.

Os guardas da Audácia nos guiam até o centro da sala, onde somos recebidos com, na
melhor hipótese, murmúrios, e na pior, vaias. Eu vejo Jack Kang na fileira da frente dos bancos.

Um velho de pele escura anda até nós, uma caixa preta em mãos.

“Meu nome é Niles”, ele diz. “Vou ser seu interlocutor. Você-“ Ele aponta para Tobias.
“Você vai primeiro. Então se puder dar um passo à frente...”

Tobias aperta minha mão, e depois solta, e eu fico parada com Christina na beira do
símbolo da Franqueza. O ar na sala é quente – ar de verão, ar de pôr do sol – mas sinto-me
fria.

Niles abre a caixa preta. Ela contém duas agulhas, uma para Tobias e outra para mim.
Ele também tira um antisséptico do bolso e oferece a Tobias. Não nos preocuparíamos com
coisas assim na Audácia.

“A injeção será no seu pescoço”, Niles diz.

Tudo o que escuto, enquanto Tobias aplica o antisséptico em sua pele, é o vento. Niles
dá um passo à frente e mergulha a agulha no pescoço de Tobias, empurrando o líquido turvo
em suas veias. A última vez que vi alguém injetar algo em Tobias foi Jeanine, colocando-o sob
uma nova simulação, uma que é efetiva até em Divergentes – era o que ela acreditava. Eu
pensei, naquele momento, que ele estava perdido para sempre.

Sinto um arrepio.


























 Capítulo 12

 “Eu vou fazer uma série de perguntas simples para que você possa se acostumar com o
soro enquanto ele faz efeito”, diz Niles. “Agora. Qual é o seu nome?”

 Tobias fica com os ombros curvados e a cabeça abaixada, como se seu corpo fosse
muito pesado para ele. Ele faz carrancas e se contorce na cadeira, e por entre os dentes diz
“Quatro”.

 Talvez não seja possível mentir sob o soro da verdade, mas sim selecionar qual versão
da verdade contar: Quatro é o nome dele, mas não é o seu nome.

 “Isso é um apelido”, diz Niles. “Qual é seu nome real?”

 “Tobias”, ele diz.

 Christina me dá uma cotovelada. “Você sabia disso?”

 Eu concordo com a cabeça.

 “Quais são os nomes de seus pais, Tobias?”

 Tobias abre a boca para responder, e depois aperta o queixo, como se quisesse
impedir as palavras de saírem.

 “Por que isso é relevante?” Tobias pergunta.

 Os membros da Franqueza ao meu redor murmuram entre si, alguns com uma
carranca. Eu levanto a sobrancelha para Christina.

 “É extremamente difícil não responder imediatamente as perguntas enquanto está sob
o soro”, ela diz. “Significa que ele tem uma vontade muito forte. E alguma coisa a esconder”.

 “Talvez não fosse relevante antes, Tobias” diz Niles, “mas é agora que resistiu a
responder a pergunta. Os nomes dos seus pais, por favor”.

 Tobias fecha os olhos. “Evelyn e Marcus Eaton”.

 Sobrenomes são apenas um meio adicional de identificação, úteis para prevenir
confusões em registros oficiais. Quando nos casamos, um deve usar o sobrenome do outro, ou
ambos têm que escolher um novo. Ainda assim, embora possamos levar nossos nomes da
família para a facção, raramente os mencionamos.

 Mas todos reconhecem o sobrenome de Marcus. Posso ver isso pelo clamor que cresce
na sala depois da fala de Tobias. Todos da Franqueza sabem que Marcus é o governante mais
influente, e alguns deles devem ter lido o artigo divulgado por Jeanine sobre a crueldade dele
com o filho. Foi uma das poucas coisas que ela disse que era verdade. E agora todos sabem
que Tobias é aquele filho.

 Tobias Eaton é um nome poderoso.

 Niles espera pelo silêncio, e então continua. “Então você foi transferido de sua facção,
não foi?”

 “Sim”.

 “Você saiu da Abnegação para a Audácia?”

 “Sim”, Tobias rebate. “Isso não é óbvio?”

 Eu mordo meu lábio. Ele devia se acalmar; está dando muito de si. Quanto mais
relutante ele for, mais determinado Niles vai ficar para ouvir sua resposta.

 “Uma das propostas dessa interrogação é determinar suas lealdades”, diz Niles. “então
eu devo perguntar: Por que você se transferiu?”

 Tobias olha para Niles, e mantém a boca calada. Segundos passam em completo
silêncio. Quanto mais ele resiste ao soro, mais difícil parece ficar para ele: sua bochecha está


corada, e ele respira mais rapidamente, pesadamente. Meu peito dói por ele. Os detalhes de
sua infância deviam permanecer dentro dele, se ele quer que fiquem ali. A Franqueza é cruel
por forçá-lo a falar, por tirar sua liberdade.

 “Isso é horrível”, eu digo calorosamente para Christina. “Errado”.

 “O que?” Ela diz. “É uma pergunta simples”.

 Eu balanço a cabeça. “Você não entende”.

 Christina sorri um pouco para mim. “Você realmente se importa com ele”.

 Estou muito ocupada assistindo Tobias para responder.

 Niles diz, “Vou perguntar de novo. É importante que possamos entender a extensão de
sua lealdade com sua facção atual. Então por que você se transferiu para a Audácia, Tobias?”

 “Para me proteger”, diz Tobias. “Eu me transferi para me proteger”.

 “Proteger-se de que?”

 “Do meu pai”.

 Todas as conversas na sala param, e o silêncio que deixam em seu rastro é pior do que
o murmúrio. Eu esperava que Niles continuasse perguntando, mas ele não o faz.

 “Obrigado por sua honestidade”, Niles diz. Os membros da Franqueza repetem a frase
entre suas respirações. Tudo ao meu redor são as palavras “Obrigado por sua honestidade” em
diferentes volumes e tons, e minha raiva começa a se dissolver. As palavras sussurradas
parecem dar boas-vindas a Tobias, para abraçar e depois descartar seu maior segredo.

 Não é crueldade, talvez, mas um desejo de entender, que os motiva. O que não me
deixa com menos medo de passar pelo soro.

 “Sua fidelidade é com sua facção atual, Tobias?” Niles diz.

 “Minha fidelidade está com qualquer um que não suporte o ataque à Abnegação”, ele
diz.

 “Falando nisso,” Niles diz. “Acho que deveríamos focar no que aconteceu naquele dia.
O que você se lembra sobre estar na simulação?”

 “Eu não estava na simulação, primeiramente”, diz Tobias. “Ela não funcionou”.

 Niles ri um pouco. “O que você quer dizer com ela não funcionou?”

 “Uma das características dos Divergentes é que a mente deles é resistente às
simulações”, diz Tobias. “E eu sou Divergente. Então não, não funcionou”.

 Mais murmúrios. Christina me cutuca com o cotovelo.

 “Você também é?” ela diz, perto da minha orelha para que possa ficar quieta. “É por
isso que estava acordada?”

 Eu olho para ela. Tenho passado os últimos meses com medo da palavra ‘Divergente’,
com medo de que qualquer um descobrisse o que eu era. Mas não vou ser capaz de esconder
mais. Eu concordo com a cabeça.

 É como se os olhos dela inchassem de tão grandes que ficam. Tenho problemas para
identificar sua expressão. É choque? Medo?

 Temor?

 “Você sabe o que isso significa?” Eu digo.

 “Eu ouvi falar sobre isso quando era mais nova”, ela diz em um sussurro reverente.

 Definitivamente temor.

 “Como se fosse uma história de fantasia”, ela diz. “’Há pessoas com poderes especiais
ao nosso redor! ’Algo do tipo”.


 “Bem, não é fantasia, e não é tão importante”, eu digo. “É como a paisagem do medo
– você estava acordada enquanto estava nela, e podia manipulá-la. Para mim, é assim em
todas as simulações”.

 “Mas Tris”, ela diz colocando a mão em meu cotovelo. “Isso é impossível”.

 No centro da sala, Niles tem suas mãos para o alto e está tentando silenciar a
multidão, mas são muitos sussurros – alguns hostis, outros apavorados, e alguns temerosos,
como os de Christina. Finalmente Niles levanta e grita, “Se não se acalmarem, vão ser
convidados a sair”.

 Quando todos ficam quietos, Niles senta.

 “Agora”, ele diz. “Quando você diz ‘resistente a simulações’, o que quer dizer?”

 “Normalmente, significa que estamos acordados nas simulações”, diz Tobias. Ele
parece se sentir melhor com o soro quando responde perguntas fatídicas e não emocionais.
Ele não soa como se estivesse sob efeito do soro agora, apesar de sua postura curvada e seus
olhos vagos indicarem o contrário. “Mas a simulação do ataque foi diferente, usando um tipo
diferente de soro, com transmissores de longo alcance. Evidentemente os transmissores não
funcionaram nos Divergentes, por que eu acordei em minha própria mente naquela manhã”.

 “Você diz que não estava na simulação, primeiramente. Pode explicar o que quis dizer
com isso?”

 “Eu quis dizer que fui descoberto e levado até Jeanine, e ela injetou uma versão do
soro que era específico para Divergentes. Eu estava ciente durante aquela simulação, mas isso
não fez muita diferença”.

 “O vídeo da sede da Audácia mostra você controlando a simulação”, Niles diz
obscuramente. “Como, exatamente, você explica isso?”

 “Quando uma simulação está acontecendo, seus olhos conseguem ver e processar o
mundo real, mas seu cérebro não mais o compreende. Em algum nível, seu cérebro ainda sabe
o que está vendo e onde está. A natureza dessa nova simulação era que eu concentrasse
minhas emoções em estímulos externos”, Tobias diz, fechando seus olhos por alguns
segundos. “e respondesse alterando a aparência desses estímulos. A simulação fez com que
meus inimigos virassem amigos e os amigos se tornassem inimigos. Eu pensei que estava
desligando a simulação. Na realidade estava recebendo instruções de como controlá-la”.

 Christina concorda conforme ele fala. Sinto-me mais calma quando vejo que a maioria
da multidão está fazendo a mesma coisa. Esse é o benefício do soro da verdade, eu percebo. O
testemunho de Tobias é irrefutável dessa maneira.

 “Nós vimos um vídeo do que aconteceu por último na sala de controle”, diz Niles. “mas
ele é confuso. Por favor, descreva-o para nós”.

 “Alguém entrou na sala, e eu pensei que fosse uma soldada da Audácia, tentando me
fazer parar de destruir a simulação. Eu estava lutando com ela, e...” Tobias faz uma carranca,
lutando. “... e então ela parou, e eu fiquei confuso. Mesmo se estivesse acordado, eu teria
ficado confuso. Por que ela iria se entregar? Por que ela não me matou?”

 Seus olhos procuram na multidão até que ele encontra meu rosto. Minha frequência
cardíaca vive em minha garganta, vive nas minhas bochechas.

 “Eu ainda não entendo”, ele diz suavemente, “como ela sabia que aquilo iria
funcionar”.

 Vive na ponta dos meus dedos.


 “Eu acho que minhas emoções confundiram a simulação”, ele diz. “E então eu ouvi a
voz dela. De alguma maneira, ela me impediu de lutar com a simulação”.

 Meus olhos queimam. Estive tentando não pensar naquele momento, quando eu
pensei que ele estava perdido para mim e que em breve eu estaria morta, quando tudo o que
eu queria era sentir seu coração batendo. Tento não pensar nisso agora; pisco até as lágrimas
saírem de meus olhos.

 “Eu a reconheci, finalmente”, ele diz. “Voltamos para a sala de controle e paramos a
simulação”.

 “Qual é o nome dessa pessoa?”

 “Tris”, ele diz. “Beatrice Prior”.

 “Você a conhecia antes disso acontecer?”

 “Sim”.

 “Como a conheceu?”

 “Eu era o instrutor dela”, ele diz. “Agora estamos juntos”.

 “Tenho uma pergunta final”, Niles diz. “Entre os membros da Franqueza, antes de uma
pessoa ser aceita em nossa comunidade, ela tem que se expor completamente. Dadas as
circunstâncias terríveis em que estamos, nós requeremos o mesmo de você. Então, Tobias
Eaton: quais são seus maiores arrependimentos?”

 Eu olho para ele, de seus tênis surrados até seus dedos, até suas sobrancelhas retas.

 “Eu me arrependo...” Tobias inclina a cabeça e suspira. “Eu me arrependo de minha
escolha”.

 “Quando escolha?”

 “Audácia”, ele diz. “Eu nasci para ser da Abnegação. Estava planejando deixar a
Audácia e me tornar um sem facção. Mas então eu conheci a ela, e... senti-me como se talvez
pudesse fazer algo mais de minha decisão”.

 Ela.

 Por um momento, é como se estivesse olhando para uma pessoa diferente, na pele de
Tobias, uma pessoa cuja vida não é tão simples quando eu pensava. Ele queria deixar a
Audácia, mas ficou por minha causa. Ele nunca me contou isso.

 “Escolher a Audácia para escapar de meu pai foi um ato de covardia”, ele diz. “Eu me
arrependo dessa covardia. Significa que não mereço minha facção. Sempre vou me arrepender
disso”.

 Eu esperava que os membros da Audácia soltassem gritos indignados, talvez carregar a
cadeira e bater nele até virar uma pasta. Eles são capazes de coisas muito mais erráticas do
que isto. Mas eles não fazem nada. Ficam parados em um silêncio rochoso, com rostos
rochosos, encarando o jovem homem que não os traiu, mas nunca se sentiu verdadeiramente
daquela facção.

 Por um momento ficamos todos em silêncio. Não sei quem começa o sussurro; parece
surgir do nada, na direção de ninguém. Mas alguém sussurra “Obrigado por sua honestidade”,
e o resto da sala repete isso.

 “Obrigado por sua honestidade”, eles sussurram.

 Eu não repito.

 Sou a única coisa que o manteve na facção que ele queria deixar. Não sou digna disso.

 Talvez ele mereça saber.




 Niles está parado no centro da sala com uma agulha na mão. As luzes a cima dele
fazem-na brilhar. Todos ao meu redor, da Audácia e da Franqueza, esperam que eu ande para
frente e cuspa minha vida inteira na frente deles.

 O pensamento ocorre de novo: Talvez eu consiga lutar contra o soro. Mas eu não sei se
devo tentar. Talvez seja melhor para as pessoas que eu amo que eu seja clara.

 Ando rigidamente até o centro da sala enquanto Tobias sai. Quando passamos um pelo
outro, ele segura minha mão e aperta meus dedos. Então ele se vai, e só restam a mim, Niles e
a agulha. Eu limpo meu pescoço com o antisséptico, mas quando ele levanta a agulha, eu puxo
de volta.

 “Eu prefiro fazer isso eu mesma”, eu digo, segurando minha mão. Nunca deixaria
alguém injetar qualquer coisa em mim de novo, não depois de Eric me injetar o soro da
simulação do ataque em meu teste final. Não posso mudar o conteúdo da seringa apenas por
fazer isso sozinha, mas pelo menos dessa maneira eu sou o instrumento de minha própria
destruição.

 “Você sabe como?” Ele diz, levantando a sobrancelha espessa.

 “Sim”.

 Niles me oferece a seringa. Eu posiciono-a sobre a veia em meu pescoço, insiro a
agulha, e pressiono. Eu quase não sinto a fisgada. Estou muito carregada de adrenalina.

 Alguém traz uma lata de lixo, e eu jogo a agulha lá dentro. Sinto os efeitos do soro
imediatamente. Ele faz meu sangue parecer chumbo nas veias. Quase tenho um colapso em
meu caminho até a cadeira – Niles tem que segurar meu braço e me guiar na direção dela.

 Segundos depois meu cérebro fica silencioso. Sobre o que eu estava pensando? Não
parece importar. Nada mais importa, exceto a cadeira entre mim e o homem sentado à minha
frente.

 “Qual é o seu nome?”, ele diz.

 No mesmo segundo que ele pergunta, a resposta salta de minha boca. “Beatrice Prior”.

 “Mas você é conhecida como Tris?”.

 “Sim”.

 “Quais são os nomes de seus pais, Tris?”

 “Andrew e Natalie Prior”.

 “Você também foi transferida, não foi?”

 “Sim”. Um novo pensamento sussurra no fundo de minha mente. Também? Também
se refere à outra pessoa, e nesse caso, a outra pessoa é Tobias. Eu franzo as sobrancelhas
tentando imaginar Tobias, mas é muito difícil forçar a imagem dele em minha mente. Não tão
difícil que eu não consiga. Eu o vejo, e depois vejo um flash dele sentando na mesma cadeira
que eu estou sentada.

 “Você veio da Abnegação? E escolheu a Audácia?”

 “Sim”, eu digo novamente, mas dessa vez, a palavra soa concisa. Não sei por que,
exatamente.

 “Por que você se transferiu?”

 Essa pergunta é mais complicada, mas eu sei a resposta. Eu não era boa o suficiente
para a Abnegação está na ponta da língua, mas outra frase a substitui: Eu queria ser livre. As
duas são verdades. Quero falar as duas. Aperto os braços da cadeira enquanto tento lembrar
onde estou, o que estou fazendo. Vejo pessoas ao meu redor, mas não sei por que estão aqui.


 Eu me esforço da maneira que eu costumava me esforçar quando podia quase lembrar
a resposta de uma pergunta da prova, mas não conseguia formar em minha cabeça. Eu
fechava meus olhos e imaginava a página do livro em que a resposta estava. Eu luto por alguns
segundos, mas não consigo fazer isso; Não consigo me lembrar.

 “Eu não era boa o bastante para a Abnegação”, eu digo. “e eu queria ser livre. Então
escolhi a Audácia”.

 “Por que você não era boa o bastante?”

 “Porque eu era egoísta”, eu digo.

 “Você era egoísta? Não é mais?”

 “É claro que sou. Minha mãe dizia que todos são egoístas”, eu digo. “mas eu me tornei
menos egoísta na Audácia. Eu descobri que lá havia pessoas pelas quais eu podia lutar. Até
morrer”.

 A resposta me surpreende – mas por quê? Eu mantenho meus lábios juntos por um
momento. Porque é verdade. Se eu disse isso aqui, deve ser verdade.

 Esse pensamento me dá o elo perdido na cadeia de pensamentos que eu tentava
achar. Estou aqui para um teste de detector de mentiras. Tudo o que eu disser é verdade.
Sinto uma gota de suor descendo pela minha nuca.

 O detector de mentiras. Soro da verdade. Tenho que lembrar a mim mesma. É muito
fácil ficar perdida na honestidade.

 “Tris, você poderia, por favor, nós dizer o que aconteceu no dia do ataque?”

 “Eu acordei”, eu digo. “e todos estavam na simulação. Então eu fingi que estava
também até achar Tobias”.

 “O que aconteceu depois que você e Tobias foram separados?”

 “Jeanine tentou me matar, mas minha mãe me salvou. Ela era da Audácia, então sabia
usar uma arma”. Meu corpo parece mais pesado agora, mas não mais frio. Sinto alguma coisa
em meu peito, algo pior que tristeza, pior que arrependimento.

 Sei o que vem depois. Minha mãe morreu e depois eu matei Will; Eu atirei nele; Eu o
matei.

 “Ela distraiu os soldados da Audácia para que eu pudesse fugir, e eles a mataram”, eu
digo.

 Alguns deles correram atrás de mim, e eu os matei. Mas há pessoas da Audácia na
multidão ao meu redor, Audácia, eu matei alguns da Audácia, não devo falar sobre isso aqui.

 “Eu continuei correndo”, eu digo. “E...” E Will correu atrás de mim. E eu o matei. Não,
não. Sinto o suor em meu cabelo.

 “E eu achei meu irmão e meu pai”, eu digo com a voz reta. “Fizemos um plano de
destruir a simulação”.

 A beira do braço da cadeira aperta contra palma da minha mão. Eu escondi parte da
verdade. Certamente isso conta como decepção.

 Eu lutei contra o soro. E naquele pequeno momento, eu venci.

 Eu deveria me sentir triunfante. Em vez disso, sinto o peso do que eu fiz bater em mim
de novo.

 “Nós nos infiltramos no complexo da Audácia, e meu pai e eu subimos para a sala de
controle. Ele lutou com os soldados da Audácia, o que custou sua vida”, eu digo. “Eu cheguei à
sala de controle, e Tobias estava lá”.

 “Tobias disse que você lutou com ele, mas depois parou. Por que você fez isso?”


 “Porque eu percebi que um de nós teria que matar o outro”, eu digo. “e eu não queria
matá-lo”.

 “Você desistiu?”

 “Não!” Eu rebato. Balanço a cabeça. “Não, não exatamente. Eu me lembrei de algo que
fiz em minha paisagem do medo na iniciação da Audácia... em uma simulação, uma mulher me
mandou matar minha família, e eu a deixei atirar em mim em vez disso. Funcionou daquela
vez. Eu pensei...” Eu coço a ponta de meu nariz. Minha cabeça está começando a doer, meu
controle se foi e meus pensamentos se tornam palavras. “Eu estava tão frenética, mas tudo o
que podia pensar era que havia algo nele, que havia forças nele. E eu não podia matá-lo, então
tive que tentar”.

 Eu pisco as lágrimas em meus olhos.

 “Então você nunca esteve na simulação?”

 “Não”. Eu pressiono as costas de minhas mãos em meus olhos, empurrando as
lágrimas para fora, para que elas não caiam em minhas bochechas onde todos poderão vê-las.

 “Não”, eu digo novamente. “Não, eu sou Divergente”.

 “Apenas para esclarecer”, diz Niles. “Você está me dizendo que foi quase assassinada
pela Erudição... e depois lutou por seu caminho no complexo da Audácia... e destruiu a
simulação?”

 “Sim”, eu digo.

 “Eu acho que falo por todos”, ele diz. “quando digo que você mereceu estar na
Audácia”.

 Gritos surgem no lado esquerdo da sala, e eu vejo borrões de punhos pressionando o
ar escuro. Minha facção, me chamando.

 Mas não, eles estão errados, eu não sou corajosa, eu atirei em Will e não consigo
admitir isso, não consigo nem admitir isso...

 “Beatrice Prior”, diz Niles. “quais são seus maiores arrependimentos?”

 Do que eu me arrependo? Não me arrependo de escolher a Audácia ou de deixar a
Abnegação. Nem me arrependo de atirar nos guardas fora da sala de controle, porque era
muito importante que eu passasse deles.

 “Eu me arrependo...”

 Meus olhos deixam o rosto de Niles, pairam pela sala e aterrissam em Tobias. Ele está
sem expressão, sua boca em uma linha firme, seu olhar vazio. Suas mãos, cruzadas sobre seu
peito, apertam os braços tão forte que seus dedos estão brancos. Ao seu lado está Christina.
Meu peito aperta, e eu não consigo respirar.

 Tenho que contar a eles. Tenho que contar a verdade.

 “Will”, eu digo. Soa como um suspiro, como se fosse puxado direto do meu estômago.
Agora não há como voltar.

 “Eu atirei em Will”, eu digo. “quando ele estava na simulação. Eu o matei. Ele ia me
matar, mas eu o matei. Meu amigo”.

 Will, com o vinco entre as sobrancelhas, com olhos verdes como aipo e a habilidade de
citar o manifesto da Audácia só com a memória. Sinto uma dor tão forte no estômago que
quase solto um gemido. Dói lembrar dele. Dói em todas as partes do meu corpo.

 E há algo mais, algo pior que eu não percebi antes. Eu estava disposta a morrer para
salvar Tobias, mas o pensamento nunca me ocorreu quanto a Will. Eu decidi matá-lo em uma
fração de segundo.


 Sinto-me nua. Não percebi que vesti meus segredos como armadura até que eles se
foram, e agora todos me veem como eu realmente sou.

 “Obrigado por sua honestidade”, ele dizem.

 Mas Christina e Tobias não dizem nada.




















































 Capítulo 13

 Eu levanto da cadeira. Não me sinto tão tonta quanto antes; o soro já está perdendo o
efeito. A multidão se levanta, e eu procuro por uma porta. Normalmente eu não fujo das
coisas, mas disso eu fugiria.

 Todos começam a sair da sala exceto Christina. Ela fica parada onde eu a deixei, suas
mãos em punhos. Seus olhos encontram os meus apesar de não me encontrarem de fato.
Lágrimas nadam em seus olhos apesar de ela não estar chorando.

 “Christina”, eu digo, mas as únicas palavras que consigo pensar – Sinto muito – soam
mais como insulto do que pedido de desculpas. Você se desculpa quando bate em alguém com
o cotovelo, quando interrompe alguém. Eu estou mais do que sentida.

 “Ele tinha uma arma”, eu digo. “Ele ia atirar em mim. Ele estava na simulação”.

 “Você o matou”, ela diz. Suas palavras soam maiores, como se tivessem expandido em
sua boca antes dela falar. Ela olha para mim como se não me reconhecesse por alguns
segundos e vai embora.

 Uma garota mais nova com a mesma cor de pele e a mesma altura pega a mão dela – a
irmã mais nova de Christina. Eu a vi no Dia de Visitas, mil anos atrás. O soro da verdade faz a
imagem delas nadar à minha frente, ou pode ser por causa das lágrimas se juntando em meus
olhos.

 “Você está bem?” diz Uriah, emergindo da multidão para tocar meu ombro. Não tenho
visto ele desde antes do ataque, mas não consigo me concentrar para cumprimentá-lo.

 “Sim”.

 “Ei”. Ele aperta meu ombro. “Você fez o que tinha de fazer, certo? Salvar-nos de
sermos escravos da Erudição. Ela vai entender isso eventualmente. Quando a dor for
desaparecendo”.

 Não consigo me concentrar nem para concordar com a cabeça. Uriah sorri para mim e
anda para longe. Alguns da Audácia passam por mim e murmuram palavras que soam como
gratidão, ou cumprimentos, ou reafirmação. Outros mantêm grande distância, olham para
mim estreitamente, olhos suspeitosos.

 Os corpos vestidos de preto se esfregam juntos na minha frente. Eu estou vazia. Tudo
derramou para fora de mim.

 Tobias fica ao meu lado. Eu me preparo para sua reação.

 “Eu consegui nossas armas de volta”, ele diz oferecendo-me minha faca.

 Eu coloco-a em meu bolso traseiro sem olhar em seus olhos.

 “Nós podemos falar sobre isso amanhã”, ele diz. Calmamente. A calma é perigosa, em
se tratando de Tobias.

 “Ok”.

 Ele passa seus braços por meus ombros. Minha mão encontra seu quadril e eu o
empurro contra mim.

 Seguro firme enquanto andamos em direção ao elevador juntos.





 Ele encontra-nos duas camas pequenas no fim de um corredor em algum lugar.
Deitamos com nossas dores de cabeça à parte, sem falar.


 Quando tenho certeza que ele está dormindo, eu escorrego para fora dos cobertores e
ando pelo corredor, passando por dezenas de membros da Audácia dormindo. Encontro a
porta que dá para as escadas.

 Enquanto subo, passo após passo, e meus músculos começam a queimar, e meus
pulmões lutam por ar, eu sinto os primeiros momentos de alívio que tenho experimentado
nesses dias.

 Eu posso ser boa correndo em um chão reto, mas subir escadas é outra coisa. Eu
massageio um espasmo de meu tendão enquanto marcho pelo décimo segundo andar, e tento
readquirir um pouco do ar perdido. Eu sorrio ironicamente para a queimação feroz em minhas
pernas, em meu peito. Usando a dor para aliviar a dor. Não faz muito sentido.

 Quando alcanço o décimo oitavo andar, minhas pernas parecem líquidas. Eu ando
vacilante em direção à sala em que fui interrogada. Está vazia agora, mas o os bancos do
anfiteatro ainda estão aqui, assim como a cadeira na qual me sentei. A lua brilha atrás de um
mormaço de nuvens.

 Coloco as mãos atrás da cadeira. É simples: de madeira, um pouco chia. É estranho que
algo tão simples possa ter sido fundamental em minha decisão de arruinar um de meus
principais relacionamentos e ferir outro.

 É tão ruim eu ter matado Will, porque não consegui pensar rápido o bastante para
conseguir outra solução. Agora tenho que viver com o julgamento de todos, assim como o meu
próprio, e o fato de que nada – nem mesmo eu – vai ser igual de novo.

 Os membros da Franqueza contam os louvores da verdade, mas nunca dizem o quanto
ela custa.

 A beirada da cadeira fere a palma de minhas mãos. Estava apertando mais forte do
que pensei. Encaro-a por um segundo e depois a levanto, equilibrando as pernas da cadeira
em meu ombro bom. Procuro uma escada que vai me ajudar a subir. Tudo o que vejo são os
bancos do anfiteatro.

 Subo no banco mais alto, e levanto a cadeira sobre minha cabeça. Ela mal toca a
beirada de baixo de uma das janelas. Eu pulo, empurrando a cadeira para frente, e ela cai de
lado. Meu ombro dói – eu realmente não devia usar meu braço – mas tenho outras coisas em
minha mente.

 Pulo, agarro o parapeito da janela e me levanto, meus braços estão tremendo. Passo a
perna por cima e empurro o resto do meu corpo. Fico deitada lá por um tempo, puxando o ar e
soltando-o de novo.

 Fico parada na beirada, a baixo do arco do que antes seria uma janela, e olho para a
cidade. O rio morto faz uma curva ao redor dos edifícios e desaparece. A ponte, com sua
pintura vermelha descascada, se estica sobre a lama. De frente a ela, há construções, a maioria
vazia. É difícil acreditar que já existiram pessoas suficientes para enchê-las.

 Por um segundo, eu me permito reentrar na memória da interrogação. A falta de
expressão de Tobias; sua raiva depois, suprimida para o bem da minha sanidade. O olhar vazio
de Christina. Os sussurros, ‘Obrigado por sua honestidade’. É fácil dizer isso quando o soro não
os afetou.

 Eu seguro a cadeira e atiro-a sobre a borda. Um choro fraco me escapa. Ele cresce em
um grito, que se transforma em um berro, e depois eu estou parada na beirada do Comércio
Impiedoso, berrando enquanto a cadeira veleja em direção ao chão, berrando até minha


garganta queimar. Então a cadeira alcança o chão, despedaçando como um esqueleto frágil. Eu
me sento, inclinando no lado da janela e fecho meus olhos.

 E então penso em Al.

 Eu imagino quanto tempo Al ficou parado na borda antes de se lançar no abismo da
Audácia.

 Ele deve ter ficado lá por muito tempo, fazendo uma lista de todas as coisas terríveis
que ele já fez – quase me matar foi uma dessas coisas – e outra lista de todas as boas coisas,
heroicas, coisas corajosas que ele não fez, e depois decidiu que estava cansado. Cansado, não
só de viver, mas de existir. Cansado de ser Al.

 Abro meus olhos, e encaro os pedaços da cadeira que consigo enxergar no piso. Pela
primeira vez eu sinto como se entendesse Al. Estou cansada de ser a Tris. Eu tenho feito coisas
ruins. Não posso retirá-las, e eles são parte de quem eu sou. Na maior parte do tempo
parecem ser a única coisa que eu sou.

 Eu me inclino para frente, no ar, segurando na lateral da janela com uma mão. Mais
alguns centímetros e meu peso me empurraria para o chão. Não serei capaz de pará-lo.

 Mas não posso fazer isso. Meus pais perderam suas vidas por amor a mim. Perder a
minha sem nenhuma boa razão seria uma maneira terrível de retribuí-los pelo sacrifício, não
importa o que eu já tenha feito.

 “Deixe a culpa ensiná-la como se comportar na próxima vez”, meu pai diria.

 “Eu te amo. Não importa o que aconteça”, minha mãe diria.

 Uma parte de mim deseja que eu pudesse tirá-los de minha mente, para que eu nunca
tivesse que lamentar por eles. Mas o resto de mim tem medo do que seria de mim sem eles.

 Meus olhos embaçam com as lágrimas e eu volto para a sala de interrogações.



 Retorno a minha cama cedo naquela manhã e Tobias já está acordado. Ele se vira e vai
em direção aos elevadores, e eu o sigo, porque sei que é isso que ele quer. Ficamos parados no
elevador, lado a lado. Ouço um zumbido em meus ouvidos.

 O elevador sobe para o segundo piso, e eu começo a tremer. Começa em minhas
mãos, mas viaja por meus braços e meu peito, até que pequenos tremores estão em meu
corpo inteiro e eu não consigo impedi-los. Ficamos parados entre os elevadores, bem em cima
de outro símbolo da Franqueza, as balanças desequilibradas. O símbolo que também é
desenhado no meio da espinha dele.

 Ele não olha para mim por um longo tempo. Fica com seus braços cruzados e sua
cabeça baixa até que não consigo mais aguentar isso, até que eu me sinto como se devesse
gritar. Eu devia dizer algo, mas não sei o que. Não posso me desculpar, porque eu só disse a
verdade, e não posso transformar a verdade em uma mentira. Não posso dar desculpas.

 “Você não me contou”, ele diz. “Por que não?”

 “Porque eu não...” Eu balanço a cabeça. “Eu não sabia como fazer isso”.

 Ele franze a testa. “É muito fácil Tris-“

 “Ah claro”, eu digo concordando com a cabeça. “É tão fácil. Tudo que tenho que fazer
é chegar perto de você e dizer ‘A propósito, eu atirei em Will, e agora a culpa está me
rasgando em pedaçinhos, mas o que tem para o café da manhã? ’ Certo? Certo?” É muito, é
muito para conter. As lágrimas enchem meus olhos, e eu grito, “Porque você não tenta matar
um de seus melhores amigos e depois lidar com as consequências?”


 Eu cubro meu rosto com as mãos. Não quero que ele me veja soluçando de novo. Ele
toca meu ombro.

 “Tris”, ele diz gentilmente dessa vez. “Desculpe-me. Eu não devia fingir que entendo.
Eu só quis dizer que...” Ele se esforça por um momento. “Eu queria que confiasse em mim
suficientemente para me contar coisas como essa”.

 Eu confio em você, é o que eu quero dizer. Mas isso não é verdade – Eu não confiei
nele para me amar apesar de todas as coisas terríveis que eu fiz. Eu não confio em ninguém
para fazer isso, mas isso não é problema dele; é meu.

 “Quer dizer”, ele diz, “eu descobri que você quase morreu afogada em um tanque de
água, através de Caleb. Isso não soa estranho para você?”

 Bem quando eu estava quase pedindo desculpas.

 Eu limpo meu rosto com os dedos e olho para ele.

 “Outras coisas parecem mais estranhas”, eu digo tentando fazer minha voz ficar suave.
“Como descobrir que a suposta mãe de seu namorado está viva vendo-a pessoalmente. Ou
escutar os planos dele de se aliar com os sem facção, mas ele nunca te conta isso. Isso soa um
pouco estranho para mim”.

 Ele tira a mão dele de meu ombro.

 “Não finja que esse problema é só meu”, eu digo. “Se eu não confio em você, você
também não confia em mim”.

 “Eu pensei que chegaríamos a essas coisas eventualmente”, ele diz. “Eu tenho que te
contar tudo no exato momento em que elas acontecem?”

 Sinto-me tão frustrada que não consigo nem falar por alguns segundos. O calor enche
minhas bochechas.

 “Deus, Quatro!”, eu estalo. “Você não tem que me contar, mas eu tenho que contar
tudo para você? Não consegue ver o quão estúpido isso é?”

 “Primeiramente, não use esse nome como uma arma contra mim”, ele diz apontando
para mim. “Segundo, eu não estava fazendo planos de me aliar com os sem facção; eu estava
apenas pensando sobre isso. Se eu tivesse feito uma decisão, eu teria dito algo a você. E
terceiro, seria diferente se você pretendesse me contar sobre Will, mas é óbvio que você não
pretendia”.

 “Eu contei a você sobre Will!”, eu digo. “Aquilo não foi o soro da verdade; era eu. Eu
disse isso porque eu quis dizer”.

 “Do que você está falando?”

 “Eu estava acordada. Eu podia ter mentido; eu podia ter escondido isso de você. Mas
eu não fiz, porque pensei que você merecia saber a verdade”.

 “Mas que maneira de me contar!” ele diz, carrancudo. “Na frente de mais de cem
pessoas! Quanta intimidade”.

 “Ah, então não é suficiente te contar; tem que ser na ocasião certa?”, eu levanto as
sobrancelhas. “Na próxima vez eu devo trazer algum chá e me certificar de que a iluminação
está boa também?”

 Tobias solta um som frustrado e vira de costas para mim, vagando por alguns passos.
Quando ele se vira de volta, suas bochechas estão manchadas. Não me lembro de ter visto
alguma vez sua face trocar de cor.

 “Às vezes”, ele diz calmamente, “não é fácil estar com você Tris”. Ele olha para longe.


 Eu quero dizer que sei que não é fácil, que não teria conseguido sobreviver à última
semana sem ele. Mas eu apenas olho para ele, meu coração latejando em minhas orelhas.

 Não posso dizer a ele que preciso dele. Não posso precisar dele e ponto final – ou na
verdade, nós não podemos precisar um do outro, porque quem sabe quanto tempo nós vamos
durar nessa guerra?

 “Sinto muito”, eu digo quando toda a raiva já passou. “Eu devia ter sido honesta com
você”.

 “É só isso? Isso é tudo o que tem a dizer?” Ele me dá um olhar severo.

 “O que você queria que eu dissesse?”

 Ele só balança a cabeça. “Nada, Tris. Nada”.

 Eu assisto ele andar para longe. Sinto-me como se um buraco abrisse dentro de mim,
expandindo tão rapidamente que vai me separar em duas.










































 Capítulo 14

 “Ok, o que diabos você está fazendo aqui?” Uma voz pergunta.

 Sento num colchão em um dos corredores. Eu vim aqui para fazer alguma coisa, mas
perdi a linha de pensamentos quando cheguei, então apenas sentei ali. Eu olho para cima.
Lynn – que conheci quando ela pisou no meu pé no elevador do edifício Hancock – fica parada
acima de mim com sobrancelhas levantadas. Seu cabelo está crescendo – ainda é curto, mas
não posso ver seu crânio mais.

 “Estou sentada”, eu digo. “Por quê?”

 “Você é ridícula, é isso que você é”. Ela suspira. “Junte suas coisas. Você é da Audácia,
e já é hora de agir como tal. Está passando uma imagem ruim de nós entre os membros da
Franqueza”.

 “O que exatamente eu estou fazendo para isso?”

 “Agindo como se não nos conhecesse”.

 “Eu só estou fazendo um favor a Christina”.

 “Christina”. Lynn bufa. “Ela é um cachorrinho apaixonado. Pessoas morrem. É isso o
que acontece numa guerra. Ela vai perceber isso eventualmente”.

 “Sim, pessoas morrem, mas não é sempre sua amiga quem mata elas”.

 “Que seja”, Lynn suspira impaciente. “Venha”.

 Não vejo razões para recusar. Levanto-me e a sigo por séries de corredores. Ela se
move em um ritmo acelerado, e é difícil segui-la.

 “Onde está seu namorado assustador?”

 Meus lábios se enrugam como se tivesse comido algo azedo. “Ele não é assustador”.

 “Claro que não”. Ela sorri

 “Não sei onde ele está”.

 Ela encolhe os ombros. “Bem, você pode pegar um beliche para ele também. Estamos
tentando esquecer aquelas crianças bastardas da Audácia-Erudição. Se recomponha”.

 Eu dou uma risada. “Crianças bastardas da Audácia-Erudição, hein”.

 Ela empurra a porta, e ficamos paradas em uma grande sala aberta que me lembra do
lobby do edifício. Sem surpresa, o chão é de mármore preto com um símbolo branco gigante
no centro da sala, mas a maior parte dele está coberto com beliches, homens, mulheres e
crianças da Audácia por todos os lados, e não há um único membro da Franqueza a vista.

 Lynn me leva ao lado esquerdo da sala, entre fileiras de beliches. Ela olha para o
garoto sentado em um dos últimos - ele é poucos anos mais novo que nós, e está tentando
desfazer um nó em seus cadarços.

 “Hec”, ela diz, “você vai ter que achar outro beliche”.

 “O que? Sem chance”, ele diz sem olhar para cima. “Eu não vou me mudar de novo só
porque você quer ter conversas intermináveis durante a noite com um de seus amigos
estúpidos”.

 “Ela não é minha amiga”, Lynn rebate. Eu quase solto uma risada. Ela está certa – a
primeira coisa que ela fez quando me conheceu foi pisar em meu pé. “Hec, essa é Tris. Tris,
esse é meu irmão mais novo, Hector”.

 Com o som de meu nome, a cabeça dele vira para mim, boquiaberto.

 “Prazer em conhecê-lo”.


 “Você é Divergente”, ele diz. “Minha mãe disse para ficar longe de você porque você
pode ser perigosa”.

 “Sim. Ela é uma grande e assustadora Divergente, e vai fazer sua cabeça explodir
apenas com o poder do cérebro”, diz Lynn, apontando-o entre os olhos com o indicador. “Não
me diga que você realmente acredita em todas essas coisas infantis sobre os Divergentes”.

 Ele fica vermelho e pega algumas de suas coisas de uma pilha perto da cama. Sinto-me
mal por fazê-lo mudar até que ele joga suas coisas em um beliche não muito distante. Ele não
teve que andar muito.

 “Eu poderia ter feito isso”, eu digo. “Dormir ali”.

 “Sim, eu sei”, Lynn sorri. “Ele merece isso. Ele chamou Zeke de traidor na frente de
Uriah. Não que isso seja mentira, mas não é motivo para ficar zombando. Eu acho que a
Franqueza o está afetando. Ele se sente como se pudesse dizer o que quiser. Ei, Mar!”

 Marlene coloca a cabeça ao redor de um dos beliches e sorri para mim.

 “Ei, Tris!” diz Marlene. “Bem vinda. O que foi Lynn?”

 “Você pode pedir as garotas menores que doem algumas peças de roupas?” Lynn diz.
“Nem todas blusas. Jeans, roupas íntimas, talvez um par de sapatos?”

 “Claro”, diz Marlene.

 Eu coloco minha faca perto do último beliche.

 “A que ‘coisas infantis’ você estava se referindo?” eu digo.

 “Os Divergentes. Pessoas com poderes especiais? Qual é”. Ela encolhe os ombros. “Eu
sei que você acredita nisso, mas eu não”.

 “Então como você explica que eu fique acordada durante as simulações?” eu digo. “Ou
resistir inteiramente a uma delas?”

 “Eu acho que os líderes escolhem pessoas aleatoriamente e mudam as simulações
para eles”.

 “Por que eles fariam isso?”

 Ela balança a mão na minha frente. “Distração. Está tão ocupada se preocupando com
os Divergentes – como minha mãe – que se esquece de se preocupar com o que os líderes
estão fazendo. É apenas uma maneira diferente de controle da mente”.

 Seus olhos desviam dos meus, e ela anda pelo chão de mármore com a ponta do
sapato. Eu me pergunto se ela está se lembrando da última vez em que teve a mente
controlada. Durante a simulação do ataque.

 Eu estive tão focada no que aconteceu com a Abnegação que quase esqueci o que
aconteceu com a Audácia. Centenas de pessoas acordaram e descobriram a marca negra do
assassinato nelas, e elas nem tiveram chance de escolher.

 Eu decido não argumentar com ela. Se ela quer acreditar em uma conspiração
governamental, eu não acho que posso dissuadi-la. Ela teria que ver por si mesma.

 “Eu consegui algumas roupas”, diz Marlene, andando em nossa direção. Ela segura um
saco de roupas pretas do tamanho de seu tronco, o qual ela oferece a mim com um olhar
orgulhoso no rosto. “Eu fiz sua irmã se sentir culpada para que ela doasse um vestido, Lynn.
Ela trouxe três”.

 “Você tem uma irmã?” Eu pergunto.

 “Sim”, ela diz. “ela tem dezoito anos. Estava na turma de iniciação do Quatro”.

 “Qual o nome dela?”


 “Shauna”, ela diz. Ela olha para Marlene. “Eu disse a ela que nenhuma de nós
precisaria de vestidos, mas ela não escutou, como sempre”.

 Eu me lembro de Shauna. Ela era uma das pessoas que me seguraram depois da
tirolesa no prédio.

 “Eu acho que seria mais fácil lutar usando vestidos”, diz Marlene, dedilhando seu
queixo. “Daria um movimento mais livre às nossas pernas. E quem liga se os outros virem um
flash de sua calcinha enquanto você está batendo neles até a morte?”

 Lynn fica quieta, como se reconhecesse que aquilo era brilhante, mas não conseguisse
admitir.

 “Que história é essa de ver a calcinha?” diz Uriah, pulando por um beliche. “O que
quer que seja eu estou dentro”.

 Marlene dá um soco no braço dele.

 “Alguns de nós estão indo para o edifício Hancock essa noite”, diz Uriah. “Vocês todas
deviam vir. Vamos sair as dez”.

 “Tirolesa?” diz Lynn.

 “Não. Vigilância. Temos escutado que a Erudição mantém as luzes acesas durante toda
a noite, o que vai tornar fácil olhar por suas janelas. Ver o que estão fazendo”.

 “Eu vou”, eu digo.

 “Eu também”, diz Lynn.

 “Eu também”, Marlene diz sorrindo para Uriah. “Vou pegar comida. Quer vir?”

 “Claro”, ele diz.

 Marlene acena enquanto eles saem andando. Ela costumava andar com saltos em seus
passos, como se estivesse desviando de algo. Agora seus passos são mais leves – mais
elegantes, talvez, mas faltando a alegria infantil que eu associo a ela. Pergunto-me o que ela
fez quando estava na simulação.

 A boca de Lynn se contorce.

 “O que?” Eu digo.

 “Nada”, ela rebate. Ela balança a cabeça. “Eles têm passado o tempo todo sozinhos
ultimamente”.

 “Ele precisa de todos os amigos que possa conseguir”, eu digo. “Com o que aconteceu
com Zeke, e tudo”.

 “É. Que pesadelo. Um dia ele estava aqui, e no outro...” Ela suspira. “Não importa o
quanto você treine uma pessoa para ser corajosa, você nunca sabe se ela é, até que alguma
coisa real acontece”.

 Seus olhos fixam em mim. Nunca havia percebido o quão estranhos eles são, um
marrom dourado. E agora que o cabelo dela cresceu, e sua careca não é a primeira coisa que
eu vejo, também percebo seu nariz delicado, seus lábios cheios – ela é impressionante sem
tentar ser. Eu sinto inveja dela por um momento, e depois penso que ela deve odiar isso, e é
por isso que ela raspou o cabelo.

 “Você é corajosa”, ela diz. “Você não precisa que eu diga isso, porque você já sabe.
Mas quero que saiba que eu sei”.

 Ela está me elogiando, mas ainda sinto como se ela me desse um tapa.

 Então ela adiciona, “Não atrapalhe isso”.




 Algumas horas mais tarde, depois de eu ter comido um lanche e descansado, eu me
sento na beirada da cama para trocar o curativo em meu ombro. Eu tiro minha blusa, deixando
meu apenas meu top – há várias pessoas da Audácia ao redor, reunindo-se entre os beliches,
rindo de piadas. Eu termino de aplicar a pomada quando ouço um grito de riso. Uriah abre a
coxia entre dois beliches com Marlene jogada em seus ombros. Ela acena para mim quando
eles passam, seu rosto vermelho.

 Lynn, que está sentada no beliche em frente ao meu, faz uma carranca. “Não entendo
como ele consegue flertar, com tudo o que está acontecendo”.

 “Ele devia ficar se escondendo, chorando o tempo todo?” Eu digo, alcançando a parte
de trás de meu ombro para pressionar o curativo em minha pele. “Talvez você possa aprender
algo com ele”.

 “Olha só quem fala”, ela diz. “Você está sempre deprimida. Devíamos te chamar de
Beatrice Prior, Rainha da Tragédia”.

 Eu fico em pé e empurro seu braço, mais forte do que se eu estivesse brincando e mais
fraco do que se eu estivesse falando sério.

 Sem olhar para mim, ela empurra meu ombro na direção do beliche. “Eu não obedeço
Caretas”.

 Eu noto uma onda ligeira em seu lábio e reprimo um sorriso.

 “Pronta para ir?” Lynn diz.

 “Aonde vocês vão?” Tobias diz, deslizando entre sua cama e a minha para parar no
corredor conosco. Minha boca fica seca. Não tenho falado com ele o dia todo, e eu não tenho
certeza do que esperar. Vai ser estranho ou vamos voltar ao normal?

 “Topo do edifício Hancock para espiar a Erudição”, Lynn diz. “Quer vir?”

 Tobias me dá um olhar. “Não, eu tenho algumas coisas para cuidar aqui. Mas tomem
cuidado”.

 Concordo com a cabeça. Eu sei por que ele não quer ir – Tobias tenta evitar alturas, se
possível. Ele toca meu braço, levando-me para trás por apenas um momento. Eu fico tensa –
ele não me toca desde antes da nossa briga – e ele me solta.

 “Vejo você depois”, ele murmura. “Não faça nada estúpido”.

 “Obrigada pelo voto de confiança”, eu digo com uma carranca.

 “Eu não quis dizer isso”, ele diz. “Quis dizer que não deixe ninguém fazer nada
estúpido. Eles vão te escutar”.

 Ele se inclina em minha direção como se fosse me beijar e depois parece pensar
melhor nisso e volta para trás, mordendo o lábio. É um ato pequeno, mas ainda parece
rejeição. Eu evito seus olhos e corro atrás de Lynn.

 Nós andamos pelo corredor em direção ao elevador. Alguns membros da Audácia
começaram a marcar as paredes com quadrados coloridos. A sede da Franqueza é como um
labirinto para eles, e eles querem aprender a navegar por ele. Eu só sei como chegar aos
lugares mais básicos: o dormitório, a cafeteria, o lobby, a sala de interrogações.

 “Por que todos deixaram a sede da Audácia?” Eu digo. “Os traidores não estão lá,
estão?”

 “Não, eles estão na sede da Erudição. Nós saímos porque a sede da Audácia tem a
maior serventia de câmeras do que qualquer outra parte da cidade”, Lynn diz. “Nós pensamos
que a Erudição poderia provavelmente acessar os vídeos, e demoraria muito para achar todas
as câmeras, então seria melhor sair”.


 “Inteligente”.

 “Temos nossos momentos”.

 Lynn aperta o botão do primeiro piso. Eu encaro nossos reflexos nas portas. Ela é mais
alta que eu apenas por alguns centímetros, e apesar de sua camisa e calça largas tentarem
esconder, eu posso dizer que o corpo dela tem curvas.

 “O que?” Ela diz, franzindo a testa.

 “Por que você raspou a cabeça?”

 “Iniciação”, ela diz. “Eu amo a Audácia, mas os garotos não enxergam as garotas como
uma ameaça durante a iniciação. Eu fiquei cansada disso. Então eu percebi que se eu não
parecesse muito com uma garota, talvez eles não olhariam para mim daquela maneira”.

 “Eu acho que você podia ter usado o fato de eles te subestimarem como uma
vantagem”.

 “É. Agido toda frágil, toda vez que algo assustador aparecesse?” Lynn revira os olhos.
“Você acha que eu tenho dignidade zero ou o que?”

 “Eu acho que um erro dos membros da Audácia é serem convencidos”, eu digo. “Você
não tem sempre que exibir na cara de todo mundo o quão forte você é”.

 “Talvez você devesse usar azul a partir de agora”, ela diz. “se vai agir como alguém da
Erudição. Além disso, você faz a mesma coisa, mas sem raspar a cabeça”.

 Eu salto para fora do elevador antes que eu diga algo que eu vá me arrepender depois.
Lynn perdoa rápido, mas também é rápida para começar brigas, assim como a maioria das
pessoas da Audácia. Como eu, exceto a parte do “perdoa rápido”.

 Como sempre, alguns da Audácia segurando armas grandes andam pelas portas,
procurando intrusos. Na frente deles está um grupo de jovens, incluindo Uriah; Marlene; A
irmã de Lynn, Shauna e Lauren, que ensinou os iniciantes nascidos na Audácia, assim como
Quatro ensinou os transferidos durante a iniciação. A orelha dela brilha quando ela move a
cabeça – ela tem piercings de cima a baixo.

 Lynn para de repende e eu piso em seu calcanhar. Ela pragueja alguma coisa.

 “Que charmosa você é”, diz Shauna, sorrindo para Lynn. Elas não se parecem muito,
exceto pela cor do cabelo que é um castanho médio, mas o de Shauna para na altura do
queixo, como o meu.

 “Sim, esse é o meu objetivo. Ser charmosa”, Lynn responde.

 Shauna passa um braço através dos ombros de Lynn. É estranho vê-la com uma irmã –
vê-la com uma conexão com qualquer um. Shauna olha para mim, seu sorriso desaparecendo.
Ela parece alarmada.

 “Oi”, eu digo, por que não há mais nada para dizer.

 “Olá”, ela diz.

 “Oh, Deus. Mamãe também te atingiu, não foi” Lynn cobre o rosto com uma mão.
“Shauna –“

 “Lynn. Fique calada pelo menos uma vez”, diz Shauna, seus olhos ainda em mim. Ela
parece tensa, como se pensasse que eu fosse atacá-la a qualquer momento. Com poderes
especiais.

 “Oh!” diz Uriah, me resgatando. “Tris, você conhece Lauren?”

 “Sim” Lauren diz, antes que eu possa responder. Sua voz é nítida e clara, como se ela
estivesse o repreendendo, mas parece ser o seu jeito normal de falar. “Ela esteve em minha


paisagem do medo para praticar durante a iniciação. Então ela me conhece melhor do que
devia, provavelmente”.

 “Sério? Eu pensei que os transferidos passariam pela paisagem do medo de Quatro”,
diz Uriah.

 “Como se ele fosse deixar qualquer um fazer isso”, ela diz, bufando.

 Alguma coisa dentro de mim fica aconchegante e macia. Ele me deixou fazer isso.

 Eu vejo um brilho azul acima do ombro de Lauren e olho ao redor dela para enxergar
melhor.

 Então as armas disparam.

 As portas de vidro explodem em pedaços. Soldados da Audácia com braçadeiras azuis
estão parados na calçada do lado de fora, carregando armas que nunca vi antes, armas com
feixes azuis saindo de cima do cano.

 “Traidores!” Alguém grita.

 Os soldados tiram as armas, quase em uníssono. Não tenho uma para tirar, então eu
abaixo atrás da fileira de membros leais da Audácia na minha frente, meus sapatos quebrando
cacos de vidro abaixo das solas, e pego minha faca em meu bolso traseiro.

 Todos ao meu redor caem no chão. Meus colegas de facção. Meus amigos mais
próximos. Todos eles caindo – eles devem estar mortos, ou morrendo – com o barulho
ensurdecedor de balas preenchendo meus ouvidos.

 Então eu congelo. Um dos feixes azuis está fixo em meu peito. Eu mergulho para o
lado para sair da linha de fogo, mas não me movo rápido o bastante.

 A arma dispara. Eu caio.






























 Capítulo 15

 A dor dá lugar a um incômodo. Eu passo minha mão por baixo da jaqueta e sinto a
ferida.

 Não estou sangrando. Mas a força do tiro me apagou, então eu devo ter sido atingida
por alguma coisa. Eu corro meus dedos por meu ombro, e sinto um inchaço onde a pele
costumava ser macia.

 Ouço um estalo no chão perto do meu rosto e um cilindro de metal com
aproximadamente o tamanho da minha mão rola até parar contra minha cabeça. Antes que eu
consiga movê-lo, uma fumaça branca exala pelos dois lados. Eu começo a tossir e jogo o
cilindro para longe de mim, mais para o centro do lobby. Não é o único cilindro – eles estão em
todos os lugares, preenchendo a sala com fumaça que não queima ou arde. Na verdade, ela só
embaça minha visão por alguns segundos antes de evaporar completamente.

 Qual foi o objetivo disso?

 Deitados no chão ao meu redor estão os soldados da Audácia com seus olhos
fechados. Eu franzo as sobrancelhas ao olhar para Uriah de cima a baixo – ele não parece estar
sangrando. Não vejo feridas na região dos órgãos vitais, o que significa que ele está vivo. Então
o que o deixou inconsciente? Eu olho sobre meu ombro, onde Lynn está caída em uma posição
estranha, meio encurvada. Ela também está inconsciente.

 Os membros traidores da Audácia andam pelo lobby com as armas em mãos. Eu
decido fazer o que eu sempre faço quando não sei o que está acontecendo: agir como o resto
das pessoas. Deixo minha cabeça cair e fecho os olhos. Meu coração acelera quando os passos
chegam mais perto, rangendo no chão de mármore. Mordo minha língua para suprimir um
choro de dor quando um deles pisa em minha mão.

 “Não sei por que nós não podemos só dar um tiro neles na cabeça”, um deles diz. “Se
não tiverem um exército, nós ganhamos”.

 “Agora, Bob, nós não podemos só matar todo mundo”, uma voz fria diz.

 O cabeço na minha nuca arrepia. Eu reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Ela
pertence a Eric, líder da Audácia.

 “Se não há pessoas significa que não restou ninguém para criar condições favoráveis”,
Eric continua. “De qualquer forma, não é nosso trabalho fazer perguntas”. Ele aumenta o tom
de voz. “Metade nos elevadores, metade nas escadarias, esquerda e direita. Vão!”

 Há uma arma a poucos metros a minha esquerda. Se eu abrisse meus olhos, poderia
pegá-la e atirar nele antes que ele soubesse o que o atingiu. Mas não há garantias de que serei
capaz de tocar nela sem entrar em pânico de novo.

 Eu espero até que escuto o último passo desaparecer atrás de uma porta de elevador
ou em uma escadaria antes de abrir os olhos. Todos no lobby parecem estar inconscientes. O
que quer que tenha naquele gás deve ter sido uma indução a simulação ou eu não seria a
única acordada. Não faz nenhum sentido – não segue as regras das simulações que eu estou
familiarizada – mas eu não tenho tempo para pensar nisso.

 Eu pego minha faca e me levanto, tentando ignorar a dor em meu ombro. Eu corro em
direção a um dos traidores mortos da Audácia perto da porta. Ela era jovem; há indícios de
cinza em seu cabelo escuro. Eu tento não olhar no ferimento da bala em sua cabeça, mas uma
luz brilha no que parece ser um osso, e eu tenho que improvisar.


 Pense. Não me importo com quem ela era, ou qual era seu nome, ou quantos anos ela
tinha. Eu me preocupo apenas com a braçadeira azul que ela usa. Tenho que focar nisso. Tento
amarrar meu dedo no tecido, mas ele não cede. Parece que está fixo em sua jaqueta preta.
Vou ter que tirar isso também.

 Eu abro minha jaqueta e coloco sobre a cara dela para que eu não tenha que encará-la.
Abro a jaqueta dela e puxo-a primeiro pelo braço esquerdo e depois pelo direito, rangendo
meus dentes enquanto passo-a por baixo de seu corpo pesado.

 “Tris!” alguém diz. Eu me viro com a jaqueta em uma mão e a faca na outra. Escondo a
faca em meu bolso – os invasores da Audácia não estavam carregando facas, e eu não quero
levantar suspeitas.

 Uriah está parado bem atrás de mim.

 “Divergente?” Eu pergunto a ele. Não há tempo para ficar chocada.

 “Sim”, ele diz.

 “Pegue uma jaqueta”, eu digo.

 Ele se agacha perto de um dos traidores, esse é mais novo, não é nem velho o bastante
para ser um membro da Audácia. Eu recuo ao ver o rosto pálido dele. Alguém tão novo não
devia estar morto; não devia nem vir aqui em primeiro lugar.

 Meu rosto quente com a raiva, eu visto a jaqueta da mulher. Uriah coloca sua jaqueta
também.

 “Eles são os únicos que estão mortos”, ele diz calmamente. “Alguma coisa soa
estranha para você?”

 “Eles deviam saber que atiraríamos neles, mas vieram de qualquer maneira”, eu digo.
“Perguntas mais tarde. Temos que ir para lá”.

 “Ir para lá? Por quê?” Ele diz. “Devíamos sair daqui”.

 “Você quer fugir antes de saber o que está acontecendo?” Eu faço uma carranca para
ele. “Antes dos membros da Audácia nos andares de cima saberem o que os atingiu?”

 “E se alguém nos reconhecer?”

 Eu dou de ombros. “Temos que torcer para não reconhecerem”.

 Eu corro até as escadarias, e ele me segue. Assim que meu pé toca a primeira escada,
eu me pergunto o que eu pretendo fazer. Devem existir mais Divergentes nesse prédio, mas
eles vão saber o que são? Vão saber se esconder? E o que eu espero ganhar me submergindo
no exército de traidores da Audácia?

 Dentro de mim eu sei a resposta: Estou sendo imprudente. Provavelmente não vou
ganhar nada. Provavelmente vou morrer.

 E para piorar: Eu não estou preocupada.

 “Eles vão subir”, eu digo entre nossas respirações. “Então você deve... ir para o
terceiro andar. Dizer a eles para... evacuar. Calmamente”.

 “Para onde você está indo, então?”

 “Segundo andar”, eu digo. Enfio meu ombro na porta do segundo andar. Eu sei o que
fazer: Procurar Divergentes.



 Enquanto ando pelo corredor, caminhando por entre pessoas inconscientes vestidas
em preto e branco, eu penso em um verso da música que as crianças da Franqueza
costumavam cantar quando pensavam que ninguém poderia ouvi-los.

 A Audácia é a mais cruel das cinco


 Eles rasgam uns aos outros em pedaços...

 Ela nunca foi tão honesta quanto agora, assistindo os traidores induzirem uma
simulação de sono que não é muito diferente daquela que os forçou a matar membros da
Abnegação há menos de um mês atrás.

 Somos a única facção que poderia se dividir assim. A Amizade não permitiria um cisma;
ninguém na Abnegação seria tão egoísta; A Franqueza iria discutir até que encontrassem uma
solução comum; e até a Erudição nunca faria algo tão sem lógica. Somos realmente a facção
mais cruel.

 Eu piso em um braço e uma mulher com sua boca aberta, e canto o próximo verso da
canção.

 A Erudição é a mais fria das cinco

 Conhecimento é algo custoso...

 Eu imagino quando Jeanine percebeu que a Erudição e a Audácia fariam uma
combinação mortífera. Crueldade e lógica fria, aparentemente, podem formar quase tudo,
incluindo colocar uma facção e meia para dormir.

 Eu observo as faces e os corpos enquanto ando, procurando respirações irregulares,
pálpebras piscando, qualquer coisa que possa sugerir que as pessoas deitadas no chão estão
só fingindo estarem inconscientes. Até agora, todas as respirações são equilibradas e todas as
pálpebras estão paradas. Talvez ninguém da Franqueza seja Divergente.

 “Eric!” Eu ouço alguém gritar no final do corredor. Seguro minha respiração enquanto
ele anda bem na minha direção. Tento não me mover. Se eu me mover ele vai olhar para mim,
e vai me reconhecer, eu sei disso. Eu olho para baixo, e fico tão tensa que começo a tremer.
Não olhe para mim Não olhe para mim Não olhe para mim...

 Eric passa por mim em direção ao corredor a minha esquerda. Eu devia continuar
minha busca o mais rápido possível, mas a curiosidade me dá uma urgência de ir à direção de
quem quer que seja que tenha chamado Eric. O grito soou urgente.

 Quando levanto os olhos, eu vejo um soldado da Audácia parado em cima de uma
mulher ajoelhada. Ela usa uma roupa branca e uma saia preta, e suas mãos estão atrás da
cabeça. O sorriso de Erick parece ganancioso até mesmo de perfil.

 “Divergente”, ele diz. “Muito bem. Traga-a para o elevador. Vamos decidir quais vamos
matar e quais vamos trazer de volta mais tarde”.

 O soldado da Audácia carrega a mulher pelo rabo de cavalo em seu cabelo e anda em
direção ao elevador, arrastando-a atrás dele. Ela grita e depois embaralha seus pés, se
inclinando. Eu tento engolir, mas sinto-me como se tivesse um punhado de bolas de algodão
em minha garganta.

 Eric continua a andar pelo corredor, para longe de mim, e eu tento não encarar
enquanto a mulher da Franqueza tropeça por mim, seu cabelo ainda amarrado no punho do
soldado da Audácia. A essa altura eu sei como o terror funciona: Eu o deixo controlar-me por
alguns segundos, e depois me forço a agir.

 Um...Dois...Três...

 Eu começo a correr para frente com um novo senso de propósito. Vigiar cada pessoa
para ver se estão acordados está demorando de mais. Vejo a próxima pessoa inconsciente e
piso fortemente em seu dedo. Sem resposta, nem mesmo uma contração. Eu passo por eles e
encontro o dedo da próxima pessoa, pressionando fortemente com a ponta do sapato.
Nenhuma resposta também.


 Eu ouço outra pessoa gritar “Peguei um!” em algum corredor distante e começo a me
sentir frenética. Eu salto de homem caído para mulher caída, para crianças e adolescentes e
idosos, pisando nos dedos ou estômagos ou tornozelos, procurando por sinais de dor. Eu mal
vejo seus rostos depois de um tempo, mas ainda não vejo resposta. Estou brincando de pique
esconde com os Divergentes, mas não sou a única assim.

 E então acontece. Eu piso no dedo de uma garota da Franqueza, e seu rosto contrai.
Apenas um pouco – uma tentativa impressionante de esconder a dor – mas o suficiente para
chamar minha atenção.

 Eu olho sobre meu ombro para ver se alguém está perto de mim, mas todos eles foram
para outros corredores. Eu checo a escadaria mais próxima – há uma a apenas alguns metros
de distância, perto de um corredor a minha direita. Eu agacho perto da cabeça da garota.

 “Ei, garota”, eu digo o mais calmamente que consigo. “Está tudo bem. Eu não sou um
deles”.

 Seus olhos abrem, só um pouco.

 “Há uma escadaria a apenas uns 3 metros daqui”, eu digo. “Vou te dizer quando não
tiver ninguém por perto, e então você tem que correr, entendeu?”

 Ela concorda com a cabeça.

 Eu me levanto e me viro vagarosamente. Um traidor a minha esquerda está olhando
para longe, empurrando um membro da Audácia com seu pé. Dois traidores atrás de mim
estão rindo de algo. Um a minha frente está vagando em minha direção, mas depois ele vira a
cabeça e começa a vagar pelo corredor de novo, para longe de mim.

 “Agora”, eu digo.

 A garota se levanta e corre em direção à porta da escadaria. Eu olho para ela até a
porta se fechar, e eu vejo meu reflexo em uma das janelas. Mas não estou sozinha num
corredor com pessoas dormindo, como eu havia pensado. Eric está bem atrás de mim.



 Eu olho para seu reflexo, e ele olha de volta para mim. Eu uso esse tempo como um
intervalo. Se me mover rápido o bastante, ele pode não ter presença de espírito para me
segurar. Mas eu sei, assim que a ideia me ocorre, que não vou ser capaz de correr mais que
ele. E não vou ser capaz de atirar nele, porque não peguei uma arma.

 Eu me viro, levantando meu cotovelo, e movo em direção o rosto de Eric. Ele acerta o
fim de seu queixo, mas não forte o bastante para causar estrago. Ele segura meu braço
esquerdo com uma mão e pressiona o cano de uma arma em minha testa com a outra,
sorrindo para mim.

 “Eu não entendo”, ele diz. “como você pode ser burra o bastante para subir aqui sem
nenhuma arma”.

 “Bem, eu sou esperta o bastante para fazer isso”, eu digo. Eu piso forte em seu pé, o
qual eu havia atirado há menos de um mês. Ele grita, seu rosto de contorcendo, e bate o cabo
da arma em minha mandíbula. Eu cerro os dentes para suprimir um gemido. Sangue escorre
por meu pescoço – ele rasgou a pele.

 Através de tudo aquilo, sua força em meu braço não se soltou nem por uma vez. Mas o
fato de que ele não atirou em mim na cabeça me diz algo: Ele não está autorizado a me matar
ainda.

 “Eu fiquei surpreso de descobrir que você ainda estava viva”, ele diz. “Considerando
que fui eu quem disse a Jeanine para construir aquele tanque de água para você”.


 Eu tento pensar no que eu posso fazer que seja doloroso o bastante para ele me soltar.
Eu tinha acabado de decidir dar um chute forte na virilha quando ele desliza para trás de mim
e me segura pelos dois braços, pressionando para que eu mal consiga mover meus pés. Suas
unhas perfuram minha pele, e eu cerro os dentes, pela dor e pela sensação doentia de seu
peito encostando-se a minhas costas.

 “Ela pensou que estudar a reação de um dos Divergentes em uma versão real da
simulação seria fascinante”, ele diz, e me empurra para frente para que eu tenha que andar.
Sua respiração arrepia meu cabelo. “E eu concordei. Você vê, ingenuidade – uma das
qualidades que mais valorizamos na Erudição – requer criatividade”.

 Ele gira suas mãos para que os calos esbarrem em meus braços. Eu movo meu corpo
ligeiramente para a esquerda enquanto ando, tentando posicionar um de meus pés entre suas
pernas. Eu percebo com um prazer voraz que ele está mancando.

 “Algumas vezes a criatividade parece desperdício, sem lógica... a menos que seja usada
para um bom propósito. Nesse caso, a acumulação de conhecimento”.

 Eu paro de andar tempo o bastante para trazer meu calcanhar para cima, entre suas
pernas. Um choro agudo se forma em sua garganta, interrompido antes de realmente
começar, e suas mãos ficam fracas por um momento. Nesse momento, eu viro meu corpo o
mais forte que posso e me liberto. Não sei para onde vou correr, mas tenho que correr, tenho
que –

 Ele segura meu cotovelo, puxando-me para trás, e empurrando seu dedo na ferida em
meu ombro, girando até que a dor faz minha visão ficar escura nos cantos, e eu grito até o fim
de meus pulmões.

 “Eu pensei que me lembrava de você ter levado um tiro nas filmagens do tanque de
água”, ele diz. “Parece que eu estava certo”.

 Meus joelhos se dobram em baixo de mim, e ele agarra meu colarinho quase
descuidadamente, me arrastando em direção ao elevador. O tecido mergulha em minha
garganta, me sufocando, e eu tropeço depois dele. Meu corpo lateja em uma dor persistente.

 Quando alcançamos o elevador, ele me força a ficar de joelhos perto da mulher da
Franqueza que eu vi mais cedo. Ela e outros quatro estão sentados entre as duas fileiras de
elevadores, mantidos no lugar por membros da Audácia armados.

 “Eu quero uma arma em cima dela o tempo todo”, diz Eric. “Não só mirando. Em cima
dela”.

 Um homem da Audácia empurra o cano de uma arma na minha nuca. Ela forma um
círculo gelado em minha pele. Eu levanto meus olhos para Eric. Seu rosto está vermelho, seus
olhos molhados.

 “Qual o problema Eric?” Eu digo, levantando as sobrancelhas. “Com medo de uma
garotinha?”

 “Não sou burro”, ele diz, empurrando as mãos por seu cabelo. “Essa atitude de
garotinha pode ter funcionado comigo antes, mas não vai funcionar de novo. Você é o melhor
cão de briga que eles têm”. Ele se inclina mais para perto de mim. “E é por isso que vou fazer
questão de que você morra em breve”.

 Uma das portas do elevador abre, e um soldado da Audácia arrasta Uriah – quem está
com os lábios banhados em sangue – em direção a uma fileira pequena de Divergentes. Uriah
olha para mim, mas não consigo ler sua expressão bem o bastante para saber se ele teve


sucesso ou não. Se ele está aqui, provavelmente falhou. Agora eles vão achar todos os
Divergentes no prédio, e a maioria de nós vai morrer.

Eu devia estar com medo. Mas em vez disso uma risada histérica borbulha dentro de
mim, porque eu acabo de me lembrar de uma coisa:
Talvez eu não consiga segurar uma arma. Mas eu tenho uma faca em meu bolso
traseiro.


















































 Capítulo 16

 Eu movo minha mão para trás, centímetro por centímetro, para que o soldado
apontando a arma pra mim não perceba. As portas do elevador abrem novamente, trazendo
mais Divergentes com os traidores da Audácia. A mulher da Franqueza a minha direita solta
alguns gemidos. Alguns fios de seu cabelo estão grudados em seus lábios, que estão molhados
de saliva ou lágrimas.

 Minha mão alcança o canto do meu bolso traseiro. Eu a mantenho equilibrada, meus
dedos tremendo de antecipação. Eu tenho que esperar pelo momento certo, quando Eric
estiver perto.

 Eu foco na minha respiração, imaginando o ar preenchendo todas as partes do meu
pulmão enquanto eu inspiro, e, enquanto eu expiro, relembrando como todo o meu sangue,
oxigenado ou não, viaja pelo mesmo coração.

 É mais fácil pensar em biologia do que na fila de Divergentes sentados entre os
elevadores. Um menino da Franqueza que não deve ter mais de onze anos está sentado a
minha esquerda. Ele é mais corajoso do que a mulher a minha direita – ele encara o soldado da
Audácia na frente dele, inabalável.

 Ar dentro, ar fora. Sangue empurrado até minhas extremidades – o coração é um
músculo poderoso, o músculo mais forte do corpo em termos de longevidade. Mais membros
da Audácia chegam, relatando sucesso nas varreduras de pisos específicos do Comércio
Impiedoso. Centenas de pessoas inconscientes no chão, baleados com alguma coisa diferente
da munição, e eu não tenho ideia do motivo.

 Mas eu estou pensando no coração. Não mais no meu coração, mas no de Eric, e como
seu peito vai soar vazio quando seu coração não estiver mais batendo. Apesar do quanto eu o
odeie, eu não quero realmente matá-lo, pelo menos não com uma faca, perto o bastante para
ver a vida deixando-o. Mas eu ainda tenho uma chance de fazer algo útil, e se eu quiser
machucar a Erudição onde dói, eu preciso tirar um dos seus líderes.

 Eu percebo agora que ninguém trouxe a menina da Franqueza que eu ajudei, o que
significa que ela deve ter conseguido fugir. Bom.

 Eric junta as mãos nas costas e começa a vagar, pra frente e pra trás, atrás da fila de
Divergentes.

 “Minhas ordens são para levar apenas dois de vocês para a sede da Erudição, para
testes”, diz Eric. “O resto deve ser executado. Existem várias maneiras de determinar quem
entre vocês será menos útil para nós”.

 Seus passos ficam mais lentos quando ele se aproxima de mim. Eu aperto meus dedos,
pronta para pegar a faca, mas ele não chega perto o bastante. Ele continua andando e para na
frente do garoto a minha esquerda.

 “O cérebro para de se desenvolver aos vice e cinco anos”, diz Eric. “Sendo assim, sua
Divergência não está completamente desenvolvida”.

 Ele levanta sua arma e atira.

 Um grito estrangulado salta para fora do meu corpo quando o garoto cai no chão, e eu
aperto meus olhos para fecharem. Cada músculo do meu corpo quer ir à direção dele, mas eu
me seguro. Espere, espere, espere. Eu não posso pensar no garoto. Espere. Eu forço meus
olhos a abrirem e lágrimas caem deles.


 Meu grito fez uma coisa: agora Eric está parado na minha frente, sorrindo. Eu segurei
sua atenção.

 “Você também é jovem”, ele diz. “Longe de terminar seu desenvolvimento”.

 Ele dá um passo na minha direção. Meus dedos estão a centímetros de segurar a faca.

 “A maioria dos Divergentes obtém dois resultados no teste de aptidão. Alguns só
recebem um. Ninguém nunca obteve três, não por causa da aptidão, mas simplesmente por
que para conseguir esse resultado, você deve se recusar a escolher algo”, ele diz,
aproximando-se. Eu inclino minha cabeça para trás para olhar para ele, para todo o metal
reluzente em seu rosto, para seus olhos vazios.

 “Meus superiores suspeitam de que você obteve dois, Tris”, ele diz. “Eles não acham
que seja tão complexa – apenas uma mistura equilibrada entre Abnegação e Audácia – egoísta
até a idiotice. Ou seria corajosa até a idiotice?”

 Eu fecho minha mão ao redor da faca e aperto. Ele se inclina mais para perto.

 “Apenas entre você e eu... Eu acho que você deve ter obtido três, porque você é o tipo
de pessoa cabeça-dura que se recusaria a fazer uma simples escolha, só porque a mandaram
fazer isso”, ele diz. “Se importa de me esclarecer?”

 Eu dou uma guinada para frente, puxando minha mão para fora do bolso. Eu fecho
meus olhos enquanto empurro a lâmina para cima e na direção dele. Não quero ver seu
sangue.

 Eu sinto a faca entrar e então puxo-a para fora novamente. Meu corpo inteiro se
entrega ao ritmo de meu coração. Minha nuca está pegajosa de suor. Eu abro meus olhos
enquanto Eric cai no chão, e então – caos.

 Os traidores da Audácia não estão segurando armas letais, apenas aquelas que usaram
para atirar antes, então todos eles correm para as armas reais. Enquanto isso, Uriah se joga em
um deles e dá um soco forte na mandíbula. A vida sai dos olhos do soldado e ele cai,
desacordado. Uriah tira a arma do soldado e começa a atirar nos outros soldados próximos a
nós.

 Eu alcanço a arma de Eric, tão em pânico que mal consigo ver, e quando olho para
cima, eu juro que o número de soldados na sala duplicou. Tiros preenchem meus ouvidos, e eu
me jogo no chão quando todos começam a correr. Meus dedos passam pelo cano da arma, e
eu começo a tremer. Minhas mãos estão muito fracas para segurá-la.

 Um braço pesado agarra meus ombros e me arrasta até a parede. Meu ombro direito
queima, e eu vejo o símbolo da Audácia tatuado na nuca. Tobias se vira, abraçado ao meu
redor, para me proteger do tiroteio, e atira.

 “Diga-me se alguém estiver atrás de mim!” Ele diz.

 Eu olho por cima de seu ombro, apertando minhas mãos em punhos ao redor de sua
camisa.

 Há mais membros da Audácia na sala, membros da Audácia sem braçadeiras azuis –
membros leais da Audácia. Minha facção. Minha facção veio nos salvar. Como eles estão
acordados?

 Os traidores correm para longe do elevador. Eles não estavam preparados para um
ataque, não vindo de todos os lados. Alguns deles lutam de volta, mas a maioria corre para as
escadas. Tobias atira várias vezes, até que sua arma fica sem munição, e o gatilho faz um som
de ‘clique’. Minha visão está muito embaçada com lágrimas e minhas mãos muito inúteis para
atirar. Eu grito entre os dentes, frustrada. Eu não posso ajudar. Eu sou inútil.


 No chão, Eric geme. Continua vivo, por enquanto.

 Os tiros param gradualmente. Minha mão está molhada. Um vislumbre de vermelho
me diz que está coberta com sangue – sangue do Eric. Eu limpo-o em minhas calças e tento
tirar as lágrimas.

 “Tris”, Tobias diz. “Você pode soltar a faca agora”.


















































 Capítulo 17

 Tobias me conta a história:
Quando a Erudição alcançou o lobby das escadarias, uma soldada deles não subiu para
o segundo piso. Em vez disso, ela subiu até um dos níveis mais altos do edifício. Lá, ela evacuou
um grupo de membros leais da Audácia – incluindo Tobias – para uma saída de emergência
que a Erudição não havia trancado. Esses membros se reuniram no lobby e se dividiram em
quatro grupos que ocuparam as escadarias simultaneamente, cercando os traidores, que
haviam se agrupado perto dos elevadores.

 Os traidores da Audácia não estavam preparados para uma resistência tão forte. Eles
pensaram que todos, exceto os Divergentes, estariam inconscientes, então eles correram.

 A mulher da erudição era Cara. A irmã mais velha de Will.



 Dando um suspiro, eu deixo a jaqueta descer por meus braços e examino meu ombro.
Um disco de metal mais ou menos do tamanho de uma unha está pressionando minha pele.
Em torno dela há um remendo de fios azuis, como se alguém tivesse injetado tinta azul nas
minúsculas veias logo abaixo da superfície de minha pele. Com uma carranca, eu tento tirar o
disco de metal e sinto uma pontada de dor.

 Rangendo os dentes, eu passo a parte lisa da lâmina de minha faca por baixo do disco
e forço-a para cima. Eu grito por entre os dentes enquanto a dor passa por mim, fazendo tudo
ficar preto por um momento. Mas eu continuo puxando, o mais forte que consigo, até que o
disco levanta o bastante para eu colocar os dedos em volta dele. Anexada ao fundo do disco
está uma agulha.

 Eu improviso, agarro o disco com a ponta dos dedos e puxo uma última vez. Dessa vez,
a agulha sai inteira. É tão grande quanto meu dedo mindinho e está manchada com meu
sangue. Eu ignoro o sangue escorrendo por meu braço e seguro o disco e a agulha na direção
da luz acima da pia.

 A julgar pela tinta azul em meu braço e na agulha, eles devem ter nos injetado com
algo. Mas o que? Veneno? Um explosivo?

 Eu balanço a cabeça. Se eles quisessem nos matar, a maioria já estava inconsciente,
então eles só precisavam atirar. O que quer que tenham injetado não devia nos matar.

 Alguém bate na porta. Eu não sei por que – Eu estou em um banheiro público, apesar
de tudo.

 “Tris, você está aí?” A voz abafada de Uriah pergunta.

 “Sim”, eu respondo.

 Uriah parece melhor do que estava há uma hora – ele lavou o sangue de sua boca, e a
cor voltou ao seu rosto. Eu estou impressionada, de repente, pela sua beleza – todos os seus
traços são proporcionais, seus olhos escuros e vívidos, sua pele bronzeada. E ele deve sempre
ter sido bonito. Apenas garotos que foram bonitos desde novos têm aquele sorriso arrogante.

 Diferentemente de Tobias, que é sempre tímido quando sorri, como se estivesse
surpreso que você tenha se incomodado de olhar para ele.

 Minha garganta dói. Eu coloco o disco e a agulha na beirada da pia.

 Uriah olha para mim, para a agulha em minha mão e para a linha de sangue
escorrendo do meu ombro até o punho.

 “Nojento”, ele diz.


 “Não estava prestando atenção”, eu digo. Eu deixo a agulha de lado e pego um papel
toalha, secando o sangue em meu braço. “Como estão os outros?”

 “Marlene está contando piadas, como sempre”. O sorriso de Uriah cresce, colocando
uma covinha em sua bochecha. “Lynn está resmungando. Espere, você arrancou isso para fora
do seu próprio braço?” Ele aponta para a agulha. “Deus, Tris. Você não tem terminações
nervosas ou algo do tipo?”

 “Eu acho que preciso de um curativo”.

 “Você acha?” Uriah balança a cabeça. “Você devia pegar algum gelo para seu rosto
também. Então, todos estão acordando agora. Está uma casa maluca lá fora”.

 Eu toco minha mandíbula. Está sensível onde a arma de Eric me acertou – Eu vou ter
que passar a pomada de cura nele para não ferir.

 “Eric está morto?” Eu não sei qual resposta eu quero, sim ou não.

 “Não. Alguns da Franqueza decidiram dar-lhe tratamento médico”. Uriah se apoia na
pia. “Algo sobre tratamento honrável para prisioneiros. Kang o está interrogando
privadamente agora. Não nos quer lá, perturbando a paz ou o que quer que seja”.

 Eu bufo.

 “É. Enfim, ninguém entendeu”, ele diz, empoleirando-se ao lado da pia perto de mim.
“Por que invadir aqui, atirar aquelas coisas em nós e depois nos deixar inconscientes? Por que
não simplesmente nos mataram?”
“Não faço ideia”, eu digo. “O único sentido que eu vejo nisto é que agora eles sabem
quem é Divergente e quem não é. Mas isso não pode ser a única razão para eles terem feito
isso”.

 “Eu não entendo por que eles fazem isso. Quer dizer, quando eles estavam tentando
controlar nossas mentes para criar um exército, ótimo, mas agora? Parece inútil”.

 Eu franzo as sobrancelhas e pressiono uma toalha em meu ombro, para parar o
sangramento. Ele está certo. Jeanine já tem um exército. Então para quê matar os Divergentes
agora?

 “Jeanine não quer matar todos”, eu digo calmamente. “Ela sabe que isso seria sem
sentido. Sem cada facção, a sociedade não funciona, porque cada facção exerce seu próprio
papel. O que ela quer é controle”.

 Eu encaro meu reflexo. Minha mandíbula está inchada, e as marcas de unha ainda
estão em meus braços. Nojento.

 “Ela deve estar planejando outra simulação”, eu digo. “A mesma coisa de antes, mas
dessa vez, ela quer ter certeza que todos estarão influenciados ou mortos”.

 “Mas a simulação só dura por certo período de tempo”, ele diz. “Não é útil a menos
que esteja tentando fazer algo específico”.

 “Certo”. Eu suspiro. “Eu não sei. Eu não entendo”. Pego a agulha. “Não entendo o que
é isso também. Se fosse como outras injeções de simulação, mas isso foi feito para apenas um
uso. Então porque atirar essas coisas em nós e apenas nos deixar inconscientes? Não faz
nenhum sentido”.

 “Eu não sei, Tris, mas nesse momento nós temos um edifício imenso, cheio de pessoas
em pânico para lidarmos. Vamos pegar um curativo para você”. Ele pausa e depois diz, “Você
pode me fazer um favor?”.

 “O que?”


 “Não conte a ninguém que sou Divergente”. Ele morde o lábio. “Shauna é minha
amiga, e eu não quero que ela fique de repente com medo de mim”.

 “Claro”, eu digo, forçando um sorriso. “Eu vou guardar isso comigo”.



 Fico acordada a noite toda removendo agulhas dos braços de outras pessoas. Depois
de algumas horas eu paro de tentar ser gentil. Eu só puxo o mais forte que consigo.

 Eu descubro que o garoto da Franqueza que Eric atirou na cabeça era chamado Bobby,
que Eric está estável e que das centenas de pessoas no Comércio Impiedoso, apenas oitenta
não têm agulhas enfiadas no corpo, setenta delas são da Audácia e um deles é a Christina.
Durante toda a noite eu passo de agulhas para soros e simulações, tentando habitar a mente
de meus inimigos.

 Na manhã, eu termino de tirar as agulhas e vou até a cafeteria, esfregando os olhos.
Jack Kang anunciou que teríamos uma reunião na parte da tarde, então talvez eu consiga
encaixar um descanso depois que eu comer.

 Quando eu entro na cafeteria, eu vejo Caleb.

 Ele corre até mim e me abraça carinhosamente. Eu solto um suspiro de alívio. Eu
pensei que havia chegado ao ponto de não precisar do meu irmão mais, mas não acho que
exista esse ponto. Eu relaxo em seus braços por um momento, e vejo os olhos de Tobias por
cima dos ombros de Caleb.

 “Está tudo bem?” Caleb diz, puxando minha atenção de volta. “Sua mandíbula...”

 “Não é nada”, eu digo. “Apenas um inchaço”.

 “Eu ouvi que eles capturaram um monte de Divergentes e começaram a atirar neles.
Graças a Deus eles não te acharam”.

 “Na verdade, eles acharam. Mas eles apenas mataram um”, eu digo. Coço a ponta do
meu nariz para aliviar um pouco da pressão em minha cabeça. “Mas eu estou bem. Quando
você chegou aqui?”

 “Cerca de dez minutos atrás. Eu vim com Marcus”, ele diz. “Como nosso único líder
político, ele sentiu que seria seu dever estar aqui – ele não ouviu sobre o ataque até uma hora
atrás. Um dos sem facção viu os membros da Audácia invadindo o edifício e as notícias
demoram a viajar entre os sem facção”.

 “Marcus está vivo?” Eu digo. Nós não o vimos morrer quando fugimos do complexo da
Amizade, mas assumimos que ele havia morrido – Não tenho certeza do que estou sentindo.
Desapontada, talvez, porque eu o odeio pelo modo com o qual ele tratou Tobias? Ou aliviada,
porque o último líder da Abnegação está vivo? É possível sentir os dois?

 “Ele e Peter escaparam, e voltaram para a cidade”, Caleb diz.

 Não estou totalmente aliviada de saber que Peter ainda está vivo. “Onde está Peter,
então?”

 “Ele está onde ele você espera que ele esteja”, Caleb responde.

 “Erudição”, eu digo. Eu balanço a cabeça. “Que-“

 Não consigo nem pensar em uma palavra forte o bastante para descrevê-lo.
Aparentemente eu preciso expandir meu vocabulário.

 O rosto de Caleb gira por um momento, depois ele afirma com a cabeça e toca meu
ombro. “Você está com fome? Quer que eu pegue algo para você?”

 “Sim, por favor”, eu digo. “Eu vou voltar daqui a pouquinho, ok? Tenho que falar com
Tobias”.


 “Tudo bem”. Caleb aperta meu braço e segue em frente, provavelmente para entrar
na fila de um quilômetro da cafeteria. Tobias e eu ficamos parados a metros de distância um
do outro por alguns segundos.

 Ele se aproxima vagarosamente.

 “Você está bem?” Ele diz.

 “Eu vou vomitar se tiver que responder isso mais uma vez”, eu digo. “Não tenho uma
bala na minha cabeça, tenho? Então estou bem”.

 “Sua mandíbula está tão inchada que parece que você tem uma bolsa de comida em
sua bochecha, e você acabou de esfaquear o Eric”, ele diz, fazendo uma carranca. “Não tenho
permissão para perguntar se você está bem?”

 Eu suspiro. Eu devia contar a ele sobre Marcus, mas não quero fazer isso aqui, com
tantas pessoas ao nosso redor. “Sim. Eu estou bem”.

 Seu braço levanta como se ele estivesse pensando em me tocar, mas decidiu que era
melhor não fazer isso. Então ele reconsidera e passa seu braço ao meu redor, puxando-me em
sua direção.

 De repente eu penso que talvez eu possa deixar outra pessoa assumir todos os riscos,
talvez eu comece a ser egoísta para que eu possa ficar perto de Tobias sem machucá-lo. Tudo
o que eu quero é enterrar meu rosto em seu pescoço e esquecer que qualquer outra coisa
existe.

 “Eu sinto muito que eu tenha demorando tanto para te resgatar”, ele sussurra em meu
cabelo.

 Eu suspiro e toco suas costas com as pontas dos dedos. Eu podia ficar aqui até ficar tão
exausta que eu desmaie, mas não devo; Não posso. Eu dou um passo para trás e digo “Eu
preciso falar com você. Podemos ir a algum lugar quieto?”

 Ele concorda com a cabeça e nós deixamos a cafeteria. Um dos membros da Audácia
por quem passamos grita “Oh, vejam! É o Tobias Eaton!”

 Eu quase me esqueci da interrogação e o nome que ela revelou para todos os
membros da Audácia.

 Outro grita, “Eu vi seu papai mais cedo, Eaton! Você vai se esconder?”

 Tobias se endireita e endurece, como se alguém estivesse apontando uma arma para
seu peito, em vez de zombando dele.

 “É, você vai se esconder, covarde?”

 Algumas pessoas ao nosso redor riem. Eu pego o braço de Tobias e arrasto-o na
direção dos elevadores antes que ele possa reagir. Parecia que ele estava prestes a socar
alguém. Ou pior.

 “Eu ia contar a você – ele veio com Caleb”, eu digo. “Ele e Peter fugiram da Amizade-“

 “O que você estava esperando, então?” Ele diz, mas não severamente. Sua voz soa de
alguma forma desconectada dele, como se ele estivesse flutuando sobre nós.

 “Não é tipo de notícia que se dá em uma cafeteria”, eu digo.

 “Tudo bem”, ele diz.

 Nós esperamos em silêncio pelo elevador, Tobias mastigando o lado de dentro da boca
e encarando o vazio. Ele fica assim todo o caminho até o décimo oitavo piso, que está vazio.
Lá, o silêncio me rodeia, como o abraço de Caleb, me acalmando. Eu sento em um dos bancos
na entrada da sala de interrogação, e Tobias puxa a cadeira de Niles para sentar na minha
frente.


 “Não havia duas dessas?” Ele diz, encarando a cadeira.

 “Sim”, eu digo. “Eu, hum... eu joguei ela pela janela”.

“Estranho”, ele diz. Ele senta. “Então sobre o que queria falar? Ou era sobre Marcus?”

 “Não, não era isso. Você está... bem?” Eu digo cuidadosamente.

 “Não tenho uma bala na cabeça, tenho?” Ele diz, olhando para as mãos. “Então eu
estou bem. Eu gostaria de falar sobre outra coisa”.

 “Eu quero falar sobre simulações”, eu digo. “Mas antes, outra coisa – sua mãe pensou
que Jeanine iria ir atrás dos sem facção em seguida. Obviamente ela estava errada – e eu não
tenho certeza do motivo. A Franqueza não está exatamente preparada para uma batalha-“

 “Bem, pense nisso”, ele diz. “Pense através disso, como a Erudição”.

 Eu dou um olhar para ele.

 “O que?” Ele diz. “Se você não consegue, então o resto de nós não tem nem chance”.

 “Tá”, eu digo. “Hum... deve ter sido porque a Audácia e a Franqueza eram os alvos
mais lógicos. Por que... os sem facção estão em lugares múltiplos, enquanto nós estamos
todos no mesmo”.

 “Certo”, ele diz. “Além disso, quando Jeanine atacou a Abnegação, ela pegou todos os
registros deles. Minha mãe me contou que a Abnegação tinha documentado a população de
Divergentes sem facção, o que significa que depois do ataque, Jeanine deve ter descoberto
que a porção de Divergentes entre os sem facção é maior do que entre os membros da
Franqueza. Isso nos torna o alvo mais lógico”.

 “Tudo bem. Então me conte sobre o soro de novo”, Eu digo. “Ele tem algumas partes,
certo?”
“Duas”, ele diz, concordando. “O transmissor e o líquido que induz à simulação. O
transmissor passa a informação do cérebro para o computador e vice-versa, e o líquido altera
o cérebro para colocá-lo em estado de simulação”.

 Eu concordo. “E o transmissor só funciona para uma simulação, certo? O que acontece
com ele depois disso?”

 “Ele se dissolve”, ele diz. “Pelo que eu sei, a Erudição não foi capaz de desenvolver um
transmissor que durasse mais do que uma simulação, apesar da simulação do ataque ter
durado muito mais do que qualquer simulação que eu já tenha visto”.

 As palavras “pelo que eu sei” grudam na minha mente. Jeanine gastou a maior parte
de sua vida adulta desenvolvendo soros. Se ela ainda está caçando os Divergentes,
provavelmente ela ainda está obcecada com a ideia de criar versões mais avançadas da
tecnologia.

 “O que está acontecendo, Tris?” ele diz.

 “Você já viu isso?” Eu digo, apontando para o curativo que cobre meu ombro.

 “Não tão de perto”, ele diz. “Zeke e eu estávamos transferindo feridos da Erudição
para o quarto piso durante toda a manhã”.

 Eu tiro as bordas do curativo, revelando o buraco da ferida – sem sangramentos,
felizmente – e o tecido de tinta azul que não parece estar desbotado. Depois eu alcanço meu
bolso e tiro a agulha que estava enfiada em meu braço.

 “Quando eles atacaram, eles não queriam nos matar. Eles estavam atirando em nós
com isso”, eu digo.

 Sua mão toca a pele tingida ao redor do buraco da ferida. Eu não havia percebido isso
antes porque estava acontecendo bem na minha frente, mas ele parece diferente do que era


antes, durante a iniciação. Ele deixou os pelos do rosto crescerem um pouco, e seu cabelo está
maior – tão denso que eu posso ver que ele é castanho, não preto.

 Ele tira a agulha de mim e bate no disco de metal na ponta. “Isso provavelmente é oco.
Deve conter o que quer que essa coisa azul seja. O que aconteceu depois que você foi
baleada?”

 “Eles jogaram cilindros de gás na sala, e todos ficaram inconscientes. Isto é, todos
menos eu, Uriah e os outros Divergentes”.

 Tobias não parece surpreso. Eu estreito os olhos.

 “Você sabia que Uriah era Divergente?”

 Ele encolhe os ombros. “É claro. Eu também conduzi as simulações dele”.

 “E você nunca me contou?”

 “Informação privilegiada”, ele diz. “Informação perigosa”.

 Eu sinto uma chama de raiva – quantas coisas ele vai esconder de mim? – e tento
apagá-la. É claro que ele não podia me contar que Uriah era Divergente. Ele estava apenas
respeitando a privacidade dele. Faz sentido.

 Eu limpo a garganta. “Você salvou nossas vidas, sabe”, eu digo. “Eric estava tentando
nos matar”.

 “Eu acho que não estamos contando quem salvou a vida de quem”. Ele olha para mim
por alguns segundos.

 “Enfim”, eu digo para quebrar o silêncio. “Depois que descobrirmos que todos estavam
dormindo, Uriah subiu as escadas para avisar as pessoas que estavam lá em cima e eu fui para
o segundo piso para ver o que estava acontecendo. Eric tinha todos os Divergentes na região
dos elevadores e estava tentando descobrir quem de nós ele iria levar de volta com ele. Ele
disse que estava autorizado a levar dois. Eu não sei por que ele iria levar alguém”.

 “Estranho”, ele diz.

 “Alguma ideia?”

 “Meu palpite é que a agulha injetou um transmissor em você”, ele diz. “e o gás era
uma versão de aerossol do líquido que altera o cérebro. Mas por que...” Um vinco aparece
entre suas sobrancelhas. “Oh. Ela colocou todos para dormir para ver quem era Divergente”.

 “Você acha que essa era a única razão para atirar transmissores em nós?”

 Ele balança sua cabeça e seus olhos fixam nos meus. O azul deles é tão escuro e
familiar que eu sinto como se pudessem me engolir num buraco. Por um momento eu desejo
que eles façam isso, para que eu pudesse fugir desse lugar e de tudo o que aconteceu.

 “Eu acho que você já entendeu”, ele diz. “mas quer que eu te contradiga. E eu não vou
fazer isso”.

 “Eles desenvolveram um transmissor que dura mais tempo”, eu digo.

 Ele concorda com a cabeça.

 “Então agora nós estamos todos conectados por várias simulações”, eu adiciono.
“Quantas a Jeanine quiser, talvez”.

 Ele concorda de novo.

 Minha próxima respiração fica instável ao sair de minha boca. “Isso é muito ruim,
Tobias”.





 No corredor fora da sala de interrogações, ele para, inclinando-se contra a parede.


 “Então você atacou Eric”, ele diz. “Foi durante a invasão? Ou quando estava nos
elevadores?”

 “Nos elevadores”, eu digo.

 “Há uma coisa que eu não entendo”, ele diz. “Você estava lá em baixo. Você podia ter
fugido. Mas em vez disso, você decidiu mergulhar em uma multidão de membros armados da
Audácia sozinha. E eu vou apostar que você não estava com nenhuma arma”.

 Eu pressiono meus lábios juntos.

 “É verdade?” Ele demanda.

 “O que o faz pensar que eu não tinha uma arma?” Eu faço uma carranca.

 “Você não ser capaz de tocar em uma arma desde o ataque”, ele diz. “Eu entendo
porque, com toda a coisa do Will, mas-“

 “Não tem nada a ver com isso”.

 “Não?” Ele levanta as sobrancelhas.

 “Eu fiz o que tinha que ser feito”.

 “É. Mas agora você deveria parar”, ele diz, afastando-se da parede para me olhar. Os
corredores da Franqueza são largos, largos o bastante para todo o espaço que eu quero
manter entre nós. “Você devia ter ficado na Amizade. Você devia ter ficado longe de tudo
isso”.

 “Não, eu não devia”, eu digo. “Você pensa que sabe o que é melhor para mim? Você
não faz nem ideia. Eu estava ficando louca na Amizade. Aqui eu finalmente me sinto... sã”.

 “O que é estranho, considerando que está agindo como uma psicopata”, ele diz. “Não
é valente, olhando pela posição em que estava ontem. Está além da estupidez – é suicida.
Você tem algum zelo por sua vida?”

 “É claro que tenho!” Eu rebato. “Eu estava tentando fazer algo útil!”

 Por alguns segundos ele apenas fica me encarando.

 “Você é mais do que a Audácia”, ele diz em uma voz baixa. “Mas se quiser ser como
eles, colocando você mesma em situações ridículas por nenhuma razão e retaliando contra
seus inimigos sem nenhuma recompensa pelo que é ético, vá em frente. Eu pensei que você
era melhor do que isto, mas talvez eu estivesse errado!”

 Eu aperto minhas mãos, minha mandíbula.

 “Você não devia insultar a Audácia”, eu digo. “Eles te aceitaram quando você não tinha
nenhum outro lugar para ir. Confiaram a você um bom trabalho. Deram-lhe todos os seus
amigos”.

 Eu me inclino contra a parede, meus olhos virados para o chão. Os pisos no Comércio
Impiedoso são sempre pretos e brancos e aqui eles estão em um padrão quadriculado. Se eu
desfocar meus olhos, eu vejo exatamente o que a Franqueza não acredita – cinza. Talvez
Tobias e eu não acreditemos nisso também. Não exatamente.

 Eu estou estressada, pesando mais do que meu quadrado pode aguentar, tanto que eu
devo passar pelo chão.

 “Tris”.

 Eu continuo olhando para o chão.

 “Tris”.

 Eu finalmente olho para ele.

“Eu só não quero te perder”.


Nós ficamos parados ali por alguns minutos. Eu não digo o que estou pensando, que
ele provavelmente está certo. Há uma parte de mim que quer estar perdida, que se esforça
para se juntar aos meus pais e Will, para que eu não tenha que sentir dor por eles novamente.
Uma parte de mim quer ver o que quer que venha a seguir.





 “Então você é irmão dela?” diz Lynn. “Eu acho que sabemos quem ficou com os
melhores genes”.

 Eu rio da expressão no rosto de Caleb, sua boca desenhada em um leve franzir e seus
olhos arregalados.

 “Quando você tem que voltar?” Eu digo, cutucando-o com o cotovelo.

 Eu mordo o sanduíche que Caleb pegou para mim na fila da cafeteria. Eu fico nervosa
de ele estar aqui, misturando as lembranças tristes da minha família com as lembranças tristes
de minha vida na Audácia. O que ele vai pensar de meus amigos, minha facção? O que minha
facção vai pensar dele?

 “Logo”, ele diz. “Não quero apressar ninguém”.

 “Eu não percebi que Susan tinha mudado seu nome para ‘ninguém’”, eu digo,
levantando a sobrancelha.

 “Ha-há”, ele diz, fazendo uma careta para mim.

 Provocações entre sílabas deviam parecer familiares, mas não são para nós. A
Abnegação desencorajava qualquer coisa que possa fazer alguém se sentir mal e provocações
estavam incluídas.

 Eu posso sentir o quanto nós somos cuidadosos um com o outro, agora que estamos
descobrindo uma maneira diferente de nos relacionar, depois das novas facções e da morte de
nossos pais. Toda vez que eu olho para ele, eu percebo que ele é a única família que eu tenho
e me sinto desesperada, desesperada para mantê-lo por perto, desesperada para diminuir o
espaço entre nós.

 “A Susan é outra desertora da Erudição?” Diz Lynn, apunhalando uma vagem com o
garfo. Uriah e Tobias ainda estão na fila para o lanche, esperando atrás de duas dúzias de
membros da Franqueza que estão muito ocupados mendigando para conseguir sua comida.

 “Não, ela era nossa vizinha quando éramos crianças. Ela é da Abnegação”, eu digo.
“E você está envolvido com ela?” Ela pergunta a Caleb. “Você não acha que isso é um
tipo de movimento estúpido? Quer dizer, quando tudo isso tiver acabado, vocês vão estar em
facções diferentes, vivendo em lugares totalmente diferentes...”

 “Lynn”, Marlene diz, tocando seu ombro, “cale a boca, ok?”

 Do outro lado da sala, alguma coisa azul chama minha atenção. Cara acabou de entrar.
Eu coloco meu sanduíche na mesa, sem apetite e olho para ela com minha cabeça abaixada.
Ela anda até o lugar mais longe na cafeteria, onde algumas mesas de refugiados da Erudição
estão. A maior parte deles abandonou as roupas azuis em favor das roupas brancas e pretas,
mas eles ainda usam seus óculos. Eu tento focar em Caleb – mas Caleb está olhando para eles
também.

 “Não posso voltar para a Erudição, assim como eles também não podem”, diz Caleb.
“Quando isso acabar, eu não vou ter uma facção”.

 Pela primeira vez eu percebo o quão triste ele fica quando ele fala sobre a Erudição. Eu
não havia percebido que seria tão difícil decidir deixá-los para ele.


 “Você poderia ir sentar com eles”, eu digo, concordando com a cabeça na direção dos
refugiados da Erudição.

 “Eu não os conheço”. Ele encolhe os ombros. “Eu só estive lá por um mês, lembra?”

 Uriah deixa cair sua bandeja na mesa, franzindo a testa. “Eu escutei alguém falando
sobre a interrogação de Eric na fila da cafeteria. Aparentemente ele não sabe quase nada
sobre o plano de Jeanine”.

 “O que?” Lynn finca seu garfo na mesa. “Como isso é possível?”

 Uriah encolhe os ombros e senta.

 “Eu não estou surpreso”, Caleb diz.

 Todos o encaram.

 “O que?” Ele ruboriza. “Seria estúpido confidenciar seu plano inteiro para uma pessoa.
É infinitamente mais inteligente dar pequenos pedaços dele para cada pessoa trabalhando
com você. Dessa maneira, se alguém o trair, a perda não é tão grande”.

 “Oh”, diz Uriah.

 Lynn levanta o garfo e começa a comer de novo.

 “Eu ouvi falar que a Franqueza fazia sorvete”, diz Marlene, girando a cabeça para os
lados para ver a fila do lanche. “Vocês sabem, tipo ‘é uma droga que fomos atacados, mas ao
menos temos sobremesas’”

 “Eu já me sinto melhor”, diz Lynn, secamente.

 “Provavelmente não será tão bom quando o bolo da Audácia”, Marlene diz com uma
voz triste. Ela suspira e uma mecha tímida de cabelo castanho cai em seus olhos.

 “Nós tínhamos um bom bolo”, eu conto a Caleb.

 “Nós tínhamos bebidas efervescentes”, ele diz.

 “Ah, mas você tinha uma orla com vista para um rio subterrâneo?” diz Marlene,
balançando as sobrancelhas. “Ou um quarto onde você podia encarar todos os seus medos de
uma só vez?”

 “Não”, diz Caleb, “e para ser sincero, eu meio que estou feliz com isso”.

 “Mariqui-nhas”, Marlene canta.

 “Todos os seus medos?” diz Caleb, seus olhos se iluminando. “Como isso funciona?
Quer dizer, os pesadelos são produzidos por um computador ou por seu cérebro?”

 “Ah Deus”. Lynn deixa a cabeça cair nas mãos. “Aqui vamos nós”.

 Marlene se joga em uma descrição das simulações e eu deixo sua voz e a voz de Caleb
correrem por mim enquanto termino meu sanduíche. Então, apesar do barulho dos garfos e
dos murmúrios das conversas ao meu redor, eu descanso a cabeça na mesa e caio no sono.
















 Capítulo 18

 “TODOS QUIETOS!”

 Jack Kang levanta as mãos e a multidão fica em silêncio. Isso é que é talento.

 Eu fico parada na multidão da Audácia que chegou aqui atrasada, quando não havia
mais lugares para sentar. Um flash de luz bate em meus olhos – Um relâmpago. Não é a
melhor hora para uma reunião em uma sala com buracos nas paredes em vez de janelas, mas
essa é a maior sala que eles têm.

 “Eu sei que muitos de vocês estão confusos e abalados pelo que aconteceu ontem”,
Jack diz. “Tenho escutado muitos relatos de várias perspectivas e tenho decidido o que pode
ser resolvido imediatamente e o que requer mais investigações”.

 Ponho meu cabelo molhado atrás das orelhas. Eu acordei dez minutos antes do início
da reunião e corri para os chuveiros. Apesar de ainda estar exausta, me sinto mais alerta
agora.

 “Para mim, o que requer mais investigações”, Jack diz, “são os Divergentes”.

 Ele parece cansado – ele tem círculos pretos abaixo dos olhos e seu cabelo curto está
embaraçado, como se ele estivesse mexendo nele a noite toda. Em contraste com o calor
sufocante da sala, ele usa uma blusa de mangas compridas que abotoa até os pulsos – ele
devia estar distraído enquanto se vestia.

 “Se você é um dos Divergentes, por favor, dê um passo à frente para que possamos
escutá-lo”.

 Eu olho para Uriah. Isso parece perigoso. Minha divergência é algo que eu deveria
esconder. Admiti-la deveria significar a morte. Mas não há sentido em mantê-la escondida
agora – eles já sabem sobre mim.

 Tobias é o primeiro a se mover. Ele anda em direção à multidão, primeiro virando seu
corpo para abrir espaço entre as pessoas, e depois, quando eles saíram de sua frente, andando
diretamente na direção de Jack Kang, com seus ombros para trás.

 Eu ando, também, murmurando “Com licença” para as pessoas na minha frente. Elas
andam para trás, como se eu tivesse ameaçado jogar veneno nelas. Alguns outros dão passos à
frente, vestidos de preto e branco, mas não muitos. Um deles é a garota que eu ajudei.

 Com exceção da notoriedade que Tobias tem entre os membros da Audácia e meu
novo título de A Garota Que Esfaqueou Eric, nós não somos o foco real de todo mundo.
Marcus é.

 “Você, Marcus?” Jack diz, quando Marcus alcança o centro da sala.

 “Sim”, Marcus diz. “Eu entendo que você esteja preocupado – que vocês todos
estejam. Vocês não sabiam dos Divergentes há uma semana, e agora tudo o que sabem é que
eles são imunes a algo que vocês não são, e que isto é assustador. Mas eu posso assegurá-los
de que não há nada para temer, até onde nós sabemos”.

 Enquanto ele fala, sua cabeça balança e suas sobrancelhas levantam em simpatia e eu
entendo pela primeira vez porque as pessoas gostam dele. Ele faz parecer que se você colocar
qualquer coisa em suas mãos, ele vai tomar conta dela.

 “Parece claro para mim”, diz Jack, “que nós fomos atacados para que a Erudição
pudesse encontrar os Divergentes. Você sabe o porquê disto?”


 “Não, eu não sei”, diz Marcus. “Talvez a intenção deles fosse meramente nos
identificar. Parece uma informação útil de se ter, se eles pretendem usar as simulações
novamente”.

 “Essa não foi a intenção deles”. As palavras saem de meus lábios antes que eu decida
falar. Minha voz soa alta e fraca comparada com as de Marcus e Jack, mas é tarde para parar.
“Eles queriam nos matar. Eles tem nos matado desde antes de qualquer uma dessas coisas
acontecerem”.

 As sobrancelhas de Jack se juntam. Eu escuto centenas de sons pequenos, gotas de
chuva caindo no telhado. A sala fica escura, como se estivesse sob a tristeza do que eu acabei
de dizer.

 “Isso soa como uma teoria da conspiração”, Jack diz. “Que motivos a Erudição teria
para matar vocês?”

 Minha mãe disse que as pessoas temiam os Divergentes porque nós não podíamos ser
controlados. Isso pode ser verdade, mas medo do incontrolável não é uma razão concreta o
bastante para dar a Jack Kang para a Erudição querer nos matar. Meu coração acelera quando
eu percebo que não consigo responder a esta pergunta.

 “Eu...” Eu começo. Tobias me interrompe.

 “Obviamente nós não sabemos”, ele diz, “mas há aproximadamente uma dúzia de
mortes misteriosas registradas entre os membros da Audácia dos últimos seis anos e há uma
correlação entre essas pessoas e resultados irregulares em testes de aptidão ou simulações”.

 Relâmpagos fazem a sala brilhar. Jack balança a cabeça. “Apesar disto ser intrigante,
correlações não constituem evidências”.

 “Um líder da Audácia atirou em uma criança da Franqueza na cabeça”, eu rebato.
“Você recebeu um relato disso? Isto é algo que ‘requer mais investigações’?”

 “De fato, eu recebi”, ele diz. “E atirar em uma criança a sangue frio é um crime terrível
que não pode passar sem punições. Felizmente, nós temos o agressor em custódia e vamos
poder colocá-lo em testes. Entretanto, nós devemos nos lembrar de que os soldados da
Audácia não deram qualquer evidência de quererem nos machucar, ou eles teriam nos matado
enquanto estávamos inconscientes”.

 Eu escuto murmúrios irritados ao meu redor.

 “A invasão pacífica deles sugere que possa ser possível negociar um tratado de paz
com os membros da Erudição e os outros membros da Audácia”, ele continua. “Então eu vou
arranjar um encontro com Jeanine Matthews para discutir essa possibilidade o mais rápido
possível”.

 “A invasão deles não foi pacífica”, eu digo. Eu posso ver a boca de Tobias de onde
estou parada, e ele está sorrindo. Eu respiro fundo e começo novamente. “Só porque eles não
atiraram em todos vocês na cabeça não significa que as intenções deles foram honráveis. Por
que você acha que eles vieram aqui? Apenas para correr por seus corredores, deixar vocês
inconscientes e partir?”

 “Eu presumo que eles vieram aqui para pessoas como você”, diz Jack. “E embora eu
esteja preocupado com sua segurança, eu não acho que nós podemos atacá-los só porque eles
queriam matar uma fração de nossa população”.

 “Matar vocês não é a pior coisa que eles poderiam ter feito”, eu digo. “Controlar vocês
é que é”.

 Os lábios de Jack se curvam com diversão. Diversão. “Oh? E como eles vão fazer isso?”


 “Eles atiraram em vocês com agulhas”, Tobias diz. “Agulhas cheias de transmissores de
simulações. Simulações controlam vocês”.

 “Nós sabemos como as simulações funcionam”, diz Jack. “O transmissor não é um
implante permanente. Se eles pretendessem nos controlar, já teriam feito isso”.

 “Mas-“ Eu começo.

 Ele me interrompe. “Eu sei que vocês estiveram sob muito estresse, Tris”, ele diz
calmamente, “e que você fez um ótimo serviço para sua facção e para a Abnegação. Mas eu
acho que sua experiência traumática pode ter comprometido sua habilidade de ser
completamente objetiva. Eu não posso começar um ataque baseado em especulações de uma
garotinha”.

 Eu fico parada como uma estátua, sem poder acreditar que ele poderia ser tão
estúpido. Meu rosto está queimando. Garotinha, ele disse. Uma garotinha que está estressada
a ponto de ficar paranoica. Essa não sou eu, mas agora, é quem a Franqueza pensa que eu sou.

 “Você não toma decisões por nós, Kang”, diz Tobias.

 Todos ao meu redor, os membros da Audácia gritam em assentimento. Alguém grita,
“Você não é o líder da nossa facção!”

 Jack espera até que os gritos acabem e então diz, “Isso é verdade. Se vocês quiserem,
sintam-se livres para invadir a sede da Erudição sozinhos. Mas vocês vão fazê-lo sem ajuda, e
deixem-me lembrá-los de que estão em números bem menores e despreparados”.

 Ele está certo. Não podemos atacar os traidores da Audácia e a Erudição sem os
números da Franqueza. Seria um banho de sangue se tentássemos. Jack Kang tem todo o
poder. E agora todos nós sabemos disso.

 “Foi o que pensei”, ele diz, com um ar de satisfação. “Muito bem. Eu vou contatar
Jeanine Matthews e ver se ela quer negociar a paz. Alguma objeção?”

 Nós não podemos atacar sem a Franqueza, eu penso, a menos que tivéssemos os sem
facções conosco.








































 Capítulo 19

 Naquela tarde eu entro num grupo de membros da Audácia e da Franqueza para
limpar as janelas quebradas no lobby. Eu foco na trajetória da vassoura, mantendo meus olhos
na sujeira que se instala entre os fragmentos de vidro. Meus músculos repetem o movimento
antes que o resto de mim o faça, mas quando eu olho para baixo, em vez de mármore preto,
eu vejo um azulejo branco e liso e o fim da parede cinza clara; Eu vejo mechas de cabelo loiro
que minha mãe aparava e o espelho cuidadosamente enfiado atrás de seu painel na parede.

 Meu corpo fica fraco e eu me apoio no cabo da vassoura.

 Uma mão toca meu ombro e eu pulo para longe dela. Mas é só uma garota da
Franqueza – uma criança. Ela olha para mim, com os olhos arregalados.

 “Você está bem?” Ela diz, com uma voz alta e indistinta.

 “Estou”, eu digo. Muito rápido. Eu tento corrigir. “Apenas cansada. Obrigada”.

 “Eu acho que está mentindo”, ela diz.

 Eu percebo um curativo escapando pelo fim de sua manga, provavelmente cobrindo a
ferida da agulha. A ideia dessa garotinha sob efeito de uma simulação me dá náuseas. Eu mal
consigo olhar para ela. Viro de costas.

E eu os vejo: Do lado de fora, um homem traidor da Audácia, apoiando-se em uma
mulher com a perna sangrando. Eu vejo as mechas cinza no cabelo da mulher, o fim do nariz
curvo do homem e a braçadeira azul de traidores da Audácia sob seus ombros e reconheço
ambos. Tori e Zeke.

Tori está tentando andar, mas uma de suas pernas se arrasta atrás dela, inútil. Uma
tala molhada e escura cobre a maior parte de sua coxa.

Os membros da Franqueza param de varrer e olham para eles. Os guardas da Audácia
parados perto dos elevadores correm rumo à entrada com suas armas a postos. Meus
companheiros de varrição dão um passo atrás para sair do caminho, mas eu fico onde estou, o
calor correndo por mim enquanto Zeke e Tori se aproximam.

“Eles estão ao menos armados?” Alguém pergunta.

Tori e Zeke alcançam o que costumavam ser as portas, e ele levanta uma de suas mãos
quando vê a fileira de guardas com armas. A outra ele mantêm em volta da cintura de Tori.

“Ela precisa de atendimento médico”, diz Zeke. “Agora.”

“Por que devemos dar atendimento médico a uma traidora?” Um homem da Audácia,
com cabelos loiros finos e os lábios duplamente perfurados com piercings, pergunta sobre sua
arma. Uma mancha de tinta azul marca seu antebraço.

Tori geme, e eu passo entre dois homens da Audácia para alcançá-la. Ela coloca sua
mão, que está pegajosa com sangue, na minha. Zeke abaixa-a no chão com um grunhido.

“Tris”, ela diz, soando confusa.

“Melhor afastar-se, garota”, o homem loiro da Audácia diz.

“Não”, eu digo. “Ponha sua arma para baixo.”

“Te disse que os Divergentes eram loucos”, um dos outros homens armados murmura
para a mulher ao seu lado.

“Não me importo se você levá-la para cima e amarrá-la a uma cama para mantê-la
longe do tiroteio!” diz Zeke, franzindo a testa. “Não a deixe sangrando até a morte no lobby da
sede da Franqueza!”

Finalmente alguns homens da Audácia dão passos à frente e levantam Tori.

“Para onde devemos... levá-la?” Um deles pergunta.

“Encontre Helena”, Zeke diz. “Enfermeira da Audácia”.

O homem concorda com a cabeça e a carrega em direção aos elevadores. Zeke e eu
encontramos nossos olhares.


“O que aconteceu?” Pergunto a ele.

“Uns traidores da Audácia descobriram que estávamos coletando informações deles”,
ele diz. “Tori tentou fugir, mas eles atiraram nela enquanto ela corria. Eu a ajudei a chegar
aqui”.

“Essa é uma ótima história”, o homem loiro da Audácia diz. “Quer contar novamente
sob o soro da verdade?”

Zeke dá de ombros. “Tudo bem”. Ele junta seus pulsos na sua frente, dramaticamente.
“Algeme-me, já que você está tão desesperado para isso”.

Então, seus olhos focam em algo por cima de meu ombro, e ele começa a andar. Viro-
me para ver Uriah correndo para fora do elevador. Ele está sorrindo.

“Ouvi um boato de que você era um traidor sujo”, Uriah diz.

“Ah, tanto faz”, diz Zeke.

Eles colidem em um abraço que parece quase doloroso para mim, dando tapas nas
costas um do outro e rindo com seus punhos apertados entre eles.



“Não acredito que você não nos disse”, Lynn diz, balançando sua cabeça. Ela se senta
na minha frente, com os braços cruzados e uma das pernas apoiadas sobre a mesa.

“Ah, não fique ofendida com isso”, diz Zeke. “Eu não devia ter contado nem para
Shauna e Uriah. E é como se acabasse com o propósito de ser um espião se você diz a todos o
que você é”.

Nós sentamos em uma sala na sede da Franqueza chamada Ponto de Encontro, que os
membros da Audácia chamam de uma forma zombeteira sempre que podem. É ampla e
aberta, com papel de parede preto e branco em cada parede, e um círculo de pódios no centro
da sala. Grandes mesas redondas cercam os pódios. Lynn me disse que eles sediavam debates
mensais aqui, para entretenimento, e também realizavam serviços religiosos uma vez por
semana. Mas, mesmo quando não há eventos marcados, a sala fica geralmente cheia.

Zeke foi liberado pela Franqueza uma hora trás, em uma pequena interrogação no
décimo oitavo andar. Não foi uma ocasião sombria como o meu interrogatório e de Tobias, em
parte porque não havia nenhuma implicação de gravações de vídeo suspeitas e também
porque Zeke é engraçado mesmo sob o soro da verdade. Talvez seja especialmente nesse caso.
De qualquer forma, chegamos ao Ponto de Encontro “para uma celebração ‘Ei, você não é um
traidor sujo! ’”, como Uriah colocou.

“Sim, mas estamos insultando você desde o ataque da simulação,” diz Lynn. “E agora
me sinto como uma idiota sobre isso”.

Zeke põe seu braço em volta de Shauna. “Você é uma idiota, Lynn. É parte do seu
charme”.

Lynn atira um copo plástico nele, que desvia. Água respinga por toda a mesa, e o
acerta no olho.

“Enfim, como eu estava dizendo”, diz Zeke, esfregando o olho, “Eu estava trabalhando
para deixar os desertores fora da Erudição com segurança. É por isso que há um grupo grande
deles aqui, e um pequeno grupo na sede da Amizade. Mas Tori... Eu não tinha ideia do que ela
estava fazendo. Ela se mantinha escondida por horas de uma vez só, e sempre que ela estava
por perto, era como se estivesse prestes a explodir. Não é de se admirar que ela tenha
estragado o disfarce”.

“Como você conseguiu o emprego?” pergunta Lynn. “Você não é tão especial assim.”

“Foi mais por causa de onde eu estava depois do ataque da simulação. Esbarrei em um
bando de traidores da Audácia. Decidi ir com eles,” diz ele. “No entanto, não tenho certeza
sobre Tori.”

“Ela transferiu-se da Erudição,” digo.

O que eu não digo, porque tenho certeza que ela não gostaria que ninguém soubesse,
é que provavelmente Tori parecia explosiva na sede da Erudição porque eles assassinaram seu
irmão por ser Divergente.


Ela me disse uma vez que estava esperando uma oportunidade para se vingar.

“Oh,” diz Zeke. “Como você sabe disso?”

“Bom, todos os transferidos de facção têm um clube secreto”, eu digo, inclinando-me
para trás na cadeira. “Encontramos-nos toda terceira quinta-feira do mês”. Zeke bufa.

“Onde está o Quatro?” Pergunta Uriah, verificando o relógio. “Devemos começar sem
ele?”

“Não podemos”, diz Zeke. “Ele está recebendo A Informação”.

 Uriah acena como se aquilo significasse alguma coisa. Em seguida, faz uma pausa e diz:
“Que informação mesmo?”

“As informações sobre a pequena reunião de pacificação entre Jeanine e Kang,” diz
Zeke. “Obviamente.”

Do outro lado da sala, vejo Christina sentada em uma mesa com sua irmã. Ambas leem
alguma coisa.

Meu corpo inteiro se tenciona. Cara, irmã mais velha de Will, está andando do outro
lado da sala em direção à Christina. Abaixo minha cabeça.

“O quê?” Uriah pergunta, olhando por cima do ombro. Quero socá-lo.

“Pare com isso!” Digo. “Você poderia ser mais óbvio?” Inclino-me para frente,
cruzando os braços sobre a mesa. “A irmã de Will está lá”.

“Sim, falei com ela uma vez sobre sair da Erudição, enquanto eu estava lá”, diz Zeke.
“Ela disse que viu uma mulher da Abnegação ser morta enquanto estava em uma missão para
Jeanine e não podia engolir isso”.

“Temos certeza de que ela não é só uma espiã da Erudição?” pergunta Lynn.

“Lynn, ela salvou metade da nossa facção dessa merda!” Diz Marlene, batendo no
curativo em seu braço onde traidores da Audácia atiraram nela. “Bom, metade da metade da
nossa facção.”

“Algumas pessoas costumam chamar isso de um quarto, Mar,” afirma Lynn.

“De qualquer forma, quem se importa se ela é uma traidora?” pergunta Zeke. “Não
estamos planejando algo que ela não possa contar a eles. E, certamente, não a incluiríamos se
fosse o caso”.

“Há muita informação para ela reunir, aqui”, Lynn diz. “Quantos nós somos, por
exemplo, ou quantos de nós não estão preparados para a simulação”.

“Você não a viu quando ela estava me dizendo por que saiu de lá”, diz Zeke. “Eu
acredito nela”.

Cara e Christina levantam-se, e caminham para fora da sala.

“Já volto”, digo. “Tenho de ir ao banheiro”. Espero até que Cara e Christina tenham
passado pelas portas, em seguida dou meia volta e corro naquela direção. Abro uma das
portas lentamente, para não fazer barulho, e fecho-a devagar atrás de mim. Estou em um
corredor escuro que cheira a lixo – aqui deve ser onde a calha de lixo da Franqueza fica.

Ouço duas vozes femininas pelos cantos e vou em direção ao fim do corredor para
ouvir melhor.

“... só não consigo lidar com ela estando aqui”, uma delas soluça. Christina. “Não
consigo para de imaginar isso... o que ela fez... não entendo como ela pôde ter feito isso!”

Os soluços de Christina me fazem sentir como se estivesse prestes a quebrar.

Cara leva um tempo para responder.

“Bem, eu entendo”, diz ela.

“O quê?” Christina diz com um soluço.

“Você tem que entender; somos treinados para ver as coisas como logicamente
possíveis”, diz Cara. “Portanto, não pense que sou insensível. Mas a menina, provavelmente,
estava aterrorizada, sem cabeça, certamente incapaz de avaliar a situação no momento, se é
que ela já foi algum dia capaz de fazer isso”.

Meus olhos se abrem. Mas que garota – corro através de uma pequena lista de
insultos em minha mente antes de ouvi-la continuar.


“E a simulação a fez incapaz de raciocinar sobre ele, por isso quando ele ameaçou sua
vida, ela reagiu como tinha sido treinada pela Audácia para reagir... atirar para matar”.

“Então o que você está dizendo?” Diz Christina amargamente. “Que devemos esquecer
isso, porque faz todo o sentido?”

“Claro que não,” diz Cara. Sua voz oscila um pouco, e ela repete para si mesma, desta
vez calmamente. “Claro que não”.

Ela limpa a garganta. “É só que você tem de estar perto dela, então quero tornar isso
mais fácil para você. Você não tem que perdoá-la. Na verdade, em primeiro lugar, não sei por
que você era amiga dela, ela sempre pareceu meio errática para mim.”

Fico tensa enquanto espero Christina concordar com ela, mas para minha surpresa e
alívio, ela não o faz.

Cara continua. “De qualquer forma, você não tem que perdoá-la, mas deve tentar
entender que ela não fez isso por malícia, ela estava em pânico. Dessa forma você pode olhar
para ela sem querer dar um soco naquele nariz gigante”.

Minha mão move-se automaticamente para o meu nariz. Christina ri um pouco, o que
me faz sentir um puxão para dentro do estômago. Dou meia volta através da porta, para o
Ponto de Encontro.

Mesmo que Cara tivesse sido rude - e o comentário sobre o nariz tenha sido um golpe
baixo - sou grata pelo que ela disse.



Tobias emerge de uma porta escondida atrás de um pano branco. Ele retira o pano de
fora do seu caminho irritadamente antes de andar em nossa direção e senta ao meu lado no
Ponto de Encontro.

“Kang estará indo encontrar-se com um representante de Jeanine Matthews às sete da
manhã”, diz ele.

“Um representante?” Zeke pergunta. “Ela não vai sozinha?”

“Claro, e ficar em pé a céu aberto enquanto um bando de raivosos mira nela?” Uriah
sorri um pouco. “Gostaria de vê-la tentar. Falando sério, eu gostaria.”

“Então Kang, o Brilhante, está levando uma escolta da Audácia, pelo menos?” Lynn
pergunta.

“Sim”, diz Tobias. “Alguns dos membros mais antigos se voluntariaram. Bud disse que
iria manter os ouvidos abertos e relatar tudo na volta”.

Abro uma carranca para ele. Como é que ele sabe todas essas informações? E por que,
depois de dois anos evitando ser um líder da Audácia a todo custo, ele de repente está agindo
como um?

“Então acho que a verdadeira questão é”, diz Zeke, cruzando as mãos sobre a mesa,
“se você fosse da Erudição, o que você diria nessa reunião?”

Todos olham para mim com expectativa.

“O quê?” Eu digo.

“Você é Divergente”, responde Zeke.

“Tobias também”.

“Sim, mas ele não tem aptidão para Erudição”.

“E como você sabe que eu tenho?”

Zeke dá de ombros. “Parece provável. Não parece provável?”

Uriah e Lynn concordam com a cabeça. A boca de Tobias se contrai, como se estivesse
em um sorriso, mas se isso é o que era, ele suprime. Sinto como se uma pedra tivesse caído
em meu estômago.

“Vocês todos têm cérebros funcionais, da última vez eu chequei”, eu digo. “Vocês
podem pensar como os da Erudição também”.

“Mas não temos cérebros Divergentes especiais!” Diz Marlene. Ela toca a ponta dos
dedos em meu couro cabeludo e aperta levemente. “Vamos lá, faça sua magia”.

“Não existe essa coisa de mágica Divergente, Mar”, diz Lynn.


“E se houver, não deveríamos estar consultando ela”, diz Shauna.

Foi a primeira coisa que ela disse desde que se sentou. Ela nem mesmo olhou pra mim
quando disse isso; ela só faz cara feia para sua irmã.

“Shauna”, Zeke começa.

“Não venha com ‘Shauna’ para mim!” Ela diz, focando sua cara feia para ele. “Você não
acha que alguém com aptidão para múltiplas facções pode ter problemas de lealdade? Se ela
tem aptidão para Erudição, como podemos ter certeza de que não está trabalhando para a
Erudição?”

“Não seja ridícula”, diz Tobias, em voz baixa.

“Não estou sendo ridícula”. Ela bate na mesa. “Sei que pertenço à Audácia porque
tudo que fiz naquele teste de aptidão me disse isso. Sou leal à minha facção por essa razão –
porque não existe outro lugar ao qual eu poderia pertencer. Mas ela? E você?” Ela balança a
cabeça. “Eu não tenho ideia a quem você é leal. E eu não vou fingir que está tudo bem”.

Ela se levanta, e quando Zeke chega até ela, ela joga sua mão de lado, marchando em
direção a uma das portas. Eu a observo até que a porta fecha atrás dela e o tecido preto que
paira na frente se estabiliza.

Sinto-me tensa, como se pudesse gritar, mas Shauna, para quem quero gritar, é a
única que não está aqui.

“Não é mágica”, digo com veemência. “Você apenas tem que perguntar a si mesmo
qual a resposta mais lógica para uma situação em particular”.

Recebo olhares sem expressão.

“Sério”, digo. “Se eu estivesse nessa situação, encarando um grupo de guardas da
Audácia e Jack Kang, eu provavelmente não iria recorrer à violência, certo?”

“Bom, você pode, se tiver seus próprios guardas da Audácia. E então tudo o que é
necessário é um tiro – bam, ele está morto, e a Erudição fica melhor sem ele”, diz Zeke.

“Quem quer que eles enviem para falar com Jack Kang não será um garoto aleatório da
Erudição; será alguém importante”, digo. “Seria um movimento estúpido disparar contra Jack
Kang e arriscar perder quem quer que Jeanine envie como seu representante”.

“Está vendo? É por isso que precisamos de você para avaliar a situação”, Zeke diz. “Se
fosse comigo, eu iria matá-lo; valeria à pena o risco”.

Eu belisco a ponta de meu nariz. Eu já tenho uma dor de cabeça. “Tudo bem”.

Tento me colocar no lugar de Jeanine Matthews. Já sei que ela não irá negociar com
Jack Kang. Por que ela precisaria disso? Ele não tem nada para oferecer a ela. Ela vai usar a
situação em sua vantagem.

“Eu acho”, digo, “que Jeanine Matthews vai manipulá-lo. E que ele fará qualquer coisa
para proteger sua facção, mesmo que isso signifique sacrificar os Divergentes”. Pauso por um
momento, lembrando como ele realizou a influência de sua facção sobre nossas cabeças na
reunião. “Ou sacrificar a Audácia. Então, nós precisamos ouvir o que eles vão falar naquela
reunião”.

Uriah e Zeke trocam olhares. Lynn sorri, mas não é seu sorriso de sempre. Ele não se
espalhou para os olhos, que parecem mais como ouro do que nunca, com essa frieza neles.

“Então, vamos ouvir”, diz ela.














 Capítulo 20

 Eu verifico o meu relógio. São sete horas da noite. Apenas 12 horas até que possamos
ouvir o que Jeanine tem a dizer para Jack Kang. Fui verificar o meu relógio pelo menos uma
dúzia de vezes na última hora, como se isso fizesse o tempo passar mais rápido. Estou ansiosa
para fazer algo - qualquer coisa, exceto sentar na lanchonete com Lynn, Tobias e Lauren,
pegando no meu jantar e dando olhares para Christina, que senta com sua família da Fraqueza
em uma das outras mesas.

“Eu me pergunto se nós vamos ser capazes de voltar ao que éramos depois que tudo
isso acabar”, diz Lauren. Ela e Tobias têm falado sobre métodos de treinamento na iniciação da
Audácia por pelo menos cinco minutos até agora. É provavelmente a única coisa que eles têm
em comum.

“Se sobrar alguma facção depois que tudo isso acabar”, afirma Lynn, empilhando seu
purê de batatas em uma fileira.

“Não me diga que você vai comer um sanduíche de purê”, eu digo para ela.

“E se eu for?”

Um grupo da Audácia caminha entre a nossa mesa e a próxima a nós. Eles são mais
velhos que Tobias, mas não por muito. Uma das meninas tem cinco cores diferentes em seu
cabelo, e seus braços são cobertos com tatuagens de forma que eu não possa ver nem um
centímetro de pele nua. Um dos rapazes se inclina perto de Tobias, cujas costas estão para
eles, e sussurra: “Covarde”, enquanto passa.

Alguns dos outros fazem a mesma coisa, assobiam “covarde” nos ouvidos de Tobias e
depois continuam em seu caminho. Ele faz uma pausa com sua faca contra um pedaço de pão
e encara a mesa.

Eu espero, tensa, ele explodir.

“Que idiotas”, diz Lauren. “E a franqueza, por fazer você derramar sua história de vida
para todo mundo ver... São idiotas também”.

Tobias não responde. Ele põe a faca e o pedaço de pão, e empurra para a mesa. Seus
olhos levantam e se concentrar em algo do outro lado da sala.

“Isso precisa parar”, diz ele de longe, e começa a ir à direção de quem quer que seja
que estava olhando antes de eu descobrir quem é. Isso não pode ser bom.

Ele desliza por entre as mesas e as pessoas como se fosse mais líquido do que sólido, e
eu tropeço atrás dele, murmurando desculpas enquanto empurro as pessoas para o lado.

E então eu vejo exatamente a quem Tobias se dirige. Marcus. Ele está sentado com
alguns dos mais velhos da Fraqueza.

Tobias o alcança e agarra-o pela parte de trás do pescoço, lutando com ele em seu
assento. Marcus abre a boca para dizer alguma coisa, e isso é um erro, porque Tobias lhe dá
um soco duro nos dentes. Alguém grita, mas ninguém corre para ajudar Marcus. Estamos em
uma sala cheia de pessoas da Audácia, apesar de tudo.

Tobias empurra Marcus para o meio da sala, onde existe um espaço entre as mesas
para mostrar o símbolo da Fraqueza. Marcus tropeça em um dos bancos, com as mãos
cobrindo o rosto, então não posso ver o estrago que Tobias fez.

Tobias empurra Marcus para o chão e pressiona o salto de seu sapato contra a
garganta de seu pai. Marcus empurra a perna de Tobias, o sangue fluindo nos lábios, mas
mesmo se ele estivesse em sua forma mais forte, ele ainda não seria tão forte quanto seu
filho. Tobias desfaz a fivela do cinto e tira-o dos anéis da calça.

Ele levanta o pé da garganta de Marcus e levanta o cinto para trás.

“Isto é para o seu próprio bem”, diz ele.

Isso, eu me lembro, é o que Marcus, e suas muitas manifestações, sempre diziam a
Tobias em sua paisagem medo.


Então o cinto voa pelo ar e acerta Marcus no braço. O rosto de Marcus está vermelho
brilhante, e ele cobre a sua cabeça enquanto o próximo golpe cai, este acertando suas costas.
Tudo ao meu redor são risadas, provenientes das mesas da Audácia, mas eu não estou rindo,
eu não consigo rir disso.

Finalmente eu volto aos meus sentidos. Eu corro para frente e agarro o ombro de
Tobias.

“Pare!” Eu digo. “Tobias pare agora!”

Espero ver um olhar selvagem em seus olhos, mas quando ele olha para mim, eu não
vejo isso. Seu rosto não está descarregado e suas respirações estão constantes. Este não foi
um ato realizado no calor da paixão.

Foi um ato calculado.

Ele deixa cair o cinto e enfia a mão no bolso. Dali, ele levanta uma corrente de prata
com um anel pendurado. Marcus está do seu lado, ofegante. Tobias deixa cair o anel no chão
ao lado de rosto de seu pai. Ele é feito de metal, metal maçante, um anel de casamento da
Abnegação.

“Minha mãe”, diz Tobias, “mandou um Olá”.

Tobias vai embora, e leva alguns segundos para eu respirar novamente. Quando eu
faço, deixo Marcus encolhido no chão e corro atrás dele. Corro até chegar ao corredor para
alcançá-lo.

“O que foi isso?” Eu pergunto.

Tobias pressiona o botão DESCER do elevador e não olha para mim.

“Era necessário”, diz ele.

“Necessário para quê?” Eu digo.

“O que, você está se sentindo triste por ele agora?” Tobias diz, virando-se para mim
com uma cara feia. “Você sabe quantas vezes ele fez isso comigo? Como você acha que eu
aprendi os movimentos?”

Sinto-me frágil, como se eu pudesse quebrar. Aquilo pareceu ensaiado, como se Tobias
tivesse passado as etapas em sua mente, recitado as palavras na frente de um espelho. Ele
sabia de cor, ele estava apenas fazendo o outro papel neste momento.

“Não”, eu disse calmamente. “Não, eu não sinto pena dele, nenhuma”.

“Então, o que, Tris?” Sua voz é áspera, o que poderia ser a única coisa que consegue
me machucar. “Você não se importava com o que eu fazia ou dizia na semana passada, o que é
tão diferente sobre isso?”

Estou quase com medo dele. Eu não sei o que dizer ou fazer ao redor da parte errática
dele, e ela está aqui, borbulhando sob a superfície do que ele faz, assim como a parte cruel de
mim. Nós dois temos guerra dentro de nós. Às vezes, ela nos mantém vivos. Às vezes, ela
ameaça destruir-nos.

“Nada”, eu digo.

O elevador emite um som quando chega. Ele entra e pressiona o botão de FECHAR
para que as portas fiquem entre nós. Eu fico olhando para o metal escovado e tento pensar ao
longo dos últimos dez minutos.

“Isso precisa parar”, disse ele. “Isso” era a ridicularização, que foi um resultado do
interrogatório, onde admitiu que ele se juntou a Audácia para escapar de seu pai. E então ele
bate Marcus em público, onde todos os da Audácia poderiam vê-lo.

Por quê? Para preservar seu orgulho? Não pode ser. Foi muito intencional para isso.

No caminho de volta para o refeitório, eu vejo um homem da Fraqueza levar Marcus
em direção ao banheiro. Ele caminha lentamente, mas não está curvado, o que me faz pensar
que Tobias não lhe fez qualquer dano grave. Eu vejo a porta se fechar atrás dele.

Eu tenho feito tudo, menos esquecido sobre o que eu ouvi no complexo da Amizade,
sobre a informação pela qual meu pai arriscou a vida. Supostamente, eu me lembro. Não deve
ser sábio confiar em Marcus. E eu prometi a mim mesma que não iria perguntar a ele sobre
isso de novo.


Eu fico gastando tempo fora do banheiro até que o homem da Fraqueza sai, e entro
antes que a porta tenha tempo de fechar completamente. Marcus está sentado no chão ao
lado da pia com um chumaço de papel toalha pressionado em sua boca. Ele não parece feliz
em me ver.

“O que? Está aqui para tripudiar?”, diz ele. “Saia”.

“Não”, eu digo.

Por que estou aqui, exatamente?

Ele olha para mim com expectativa. “Bem?”

“Eu pensei que você poderia usar um lembrete”, eu digo. “O que quer que seja que
você quer tirar de Jeanine, você não será capaz de fazer isso sozinho, e você não será capaz de
fazê-lo com apenas a Abnegação a te ajudar”.

“Eu achei que tínhamos terminado esse assunto”. Sua voz está abafada pelas toalhas
de papel. “A ideia de que você poderia ajudar -”

“Eu não sei de onde você tirou esta ilusão de que eu sou inútil, mas é isso que isto é”,
eu rebato. “E eu não estou interessada em ouvir sobre isso. Tudo o que eu quero dizer é que
quando você parar de delirar e começar a se sentir desesperado porque você é muito inepto
para descobrir isso sozinho, você sabe a quem recorrer”.

Eu deixo o banheiro enquanto o homem da Fraqueza volta com um saco de gelo.




























































 Capítulo 21



Estou diante das pias no banheiro feminino no andar recém-reivindicado pelos
membros da Audácia com uma arma descansando em minha mão. Lynn a colocou lá alguns
minutos atrás; ela pareceu confusa por eu não ter envolvido minhas mãos nela e a colocado
em algum lugar, no suporte ou na cintura de meu jeans. Eu simplesmente deixei a arma lá e
andei até o banheiro antes que começasse a entrar em pânico.

Não seja uma idiota. Eu não posso fazer o que estou fazendo sem uma arma. Seria
loucura. Eu vou ter que resolver esse problema que estou tendo nos próximos cinco minutos.

Eu dobro meu mindinho ao redor do cabo, em seguida meu segundo dedo, e então os
outros. O peso é familiar. Meu indicador vai em direção ao gatilho. Eu respiro fundo.

Começo a levantá-la, levando minha mão esquerda em direção à arma para estabilizá-
la. Eu seguro a arma longe do meu corpo, meus braços retos, como Quatro me ensinou,
quando este era seu único nome. Eu usei uma arma como esta para defender meu pai e meu
irmão dos membros da Audácia que estavam na simulação. Eu a usei para impedir Eric de
atirar em Tobias na cabeça. Ela não é inteiramente maligna. É só uma ferramenta.

Eu vejo um movimento no espelho, e antes que eu possa impedir, eu olho para o
reflexo. Foi assim que ele me viu, eu penso. Foi assim que eu parecia quando atirei nele.

Gemendo como um animal ferido, eu deixo a arma cair de minha mão e envolvo os
meus braços em volta do meu estômago. Eu quero chorar porque eu sei que vai fazer eu me
sentir melhor, mas eu não posso forçar as lágrimas a virem. Eu só me agacho no banheiro,
olhando para o piso branco. Eu não posso fazer isso. Eu não posso levar a arma comigo.

Eu não deveria nem ir; Mas vou do mesmo jeito.

“Tris?” Alguém bate na porta. Eu me levanto e descruzo meus braços assim que porta
abre alguns centímetros. Tobias entra no banheiro.

“Zeke e Uriah me disseram que vocês iriam bisbilhotar Jack”, ele diz.

“Ah”.
“Você vai?”

“Porque eu deveria te falar? Você não me conta sobre os seus planos”.

Suas sobrancelhas franzem “Sobre o que você está falando?”

“Eu estou falando sobre você bater no Marcus na frente de todos os membros da
Audácia por nenhuma razão aparente”. Eu ando em direção a ele. “Mas tem uma razão, não
tem? Porque não é como se você tivesse perdido o controle; Não é como se ele tivesse
provocado você, então deve ter uma razão!”

“Eu precisava provar para os outros que eu não sou covarde,” ele diz. “Isso é tudo. Foi
só isso que ocorreu”.

“Porque você teria que...” Eu começo.

Porque Tobias deveria provar sua capacidade para os membros da Audácia? Só se ele
quisesse que ele fosse colocado num posto de grande respeito. Só se ele quisesse se tornar um
líder da Audácia. Eu me lembro da voz de Evelyn, falando nas sombras no refúgio dos sem
facção: “O que eu sugiro é que você se torne importante”.

Ele quer que a Audácia se alie com os sem facção, e ele sabe que o único jeito que ele
conseguirá fazer isso acontecer, é se ele fizer isso ele mesmo.


A razão dele não sentir necessidade de dividir o plano dele comigo é um mistério
totalmente diferente. Antes que eu possa perguntar, ele diz, “Então você vai bisbilhotar ou
não?”

“E o que isso importa?”

“Você está se colocando em perigo por nenhum motivo novamente”, ele diz. “Assim
como você foi pra luta com os membros da Erudição com apenas... uma faca de bolso para
proteger você mesma”.

“Tem um motivo. Um bom motivo. Nós não vamos saber o que está acontecendo se
não bisbilhotarmos, e precisamos saber o que está acontecendo”.

Ele cruza os braços. Ele não é robusto, do jeito que alguns garotos da Audácia são. E
algumas garotas podem se concentrar no jeito que seus ouvidos são para fora, ou o jeito que
seu nariz é na ponta, mas para mim...

Eu engulo o resto daquele pensamento. Ele está aqui para gritar comigo. Ele vem
guardado segredos de mim. Seja lá o que for que somos agora, Eu não posso me induzir a ter
pensamentos do quão atraente ele é. Isso só vai tornar as coisas mais difíceis para mim para
fazer o que é preciso fazer. E neste momento, é ir escutar o que Jack Kang tem a dizer para a
Erudição.

“Você não está mais cortando seu cabelo como os membros da Abnegação”, eu digo.
“Isso é porque você quer parecer mais membro da Audácia?”

“Não mude de assunto”, ele diz. “Já tem quatro pessoas que vão bisbilhotar. Você não
precisa estar lá”.

“Porque você quer tanto que eu fique aqui?” Minha voz fica mais alta. “Eu não sou o
tipo de pessoa que senta e deixa as outras pessoas correrem todos os riscos!”

“Enquanto que você for uma pessoa que não parece valorizar a própria vida... alguém
que não consegue nem segurar e atirar uma arma...” Ele se inclina em minha direção. “Você
deveria sentar e deixar as outras pessoas correrem todos os riscos”.

Sua voz quieta pulsa ao meu redor como um segundo batimento cardíaco. Eu escuto as
palavras “não parece valorizar a própria vida” repetidamente.

“E o que você vai fazer?” eu digo. “Trancar-me no banheiro? Por que este é o único
jeito de você me impedir de ir”.

Ele toca sua testa e deixa a sua mão arrastar pelo lado de seu rosto. Eu nunca vi o
rosto dele ceder daquele jeito antes.

“Eu não quero parar você. Eu quero que você se pare”, ele diz. “Mas se você vai ser
irresponsável, você não pode me impedir de ir junto”.



É quase noite quando chegamos à ponte, que é de duas camadas, com pilares de pedra
a canta canto. Descemos a escada próxima a um dos pilares e rastejamos silenciosamente até
o nível do rio. Grandes poças de água parada brilham conforme a luz do dia os atinge. O sol
está nascendo, temos que ficar em posição.

Uriah e Zeke estão nos prédios de cada lado da ponte para poderem ter uma visão
melhor e nos cobrir à distância. Eles têm mira melhor que Lynn e Shauna, que veio porque
Lynn pediu a ela, apesar do ataque dela no ponto de encontro.

Lynn vai primeiro, suas costas prensadas entre as pedras conforme ela se aproxima da
parte de baixo dos suportes da ponte. Eu a sigo, com Shauna e Tobias atrás de mim. A ponte é
suportada por quatro estruturas metálicas curvadas presas a parede de pedra, e por um


labirinto de vigas estreitas sobre a camada inferior. Lynn vai até uma das estruturas metálicas
e escala rapidamente, deixando as vigas estreitas abaixo dela indo em direção ao meio da
ponte.

Eu deixo Shauna ir à minha frente, pois eu não sou muito boa em escaladas. Meu
braço direito treme quando tento escalar a estrutura metálica. Eu sinto a mão fria de Tobias na
minha cintura, me estabilizando.

Eu me arrasto devagar para me encaixar entre a ponte as vigas abaixo de mim. Eu não
vou muito longe antes de ter que parar, com meu pé em uma viga e meu braço esquerdo em
outra. Vou ter que ficar nessa posição por um longo tempo.

Tobias desliza nas vigas e coloca sua perna sob meu corpo. É longa suficiente para
esticar abaixo de mim e alcançar outra viga. Eu expiro e sorrio pra ele como um silencioso
obrigado. É a primeira vez que temos demonstrado conhecimento de um sobre o outro desde
que deixamos o Comércio Impiedoso.

Ele sorri de volta, mas com uma expressão severa.

Nós deixamos o tempo passar em silêncio. Eu respiro pela minha boca e tento
controlar o balançar de meus braços e pernas. Shauna e Lynn parecem se comunicar sem falar.
Elas fazem expressões com o rosto uma à outra que eu não consigo ler, e concordam e sorriem
quando chegam a um acordo. Eu nunca pensei sobre como deve ser ter uma irmã. Caleb e eu
seríamos mais próximos se ele fosse uma garota?

A cidade é tão quieta durante a manhã que eu ouço os passos ecoando assim que eles
se aproximam da ponte. O som vem de trás, o que significa que é Jack e alguns membros da
Audácia de escolta, não os da Erudição. Os membros da Audácia sabem que estamos aqui, mas
Jack Kang não. Se ele olhar para baixo durante alguns segundos, ele poderá nos ver através da
rede metálica abaixo de seu pé. Eu tento respirar o mais silenciosamente possível.

Tobias checa seu relógio, e estica o braço para me mostrar o horário. Sete horas em
ponto.

Eu olho pra cima e observo através da rede acima de mim. Pés passam sobre minha
cabeça. E então eu o escuto.

“Olá, Jack”, ele diz.

É Max, que apontou Eric para a liderança da Audácia a mando de Jeanine, que
programou políticas cruéis e brutais na iniciação da Audácia. Eu nunca falei com ele
diretamente, mas o som de sua voz me dá calafrios.

“Max”, Jack diz. “Onde está Jeanine? Pensei que ela ao menos teria a cortesia de
aparecer em pessoa.”

“Jeanine e eu dividimos nossas responsabilidades de acordo com nossas forças”, ele
diz. “O que significa que eu faço todas as decisões militares. Eu acredito que isso inclui o que
estamos fazendo aqui hoje”.

Eu franzo a testa. Eu nunca escutei Max falar muito, mas algo nas palavras que ele está
usando, e seus ritmos, parecem... vagos.

“Ok”, diz Jack. “Eu vim aqui para...”

“Eu devo lhe informar que isso não será uma negociação”, Max diz. “Em posição de
negociar, você deveria estar à mesma altura, e você, Jack, não está”.

“O que você quer dizer?”

“Eu quero dizer que você representa a única facção descartável. Franqueza não nos
fornece proteção, sustento, ou inovações tecnológicas. Consequentemente você é dispensável


para nós. E você não tem feito muito para ganhar o favor de seus convidados da Audácia”, diz
Max. “Então você está completamente vulnerável e completamente inútil. Eu recomendo,
portanto, que você faça exatamente o que digo”.

“Seu pedaço de escória”, diz Jack rangendo os dentes. “Como ousa...”

“Não sejamos irascíveis”, Max diz.

Eu mastigo meus lábios. Eu deveria confiar em meus instintos, e meus instintos me
dizem que algo está errado. Nenhum membro da Audácia que tenha autorrespeito usaria a
palavra “irascível”. Nem reagiria tão calmamente a um insulto. Ele está falando como outra
pessoa. Ele está falando como Jeanine.

Um choque passa pela minha nuca. Faz perfeito sentido. Jeanine não confiaria em
ninguém, principalmente num membro volátil da Audácia, para falar por ela. A melhor solução
para esse problema é dar a Max uma escuta. E o sinal de uma escuta só alcança 300 metros,
no máximo.

Eu olho em direção a Tobias, e lentamente movo minha mão e aponto para meu
ouvido. E então aponto para cima, na melhor aproximação de onde Max está.

Tobias franze a testa por um momento, e então concorda, mas não tenho certeza se
ele entende o que quero dizer.

“Eu tenho três requerimentos”, diz Max. “Primeiro, que você devolva qualquer líder da
Audácia que você mantém em cativeiro ileso. Segundo, que você permita seu complexo a ser
revistado por nossos soldados para levarmos os Divergentes; e terceiro, que você nos entregue
uma lista com os nomes daqueles que não foram injetados com o soro da simulação.”

“Por quê?” Jack diz amargamente. “O que você está procurando? E porque você
precisa desses nomes? O que pretende fazer com eles?”

“O propósito de nossa busca será de localizar e remover qualquer Divergente das
instalações. E quanto aos nomes, não lhe diz respeito”.

“Não é de meu respeito!” Escuto o barulho de passos sobre mim e olho para cima
através da rede. Pelo que posso ver, Jack está segurando Max pelo colar da camisa com um
punho.

“Solte-me”, diz Max. “Ou ordenarei a meus guardas que atirem”.

Eu franzo a testa novamente. Se Jeanine está falando através de Max, ela tem que
estar vendo tudo para poder saber que ele o segurou. Eu inclino para frente, para poder ver as
construções do outro lado da ponte. A minha esquerda, o rio faz uma curva, e um prédio de
vidro está posicionado na beira. Deve ser onde ela está.

Eu começo a escalar para trás, através da estrutura de metal que suporta a ponte,
através da escada que me levará para Wacker Drive. Tobias me segue imediatamente, e
Shauna dá um tapa de leve no ombro de Lynn. Mas Lynn está fazendo outra coisa.

Eu estava ocupada pensando sobre Jeanine. Falhei em perceber que Lynn pegou sua
arma e começou a escalar em direção a borda da ponte. A boca de Shauna abre e seus olhos
arregalam quando Lynn já está na borda, segurando-se ao lado da ponte e lança seu braço
sobre ele. Seu dedo aperta o gatilho.

Max suspira, sua mão batendo sobre seu peito, e tropeça para trás. Quando ele puxa
sua mão, está coberta de sangue.

Eu não me importo em escalar mais. Me solto na lama, seguida por Tobias, Lynn e
Shauna. Minhas pernas afundam no lamaçal, e meus pés fazem sons de sugadas quando os
puxo livremente. Meus sapatos saem, mas eu continuo indo até alcançar o concreto. Armas


disparam e balas se prendem na lama próximo a mim. Eu me jogo na parede embaixo da
ponte, para não mirarem em mim.

Tobias se pressiona na parede atrás de mim, tão perto que seu queixo encosta minha
cabeça e eu posso sentir seu peitoral em meus ombros. Protegendo-me.

Eu posso correr de volta para o quartel general da Franqueza, e para a segurança
temporária. Ou eu posso encontrar Jeanine no que pode ser o estado mais vulnerável que ela
jamais estará.

Não é nem uma escolha.

“Vamos!” Eu digo. Eu subo as escadas, os outros logo atrás de mim. Na camada de
baixo da ponte, Nossos membros da Audácia atiram nos traidores da Audácia. Jack está
seguro, curvado sob a proteção dos nossos membros. Eu corro mais rápido. Eu corro através
da ponte e não olho pra trás. Eu já posso escutar os passos de Tobias. Ele é o único que
consegue me acompanhar.

O prédio de vidro está a minha vista. Estou a metros de distância. Eu ranjo meus
dentes e me esforço mais ainda. Minhas pernas estão dormentes; Mal consigo sentir o chão
sob mim. Mas antes que eu possa alcançar as portas, eu vejo movimento no beco a minha
direita. Eu desvio e os sigo com meus pés.

Três pessoas correm pelo beco. Uma é loira, outro é alto e um deles é Peter.

Eu tropeço, e quase caio.

“Peter!” Eu grito. Ele levanta sua arma, e atrás de mim, Tobias levanta a sua, e nós nos
mantemos assim, com apenas metros de distância um de outro, numa paralisação. Atrás dele,
a mulher loira – Jeanine, provavelmente – e o traidor alto viram a esquina. Mesmo que eu não
tenha uma arma, e não tenha um plano, eu quero correr atrás deles, e talvez eu o fizesse se
Tobias não colocasse a mão dele sobre meu ombro e me segurasse no lugar.

“Seu traidor”. Eu digo a Peter. “Eu sabia. Eu sabia”.

Um grito perfura o ar. É angustiado e feminino.

“Parece que seus amigos precisam de você”, Peter diz com um leve sorriso – ou dentes
cerrados, não consigo dizer. Ele mantém sua arma pronta. “Você tem uma escolha. Você pode
nos deixar ir, e ajudá-los, ou você pode morrer tentando nos seguir”.

Eu quase grito. Nós dois sabemos o que vou fazer.

“Eu espero que você morra”. Eu digo.

Eu vou para trás com Tobias, até que alcançamos o fim do beco, e então viramos e
corremos.


























 Capítulo 22

 Shauna está deitada no chão, com o rosto virado para baixo e o sangue formando uma
piscina em sua camisa. Lynn fica ao seu lado. Olhando. Sem fazer nada.

 “É minha culpa”, Lynn murmura. “Eu não devia ter atirado nele. Eu não devia...”

 Eu encaro o emplastro de sangue. Uma bala acertou-a nas costas. Eu não consigo dizer
se ela está respirando ou não. Tobias coloca dois dedos em seu pescoço e afirma com a
cabeça.

 “Temos que sair daqui”, ele diz. “Lynn. Olhe para mim. Eu vou carregá-la e ela vai
sentir muita dor, mas essa é a nossa única opção”.

 Lynn concorda. Tobias agacha ao lado de Shauna e coloca suas mãos em baixo dos
seus braços. Ele a levanta e ela geme. Eu corro na direção deles para ajudá-lo a levantar o
corpo flácido dela sobre os ombros dele. Minha garganta fica seca e eu começo a tossir para
aliviar a pressão.

 Tobias fica de pé com um grunhido de esforço, e, juntos, nós andamos em direção ao
Comércio Impiedoso – Lynn na frente, com sua arma, e eu atrás. Eu ando virada para trás, para
vigiar nossas costas, mas não vejo ninguém. Acho que os traidores recuaram. Mas eu tenho
que ter certeza.

 “Ei!” Alguém grita. É Uriah, correndo em nossa direção. “Zeke teve que ajudá-los a
pegar Jack... ah não”. Ele para. “Ah não. Shauna?”

 “Agora não é hora”, diz Tobias, rispidamente. “Corra de volta para o Comércio
Impiedoso e chame um médico”.

 Mas Uriah fica apenas olhando.

 “Uriah! Vá, agora!” O grito ecoa como se não tivesse nada na rua para amenizar o som
dele. Uriah finalmente se vira e corre.

 São só dois quilômetros de distância, mas com os grunhidos de Tobias, a respiração
irregular de Lynn e o pensamento de que Shauna está sangrando até a morte, parece uma
distância infinita. Eu assisto os músculos nas costas de Tobias expandirem e contraírem com
cada respiração e não ouço nossos passos; Eu ouço apenas meu batimento cardíaco. Quando
nós finalmente alcançamos as portas, eu sinto como se fosse vomitar, ou desmaiar, ou gritar
até meus pulmões não aguentarem mais.

 Uriah, um homem da Erudição quase careca e Cara nos encontram logo ao entrarmos.
Eles arrumam um lençol para Shauna poder deitar. Tobias a coloca nele e o médico começa a
trabalhar imediatamente, cortando a blusa nas costas dela. Eu me viro. Não quero ver o
buraco da bala.

 Tobias fica na minha frente, seu rosto vermelho de tanto esforço. Eu queria que ele me
segurasse em seus braços de novo, como ele fez depois do último ataque, mas ele não faz isso
e eu não quero forçá-lo a fazer.

 “Não vou fingir que sei o que está acontecendo com você”, ele diz. “Mas se você
arriscar sua vida insensivelmente de novo –“

 “Eu não estou arriscando minha vida insensivelmente. Eu estou tentando fazer
sacrifícios, como meus pais teriam feito, como-“

 “Você não é seus pais. Você é uma garota de dezesseis anos-“

 Eu ranjo os dentes. “Como você ousa-“


 “- que não entende que o valor de um sacrifício está em sua necessidade, não em jogar
sua vida fora! E se você fizer isso de novo, está tudo acabado entre nós”.

 Eu não esperava que ele dissesse isto.

 “Você está me dando um ultimato?” Eu tento manter minha voz baixa para que os
outros não ouçam.

 Ele balança a cabeça. “Não, eu estou te contando um fato”. Seus lábios estão em uma
linha. “Se você se colocar em perigo sem nenhuma razão novamente, você não vai se tornar
nada além de uma viciada em adrenalina da Audácia procurando por um perigo, e eu não vou
te ajudar a se tornar isto”. Ele cospe as palavras com amargura. “Eu amo a Tris Divergente, que
toma decisões sem se influenciar pela lealdade à facção, que não é só um protótipo da facção.
Mas a Tris que está tentando o máximo que pode para destruir a si mesma... Eu não posso
amá-la”.

 Eu quero gritar. Mas não porque estou com raiva, porque ele está certo. Minhas mãos
tremem e eu agarro a barra da minha blusa para acalmá-las.

 Ele encosta sua testa na minha e fecha os olhos. “Eu acredito que você ainda está aí
dentro”, ele diz contra minha boca. “Volte”.

 Ele me beija levemente e eu estou muito chocada para fazê-lo parar.

 Ele anda de volta para o lado de Shauna e eu fico parada em cima de uma das escadas
da Franqueza, perdida.



 “Há quanto tempo”.

 Eu afundo na cama na frente de Tori. Ela está sentada, sua perna apoiada em uma
montanha de travesseiros.

 “Sim”, eu digo. “Como está se sentindo?”

 “Como se tivesse levado um tiro”. Um sorriso aparece em seus lábios. “Eu ouvi dizer
que você está familiarizada com esse sentimento”.

 “É. É ótimo, certo?” Tudo o que eu posso pensar é na bala nas costas de Shauna. Pelo
menos Tori e eu vamos nos recuperar de nossas feridas.

 “Você descobriu alguma coisa interessante na reunião de Jack?” Ela diz.

 “Algumas. Você sabe que provavelmente vamos fazer uma reunião da Audácia?”

 “Eu posso fazer isso acontecer. Uma das vantagens de ser uma tatuadora na Audácia é
que... você conhece quase todo mundo”.

 “Certo”, eu digo. “Você também teve o prestígio de ser uma espiã”.

 A boca de Tori se curva. “Eu já tinha quase esquecido”.

 “E você descobriu alguma coisa interessante? Como espiã, eu quero dizer”.

 “Minha missão estava primeiramente focada em Jeanine Matthews”. Ela encara suas
mãos. “Como ela gasta seu tempo. E, mais importante, onde ela gasta seu tempo”.

 “Não é em seu escritório, então?”

 Tori não responde durante um tempo.

 “Eu acho que posso confiar em você, Divergente”. Ela olha para mim. “Ela tem um
laboratório privado no andar mais alto. Medidas insanas de segurança protegendo-o. Eu
estava tentando chegar lá quando eles descobriram o que eu era”.

 “Você estava tentando chegar lá”, eu digo. Seus olhos desviam dos meus. “Não para
espiar, eu presumo”.


 “Eu pensei que seria mais... expediente se Jeanine Matthews não sobrevivesse por
muito mais tempo”.

 Eu vejo um tipo de ânsia em sua expressão, a mesma que eu vi quando ela me contou
sobre seu irmão no balcão da loja de tatuagens. Antes da simulação do ataque eu devo ter
pensado que seria uma ânsia por justiça, ou até vingança, mas agora eu posso identificá-la
como uma ânsia por sangue. E da mesma forma que ela me assusta, eu a entendo.

 O que provavelmente deveria me assustar mais ainda.

 Tori diz “Eu vou fazer aquela reunião acontecer”.

 Os membros da Audácia estão reunidos no espaço entre as fileiras de beliches e as
portas, que são mantidas fechadas por um lençol enrolado, a melhor tranca que a Audácia
poderia ter. Eu não tenho dúvidas que Jack Kang vai concordar com as exigências de Jeanine.
Nós não estamos mais seguros aqui.

 “Quais foram os termos?” Tori diz. Ela está sentada em uma cadeira entre alguns dos
beliches, sua perna machucada está levantada na sua frente. Ela pergunta a Tobias, mas ele
não parece estar prestando atenção. Ele está inclinado contra um dos beliches, seus braços
cruzados, encarando o chão.

 Eu limpo minha garganta. “Foram três. Devolver Eric à Erudição. Relatar os nomes de
todas as pessoas que não foram atingidas pelas injeções da última vez. E entregar os
Divergentes para a sede da Erudição”.

 Eu olho para Marlene. Ela sorri de volta para mim, tristemente. Ela está provavelmente
preocupada com Shauna, que ainda está com o médico da Erudição. Lynn, Hector, seus pais e
Zeke estão lá com ela.

 “Se Jack Kang está fazendo acordos com a Erudição, nós não podemos ficar aqui”, diz
Tori. “Então para onde podemos ir?”

 Eu penso no sangue na blusa de Shauna, nos pomares da Amizade, o som do vento nas
folhas, a sensação da casca das árvores em minha mão. Eu nunca pensei que iria almejar
aquele lugar. Não pensei que tivesse ficado em mim.

 Eu fecho meus olhos brevemente e quando os abro volto à realidade, a Amizade foi só
um sonho.

 “Para casa”, Tobias diz, levantando a cabeça. Todos estão ouvindo. “Nós devemos
levar de volta o que é nosso. Podemos quebrar as câmeras de segurança na sede da Audácia
para que a Erudição não nos veja. Devemos voltar para casa”.

 Alguém concorda com um grito e outra pessoa se junta a ele. É assim que as coisas são
decididas na Audácia: com acenos de cabeça e gritos. Nesses momentos nós não parecemos
individuais. Nós somos todos parte da mesma mente.

 “Mas antes de fazer isso”, diz Bud, que trabalhou na loja de tatuagens e que agora está
parado com a mão nas costas da cadeira de Tori. “nós temos que decidir o que fazer com Eric.
Deixá-lo ficar aqui com a Erudição ou executá-lo”.

 “Eric é da Audácia”, Lauren diz, girando o piercing em seu lábio com as pontas dos
dedos. “Isso significa que nós decidimos o que acontece com ele. Não a Franqueza”.

 Nesse momento um grito chora por meu corpo, juntando-se aos outros em
concordância.

 “De acordo com as leis da Audácia, apenas os líderes podem realizar uma execução.
Todos os cinco de nossos líderes estão entre os traidores”, diz Tori. “Então eu acho que é hora


de escolhermos novos. A lei diz que precisamos de mais de um e precisamos de um número
ímpar. Se vocês tiverem sugestões, devem gritá-las agora e nós iremos votar de precisarmos”.

 “Você!” Alguém grita.

 “Ok”, diz Tori. “Mais alguém?”

 Marlene coloca as mãos ao redor da boca e grita “Tris!”

 Meu coração acelera. Mas para minha surpresa, ninguém reclama e ninguém ri. Em
vez disso, algumas pessoas concordam com a cabeça, da mesma forma que fizeram quando o
nome de Tori foi mencionado. Eu olho para a multidão e encontro Christina. Ela está de pé
com os braços cruzados e não parece reagir a minha indicação.

 Eu imagino como eu me pareço para eles. Eles devem ver alguém que eu não vejo.
Alguém capaz e forte. Alguém que eu não consigo ser; alguém que eu posso ser.

 Tori cumprimenta Marlene com um aceno de cabeça e procura por mais uma
indicação na multidão.

 “Harrison”, alguém diz. Eu não sei quem é Harrison até que alguém empurra um
homem de meia-idade com um rabo de cavalo loiro no ombro e ele geme. Eu o reconheço –
ele é o homem da Audácia que me chamou de ‘garota’ quando Zeke e Tori voltaram da sede
da Erudição.

 Os membros da Audácia ficam quietos por um momento.

 “Eu vou indicar o Quatro”, diz Tori.

 Fora alguns murmúrios nervosos no fundo da sala, ninguém discorda. Ninguém está o
chamando de covarde mais, não depois de ele bater em Marcus na cafeteria. Eu imagino como
eles reagiriam se soubessem o quão calculado aquilo foi.

 Agora ele pode ter exatamente o que ele queria. A menos que eu fique em seu
caminho.

 “Nós só precisamos de três líderes”, Tori diz. “Vamos ter que votar”.

 Eles nunca teriam me considerado se eu não tivesse parado a simulação do ataque. E
talvez eles não tivessem me considerado se eu não tivesse esfaqueado Eric perto dos
elevadores, ou me colocado em baixo daquela ponte. Quanto mais irresponsável, mais popular
eu fico entre os membros da Audácia.

 Tobias olha para mim. Eu não posso ser popular, porque Tobias está certo - Eu não sou
da Audácia; Eu sou Divergente. Eu sou o quem quer que eu escolha ser. E eu não posso
escolher ser isso. Eu tenho que ficar separada deles.

 “Não”, eu digo. Eu limpo minha garganta e digo em voz alta. “Não, vocês não tem que
votar. Eu recuso minha indicação”.

 Tori levanta suas sobrancelhas para mim. “Tem certeza, Tris?”

 “Sim”, eu digo. “Não quero isso. Tenho certeza”.

 E então, sem argumentar e sem cerimônias, Tobias é eleito para ser um líder da
Audácia. E eu não.
















 Capítulo 23

 Não passam nem dez segundos depois de escolhermos nossos líderes quando alguma
coisa começa a fazer barulho – uma longa batida, duas mais fracas. Eu ando na direção do
som, coloco minha orelha direita na parede e descubro um alto-falante suspenso no teto. Há
outro no outro lado da sala.

 A voz de Jack Kang fala ao nosso redor.

 “Atenção todos os ocupantes da sede da Franqueza. Algumas horas atrás eu encontrei
com um representante de Jeanine Matthews. Ele me lembrou de que nós da Franqueza
estamos em uma posição frágil, dependendo da Erudição para sobrevivermos, e me disse que
se eu pretendo manter minha facção livre, terei que cumprir algumas exigências”.

 Encaro o alto falante, aturdida. Eu não deveria estar surpresa que o líder da Franqueza
seja franco, mas não estava esperando um anúncio público.

 “Para cumprir essas exigências, eu peço que todos se dirijam ao Ponto de Encontro
para relatar se você tem ou não um implante”, ele diz. “A Erudição também pediu que todos
os Divergentes fossem entregues a eles. Eu não sei com qual propósito”.

 Ele soa indiferente. Derrotado. Bem, ele é um derrotado. Eu penso. Porque ele foi
muito fraco para lutar.

 Há uma coisa que a Audácia sabe e a Franqueza não: Lutar mesmo quando isso parecer
inútil.

 Algumas vezes eu sinto como se estivesse coletando lições que cada facção tem para
me ensinar e guardando elas na minha mente como um guia de como andar pelo mundo.
Sempre há algo para aprender, sempre há algo que é importante entender.

 O anúncio de Jack Kang termina com as mesmas batidas que começou. Os membros da
Audácia correm pela sala, jogando suas coisas em malas. Alguns homens jovens cortam os
lençóis da porta, gritando algo sobre Eric. O cotovelo de alguém me pressiona em uma parede
e eu só fico parada assistindo o pandemônio se intensificar.

 Por outro lado, há uma coisa que a Franqueza sabe e a Audácia não: Como não se
envolver de mais.



 Os membros da Audácia ficam de pé em um semicírculo ao redor da cadeira de
interrogações, onde Eric está sentado agora. Ele parece mais morto do que vivo. Está caído na
cadeira, com suor brilhando na testa. Ele encara Tobias com sua cabeça virada para baixo,
então seus cílios se misturam com as sobrancelhas. Eu tento manter meus olhos nele, mas seu
sorriso – o modo como os piercings puxam quando seus lábios abrem – é quase
insuportavelmente terrível.

 “Você gostaria que eu lhe dissesse seus crimes?” Diz Tori. “Ou você prefere listá-los
você mesmo?”

 A chuva é borrifada contra as paredes do prédio e faz um córrego nas escadas. Ficamos
de pé na sala de interrogações, no piso mais alto do Comércio Impiedoso. A tempestade da
tarde fica mais alta aqui. Todos os sons de trovões e flashes de raios fazem minha nuca se
arrepiar, como se a eletricidade estivesse dançando na minha pele.

 Eu gosto do cheiro de piso molhado. Ele é fraco aqui, mas assim que isso acabar, todos
os membros da Audácia vão descer pelas escadas e deixar o Comércio Impiedoso para trás, e o
piso molhado vai ser o único cheiro que vou sentir.


 Estamos com nossas malas. A minha é um saco feito com um lençol e algumas cordas.
Contém minhas roupas e um par extra de sapatos. Eu estou vestindo a jaqueta que roubei da
traidora da Audácia – Quero que Eric a veja caso ele olhe para mim.

 Eric olha para a multidão por alguns segundos e então seus olhos param em mim. Ele
enrola seus dedos e os coloca – cautelosamente – em seu estômago. “Eu gostaria que ela
falasse. Já que foi ela que me esfaqueou, claramente ela está familiarizada com eles”.

 Eu não sei que jogo ele está fazendo, ou qual é o sentido em me provocar,
especialmente agora, antes de sua execução. Ele parece arrogante, mas eu percebo que seus
dedos tremem quando ele os move. Até Eric deve ter medo da morte.

 “Deixe-a fora disto”, diz Tobias.

 “Por quê? Porque você está transando com ela?” Erick sorri. “Oh, espere, eu esqueci.
Caretas não fazem esse tipo de coisa. Eles só amarram os sapatos e cortam o cabelo um do
outro”.

 A expressão no rosto de Tobias não muda. Eu acho que entendo: Eric não liga para
mim. Mas ele sabe exatamente como provocar Tobias e como atingir a intensidade certa na
provocação.

 Isso é o que eu mais queria evitar: Que minhas ações se tornassem as ações de Tobias.
É por isso que não posso deixar que ele me defenda agora.

 “Eu quero que ela fale”, Eric repete.

 Eu digo tão equilibrada quanto é possível dizer:
“Você conspirou com a Erudição. É responsável pela morte de centenas de membros
da Abnegação”. Enquanto eu continuo falando, não consigo mais manter minha voz calma;
Começo a cuspir as palavras como veneno. “Você traiu a Audácia. Você atirou na cabeça de
uma criança. Você é um brinquedinho ridículo de Jeanine Matthews”.

 Seu sorriso se desfaz.

 “Eu mereço morrer?” Ele diz.

 Tobias abre a boca para interromper. Mas eu respondo antes dele.

 “Sim”.

 “Justo”. Seus olhos escuros estão vazios, como abismos, como noites sem estrelas.
“Mas você tem o direito de decidir isso, Beatrice Prior? Como decidiu o destino daquele outro
garoto – qual era seu nome? Will?”

 Eu não respondo. Ouço meu pai me perguntando “O que te faz pensar que tem o
direito de atirar em alguém?” Enquanto nos dirigíamos para a sala de controle na sede da
Audácia. Ele me disse que tem uma maneira correta de fazer algo e eu precisava descobri-la.
Eu sinto algo em minha garganta, como uma bola de cera, tão espessa que eu não consigo
engolir, não consigo respirar.

 “Você cometeu todos os crimes que justificam execução”, diz Tobias. “Nós temos os
direito de executá-lo, pelas leis da Audácia”.

 Ele se agacha entre as três armas no chão perto dos pés de Eric. Uma por uma, ele
esvazia as caixas de munição. Elas quase criam um ritmo quando atingem o chão e rolam,
chegando a descansar contra os sapatos de Tobias. Ele levanta a arma do meio e coloca a
munição.

 Então ele move as três armas no chão, fazendo círculos sem parar, até que meus olhos
não consigam mais seguir a arma do meio. Eu perco de vista qual das três tem a bala. Ele
segura as armas e oferece uma para Tori e outra para Harrison.


 Eu tento pensar na simulação do ataque e no que ela fez com os membros da
Abnegação. Todos os inocentes vestidos com roupas cinza deitados, mortos na rua. Não havia
membros suficientes para retirar os corpos, então a maioria deles provavelmente ainda está lá.
E isso não teria sido possível sem Eric.

 Eu penso no garoto da Franqueza, baleado sem um segundo de hesitação e em como
ele estava rígido ao atingir o chão.

 Talvez não sejamos nós decidindo se Eric morre ou não, foi ele quem decidiu isso
quando fez todas essas coisas terríveis.

 Mas ainda está difícil respirar.

 Eu olho para ele sem malícia, sem ódio e sem medo. Os piercings em seu rosto brilham
e uma mecha de cabelo sujo cai em seus olhos.

 “Espere”, ele diz. “Eu tenho um pedido”.

 “Nós não concedemos pedidos a criminosos”, diz Tori. Ela está de pé em uma perna e
esteve assim por alguns minutos. Ela soa cansada – provavelmente quer acabar com isso para
que possa sentar de novo. Para ela, essa execução é só outro inconveniente.

 “Eu sou o líder da Audácia”, ele diz. “E tudo o que quero é que Quatro seja a pessoa
que vai atirar”.

 “Por quê?” Tobias diz.

 “Para que possa viver com a culpa”, Eric responde. “De saber que me usurpou e depois
atirou na minha cabeça”.

 Eu acho que entendo. Ele gosta de ver pessoas sofrendo – sempre gostou, desde que
colocou a câmera na minha sala de execução quando eu quase me afoguei, e provavelmente
muito antes disso. E ele acredita que se Tobias tiver que atirar nele, ele vai ver seu sofrimento
antes de morrer.

 Doente.

 “Não vai haver nenhuma culpa”, diz Tobias.

 “Então você não vai ter problema nenhum em fazer isso”. Eric sorri de novo.

 Tobias pega uma das balas.

 “Diga-me”, diz Eric calmamente. “porque eu sempre me perguntei isso. É seu pai que
aparece em todas as suas paisagens do medo?”

 Tobias coloca a bala em uma câmara vazia sem olhar para cima.

 “Você não gostou dessa pergunta?” Eric diz. “O quê, com medo de que os membros da
Audácia vão mudar seus pensamentos sobre você? Vão perceber que mesmo tendo quatro
medos, ainda é um covarde?”

 Ele se endireita e coloca as mãos nos braços da cadeira.

 Tobias segura a arma em seu ombro esquerdo.

 “Eric”, ele diz, “seja corajoso”.

 Ele aperta o gatilho.

 Eu fecho meus olhos.














 Capítulo 24

 O sangue tem uma cor estranha. É mais escuro do que você espera que seja.

 Eu encaro as mãos de Marlene, que estão enroladas em meu braço. Suas unhas são
curtas e têm pontas salientes – ela rói as unhas. Ela me empurra para frente e eu devo estar
andando, porque consigo sentir que estou me movendo, mas em minha mente eu estou
parada na frente de Eric e ele ainda está vivo.

 Ele morreu assim como Will. Caiu assim como Will.

 Pensei que o sentimento de inchaço na minha garganta fosse acabar depois que ele
estivesse morto, mas não foi o que aconteceu. Eu tenho que respirar fundo e com força para
tomar ar suficiente. Ainda bem que a multidão ao meu redor está falando tão alto que não
consigo escutar a mim mesma. Nós marchamos na direção das portas. Na frente do bando está
Harrison, carregando Tori como uma criança. Ela ri, seus braços amarrados ao redor do
pescoço dele.

 Tobias coloca sua mão nas minhas costas. Eu sei disso porque o vejo chegando atrás de
mim e não porque eu esteja sentindo sua mão. Eu não sinto nada.

 As portas abrem pelo lado de fora. Nós paramos meio que trombando com Jack Kang e
com o grupo da Franqueza que o seguiu até aqui.

 “O que vocês fizeram?” Ele diz. “Eu ouvi dizer que Eric não estava mais em sua cela”.

 “Ele estava sob nossa jurisdição”, diz Tori. “Nós demos a ele um julgamento e o
executamos. Você devia estar nos agradecendo”.

 “Por que...” O rosto de Jack fica vermelho. O sangue é mais escuro que o rubor,
mesmo que um seja feito do outro. “Por que eu deveria estar agradecendo?”

 “Porque você queria que ele fosse executado também, certo? Desde que ele
assassinou uma de suas crianças?” Tori inclina sua cabeça, seus olhos abertos, inocentes.
“Bem, nós tomamos conta disso para você. E agora, se nos dá licença, estamos saindo”.

 “O que – Saindo?” Jack fala precipitadamente.

 Se nós sairmos, ele não vai ser capaz de cumprir as três exigências que Max lhe deu. O
pensamento o apavora e dá para perceber isso só de olhar para seu rosto.

 “Não posso deixar que façam isso”, ele diz.

 “Você não nos deixa fazer as coisas”, diz Tobias. “Se não der um passo para o lado, nós
vamos ser forçados a passar por cima de você”.

 “Vocês não vieram aqui para encontrar aliados?” Jack franze o cenho. “Se fizerem isso,
nós vamos nos unir a Erudição, eu prometo, e vocês nunca vão encontrar uma aliança conosco
de novo, vocês – “

 “Nós não precisamos de vocês como aliados”, diz Tori. “Nós somos a Audácia”.

 Todos gritam e de alguma maneira seus gritos perfuram a névoa em minha mente. A
multidão inteira vai para frente de uma vez. Os membros da Franqueza no corredor soltam um
ganido e mergulham para fora do caminho enquanto nós nos derramamos pelo corredor como
um cano estourado, água da Audácia se espalhando para preencher o espaço vazio.

 O aperto de Marlene em meu braço cessa. Eu desço as escadas, no encalço dos
membros da Audácia na minha frente, ignorando as cotoveladas e os gritos ao meu redor. Eu
sinto como se fosse uma iniciante novamente, correndo pelas escadas do Eixo logo após a
Cerimônia de Escolha. Minhas pernas queimam, mas está tudo bem.


 Nós alcançamos o lobby. Um grupo da Franqueza e da Erudição está esperando lá,
incluindo a mulher Divergente loira que foi arrastada pelos cabelos até o elevador, a garota
que eu ajudei a escapar, e Cara. Eles assistem os membros da Audácia passarem por eles com
olhares desamparados em seus rostos.

 Cara me encontra e segura meu braço, me puxando para trás. “Para onde vocês todos
estão indo?”

 “Sede da Audácia”. Eu tento libertar meu braço, mas ela não solta. Eu não olho para
seu rosto. Não consigo olhar para ela agora.

 “Vá para a Amizade”, eu digo. “Eles prometeram segurança para qualquer um que
queira. Vocês não estarão seguros aqui”.

 Ela me solta, quase me empurrando para longe dela.

 Do lado de fora, o chão parece escorregar abaixo de meus tênis e meu saco de roupas
bate nas minhas costas enquanto eu diminuo a velocidade da corrida. Chuva polvilha na minha
cabeça e nas costas. Meus pés entram em poças, encharcando as pernas da minha calça.

 Eu sinto o cheiro de piso de molhado e finjo que isso é tudo que está acontecendo.



 Fico de pé no corrimão, olhando para o abismo. A água bate na parede em baixo de
mim, mas não sobe alto o bastante para molhar meus sapatos.

 A centenas de metros daqui, Bud distribui armas de paintball. Outra pessoa distribui as
bolinhas de tinta. Daqui a pouco, todos os corredores escondidos da sede da Audácia estarão
pintados com tinta multicolorida, bloqueando a visão das câmeras de segurança.

 “Ei, Tris”, Zeke diz, se juntando a mim no corrimão. Seus olhos estão vermelhos e
inchados, mas sua boca está curvada em um pequeno sorriso.

 “Oi. Você conseguiu”.

 “É. Nós esperamos até que Shauna estivesse estável e então a trouxemos para cá”. Ele
esfrega um de seus olhos com o polegar. “Eu não queria movê-la, mas... não era mais seguro
ficar na Franqueza. Obviamente”.

 “Como ela está?”

 “Não sei. Ela vai sobreviver, mas a enfermeira acha que ela pode ficar paralisada da
cintura para baixo. E isso não me incomodaria, mas...” Ele levanta um ombro. “Como ela
poderá ser da Audácia se não consegue andar?”

 Eu encaro o outro lado do Fosso, onde algumas crianças perseguem as outras pelos
barrancos, arremessando bolas de tinta nas paredes. Uma delas estoura e mancha a pedra de
amarelo.

 Eu penso no que Tobias me disse quando passamos a noite com os sem facção, sobre
os outros membros da Audácia deixando a facção porque não eram mais fisicamente capazes
de ficar nela. Eu penso na canção da Franqueza, que se refere à Audácia como a facção mais
cruel.

 “Ela pode ficar”, eu digo.

 “Tris. Ela não vai conseguir nem andar por aí”.

 “Claro que vai”. Eu olho para ele. “Ela pode conseguir uma cadeira de rodas, alguém
pode empurrá-la pelos caminhos do Fosso e há um elevador no edifício lá de cima”. Eu aponto
para cima. “Ela não precisa ser capaz de andar para poder deslizar na tirolesa ou para atirar”.

 “Ela não vai querer que eu a empurre”. Sua voz treme um pouco. “Ela não vai querer
que eu a levante ou carregue”.


 “Ela vai ter que superar isso, então. Você vai deixar que ela saia da Audácia por uma
razão estúpida como não ser capaz de andar?”

 Zeke fica quieto por alguns segundos. Seus olhos desviam do meu rosto e ele fica
pensativo, como se estivesse pesando e medindo o que acabei de falar.

 Então ele vira e envolve seus braços ao meu redor. Faz tanto tempo desde que alguém
me abraçou que eu fico rígida. Depois relaxo e deixo o calor do gesto passar pelo meu corpo,
que é refrigerado pela roupa úmida.

 “Eu vou atirar em algumas coisas”, ele diz enquanto se afasta. “Quer vir?”

 Eu dou de ombros e sigo-o através do Fosso. Bud entrega armas de paitball para cada
um de nós e eu carrego a minha. É pesada, fina e o material é tão diferente de um revólver
que eu não tenho problemas para segurá-lo.

 “Nós praticamente já cobrimos o Fosso e o subterrâneo”, Bud diz. “Mas vocês devem
checar o Pire”.

 “O Pire?”

 Bud aponta para o edifício de vidro sobre nós. A visão me perfura como uma agulha.
Na última vez em que estive nesse lugar e encarei o prédio, eu estava numa missão para
destruir a simulação. Eu estava com meu pai.

 Zeke já está subindo a vereda. Eu me forço a segui-lo, um pé após o outro. É difícil
andar porque é difícil respirar, mas de alguma forma eu consigo fazer os dois. Quando chego
às escadas, a pressão em meu peito já é quase nula.

 Uma vez que estamos no Pire, Zeke levanta sua arma e aponta para uma das câmeras
perto do teto. Ele atira e tinta verde se espalha por uma das janelas, errando a lente da
câmera.

 “Oh”, eu digo. “Ai”.

 “Ah é? Gostaria de vê-la acertando o tiro perfeitamente na primeira tentativa”.

 “Gostaria?” Eu levanto minha própria arma, apoiando-a em meu ombro esquerdo em
vez do direito. A arma não parece familiar em minha mão esquerda, mas eu não consigo
suportar esse peso na direita ainda. Através da mira e encontro a câmera e então fecho um
dos olhos para encarar a lente. Uma voz sussurra em minha mente. Inspire. Mire. Expire. Atire.
Demoro alguns segundos para perceber que é a voz de Tobias, porque foi ele que me ensinou
a atirar. Eu aperto o gatilho e a bola de tinta acerta a câmera, espalhando tinta azul na lente.
“Pronto. Toma essa. Com a mão trocada ainda”.

 Zeke murmura alguma coisa entre suas respirações que não soam muito educadas.

 “Ei!” Grita uma voz animada. Marlene coloca sua cabeça acima do chão de vidro. Tinta
está espalhada em sua testa, dando-a uma sobrancelha roxa. Com um sorriso perverso, ela
mira em Zeke, acertando sua perna, e depois em mim. A tinta acerta meu braço, como uma
picada de abelha.

 Marlene ri e se esconde abaixo do vidro. Zeke e eu nos entreolhamos e então
corremos atrás dela. Ela ri enquanto desce a vereda, passando por uma multidão de crianças.
Eu atiro nela e acerto a parede. Marlene atira em um garoto perto do corrimão – Hector, o
irmão mais novo de Lynn. Ele fica chocado, mas depois atira de volta, atingindo a pessoa ao
lado de Marlene.

 Sons de estouros enchem o ar quando todos no Fosso começam a atirar uns nos
outros, jovens e velhos, as câmeras momentaneamente esquecidas. Eu chego ao fim da


vereda, cercada por gargalhadas e tiros. Nós nos reunimos para formar times e então viramos
uns contra os outros.

 Quando a briga acaba, minhas roupas estão mais coloridas do que pretas. Decido ficar
com a blusa para me lembrar do motivo pelo qual escolhi a Audácia: Não por que são
perfeitos, mas porque são vivos. Porque são livres.


















































































 Capítulo 25



 Alguém passa pela cozinha e aquece os imperecíveis que são mantidos lá, para que
tenhamos um jantar quente à noite. Eu me sento na mesma mesa que costumava ficar com
Christina, Al e Will. Desde o momento em que me sento, sinto um caroço na garganta. Como
foi que sobrou só a metade de nós?

 Sinto-me responsável por isso. Meu perdão poderia ter salvado Al, mas eu não o
perdoei. Minha lucidez poderia ter salvado Will, mas eu não consegui limpar minha mente.

 Antes que consiga me afogar em culpa, Uriah coloca sua bandeja do lado da minha.
Está cheia de bifes e bolo de chocolate. Eu encaro a pilha de bolos.

 “Havia bolo?” Eu digo, olhando para meu próprio prato, que está mais vazio que o de
Uriah.

 “Sim, alguém acabou de trazer. Acharam algumas caixas da mistura e fizeram”, ele diz.
“Você pode comer alguns pedaços do meu”.

 “Alguns pedaços? Então você planeja comer essa montanha de bolo sozinho?”

 “Sim”. Ele parece confuso. “Por quê?”

 “Esquece”.

 Christina senta do outro lado da mesa, o mais longe que ela consegue ficar de mim.
Zeke coloca sua bandeja ao lado dela. Lynn, Hector e Marlene também se juntam a nós. Vejo
um flash de movimento em baixo da mesa e assisto a mão de Marlene encontrar a de Uriah
em cima de seu joelho. Os dedos deles se entrelaçam. Claramente estão tentando parecer
casuais, mas a todo o momento dão olhares um para o outro.

 Do lado esquerdo de Marlene, Lynn parece ter comido algo azedo. Ela joga a comida
em sua boca como se o garfo fosse uma pá.

 “Onde está o fogo?” Uriah pergunta a ela. “Você vai acabar vomitando se continuar
comendo tão depressa”.

 Lynn faz uma carranca para ele. “Vou vomitar de qualquer jeito, com vocês dois
mandando olhares um para o outro o tempo todo”.

 As orelhas de Uriah ficam vermelhas. “Do que está falando?”

 “Não sou idiota, nem ninguém aqui. Então por que você não a agarra e termina logo
com isso?”

 Uriah parece aturdido. Marlene, no entanto, encara Lynn, se inclina e beija Uriah
firmemente na boca, seus dedos passando ao redor do pescoço dele, abaixo do colarinho de
sua blusa. Eu percebo que todas as ervilhas caíram do meu garfo, que estava indo em direção à
minha boca.

 Lynn segura sua bandeja e sai da mesa.

 “O que foi isso?” Zeke diz.

 “Não me pergunte”, dis Hector. “Ela está sempre com raiva de algo. Já parei de tentar
entender”.

 Os rostos de Uriah e Marlene ainda estão perto um do outro. E eles ainda estão
sorrindo.

 Eu me forço a encarar meu prato. É tão estranho ver duas pessoas que você conheceu
separadamente ficarem juntas, apesar de eu já ter visto isso acontecer antes. Ouço um rangido
enquanto Christina arranha seu prato com o garfo ocasionalmente.

 “Quatro!” Zeke grita, acenando. Ele parece aliviado. “Vem cá, temos espaço”.


 Tobias coloca sua mão em meu ombro bom. Algumas de suas juntas estão cortadas e o
sangue parece fresco. “Sinto muito. Não posso ficar”.

 Ele se inclina para baixo e diz “Posso pegar você emprestada por um tempo?”

 Eu me levanto, dando um aceno para todos na mesa que estão prestando atenção –
que se resumem apenas a Zeke, na verdade, porque Christina e Hector estão encarando seus
pratos e Uriah e Marlene conversam calmamente. Eu e Tobias caminhamos para fora da
cafeteria.

 “Para onde estamos indo?”

 “Para o trem”, ele diz. “Tenho um encontro e quero que esteja lá para me ajudar a ler
a situação”.

 Andamos por uma das veredas nas paredes do Fosso, na direção das escadas que nos
guiam até o Pire.

 “Por que você precisa de mim para –“

 “Porque você é melhor nisso do que eu”.

 Não tenho uma resposta para isso. Nós subimos as escadas e passamos pelo chão de
vidro. No nosso caminho, passamos pela sala úmida, onde eu encarei minha paisagem do
medo. A julgar pela seringa no chão, alguém esteve ali recentemente.

 “Você esteve na sua paisagem do medo hoje?” Eu digo.

 “O que te faz pensar isso?” Seus olhos escuros encaram os meus. Ele empurra a porta
da frente e o ar de verão nada ao meu redor. Não há ventos.

 “Suas juntas estão cortadas e alguém esteve usando aquela sala”.

 “É exatamente o que eu quis dizer. Você é bem mais perceptiva do que a maioria”. Ele
checa o relógio. “Disseram-me para pegar o que sai às 8:05. Venha”.

 Sinto uma ponta de esperança. Talvez nós não briguemos desta vez. Talvez as coisas
finalmente fiquem melhores entre nós.

 Andamos pelos trilhos. Na última vez em que fizemos isso, ele queria me mostrar que
as luzes estavam ligadas na sede da Erudição, que eles estavam planejando um ataque à
Abnegação. Agora eu tenho a sensação de que estamos indo nos encontrar com os sem
facção.

 “Perceptiva o bastante para saber que você está evitando responder a pergunta”, eu
digo.

 Ele suspira. “Sim, eu estive na minha paisagem do medo. Queria ver se tinha mudado”.

 “E mudou?”

 Ele tira uma mecha de cabelo de seu rosto e evita me olhar. Não havia notado que seu
cabelo era tão denso – era difícil notar quando estava muito curto, corte da Abnegação, mas
agora está com cinco centímetros de espessura e quase paira sobre sua testa. Faz com que ele
pareça menos ameaçador, mais como a pessoa que eu conheci privadamente.

 “Sim”, ele diz. “Mas o número continua o de sempre”.

 Eu ouço a buzina do trem soando à minha esquerda, mas a luz fixa no primeiro vagão
não está acesa. Por causa disso, ele desliza pelos trilhos como alguma coisa assustadora e
escondida.

 “Quinto vagão!” Ele grita.

 Nós dois disparamos em uma corrida. Eu encontro o quinto vagão e agarro o corrimão
na lateral com minha mão esquerda, puxando o mais forte que consigo. Tento jogar minhas
pernas para dentro, mas elas não o fazem totalmente; estou perigosamente perto das rodas –


Eu solto um som agudo e raspo meu joelho contra o chão quando me jogo para dentro do
vagão.

 Tobias entra logo depois de mim e se agacha ao meu lado. Eu aperto meu joelho e
ranjo os dentes.

 “Aqui, deixe-me ver”, ele diz. Ele empurra meus jeans para cima. Seus dedos deixam
rastros do frio em minha pele e eu penso em enrolar sua camisa em meu punho e beijá-lo;
Penso em me empurrar contra ele, mas não consigo, porque todos os nossos segredos iriam
manter um espaço entre nós.

 Meu joelho está vermelho com sangue. “É só um arranhão. Vai sarar rapidamente”, ele
diz.

 Eu balanço a cabeça. A dor já está diminuindo. Ele enrola meu jeans para que fique
acima do joelho. Eu deito, encarando o teto.

 “Então ele está na sua paisagem do medo?” Eu digo.

 Parece que alguém acendeu um fósforo atrás de seus olhos. “Sim. Mas não da mesma
maneira”.

 Ele me disse, uma vez, que sua paisagem do medo não havia mudado desde que
passou por ela na primeira vez, durante a iniciação. Então se ela mudou, mesmo
minimamente, já é algo.

 “Você estava nela também”. Ele franze a testa olhando para suas mãos. “Em vez de
atirar naquela mulher, como eu geralmente fazia, tive que assistir você morrendo. E não havia
nada que eu pudesse fazer para impedir”.

 Suas mãos tremem. Eu tento pensar em algo útil para dizer. Eu não vou morrer – mas
não sei o quê. Vivemos em um mundo perigoso e eu não sou tão apegada à vida, a ponto de
fazer qualquer coisa para sobreviver. Não posso assegurá-lo disso.

 Ele checa o relógio. “Estarão aqui em qualquer minuto”.

 Eu me levanto e vejo Evelyn e Edward parados ao lado dos trilhos. Eles correm antes
que o trem passe e pulam com quase tão facilmente quanto Tobias. Devem ter praticado.

 Edward sorri para mim. Hoje tem um grande e azul “X” costurado em cima do seu
tapa-olho.

 “Olá”, Evelyn diz. Ela olha apenas para Tobias enquanto fala, como se eu nem estivesse
ali.

 “Lugar legal para uma reunião”, diz Tobias. Está quase escuro agora, então eu só vejo
as sombras dos edifícios contra o céu azul escuro e algumas luzes brilhando perto do lago, que
devem pertencer à sede da Erudição.

 O trem faz uma curva que geralmente não faria – esquerda, para longe do brilho da
Erudição e para dentro da parte abandonada da cidade. Posso perceber pelo silêncio crescente
no vagão que ele está parando.

 “Pareceu-me mais seguro”, diz Evelyn. “Então você queria nos encontrar”.

 “Sim. Gostaria de discutir uma aliança”.

 “Uma aliança”, Edward repete. “E quem lhe deu a autoridade para fazer isso?”

 “Ele é um dos líderes da Audácia”, eu digo. “Ele tem a autoridade”.

 Edward levanta as sobrancelhas, parecendo impressionado. Os olhos de Evelyn
finalmente se viram para mim, mas apenas por um segundo antes de sorrir para Tobias de
novo.

 “Interessante”, ela diz. “E ela também é uma líder da Audácia?”


 “Não”, ele diz. “Ela está aqui para me ajudar a decidir se confio ou não em você”.

 Evelyn abre os lábios. Uma parte de mim quer levantar meu nariz e dizer “Há!” Mas eu
me satisfaço com um pequeno sorriso.

 “Nós iremos, é claro, concordar com uma aliança... com algumas condições”, Evelyn
diz. “Um lugar garantido – e igual – em qualquer governo que se formar depois que a Erudição
for destruída, e total controle sobre os registros da Erudição depois do ataque. Claramente –”

 “O que vão fazer com os registros da Erudição?” Eu a interrompo.

 “Obviamente vamos destruí-los. A única maneira de privar a Erudição do poder é privá-
los do conhecimento”.

 Meu primeiro instinto é de dizê-la que ela é uma idiota. Mas algo me interrompe. Sem
a tecnologia da simulação, sem os registros que eles tinham sobre as outras facções, sem seu
foco em avanços tecnológicos, o ataque na Abnegação não teria acontecido. Meus pais
estariam vivos.

 Mesmo se conseguíssemos matar Jeanine, poderíamos confiar nos membros da
Erudição a não nos atacarem e controlarem novamente? Eu não tenho certeza.

 “O que receberíamos em troca, sob esses termos?” Tobias disse.

 “Nossa mão de obra necessária, em troca de tomarmos a sede da Erudição e um lugar
igual no governo”.

 “Tenho certeza de que Tori também irá requisitar o direito de dar um fim à vida de
Jeanine Matthews”, ele diz em uma voz baixa.

 Eu levanto minhas sobrancelhas. Não sabia que o ódio de Tori por Jeanine fosse
comumente conhecido – ou talvez não seja. Ele pode saber coisas sobre ela que os outros não
saibam, agora que ele e Tori são líderes.

 “Tenho certeza de que isso poderia ser feito”, Evelyn responde. “Não ligo para quem
vai matá-la; Só a quero morta”.

 Tobias olha para mim. Queria poder contar a ele que me sinto em um conflito tão
grande... Explicar para ele porque eu, dentro de todas as pessoas, tenho reservas sobre
destruir completamente a Erudição, por assim dizer. Mas eu não saberia como dizer isso
mesmo se tivesse tempo. Ele se vira para Evelyn.

 “Então temos um acordo”, ele diz.

 Eles dão um aperto de mãos.

 “Devíamos nos reunir semanalmente”, ela diz. “Em um território neutro. A maioria dos
membros da Abnegação aceitou de bom grado a nossa estadia em seu setor da cidade, para
planejar enquanto eles limpam a sujeira que restou do ataque”.

 “A maioria”, ele diz.

 A expressão de Evelyn fica monótona. “Sinto dizer que seu pai ainda comanda a
lealdade de muitos deles e ele lhes disse para nos evitarem quando fossemos visitá-los há
alguns dias atrás”. Ela sorri amargamente. “E eles concordaram, assim como haviam feito
quando ele os persuadiu a me exilarem”.

 “Eles te exilaram?” Tobias diz. “Eu pensei que você havia nos deixado”.

 “Não, os membros da Abnegação estavam focados na reconciliação e no perdão, como
você pode esperar. Mas seu pai tem muita influência e ele sempre teve. Eu decidi que ir
embora era melhor do que encarar a indignidade de um exílio público”.

 Tobias parece aturdido.


 Edward, que esteve inclinado para fora do vagão há alguns segundos, diz “Está na
hora!”

 Quando o trem desce para o nível da rua, Edward salta. Alguns segundos depois,
Evelyn o segue. Tobias e eu ficamos no trem, escutando seu assobio enquanto ele sibila contra
os trilhos, sem falar nada.

 “Por que você me trouxe, se iria apenas fazer uma aliança?” Eu digo calmamente.

 “Você não me impediu”.

 “O que eu deveria ter feito, agitar as mãos no ar?” Eu faço uma carranca para ele. “Eu
não gosto disso”.

 “Tinha que ser feito”.

 “Não acho que tinha”, eu digo. “Deve haver alguma outra maneira-“

 “Que outra maneira?” Ele diz, cruzando os braços. “Você só não gosta dela. Não
gostou desde que a conheceu”.

 “É óbvio que não gosto dela! Ela te abandonou!”

 “Eles a exilaram. E se eu decidir perdoá-la, você deveria fazer o mesmo! Eu fui deixado
para trás, não você”.

 “É mais do que isso. Eu não confio nela. Acho que está tentando te usar”.

 “Bem, isso não é sua decisão”.

 “Por que me trouxe mesmo?” Eu digo, imitando-o ao cruzar meus braços. “Ah, é – para
que eu pudesse ler a situação para você. Bem, eu li, e só porque você não gosta do que eu
decidi, não significa-”

 “Eu esqueci sobre como seus preconceitos afetam seu julgamento. Se eu tivesse me
lembrado, talvez não a tivesse trazido”.

 “Meus preconceitos. Quais são os seus preconceitos? Que tal pensar que todos que
odeiem seu pai tanto quanto você odeia, são seus aliados?”

 “Não tem nada a ver com ele!”

 “É claro que tem! Ele sabe sobre as coisas, Tobias. E nós devíamos estar tentando
descobrir o que elas são”.

 “Isso de novo? Eu pensei que tivéssemos resolvido isso. Ele é um mentiroso, Tris”.

 “É?” Eu levanto minhas sobrancelhas. “Bem, sua mãe também. Você acha que os
membros da Abnegação iriam realmente exilar alguém? Porque eu não acho”.

 “Não fale da minha mãe desse jeito”.

 Eu vejo uma luz logo à nossa frente. Ela pertence ao Pire.

 “Ótimo”. Eu ando até a beirada do vagão. “Não vou falar”.

 Eu pulo para fora, dando alguns passos antes de restaurar o equilíbrio. Tobias pula
logo depois de mim, mas não dou a ele a chance de me alcançar – Eu ando em direção ao
prédio, desço as escadas e chego de volta ao Fosso para encontrar algum lugar para dormir.


















 Capítulo 26



 Acordo com algo me balançando.

 “Tris! Levante!”

 Um grito. Eu não questiono. Jogo minhas pernas para fora da cama e deixo uma mão
me levar em direção à porta. Meus pés estão descalços e o chão está irregular aqui. Ele
arranha meus dedos e meus calcanhares. Eu aperto os olhos para descobrir quem está me
puxando. Christina. Ela está quase arrancando meu braço esquerdo.

 “O que aconteceu?” Eu digo. “O que está acontecendo?”

 “Cale a boca e corra!”

 Nós corremos até o Fosso e o murmúrio do rio nos persegue pelas veredas. Na última
vez em que Christina me arrancou da cama, era para ver o corpo de Al ser retirado do abismo.
Eu ranjo os dentes e tento não pensar sobre aquilo. Não pode ter acontecido de novo. Não
pode.

 Eu engasgo – ela corre mais rápido do que eu – enquanto atravessamos o chão de
vidro do Pire. Christina bate a palma da mão no botão do elevador e entra nele antes que as
portas terminem de se abrir, me puxando atrás dela. Ela aperta o botão de FECHAR PORTAS e
depois o botão do último piso.

 “Simulação”, ela diz. “Há uma simulação. Não é todo mundo, são só... só alguns”.

 Ela coloca suas mãos em seus joelhos e respira fundo algumas vezes.

 “Um deles disse algo sobre os Divergentes”, ela diz.

 “Disse?” Eu digo. “Enquanto estava na simulação?”

 Ela assente. “Marlene. Não soava como ela. Era muito... monótona”.

 As portas abrem e eu a sigo pelo corredor até a porta que diz ACESSO AO TELHADO.

 “Christina”, eu digo. “por que estamos indo ao telhado?”

 Ela não me responde. As escadas cheiram como tinta velha. Desenhos da Audácia
estão rabiscados nas paredes de cimento com tinta preta. O símbolo da Audácia. Iniciais
formando pares com sinais de adição: RG + NT, BR + FH. Casais que estão provavelmente
velhos agora, talvez separados. Eu toco em meu peito para sentir minha frequência cardíaca.
Está tão acelerada que é um milagre que eu ainda esteja respirando.

 O ar da noite está frio; Sinto arrepios nos braços. Meus olhos se ajustam à escuridão e
do outro lado do telhado eu vejo três figuras em cima do parapeito, olhando para mim. Uma
delas é Marlene. E Hector. E mais alguém que eu não reconheço – uma jovem da Audácia, por
volta dos oito anos, com uma mecha verde em seu cabelo.

 Eles ficam parados, apesar do vento estar forte, jogando seus cabelos em suas testas,
em seus olhos, em suas bocas. Suas roupas balançam com força no vento, mas ainda assim
eles ficam imóveis.

 “Agora apenas desçam daí”, Christina diz. “Não façam nada estúpido. Venham...”

 “Eles não conseguem escutá-la”, eu digo calmamente enquanto ando na direção deles.
“Ou vê-la”.

 “Nós devíamos apenas pegá-los de uma vez. Eu pego Hec, você-”

 “Nós vamos arriscar empurrá-los para fora do parapeito de fizermos isso. Fique perto
da garota, só para garantir”.


 Ela é muito nova para isso, eu penso, mas não tenho coragem de dizer, porque eu
estaria admitindo que Marlene tenha idade suficiente.

 Eu olho para Marlene, a qual está com os olhos brancos como pedras pintadas, como
esferas de vidro. Eu sinto como se essas pedras estivessem descendo pela minha garganta e
aterrissando em meu estômago, me empurrando em direção ao chão. Não há como tirá-la do
parapeito.

 Finalmente ela abre a boca e fala.

 “Tenho uma mensagem para os Divergentes”. Sua voz soa lisa. A simulação está
usando suas cordas vocais, mas tira delas as flutuações naturais da emoção humana.

 Eu olho de Marlene para Hector. Hector, que estava com tanto medo do que eu sou
porque sua mãe lhe mandou ser assim. Lynn provavelmente ainda está ao lado da cama de
Shauna, torcendo para que ela possa mover suas pernas quando acordar novamente. Lynn não
pode perder Hector.

 Eu dou um passo à frente para receber a mensagem.

 “Isso não é uma negociação. É um aviso”, diz a simulação através de Marlene,
movendo seus lábios e vibrando em sua garganta. “A cada dois dias, até que um de vocês se
entregue à sede da Erudição, isso irá acontecer de novo”.

 Isso.

 Marlene dá um passo para trás e eu me lanço para frente, mas não em direção a ela.
Não em direção à Marlene, que uma vez deixou Uriah jogar um bolo em sua cabeça numa
aposta. Que reuniu um saco de roupas para mim no inverno. Que sempre, sempre me recebia
com um sorriso. Não, não em direção à Marlene.

 Enquanto ela e a outra garota da Audácia dão um passo para trás, eu mergulho em
direção ao Hector.

 Eu agarro o que quer que minhas mãos consigam encontrar. Um braço. Enrolo o pulso
em uma blusa. O telhado áspero arranha meus joelhos quando seu peso me puxa para frente.
Não sou forte o bastante para segurá-lo. Eu sussurro, “Ajuda”, porque não consigo falar mais
alto que isso.

 Christina já está ao meu lado. Ela me ajuda a levantar o corpo flácido de Hector até o
telhado. Seu braço cai para o lado, sem vida. A alguns metros de distância, a pequena garota
está deitada com as costas no telhado.

 Então a simulação acaba. Hector abre os olhos, e eles não estão mais vazios.

 “Ai”, ele diz. “O que está acontecendo?”

 A garotinha choraminga e Christina anda até ela, murmurando algo em uma voz
tranquilizadora.

 Eu fico de pé, meu corpo inteiro tremendo. Eu me inclino no parapeito e encaro o
chão. A rua lá em baixo não está muito iluminada, mas posso ver um esboço fraco de Marlene
no asfalto.

 Respirando – quem liga para respiração?

 Eu me guio pela visão, ouvindo meus batimentos cardíacos em meus ouvidos. A boca
de Christina se move. Eu a ignoro, passo pela porta, desço as escadas, passo pelo corredor e
entro no elevador.

 As portas se fecham e enquanto eu vou em direção ao chão, da mesma forma que
Marlene foi depois que eu decidi não salvá-la, eu grito, minhas mãos se cortando em minhas


roupas. Minha garganta fica esfolada depois de alguns segundos e há arranhões em meus
braços, mas eu continuo gritando.

 O elevador para com um ‘ding’. As portas abrem.

 Eu arrumo minha blusa, aliso meu cabelo e saio andando.



 Eu tenho uma mensagem para os Divergentes.

 Eu sou Divergente.

 Isso não é uma negociação.

 Não, não é.

 É um aviso.

 Eu entendo.

 A cada dois dias, até que um de vocês se entregue à sede da Erudição...

 Eu vou.

 ...isso vai acontecer de novo.

 Nunca irá acontecer de novo.






























































 Capítulo 27



 Eu passo pela multidão perto do abismo. O Fosso está barulhento e não é só por causa
do murmúrio do rio. Eu procuro algum silêncio, então entro no corredor que leva aos
dormitórios. Não quero ouvir o discurso que Tori irá fazer em memória de Marlene ou estar
presente durante os brindes e os gritos enquanto os membros da Audácia celebram sua vida e
sua coragem.

 Nessa manhã Lauren relatou que nós nos esquecemos de algumas câmeras nos
dormitórios dos iniciantes, onde Christina, Zeke, Lauren, Marlene, Hector e Kee, a garota com
cabelo verde, estavam dormindo. Foi assim que a Jeanine descobriu quem a simulação estava
controlando. Eu não tenho dúvidas que Jeanine escolheu jovens porque ela sabia que sua
morte deles nos afetaria mais.

 Eu paro em um corredor não familiar e pressiono minha testa contra a parede. A pedra
está áspera e fria em minha pele. Consigo escutar os outros gritando atrás de mim, suas vozes
abafadas por camadas de pedra.

 Escuto alguém se aproximando e olho para o lado. Christina, ainda usando as mesmas
roupas que ela usou na noite passada, está parada a alguns metros de distância.

 “Ei”, ela diz.

 “Não estou no clima para me sentir mais culpada agora. Vá embora por favor”.

 “Eu só quero dizer uma coisa, e depois eu vou”.

 Seus olhos estão esbugalhados e sua voz está sonolenta, o que pode ser devido à
exaustão ou um pouco de álcool, ou talvez ambos. Mas seu olhar está firme o suficiente para
ela saber o que está dizendo. Eu me afasto da parede.

 “Eu nunca havia visto aquele tipo de simulação antes. Você sabe, no ponto de vista de
quem está fora dela. Mas ontem...” Ela balança a cabeça. “Você estava certa. Eles não podiam
ouvi-la, nem vê-la. Assim como Will...”

 Ela engasga com seu nome. Respira fundo. Pisca algumas vezes. Então olha para mim
de novo.

 “Você me disse que teve que fazer aquilo, ou ele teria atirado em você, e eu não
acreditei. Eu acredito em você agora e... Eu vou perdoá-la. Isso é... tudo o que eu queria dizer”.

 Uma parte de mim sente alívio. Ela acredita em mim, ela está tentando me perdoar,
apesar de isso não ser fácil.

 Mas a maior parte de mim sente raiva. O que ela pensava, antes disso? Que eu quis
atirar em Will, um dos meus melhores amigos? Ela devia ter confiado em mim desde o início,
devia ter sabido que eu não teria feito isso se houvesse qualquer outra opção.

 “Que bom para mim que você finalmente encontrou uma prova de que eu não sou
uma assassina de sangue frio. Sabe, outra prova além da minha palavra. Quer dizer, que razão
você teria para confiar na minha palavra?” Eu forço uma risada, tentando permanecer
indiferente. Ela abre a boca, mas eu continuo falando, incapaz de me fazer parar. “Você devia
se apressar nessa coisa de me perdoar, porque não há muito tempo-”

 Minha voz falha e eu não consigo mais me controlar. Começo a soluçar. Inclino-me
contra a parede e sinto-me escorregando para baixo quando minhas pernas ficam fracas.

 Meus olhos estão muito embaçados para vê-la, mas consigo senti-la quando ela
envolve seus braços ao meu redor e aperta tão forte que chega a doer. Ela cheira a óleo de


coco e parece forte, exatamente como ela era durante a iniciação, quando ela se dependurou
sobre o abismo pelas pontas dos dedos. Naquele tempo – que não está tão distante – ela fez
com que eu me sentisse fraca, mas agora sua força me dá o sentimento de que eu posso ser
forte também.

 Nós nos ajoelhamos juntas no chão de pedra e eu a abraço tão forte quanto ela está
me abraçando.

 “Já está feito”, ela diz. “É isso o que eu quis dizer. Que eu já te perdoei”.



 Todos ficam quietos quando eu entro na cafeteria. Eu não os culpo. Como uma dos
Divergentes, tenho o poder de deixar Jeanine matar um deles. A maioria deles provavelmente
quer que eu me sacrifique. Ou eles estão com medo que eu não faça isso.

 Se aqui fosse a Abnegação, nenhum Divergente estaria sentado aqui agora.

 Por um momento eu não sei para onde ir ou como chegar lá. Mas então Zeke acena
para mim de sua mesa, com um olhar severo, e eu me guio em sua direção. Mas antes que eu
chegue lá, Lynn se aproxima de mim.

 Ela é uma Lynn diferente daquela que eu conhecia. Ela não tem um olhar feroz em
seus olhos. Em vez disso, ela está pálida e mordendo os lábios para esconder a oscilação deles.

 “Hum...” Ela diz. Ela olha para a esquerda, para a direita, para todos os lados, menos
para minha cara. “Eu realmente... Eu sinto falta da Marlene. Eu a conhecia por muito tempo, e
eu...” Ela balança a cabeça. “A questão é, não pense que isso significa qualquer coisa sobre
Marlene”, ela diz, como se estivesse me repreendendo, “mas... obrigada por salvar Hec”.

 Lynn passa o peso do corpo de uma perna para a outra, seus olhos girando ao redor da
sala. Então ela abraça com um braço, sua mão agarrando minha blusa. A dor passa pelo meu
ombro. Não digo nada sobre isso.

 Ela me solta, bufa, e anda de volta para sua mesa como se nada tivesse acontecido. Eu
encaro enquanto ela anda por alguns segundos e depois me sento.

 Zeke e Uriah sentam lado a lado na mesa. O rosto de Uriah está sem energia, como se
ele não estivesse totalmente acordado. Ele tem uma garrafa marrom na sua frente que ele
beberica de poucos em poucos segundos.

 Sinto-me cautelosa ao seu redor. Eu salvei Hec – o que significa que falhei em salvar
Marlene. Mas Uriah não olha para mim. Eu arrasto uma cadeira até ficar de frente para ele e
sento-me na beirada dela.

 “Onde está Shauna?” Eu digo. “Ainda no hospital?”

 “Não, ela está por aqui”, diz Zeke, acenando na direção da mesa em que Lynn está
sentada. Eu a vejo lá, tão pálida que está quase transparente, sentada em uma cadeira de
rodas. “Shauna não deveria estar fora da cama, mas Lynn está arrasada, então ela está fazendo
companhia”.

 “Mas se você está se perguntando por que elas estão todas lá longe... Shauna
descobriu que eu sou Divergente”, diz Uriah lentamente. “Ela não quer compreender isso”.

 “Ah”.

 “Ela ficou toda esquisita comigo, também”, diz Zeke suspirando. “‘Como você sabe que
seu irmão não está trabalhando contra nós? Você esteve vigiando ele? ’ O que eu não daria
para dar um soco em quem quer que tenha envenenado a mente dela”.

 “Você não tem que dar nada”, diz Uriah. “A mãe dela está sentada logo ali. Vá em
frente e dê um soco nela”.


 Eu sigo seu olhar até uma mulher de meia-idade com mechas azuis em seu cabelo e
brincos ao redor de sua orelha. Ela é bonita, assim como Lynn.

 Tobias entra na sala um momento depois, seguido por Tori e Harrison. Eu tenho
evitado ele. Não tenho falado com ele desde a nossa briga, antes de Marlene...

 “Olá, Tris”, Tobias diz quando eu estou perto o bastante para ouvi-lo. Sua voz está
calma, áspera. Ela me transporta para lugares calmos.

 “Oi”, eu digo em uma vozinha tensa que não pertence a mim.

 Ele senta ao meu lado e coloca seu braço nas costas da minha cadeira, se inclinando
para perto. Eu não olho de volta – Eu me recuso a olhar de volta.

 Eu olho de volta.

 Olhos escuros – uma peculiar sombra azul, de alguma forma capaz de ofuscar tudo ao
seu redor, de me confortar e de me lembrar de que estamos mais distantes um do outro do
que eu queria estar.

 “Você não vai me perguntar se estou bem?” Eu digo.

 “Não, eu estou quase certo de que você não está bem”. Ele balança a cabeça. “Vou
pedir que você não tome decisões até que tenhamos conversado sobre isto”.

 Agora é tarde, eu penso. A decisão já foi tomada.

 “Até que nós tenhamos conversado sobre isso, você quer dizer, desde que isto envolve
a todos nós”, diz Uriah. “Eu não acho que alguém deveria se entregar”.

 “Ninguém?” Eu digo.

 “Não!” Uriah faz uma carranca. “Eu acho que deveríamos atacar de volta”.

 “É”, eu digo, “vamos provocar a mulher que pode forçar metade dessa sede a se
matar. Soa como uma ótima ideia”.

 Fui muito dura. Uriah engole o conteúdo de sua garrafa. Ele coloca a garrafa na mesa
com tanta força que eu fico com medo dela quebrar.

 “Não fale sobre isso dessa forma”, ele diz em um rosnado.

 “Sinto muito”, eu digo. “Mas você sabe que estou certa. A melhor maneira de
assegurar que metade de nossa facção não morra é sacrificar uma vida”.

 Eu não sei o que eu esperava. Talvez que Uriah, que sabe muito bem o que acontecerá
se nenhum de nós se entregar, se voluntariasse. Mas ele olha para baixo. Relutante.

 “Tori, Harrison e eu decidimos melhorar a segurança. Se todos estiverem mais
informados sobre esses ataques, nós seremos capazes de pará-los”, Tobias diz. “Se isso não
funcionar, então nós iremos pensar em outra solução. Fim da discussão. Mas ninguém vai
tomar nenhuma providência ainda. Tudo bem?”

 Ele olha para mim quando pergunta e levanta as sobrancelhas.

 “Tudo bem”, eu digo, sem olhar em seus olhos.



 Depois do jantar, eu tento voltar ao dormitório onde estive dormindo, mas não passo
da porta. Em vez disso, eu ando pelos corredores, escovando as paredes de pedras em meus
dedos, ouvindo os ecos de meus passos.

 Sem querer, eu passo pela fonte de água onde Peter, Drew e Al me atacaram. Eu sabia
que era Al pelo cheiro dele – Ainda consigo chamar o cheiro de capim-limão em minha mente.
Eu não mais o associo ao meu amigo, e sim à impotência que senti enquanto eles me
arrastaram para o abismo.


 Eu ando mais rápido, mantendo meus olhos bem abertos para que seja mais difícil
imaginar o ataque em minha mente. Tenho que sair de perto daqui, para longe dos lugares
onde meu amigo me atacou, onde Peter esfaqueou Edward, onde um exército de amigos
cegos começou a marchar em direção ao setor da Abnegação e toda a insanidade começou.

 Eu vou direto ao último lugar no qual me senti segura: O pequeno apartamento de
Tobias. No momento em que alcanço a porta, sinto-me mais calma.

 A porta não está completamente fechada. Eu a abro com o pé. Ele não está aqui, mas
eu não saio. Sento em sua cama e reúno as colchas em meus braços, enterrando meu rosto no
tecido e respirando fundo nele. O cheiro que elas costumavam ter já se foi quase
completamente, faz tanto tempo desde que ele dormiu aqui.

 A porta abre e Tobias desliza para dentro. Meus braços ficam vacilantes e as colchas
caem em meu colo. Como vou explicar minha presença aqui? Eu deveria estar com raiva dele.

 Ele não franze a testa, mas sua boca está tão tensa que eu sei que ele está com raiva
de mim.

 “Não seja uma idiota”, ele diz.

 “Uma idiota?”

 “Você estava mentindo. Você disse que não iria para a Erudição e estava mentindo, e ir
para a Erudição faz de você uma idiota. Então não seja uma”.

 Eu coloco a colcha na cama e me levanto.

 “Não tente fazer isso soar simples”, eu digo. “Não é. Você sabe tanto quanto eu que
essa é a coisa certa a fazer”.

 “Você escolhe esse momento para agir como alguém da Abnegação?” Sua voz enche o
quarto e faz o medo formigar em minha pele. Sua raiva parece tão repentina. Tão estranha.
“Todo esse tempo que você gastou insistindo que era muito egoísta para eles e agora, quando
sua vida está em perigo, você tem que ser uma heroína? O que há de errado com você?”

 “O que há de errado com você? Pessoas morreram. Elas andaram diretamente para
fora do parapeito de um prédio! E eu posso impedir isso de acontecer de novo!”

 “Você é muito importante para apenas... morrer”. Ele balança a cabeça. Ele nem olha
para mim – seus olhos ficam evitando meu rosto, passando da parede atrás de mim para o
teto ou para qualquer lugar. Eu estou muito atordoada para ficar nervosa.

 “Não sou importante. Todo mundo vai ficar bem sem mim”, eu digo.

 “Quem liga para todo mundo? E eu?”

 Ele abaixa a cabeça entre suas mãos, cobrindo seus olhos. Seus dedos estão tremendo.

 Então ele atravessa o quarto em duas longas passadas e encosta seus lábios nos meus.
Sua pressão gentil apaga os últimos meses e eu sou a garota que sentou nas pedras perto do
abismo, com água do rio borrifando em suas pernas e que o beijou pela primeira vez. Eu sou a
garota que segurou sua mão no corredor só porque eu quis.

 Eu dou um passo para trás, minha mão em seu peito para mantê-lo afastado. O
problema é que eu também sou a garota que atirou em Will e mentiu sobre isso e que
escolheu entre Hector e Marlene, entre outras milhares de coisas. E eu não posso apagar essas
coisas.

 “Você ficaria bem”. Eu não olho para ele. Encaro sua camisa entre meus dedos e a
tinta preta se curvando ao redor de seu pescoço, mas não olho para seu rosto. “Não de cara.
Mas você iria seguir em frente e faria o que tivesse que fazer”.


 Ele enrola um braço ao redor da minha cintura e me puxa para ele. “Isso é uma
mentira”, ele diz, antes de me beijar novamente.

 Isso está errado. É errado esquecer em quem eu me tornei e deixá-lo me beijar quando
eu sei o que estou prestes a fazer.

 Mas eu quero fazer isso. Ah, como eu quero.

 Fico na ponta dos pés e passo meus braços ao redor dele. Pressiono uma mão entre
suas omoplatas e curvo a outra ao redor de sua nuca. Posso sentir sua respiração em minha
palma, seu corpo expandindo e contraindo, e eu sei que ele é forte, equilibrado e impossível
de se parar. Todas as coisas que eu precisava ser, mas não sou, eu não sou.

 Ele anda para trás, me levando com ele, então eu tropeço. Tropeço bem para fora de
meus sapatos. Ele senta na beirada da cama, eu fico de pé na sua frente, e estamos finalmente
nos olhando nos olhos.

 Ele toca meu rosto, cobrindo minhas bochechas com suas mãos, descendo com a
ponta dos dedos por meu pescoço, encaixando seus dedos na curva delicada do meu quadril.

 Não consigo parar.

 Encaixo minha boca na dele e ele tem gosto de água e ar fresco. Eu levo minha mão de
seu pescoço para a parte mais baixa de suas costas e para baixo de sua camisa. Ele me beija
mais forte.

 Eu sabia que ele era forte; Eu não sabia o quão forte até que eu mesma o senti, os
músculos em suas costas se tencionando entre meus dedos.

 Pare, eu digo a mim mesma.

 De repente é como se estivéssemos numa corrida, seus dedos passando pelas laterais
do meu corpo abaixo da minha blusa, minhas mãos o apertando, lutando para chegar mais
perto, mas não há mais perto. Nunca havia ansiado por alguém dessa forma, ou esse tanto.

 Ele se afasta o suficiente para me olhar nos olhos, suas pálpebras mais abaixadas.

 “Prometa-me”, ele sussurra “que você não vai. Por mim. Faça isso por mim”.

 Eu poderia fazer isso? Poderia ficar aqui, consertar as coisas com ele, deixar alguém
morrer em meu lugar? Olhando para ele, eu acredito por um momento que eu poderia. E
então eu vejo Will. O vinco entre suas sobrancelhas. Os olhos vazios da simulação. O corpo
caído.

 Faça isso por mim. Os olhos escuros de Tobias rogam por mim.

 Mas se eu não for para a Erudição, quem vai? É o tipo de coisa que ele faria.

 Sinto uma facada de dor em meu peito enquanto minto para ele. “Tudo bem”.

 “Prometa”, ele diz com uma carranca.

 A dor se torna um sofrimento, espalhando-se para todos os lugares – tudo se
misturando: culpa, terror e ânsia. “Eu prometo”.




















 Capítulo 28



 Quando começa a adormecer, ele coloca seus braços ao meu redor com força, uma
prisão de preservação da vida. Mas eu espero, mantida acordada pelo pensamento dos corpos
atingindo o asfalto, até que seu aperto afrouxa e sua respiração fica estável.

 Não vou deixar Tobias ir para a Erudição quando isso acontecer de novo, quando mais
alguém morrer. Não vou.

 Eu escorrego para fora de seus braços. Encolho-me em um de seus suéteres para
carregar seu cheiro comigo. Coloco meus pés em meus sapatos. Não levo nenhuma arma nem
nada de recordação.

 Paro na porta e olho para ele, meio enterrado nas colchas, pacífico e forte.

 “Eu te amo”, eu digo calmamente, experimentando as palavras. Deixo a porta fechar
atrás de mim.

 É hora de colocar tudo em ordem.

 Ando até o dormitório onde os iniciantes nascidos na Audácia dormiram uma vez. O
quarto parece exatamente como o que eu dormi quando era uma iniciante: é extenso e
estreito nas laterais, com beliches em ambos os lados e um quadro-negro em uma das
paredes. Vejo através de uma luz azul no canto que ninguém se incomodou de apagar os
rankings que estão escritos lá – O nome de Uriah ainda está no topo.

 Christina está dormindo no último beliche, abaixo de Lynn. Não quero assustá-la, mas
não há nenhuma outra maneira para acordá-la, então eu cubro sua boca com minha mão. Ela
acorda com um susto, seus olhos arregalados até me encontrarem. Ponho meu dedo em meus
lábios e faço um sinal para ela me seguir.

 Ando até o final do corredor e faço a curva. O corredor é iluminado por uma lâmpada
de emergência respingada com tinta que fica sobre uma das saídas. Christina não está usando
sapatos: Ela curva os dedos para protegê-los do frio.

 “O que foi?” Ela diz. “Você está indo para algum lugar?”

 “Sim, eu estou...” Eu tenho que mentir, ou ela tentará me impedir. “Eu estou indo ver
meu irmão. Ele está com a Abnegação, lembra?”

 Ela estreita os olhos.

 “Sinto muito acordá-la”, eu digo. “Mas tem uma coisa que preciso que você faça. É
muito importante”.

 “Tudo Bem. Tris, você está agindo muito estranha. Tem certeza de que não está-“

 “Não estou. Ouça-me. A simulação do ataque não foi feita em uma hora aleatória. A
razão para ela ter acontecido naquele momento é porque a Abnegação estava prestes a fazer
alguma coisa – Não sei o que era, mas devia estar relacionada com alguma informação
importante e agora Jeanine tem essa informação...”

 “O que?” Ela faz uma carranca. “Você não sabe o que eles estão prestes a fazer? Você
sabe qual é a informação?”

 “Não”. Eu devo estar soando louca. “A questão é que eu não tenho sido capaz de
descobrir muito sobre isso, porque Marcus Eaton é a única pessoa que sabe tudo e ele não
quer me contar. Eu só... essa é a razão para o ataque. É a razão. E nós precisamos sabê-la”.

 Eu não sei mais o que dizer. Mas Christina já está concordando com a cabeça.


 “A razão pela qual Jeanine nos forçou a atacar pessoas inocentes”, ela diz
amargamente. “É. Nós precisamos saber”.

 Eu havia quase esquecido – ela estava na simulação. Quantos membros da Abnegação
ela matou, guiada pela simulação? Como ela se sentiu quando acordou daquele sonho como
uma assassina? Eu nunca havia perguntado, e nunca irei perguntar.

 “Quero sua ajuda, e logo. Preciso de alguém para persuadir Marcus a cooperar, e eu
acho que você pode fazer isso”.

 Ela inclina sua cabeça e me encara por alguns segundos.

 “Tris. Não faça nada estúpido”.

 Eu forço um sorriso. “Por que as pessoas insistem em dizer isso para mim?”

 Ela agarra meu braço. “Não estou brincando”.

 “Eu já lhe disse, vou visitar Caleb. Estarei de volta em alguns dias e então nós
poderemos criar uma estratégia. Só pensei que seria melhor se mais alguém soubesse sobre
tudo isso antes que eu saísse. Por garantia. Tudo bem?”

 Ela segura meu braço por alguns segundos e depois me solta. “Tudo bem”, ela diz.

 Eu ando na direção da saída. Tento me controlar até passar pela porta e então sinto as
lágrimas chegando.

 A última conversa que tive com ela, e estava cheia de mentiras.



 Uma vez que estou do lado de fora, passo o capuz do suéter de Tobias por cima da
minha cabeça. Quando alcanço o final da rua, olho para todos os lados, procurando por sinais
de vida. Não há nada.

 O ar frio formiga em meus pulmões quando entra e cria uma nuvem de vapor quando
sai. O inverno chegará em breve. Pergunto-me se a Erudição e a Audácia ainda estarão
imobilizadas, esperando um grupo obliterar o outro. Fico feliz por não estar aqui para ver isso.

 Antes de escolher a Audácia, pensamentos como este nunca haviam me ocorrido.
Estava segurada de que teria uma longa vida útil. Agora não há seguranças, exceto de que para
onde eu vá, eu vou porque escolhi ir.

 Ando nas sombras dos edifícios, torcendo para que minhas passadas não atraiam
atenção. Nenhuma das luzes da cidade está acesa nesta área, mas a lua está brilhando o
suficiente para que eu possa andar sem muito problema.

 Passo por baixo dos trilhos elevados. Eles balançam com o movimento de um trem por
chegar. Tenho que andar mais rápido se quiser chegar lá antes que alguém perceba que eu saí.
Eu contorno um grande buraco na rua e pulo por cima de um poste caído.

 Não havia pensado no quão longe teria que andar quando saí. Não demora muito até
que meu corpo se aqueça com o esforço da caminhada, das olhadelas por cima dos ombros e
de esquivar-me dos obstáculos na rua. Eu encontro um ritmo, meio caminhando e meio
correndo.

 Logo eu alcanço uma parte da cidade que reconheço. As ruas são mais bem cuidadas
aqui, limpas e com poucos buracos. De muito longe eu posso ver o brilho da sede da Erudição,
suas luzes violando nossas leis de conservação da energia. Não sei o que farei quando chegar
lá. Exigir ver a Jeanine? Ou apenas ficar em pé lá até que alguém me note?

 As pontas dos meus dedos roçam em uma janela no prédio ao meu lado. Não falta
muito tempo. Tremores passam pelo meu corpo agora que estou perto, dificultando minha
caminhada. Respirar também está ficando difícil; Eu paro de tentar ficar quieta e deixo o ar


arquejar para dentro e para fora de meus pulmões. O que eles vão fazer comigo quando eu
chegar lá? O que planos eles têm para mim antes de eu exercer minha utilidade e eles me
matarem? Não duvido que eles me matem eventualmente. Concentro-me no movimento para
frente, em mover minhas pernas mesmo quando elas parecem não suportar meu peso.

 E então eu estou parada em frente à sede da Erudição.

 Dentro dela, multidões de pessoas vestidas com blusas azuis estão sentadas ao redor
de mesas, digitando em seus computadores ou curvados sobre seus livros, passando páginas
de papel para frente e para trás. Alguns deles são pessoas decentes que não entendem o que
sua facção tem feito, mas se seu edifício inteiro entrasse em colapso na minha frente, eu
provavelmente não ligaria para eles.

 Este é o último momento que terei para poder desistir. O ar frio ferroa minhas
bochechas e minhas mãos enquanto eu hesito. Posso sair andando agora. Refugiar-me na sede
da Audácia. Torcer, rezar e desejar que ninguém mais morra por causa do meu egoísmo.

 Mas eu não posso ir embora, ou a culpa, o peso da vida de Will, de meus pais e agora
de Marlene, vai quebrar meus ossos, vai tornar impossível respirar.

 Eu ando vagarosamente na direção do edifício e abro as portas.

 Essa é a única maneira de evitar que eu me sufoque.



 Por um segundo depois que meus pés tocam o chão de madeira, e eu fico parada ante
o retrato gigante de Jeanine Matthews dependurado na parede oposta, ninguém me nota,
nem mesmo os dois guardas traidores da Audácia perto da entrada. Eu ando até o balcão onde
um homem de meia-idade com um trecho careca no topo de sua cabeça está sentado,
separando uma pilha de papéis. Coloco minhas mãos na mesa.

 “Com licença”, eu digo.

 “Dê-me um momento”, ele diz sem olhar para cima.

 “Não”.

 Com isso ele olha para cima, seus óculos tortos, franzindo a testa como se estivesse
prestes a me castigar. As palavras que ele estava prestes a dizer se prendem em sua garganta.
Ele me encara com a boca aberta, seus olhos pulando de meu rosto para o suéter preto que
estou usando.

 Para meu espanto, sua expressão parece divertida. Eu sorrio um pouco e escondo
minhas mãos, que estão tremendo.

 “Acredito que Jeanine Matthews gostaria de me ver”, eu digo. “Então eu agradeceria
se você pudesse contatá-la”.

 Ele faz um sinal para os traidores da Audácia próximos à porta, mas não há
necessidade disto. Os guardas finalmente percebem o que está acontecendo. Soldados da
Audácia de outros lugares da sala também começam a andar e todos eles me cercam, mas não
me tocam e não falam comigo. Eu olho para seus rostos, tentando parecer calma.

 “Divergente?” Um deles finalmente pergunta, quando o homem atrás do balcão pega
o receptor do sistema de comunicação do prédio.

 Se eu fechar minhas mãos em punhos, posso fazê-las pararem de tremer. Eu concordo
com a cabeça.

 Meus olhos pulam para os membros da Audácia vindo do elevador à minha esquerda,
e os músculos em meu rosto ficam sem energia. Peter está vindo à nossa direção.


 Milhares de reações potenciais, variando entre me lançar na garganta de Peter ou até
chorar e fazer algum tipo de piada, passam pela minha mente de uma só vez. Não consigo
escolher uma. Então fico parada assistindo-o. Jeanine deve saber que eu viria, ela deve ter
escolhido Peter para me abordar de propósito.

 “Nós fomos instruídos a levá-la para cima”, diz Peter.

 Eu pretendo dizer alguma coisa rude, ou indiferente, mas o único som que me escapa
é um barulho em assentimento, muito apertado por minha garganta inchada. Peter vai em
direção aos elevadores e eu o sigo.

 Nós passamos por uma série de corredores lustrosos. Apesar do fato de termos subido
algumas escadarias, eu ainda sinto como estivesse mergulhada na terra.

 Eu esperava que eles me levassem até Jeanine, mas eles não fazem isso. Param de
andar em um corredor pequeno com séries de portas de metal em cada lado. Peter digita um
código para abrir uma das portas e os traidores me cercam, ombro a ombro, formando um
túnel estreito para eu passar em meu caminho para o quarto.

 A sala é pequena, talvez três metros de comprimento por três de largura. O chão, as
paredes e o teto são todos feitos do mesmo painel de luzes, agora opacos, que brilhavam na
sala do teste de aptidão. Em cada canto há uma minúscula câmera preta.

 Eu finalmente me deixo entrar em pânico.

 Olho de canto para canto, para as câmeras e luto contra o grito que se forma em meu
estômago, peito e garganta, o grito que preenche todas as partes de mim. Novamente eu sinto
culpa e dor rasgando em meu interior, guerreando uma a outra por domínio, mas o terror é
mais forte que ambos. Eu inspiro, mas não expiro. Meu pai me disse uma vez que essa era a
cura para soluços. Eu perguntei-lhe se eu poderia morrer por segurar minha respiração.

 “Não”, ele disse. “Os instintos de seu corpo vão assumir e forçá-la a respirar”.

 Uma pena, na verdade. Seria uma maneira de fugir disto. O pensamento me faz querer
rir. E depois gritar.

 Eu me curvo para pressionar meu rosto em meus joelhos. Tenho que fazer um plano.
Se conseguir fazer um plano, não vou ter tanto medo.

 Mas não há plano. Não há como escapar dos confins da sede da Erudição, não há como
fugir de Jeanine e não há como escapar do que eu fiz.
































 Capítulo 29



 Eu esqueci meu relógio.

 Minutos ou horas depois, quando o pânico diminui, a coisa da qual mais me arrependo
é de ter esquecido-o. Não vir aqui estaria em primeiro lugar – o que parece uma escolha óbvia
– com exceção do meu pulso nu, que torna impossível para eu saber por quanto tempo estive
sentada nesta sala. Minhas costas doem, o que é um indício, mas não é suficientemente
definitivo.

 Depois de algum tempo eu me levanto e começo a vagar, esticando os braços acima da
minha cabeça. Hesito em fazer qualquer coisa enquanto as câmeras estão lá, mas eles não
podem aprender nada apenas assistindo meus dedos.

 O pensamento faz minhas mãos tremerem, mas eu não tento tirar isso da cabeça. Em
vez disso, eu digo a mim mesma que sou da Audácia e não sou uma estranha para o medo.
Vou morrer neste lugar. Talvez logo. Esses são os fatos.

 Mas há outras maneiras de pensar sobre isso. Logo eu irei honrar meus pais ao morrer
como eles morreram. E se tudo que eles acreditavam sobre a morte for verdade, logo vou me
juntar a eles no que quer que venha em seguida.

 Eu balanço as mãos enquanto ando. Elas ainda estão tremendo. Quero saber que
horas são. Cheguei um pouco depois de meia noite. Deve estar cedo agora, talvez 4:00, ou
5:00. Ou talvez ainda não tenha passado tudo isso e só parece que passou porque não estive
fazendo nada.

 A porta abre e eu fico cara a cara com minha inimiga e seus guardas da Audácia.

 “Olá, Beatrice”, Jeanine diz. Ela está vestida com o azul da Erudição, óculos da Erudição
e um olhar de superioridade da Erudição que eu fui ensinada pelo meu pai a odiar. “Pensei que
você poderia ser a pessoa que veio”.

 Mas eu não sinto ódio quando olho para ela. Não sinto nada, mesmo sabendo que ela
é a responsável por incontáveis mortes, incluindo a de Marlene. As mortes existem em minha
mente como uma teia de equações sem sentido e eu fico paralisada, incapaz de resolvê-las.

 “Olá, Jeanine”, eu digo, porque é a única coisa que vem à minha cabeça.

 Eu passo dos olhos aguados e cinzas de Jeanine para os membros da Audácia que a
flanqueiam. Peter está de pé ao lado do ombro direito dela e uma mulher com linhas em
ambos os lados da boca está a sua esquerda. Atrás dela há um homem careca com superfícies
planas afiadas em seu crânio. Eu faço uma careta.

 Como Peter pode estar em uma posição tão prestigiosa, como guarda-costas de
Jeanine Matthews? Onde está a lógica nisso?

 “Eu gostaria de saber que horas são”, eu digo.

 “Gostaria?” Ela diz. “Interessante”.

 Eu devia ter pensado que ela não me diria. Cada pedaço de informação que ela recebe
é considerado dentro de sua estratégia, e ela não vai me dizer a não ser que providenciar esta
informação seja melhor do que guardá-la.

 “Tenho certeza de que meus companheiros da Audácia estão desapontados”, ela diz.
“por você não ter tentado arrancar meus olhos ainda”.

 “Isso seria estupidez”.


 “Verdade. Mas seria normal de acordo com sua linha de comportamento de ‘agir
primeiro e pensar depois’”.

 “Tenho dezesseis anos”. Eu curvo meus lábios. “Eu mudo”.

 “Que refrescante”. Ela consegue embelezar até mesmo essas frases que deveriam ser
inflexíveis. “Vamos fazer um pequeno tour”.

 Ela dá um passo para trás e faz um gesto na direção da porta. A última coisa que quero
fazer é sair desta sala e ir para um destino incerto, mas eu não hesito. Ando para fora com a
mulher da Audácia com olhar severo na minha frente. Peter me segue atrás.

 O corredor é grande e pálido. Passamos por uma curva e por outra idêntica à primeira.

 Andamos por mais dois corredores. Estou tão desorientada que nunca poderia
encontrar um caminho de volta. Mas os arredores mudam – o túnel branco se expande em
uma sala larga onde homens e mulheres da Erudição com grandes jalecos azuis estão atrás de
mesas, alguns segurando ferramentas, alguns misturando líquidos coloridos, alguns encarando
telas de computadores. Se eu tivesse que adivinhar, diria que estão misturando soros de
simulação, mas eu hesito em confinar o trabalho da Erudição às simulações.

 A maioria deles se interrompe para nos assistir enquanto passamos pela ala central.
Ou melhor, para me assistir. Alguns deles sussurram, mas a maioria fica em silêncio. Está tão
quieto aqui.

 Sigo a mulher da Audácia pela porta e paro tão abruptamente que Peter esbarra em
mim.

 Essa sala é tão grande quanto a última, mas só há uma coisa dentro desta: uma grande
mesa de metal com uma máquina ao seu lado. Uma máquina que eu reconheço vagamente
como um monitor de frequência cardíaca. E pendendo sobre a mesa, uma câmera. Eu me
arrepio sem querer. Porque eu sei o que é isso.

 “Estou muito feliz que você, em particular, esteja aqui”, diz Jeanine. Ela passa por mim
e se empoleira na mesa, seus dedos curvados na borda.

 “Estou feliz, é claro, por causa dos seus resultados nos testes de aptidão”. Seu cabelo
loiro, puxado contra seu crânio, reflete a luz, chama minha atenção.

 “Mesmo entre os Divergentes, você é um tipo de esquisitice, porque você tem aptidão
para três facções. Abnegação, Audácia e Erudição”.

 “Como...” Minha voz fraqueja. Eu empurro a pergunta para fora. “Como você sabe
disso?”

 “Tudo a seu tempo”, ela diz. “Pelos seus resultados eu determinei que você é uma das
mais fortes Divergentes, o que eu digo não para lhe elogiar, mas para explicar meu propósito.
Se vou desenvolver uma simulação que não pode ser frustrada pela mente Divergente, eu
devo estudar a mente mais forte para reforçar todas as fraquezas na tecnologia. Entende?”

 Eu não respondo. Ainda estou encarando o monitor cardíaco ao lado da mesa.

 “Assim sendo, por tanto tempo quanto for possível, meus colegas cientistas irão
estudá-la”. Ela sorri um pouco. “Nesta mesa. Eu pensei que seria interessante mostrá-la para
você”.

 Ela quer estudar minha resposta. Eu mal respiro. Costumava pensar que a crueldade
requeria malícia, mas isso não é verdade. Jeanine não tem nenhuma razão para agir por
malícia. Mas ela é cruel porque ela não liga para o que faz, contanto que isso a fascine. Eu
devo ser um quebra-cabeça ou uma máquina quebrada que ela quer consertar. Ela vai abrir


meu crânio só para ver as atividades interiores do meu cérebro; Eu vou morrer aqui e isso será
uma coisa misericordiosa.

 “Eu sabia que isso iria acontecer quando vim aqui”, eu digo. “É só uma mesa. E eu
gostaria de voltar ao meu quarto agora”.



 Eu não percebo muito bem o tempo passando, pelo menos não da mesma forma que
costumava fazer, quando o tempo estava disponível para mim. Então quando a porta abre de
novo e Peter entra em minha cela, eu não sei quanto tempo se passou, apenas que estou
exausta.

 “Vamos, Careta”, ele diz.

 “Não sou da Abnegação”. Eu estico meus braços sobre minha cabeça e eles se
arranham contra a parede. “E agora que você é um lacaio da Erudição, você não pode me
chamar de ‘Careta’. Não é correto”.

 “Eu disse, vamos”.

 “O que, sem comentários falsos?” Eu olho para ele com uma falsa surpresa. “Sem
‘Você é uma idiota por vir aqui; seu cérebro deve ser deficiente além de Divergente’?”

 “Isso não precisa ser dito, precisa?” Ele diz. “Você pode se levantar ou eu posso
arrastá-la pelo corredor. A escolha é sua”.

 Sinto-me mais calma. Peter sempre é mal comigo; isso é familiar.

 Eu me levanto e saio do quarto. Percebo enquanto ando que o braço de Peter em que
eu atirei não está mais enfaixado.

 “Eles curaram a ferida da bala?”

 “Sim”, ele diz. “Agora você vai ter que encontrar uma fraqueza diferente para explorar.
Que pena que eu não tenho nenhuma”. Ele agarra meu braço bom e anda mais rápido, me
puxando atrás. “Estamos atrasados”.

 Apesar do corredor comprido e vazio, nossos passos não ecoam muito. Sinto como se
alguém tivesse colocado suas mãos por cima de minhas orelhas e eu só havia percebido agora.
Tento registrar os corredores que passamos, mas perco a conta depois de um tempo. Nós
alcançamos o final de um deles e viramos à esquerda, em uma sala ofuscada que me lembra
um aquário. Uma das paredes é feita de vidro com uma película protetora – reflexivo no meu
ponto de vista, mas tenho certeza que é transparente para o outro lado.

 Uma grande máquina está do outro lado, com uma bandeja do tamanho de uma
pessoa saindo dela. Eu a reconheço do meu livro de História das Facções, a unidade sobre
Erudição e medicina. Uma máquina de ressonância magnética. Vai tirar fotos do meu cérebro.

 Algo faísca dentro de mim. Faz tanto tempo desde a última vez que senti isto, que
quase não reconheço. Curiosidade.

 Uma voz – a voz de Jeanine – fala por meio de um interfone.

 “Deite-se, Beatrice”.

 Eu olho para a bandeja que vai me deslizar para dentro da máquina.

 “Não”.

 Ela suspira. “Se não fizer, nós temos formas de te obrigar”.

 Peter está de pé atrás de mim. Mesmo com um braço machucado, ele era mais forte
que eu. Imagino suas mãos em mim, me forçando a ir à direção da bandeja, me empurrando
contra o metal, apertando as correias que saem da bandeja em meu corpo, muito apertadas.

 “Vamos fazer um acordo”, eu digo. “Se eu cooperar, poderei ver as imagens”.


 “Você vai cooperar, querendo ou não”.

 Levanto um dedo. “Isso não é verdade”.

 Eu olho para o espelho. Não é tão difícil fingir que estou falando com Jeanine quando
falo com meu próprio reflexo. Meu cabelo é loiro como o dela; nós duas somos pálidas e
temos um olhar severo. O pensamento é tão perturbador que perco o fio do pensamento por
alguns segundos e fico parada com meu dedo no ar em silêncio.

 Tenho a pele pálida, o cabelo pálido e sou fria. Estou curiosa sobre as imagens do meu
cérebro. Sou como Jeanine. E posso desprezar isto, combater isto, erradicar isto... Ou posso
usar isto.

 “Isso não é verdade”, eu repito. “Não importa quantas restrições você usar, não vai
poder me manter parada da forma que precisa que eu fique para que as imagens fiquem
claras”. Eu limpo minha garganta. “Quero ver as fotos. Você vai me matar de qualquer forma,
então realmente importa o quanto eu saiba sobre meu próprio cérebro antes de morrer?”

 Silêncio.

 “Por que você quer tanto vê-las?” Ela diz.

 “Certamente você, de todas as pessoas, entende. Tenho a mesma aptidão para a
Erudição que tenho para a Abnegação e Audácia, afinal”.

 “Tudo bem. Você pode vê-las. Deite”.

 Eu passo pela bandeja e me deito. O metal é como um gelo. A bandeja desliza para trás
e eu fico dentro da máquina. Encaro a brancura ao meu redor. Quando era mais nova, pensei
que era assim que o paraíso iria parecer, todo branco e nada além disso. Agora eu sei que isso
não pode ser verdade, porque a luz branca é ameaçadora.

 Escuto uma batida e fecho meus olhos quando me lembro de um dos obstáculos da
minha paisagem do medo, os punhos batendo contra minhas janelas e o homem sem olhos
tentando me sequestrar. Finjo que a batida é como as batidas do coração, um tambor. O rio
batendo contra as paredes do abismo na sede da Audácia. Pés batendo no chão no final da
cerimônia de iniciação. Pés batendo nas escadarias depois da Cerimônia da Escolha.

 Eu não sei quanto tempo se passou quando os sons de batidas param e a bandeja
desliza para fora. Levanto meu tronco e esfrego a nuca com a ponta dos dedos.

 A porta abre, revelando Peter no corredor. Ele acena para mim. “Venha. Você pode ver
as imagens agora”.

 Eu desço da bandeja e ando na direção dele. Quando estamos no corredor, ele balança
sua cabeça para mim.

 “O quê?”

 “Não sei como você sempre manobra para conseguir o que quer”.

 “É, porque eu queria estar dentro de uma cela na sede da Erudição. Eu queria ser
executada”.

 Eu soo espontânea, como se execuções fossem algo que eu encaro regularmente. Mas
mexer meus lábios para formar a palavra “execução” me faz arrepiar. Finjo que estou com frio,
apertando meus braços com as mãos.

 “Você não queria?” Ele diz. “Quero dizer, você veio aqui por sua livre e espontânea
vontade. Isso não é o que eu chamaria de um bom instinto de sobrevivência”.

 Ele digita uma série de números em um teclado do lado de fora da próxima porta e ela
abre. Eu entro na sala do outro lado do espelho. Ela está cheia de telas e luzes, refletindo nos


óculos dos membros da Erudição. Do outro lado da sala, outra porta se fecha. Há uma cadeira
vazia na frente de uma das telas, ainda girando. Alguém acabou de sair.

 Peter fica muito perto atrás de mim – pronto para me agarrar se eu decidir atacar
alguém. Mas não quero atacar ninguém. O quão longe eu poderia chegar se fizesse isso? Um
corredor, ou dois? E depois eu estaria perdida. Não conseguiria sair daqui nem mesmo se não
tivessem guardas para me impedir.

 “Coloque-as aqui”, diz Jeanine, apontando na direção da grande tela na parede
esquerda. Um dos cientistas da Erudição bate de leve na tela de seu computador e uma
imagem aparece na parede esquerda. Uma imagem do meu cérebro.

 Não sei o que estou vendo, exatamente. Sei como um cérebro se parece e geralmente
o que cada região faz, mas não sei como o meu se compara com os outros. Jeanine cutuca seu
queixo e encara a tela pelo que parece um longo tempo.

 Finalmente ela diz “Alguém explique a Srta. Prior o que o lobo pré-frontal faz”.

 “É a região do cérebro atrás da testa, por assim dizer”, uma das cientistas diz. Ela não
parece muito mais velha do que eu e usa óculos grandes e redondos para fazer seus olhos
parecerem maiores. “É responsável por organizar seus pensamentos e ações para atingir suas
metas”.

 “Correto”, diz Jeanine. “Agora alguém me diga o que observa sobre o lobo lateral pré-
frontal da Srta. Prior”.

 “É grande”, outro cientista – esse um homem com cabelo desbastado – diz.

 “Especificamente”, diz Jeanine. Como se estivesse castigando-o.

 Estou uma sala de aula, eu percebo, porque toda sala com mais de um membro da
Erudição se torna uma sala de aula. E entre eles, Jeanine é a professora de maior valor. Todos
a encaram com seus olhos arregalados e ansiosos, bocas abertas, esperando para impressioná-
la.

 “É muito maior do que o normal”, o homem com cabelo desbastado se corrige.

 “Melhor”. Jeanine inclina a cabeça. “Na verdade, é um dos maiores lobos pré-frontais
que eu já vi. Ainda assim, o Giro orbital é notavelmente pequeno. O que esses dois fatos
indicam?”

 “O Giro orbital é o centro de recompensas do cérebro. Aqueles que exibem um
comportamento de busca por recompensas têm um grande Giro orbital”, alguém diz. “Isso
significa que a Srta. Prior se encaixa em um comportamento de pouquíssima busca por
recompensas”.

 “Não é apenas isso”. Jeanine sorri um pouco. A luz azul das telas torna sua face mais
brilhante, mas mostra sombras abaixo de seus olhos. “Não indica meramente algo sobre seu
comportamento, mas sobre seus desejos. Ela não é motivada por recompensas. Ainda assim
ela é extremamente boa em dirigir seus pensamentos e ações em direção às suas metas. Isso
explica sua tendência em direção a um comportamento prejudicial e altruísta e, talvez, sua
habilidade de sair de uma simulação. Como isso muda nossa forma de abordar um novo soro
para simulações?”

 “Ele deve suprimir um pouco, mas não toda, a atividade do lobo pré-frontal”, a
cientista com óculos redondos diz.

 “Precisamente”, diz Jeanine. Ela finalmente olha para mim, seus olhos reluzindo com
deleite. “Então é assim que nós iremos proceder. Isso satisfaz o nosso acordo, Srta. Prior?”

 Minha boca está seca, então fica difícil engolir.


 E o que acontece se eles suprimirem a atividade do meu lobo pré-frontal – se eles
danificarem minha habilidade de tomar decisões? E se o soro funcionar e eu me tornar uma
escrava nas simulações, como todo mundo? E se eu esquecer inteiramente a realidade?

 Eu não sabia que minha personalidade inteira, meu ser, poderia ser descartada como
um subproduto de minha anatomia. E se eu realmente sou só alguém com um grande lobo
pré-frontal... E nada além disso?

 “Sim”, eu digo. “Satisfaz”.



 Em silêncio Peter e eu voltamos para meu quarto. Nós viramos à esquerda e um grupo
de pessoas esta de pé no fim do corredor. É o maior dos corredores que já estivemos, mas a
distância diminui quando o vejo.

 Segurada por um traidor da Audácia, uma arma está apontada para seu crânio.

 Tobias, sangue escorrendo ao lado de seu rosto e marcando sua camisa branca com o
vermelho; Tobias, Divergente, parado na boca desta fornalha na qual irei queimar.

 As mãos de Peter envolvem meus ombros, mantendo-me no lugar.

 “Tobias”, eu digo, mas soa como um engasgo.

 O traidor da Audácia com a arma empurra Tobias na minha direção. Peter tenta me
empurrar também, mas meus pés ficam plantados no lugar. Vim aqui para que ninguém
morresse. Vim aqui para proteger o máximo de pessoas que pudesse. E eu ligo mais para a
segurança de Tobias do que de qualquer um. Então porque estou aqui, se ele está ali? Qual é o
sentido?

 “O que você fez?” Eu murmuro. Ele está apenas a alguns metros de distância de mim
agora, mas não perto o bastante para me ouvi. Quando passa por mim, ele estica sua mão e
aperta a minha palma. Aperta e depois solta. Seus olhos estão sanguinolentos; ele está pálido.

 “O que você fez?” Desta vez a pergunta sai da minha garganta como um rosnado.

 Eu me jogo em sua direção, lutando contra o aperto de Peter, mesmo com suas mãos
se aquecendo.

 “O que você fez?” Eu grito.

 “Você morre, eu morro também”. Tobias olha por cima de seu ombro para mim. “Eu
pedi para você não fazer isso. Você tomou sua decisão. Essas são as repercussões”.

 Ele desaparece pelo corredor. A última coisa que vejo dele e os traidores da Audácia o
guiando é o brilho da arma e o sangue na parte de trás de sua orelha, de um machucado que
eu não havia visto antes.

 Toda a vida sai de mim assim que ele se vai. Paro de lutar e deixo as mãos de Peter me
levarem em direção à minha cela. Eu caio no chão assim que entro, esperando que as portas
fechem, significando a saída de Peter, mas elas não fecham.

 “Por que ele veio aqui?” Peter diz.

 Eu o encaro.

 “Porque ele é um idiota”.

 “Bem, é”.

 Eu descanso minha cabeça contra a parede.

 “Ele pensou que poderia te resgatar?” Peter bufa. “Soa como algo que alguém nascido
Careta faria”.

 “Eu não acho”, eu digo. Se Tobias pretendesse me resgatar, ele teria pensado sobre
isso; ele teria trazido outros. Ele não teria entrado na sede da Erudição sozinho.


 Lágrimas surgem em meus olhos e eu não tendo segurá-las. Em vez disso, eu olho
através delas e assisto os arredores se tornarem um borrão.

 “Eu acho que ele veio aqui para morrer junto comigo”, eu digo. Eu cubro a boca com a
mão para evitar um soluço. Se conseguir continuar respirando, posso parar de chorar. Não
preciso ou quero que ele morra comigo. Eu queria mantê-lo a salvo. Que idiota, eu penso, mas
meu coração não está nesse pensamento.

 “Isso é ridículo”, ele diz. “Não faz nenhum sentido. Ele tem dezoito anos; ele vai achar
uma nova namorada depois que você morrer. E ele é burro se não sabe disso”.

 Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas, quentes primeiramente e depois frias. Eu
fecho meus olhos. “Se você acha que é assim...” Eu engulo outro soluço. “...você é o burro”.

 “É. Tanto faz”.

 Seus sapatos rangem enquanto ele se vira. Quase indo embora.

 “Espere!” Eu olho para sua silhueta embaçada, incapaz de decifrar seu rosto. “O que
eles farão com ele? A mesma coisa que estão fazendo comigo?”

 “Não sei”.

 “Você pode descobrir?” Eu esfrego minha bochecha com as mãos, frustrada. “Você
pode pelo menos descobrir se ele está bem?”

 Ele diz “Por que eu faria isso? Por que eu faria qualquer coisa por você?”

 Um momento depois, ouço a porta fechando.




















































 Capítulo 30



 Uma vez eu li em algum lugar que o choro desafia as explicações científicas. Lágrimas
foram feitas apenas para lubrificar os olhos. Não há razão real para as glândulas lacrimais
produzirem lágrimas movidas pela emoção.
Eu acho que choramos para libertar as partes selvagens que temos, mas sem perder
nossa humanidade. Porque dentro de mim há uma besta que rosna, ruge e se esforça na
direção da liberdade, na direção de Tobias e, mais do que tudo, na direção da vida. E por mais
que eu tente, não consigo matá-la.

 Então eu apenas soluço em minhas mãos.



 Esquerda, direita, direita. Esquerda, direita, esquerda. Direita, direita. Nosso caminho,
em ordem, do ponto de origem – minha cela – até nosso destino.

 É uma nova sala. Dentro dela há uma cadeira parcialmente reclinada, como uma
cadeira de dentista. Em um canto há uma tela e uma mesa. Jeanine está sentada na mesa.

 “Onde ele está?” Eu digo.

 Estive esperando por horas para perguntar isso. Eu caí no sono e sonhei que estava
perseguindo Tobias pela sede da Audácia. Não importa o quão rápido eu corresse, ele sempre
estava longe o bastante de mim para que eu só conseguisse vê-lo desaparecendo pelos cantos,
às vezes uma rápida visão de uma luva ou sapato.

 Jeanine me dá um olhar intrigado. Mas ela não está intrigada. Ela está jogando comigo.

 “Tobias”, eu digo de qualquer maneira. Minhas mãos tremem, mas não de medo desta
vez – de ódio. “Onde ele está? O que está fazendo com ele?”

 “Não vejo razão para lhe dar esta informação”, diz Jeanine. “E já que você está sem
qualquer influência ou poder, não vejo nenhuma maneira de você me dar uma razão, a menos
que você queira mudar os termos de nosso acordo”.

 Quero gritar que é claro, é claro que gostaria mais de saber sobre Tobias do que minha
própria Divergência, mas não grito. Não posso tomar decisões apressadas. Ela vai fazer o que
pretende fazer com Tobias, eu sabendo ou não. É mais importante que eu entenda totalmente
o que está acontecendo comigo.

 Respiro pelo nariz. Balanço as mãos. Sento na cadeira.

 “Interessante”, ela diz.

 “Você não deveria estar comandando uma facção e planejando uma guerra?” Eu digo.
“O que está fazendo aqui, fazendo testes em uma garota de dezesseis anos?”

 “Você escolhe maneiras diferentes de referir-se a si mesma dependendo do que é mais
conveniente”, ela diz, inclinando-se para trás em sua cadeira. “Algumas vezes você insiste que
não é uma garotinha e em outras insiste que é. O que estou curiosa para saber é: Como você
realmente se vê? Como uma ou outra? Como ambos? Como nenhum dos dois?”

 Eu falo com uma voz monótona e concreta, como a dela. “Não vejo razão para lhe dar
esta informação”.

 Eu ouço uma bufada fraca. Peter está cobrindo sua mão. Jeanine o encara, e sua
risada, com muito custo, se transforma em uma tosse.

 “A chacota é uma coisa infantil, Beatrice”, ela diz. “Não lhe cai bem”.

 “A chacota é uma coisa infantil, Beatrice”, eu repito na melhor imitação de sua voz.
“Não lhe cai bem”.


 “O soro”, Jeanine diz, olhando para Peter. Ele dá alguns passos à frente e apalpa uma
caixa preta na mesa, tirando uma seringa com a agulha já anexada.

 Peter anda em minha direção e eu levanto uma mão.

 “Permita-me”, eu digo.

 Ele olha para Jeanine, esperando a permissão, e ela diz “Tudo bem, então”. Ele me
passa a seringa e eu a enfio na lateral do meu pescoço, pressionando o pistão para baixo.
Jeanine aperta um dos botões com seu dedo e tudo fica escuro.



 Minha mãe está no corredor com seu braço esticado à cima de sua cabeça para que
consiga segurar o apoio. Seu rosto está virado, não na direção das pessoas ao meu redor, mas
na direção da cidade pela qual estamos passando, enquanto o ônibus segue para frente. Vejo
rugas em sua testa e ao redor de sua boca quando ela franze a testa.

 “O que foi?” Eu pergunto.

 “Há muito para ser feito”, ela diz com um pequeno gesto na direção da janela do
ônibus. “E poucos de nós restando para fazê-lo”.

 É fácil perceber a que ela se refere. Há escombros fora do ônibus, até onde posso ver.
Do outro lado da rua, um edifício está em ruínas. Fragmentos de vidro cobrem os becos. Eu me
pergunto o que causou tanta destruição.

 “Para onde estamos indo?” Eu digo.

 Ela sorri para mim e eu vejo rugas diferentes das anteriores, nos cantos de seus olhos.
“Estamos indo para a sede da Erudição”.

 Eu faço uma carranca. A maior parte da minha vida se resume a evitar a sede da
Erudição. Meu pai costumava dizer que ele não gostava nem de respirar o ar de lá. “Porque
estamos indo para lá?”

 “Eles vão nos ajudar”.

 Por que eu sinto uma angústia em meu estômago quando penso em meu pai? Eu
imagino seu rosto, intemperizado por uma vida de frustrações com o mundo ao seu redor e
seu cabelo mantido curto por uma prática padrão da Abnegação, e sinto a mesma dor em meu
estômago que sinto quando não tenho comido por muito tempo – a dor do vazio.

 “Aconteceu alguma coisa meu pai?” Eu digo.

 Ela balança a cabeça. “Por que pergunta?”

 “Não sei”.

 Não sinto a dor quando olho para minha mãe. Mas sinto como se cada segundo que
passamos a poucos centímetros de distância são momentos que eu deveria gravar em minha
mente até que minha memória inteira ficasse cheia deles. Mas se ela não é permanente, o que
ela é?

 O ônibus para e as portas abrem. Minha mãe começa a passar pelo corredor e eu a
sigo. Ela é mais alta que eu, então eu olho para suas costas entre os ombros, no topo de sua
espinha. Ela parece frágil, mas não é.

 Piso no asfalto. Pedaços de vidro quebram abaixo dos meus pés. Eles são azuis e,
julgando pelos buracos no prédio à minha direita, costumavam ser parte de uma janela.

 “O que aconteceu?”

 “Guerra”, minha mãe diz. “Isso é o que nós temos tentado tanto evitar”.

 “E a Erudição vai nos ajudar... fazendo o que?”


 “Eu me preocupo que tudo o que seu pai esteve vociferando sobre a Erudição tenha
sido seu detrimento”, ela diz gentilmente. “Eles tem cometido erros, é claro, mas eles, como
todo mundo, são uma mistura entre bem e mal, não apenas um deles. O que nós faríamos sem
médicos, cientistas, professores?”

 Ela acaricia meu cabelo.

 “Lembre-se disto, Beatrice”.

 “Eu vou”, eu prometo.

 Nós continuamos andando. Mas algo sobre o que ela disse me incomoda. É o que ela
disse sobre meu pai? Não – meu pai está sempre reclamando da Erudição. É o que ela disse
sobre a Erudição? Eu pulo um grande caco de vidro. Não, não pode ser isso. Ela estava certa
sobre a Erudição. Todos os meus professores eram de lá e também o doutor que consertou o
braço da minha mãe quando ela o quebrou há muitos anos.

 É a última parte. “Lembre-se disto”. Como se ela não fosse ter a oportunidade de me
lembrar mais tarde.

 Eu sinto alguma coisa mudando em minha mente, como se algo que estivesse fechado,
abrisse.

 “Mãe?” Eu digo.

 Ela olha para mim. Uma mecha de cabelo loiro cai de seu laço e toca sua bochecha.

 “Eu te amo”.

 Eu aponto para uma janela à minha esquerda, e ela explode. Partículas de vidro
chovem sobre nós.

 Eu não quero acordar em um quarto na sede da Erudição, então não abro os olhos,
nem mesmo quando a simulação acaba. Eu tento preservar a imagem da minha mãe e do
cabelo grudando em sua bochecha o máximo que consigo. Mas quando tudo o que vejo é a
vermelhidão de minhas pálpebras, eu abro os olhos.

 “Você terá que fazer melhor do que isso”, eu digo para Jeanine.

 Ela diz “Isso foi só o começo”.






































 Capítulo 31



 Naquela noite eu sonho, não com Tobias e não com o Will, mas com minha mãe. Nós
estamos nos pomares da Amizade, onde as maçãs estão maduras e balançam acima de nossas
cabeças. As sombras das folhas formam um padrão em seu rosto e ela está vestida de preto,
apesar de eu nunca tê-la visto de preto enquanto ela estava viva. Ela está me ensinando a
fazer uma trança em meu cabelo, demonstrando em uma mecha do seu próprio, rindo quando
meus dedos se atrapalham.

 Eu acordo imaginando como eu não percebi, durante todos os dias em que sentei na
frente dela no o café da manhã, que ela era cheia da energia da Audácia queimando dentro de
si. Foi porque ela escondia bem? Ou foi porque eu não estava reparando?

 Afundo meu rosto no travesseiro fino com o qual dormi. Nunca vou conhecê-la. Mas
ao menos ela nunca vai saber o que eu fiz com o Will. Nesse momento eu não sei se poderia
aguentar se ela soubesse.

 Ainda estou com um mormaço de sono em meus olhos enquanto sigo Peter pelo
corredor, segundos ou minutos depois, não sei dizer.

 “Peter”. Minha garganta dói; Eu devo ter gritado enquanto dormia. “Que horas são?”

 Ele usa um relógio, mas a face está coberta, então não consigo ver. Ele nem se
incomoda de olhar.

 “Por que você está constantemente me escoltando para os lugares?” Eu digo. “Não há
nenhuma atividade depravada que você devia estar fazendo? Chutar filhotinhos, espionar
garotas enquanto elas trocam de roupa ou algo do tipo?”

 “Eu sei o que você fez com o Will, sabe. Não finja que você é melhor do que eu, porque
nós dois, nós somos iguais”.

 A única coisa que distingue um corredor do outro é o seu comprimento. Eu decido
classificá-los de acordo com o número de passos que eu dou antes de entrar em outro. Dez.
Quarenta e sete. Vinte e nove.

 “Você está errado”, eu digo. “Nós podemos ser maus, mas há uma diferença
gigantesca entre nós dois – eu não estou feliz em ser assim”.

 Peter bufa e nós andamos entre as mesas de laboratório da Erudição. É então que eu
percebo onde estou e para onde estamos indo: De volta para a sala que Jeanine me mostrou.
A sala onde serei executada. Eu tremo tão forte que meus dentes batem e fica difícil continuar
andando, difícil manter meus pensamentos organizados. É só uma sala, eu digo a mim mesma.
Só uma sala como qualquer outra.

 Eu sou uma mentirosa.

 Dessa vez a sala da execução não está vazia. Quatro traidores da Audácia se espremem
em um canto, e dois membros da Erudição, uma mulher de pele escura e um homem mais
velho, ambos vestindo jalecos, estão ao lado de Jeanine perto da mesa de metal no centro.
Várias máquinas estão espalhadas ao redor e há fios para todos os lados.

 Não sei o que a maioria dessas máquinas faz, mas entre elas há um medidor de
frequência cardíaca. O que a Jeanine está planejando que requer um monitor de frequência
cardíaca?

 “Coloque-a na mesa”, diz Jeanine, soando entediada. Eu encaro chapa de metal que
me aguarda por um momento. E se ela mudou de ideia sobre me executar? E se essa for a hora


em que eu morro? As mãos de Peter se fecham ao redor dos meus braços e eu me contorço,
jogando toda a minha força no movimento.

 Mas ele só me levanta, esquivando-se dos meus chutes, e me joga contra a chapa de
metal, me deixando sem fôlego. Eu engasgo e lanço minha mão para onde quer que seja que
ela consiga atingir, o que acaba sendo o punho de Peter. Ele estremece, mas agora os outros
traidores da Audácia já vieram ajudar.

 Um deles segura meus tornozelos e o outro prende meus ombros enquanto Peter
passa as cintas pretas sobre meu corpo, para me manter presa. Eu titubeio com a dor em meu
ombro machucado e paro de lutar.

 “O que diabos está acontecendo?” Eu exijo, esticando meu pescoço para encarar
Jeanine. “Nós concordamos – cooperação em troca dos resultados! Nós concordamos-”

 “Isso é totalmente separado de nosso acordo”, diz Jeanine, olhando para seu relógio.
“Não é sobre você, Beatrice”.

 A porta abre novamente.

 Tobias anda para dentro da sala – manca para dentro da sala – ladeado de traidores da
Audácia. Seu rosto está ferido e há um corte acima de sua sobrancelha. Ele não se move com a
graça de costume; ele está se segurando perfeitamente ereto. Ele deve estar machucado. Eu
tento não pensar em como ele ficou assim.

 “O que é isso?” Ele diz, sua voz dura e rouca.

 De tanto gritar, provavelmente.

 Minha garganta parece inchada.

 “Tris”, ele diz e dá uma guinada na minha direção, mas os traidores da Audácia são
muito rápidos. Eles o seguram antes que ele possa dar mais do que alguns passos. “Tris, você
está bem?”

 “Sim’, eu digo. “E você?”

 Ele faz que sim com a cabeça. Eu não acredito nele.

 “Para evitar mais perdas de tempo, Sr. Eaton, eu pensei em abordar o caminho mais
lógico. Soro da verdade seria preferível, é claro, mas eu levaria dias para coagir Jack Kang a me
fornecer alguns, já que o soro é invejavelmente guardado pela Franqueza, e eu prefiro não
gastar alguns dias”. Ela dá um passo para frente com uma seringa na mão. Esse soro é cinza.
Pode ser uma nova versão do soro da simulação, mas eu duvido disso.

 Eu imagino o que ele faz. Não pode ser bom, se ela parece feliz com si mesma.

 “Em alguns segundos, eu vou injetar esse líquido na Tris. Nesse momento, eu acredito,
seus instintos egoístas vão assumir o controle e você vai me dizer exatamente o que eu preciso
saber”.

 “O que ela precisa saber?” Eu digo, interrompendo-a.

 “Informações sobre as casas seguras dos Sem Facção”, ele responde sem olhar para
mim.

 Meus olhos se arregalam. Os Sem Facção são nossa última esperança, agora que
metade dos membros leais da Audácia e todos os da Franqueza podem ser manipulados pela
simulação, e todos da Abnegação estão mortos.

 “Não diga a ela. Eu vou morrer de qualquer forma. Não diga nada”.

 “Lembre-me, Sr. Eaton”, diz Jeanine. “O que as simulações da Audácia fazem?”

 “Isso não é uma sala de aula”, ele responde entre seus dentes apertados. “Diga-me o
que você vai fazer”.


 “Eu direi se você responder minha simples pergunta”.

 “Tudo bem”, os olhos de Tobias encontram os meus. “As simulações estimulam a
amígdala, que é responsável por processar o medo, induzem uma alucinação baseada naquele
medo e depois transmitem os registros a um computador para que sejam observados e
processados”.

 Soa como se ele tivesse memorizado isso há muito tempo. Talvez ele tenha – ele
passou um longo tempo processando simulações.

 “Muito bem”, ela diz. “Quando eu estava desenvolvendo as simulações da Audácia,
anos atrás, nós descobrimos que certos níveis de potência sobrecarregavam o cérebro e o
tornava muito insensível com o medo para criar novos cenários, então nós diluímos a solução
para que as simulações fossem mais instrutivas. Mas eu ainda me lembro de como fazer o soro
original”.

 Ela dá uma batida na seringa com sua unha.

 “O medo”, ela diz, “é mais poderoso que a dor. Então há alguma coisa que você queira
dizer antes de eu injetar isto na Srta. Prior?”

 Tobias pressiona seus lábios.

 E Jeanine insere a agulha.



 Começa calmo, com as batidas de um coração. Não tenho certeza, primeiramente, de
quem é esse batimento que estou escutando, porque está muito alto para ser o meu próprio.
Mas então eu percebo que é o meu e está ficando cada vez mais rápido.

 Suor se reúne em minhas mãos e atrás dos meus joelhos.

 E eu tenho que engasgar para respirar.

 É então que os gritos começam

 E eu

 Não consigo

 Pensar.



 Tobias está lutando com os traidores da Audácia perto da porta.

 Eu escuto o que soa como um grito de uma criança ao meu lado e torço minha cabeça
para os lados tentando ver de onde está vindo, mas só há um monitor cardíaco. Acima de mim
as linhas entre os azulejos do teto se contorcem e formam criaturas monstruosas. O aroma de
carne apodrecendo preenche o ar e eu fico com ânsia de vômito. As criaturas monstruosas
tomam uma forma mais definida – elas são pássaros, corvos, com bicos tão grandes quanto
meu antebraço e asas tão escuras que parecem engolir toda a luz.

 “Tris”, diz Tobias. Eu olho para longe dos corvos.

 Ele está próximo à porta, onde ele estava antes de eu ser injetada, mas agora ele
segura uma faca. Ele a vira para que a lâmina aponte para seu estômago. Então ele a leva em
direção a si mesmo, tocando a ponta da lâmina em seu estômago.

 “O que está fazendo? Pare!”
Ele sorri um pouco e diz, “Estou fazendo isso por você”.

 Ele empurra a faca para dentro, vagarosamente, e o sangue mancha a barra da sua
blusa. Eu improviso e me jogo contra os cintos que me prendem à mesa. “Não, pare!” Em uma
simulação eu já teria me libertado, então isso é real, é real. Eu grito e ele posiciona a faca em
uma alavanca. Ele cai no chão e seu sangue se espalha rapidamente ao seu redor. Os pássaros


sombrios viram seus olhos lustrosos para ele e criam um tornado de asas e garras, bicando sua
pele. Eu vejo seus olhos através das penas esvoaçantes e ele ainda está acordado.

 Um pássaro pousa nos dedos que seguram a faca. Ele a retira, ela cai no chão e eu
devia torcer para que ele estivesse morto, mas eu sou egoísta, então não consigo. Minhas
costas levantam da mesa, todos os meus músculos se firmam e minha garganta dói por causa
dos gritos que não são mais palavras e não irão parar.



 “Sedativo”, uma voz firme comanda.

 Outra agulha em meu pescoço e meu coração começa a desacelerar. Eu choro com
alívio. Por segundos tudo o que consigo fazer é chorar de alívio.

 Aquilo não foi justo. Aquilo era algo à parte; uma emoção que não deveria existir.

 “Deixem-me ir”, Tobias diz, e ele soa mais rouco do que antes. Eu pisco rapidamente
para que consiga vê-lo através das minhas lágrimas. Há marcas vermelhas em seus braços,
onde os traidores da Audácia o seguravam, mas ele não está morrendo; ele está bem. “Só há
uma maneira para eu lhes contar, e é se vocês me soltarem”.

 Jeanine concorda com a cabeça e ele corre até mim. Ele envolve uma mão ao redor da
minha e toca meu cabelo com a outra. As pontas dos seus dedos ficam molhadas com as
lágrimas. Ele não seca. Ele se inclina para frente e pressiona sua testa contra a minha.

 “As casas seguras dos Sem Facção”, ele diz, contra minha bochecha. “Consigam-me um
mapa e eu vou marcá-las para vocês”.

 Sua testa está fria e seca contra a minha. Meus músculos doem, provavelmente por
estar curvada por tanto tempo quanto Jeanine quis me deixar com aquele soro pulsando
dentro de mim.

 Ele se levanta, seus dedos enrolados ao redor dos meus por quanto tempo eles
conseguem ficar até que os traidores da Audácia o tiram do meu alcance para escoltá-lo a
algum lugar. Minha mão cai pesadamente na mesa. Eu não quero lutar contra as restrições
mais. Tudo o que quero fazer é dormir.

 “Enquanto você está aqui...” Jeanine diz, uma vez que Tobias e os outros já se foram.
Ela olha para cima e foca seus olhos desinteressados em um dos membros da Erudição. “Traga-
o aqui. Já está na hora”.

 Ela olha para mim de novo.

 “Enquanto você dorme, nós faremos um pequeno procedimento para observar
algumas coisas sobre seu cérebro. Ele não será invasivo. Mas antes disso... Eu prometi total
transparência com esses procedimentos. Então eu sinto que só será justo que se você souber
exatamente quem esteve me ajudando com meus empreendimentos”. Ela sorri um pouco.
“Quem me contou quais eram as três facções para as quais você tinha aptidão, qual era a
nossa melhor chance de fazê-la vir aqui e para colocar sua mãe na última simulação para que
ela fosse mais efetiva”.

 Ela olha na direção da porta enquanto o sedativo começa a fazer efeito, tornando tudo
embaçado nas bordas. Eu olho sobre meu ombro e através da neblina de drogas eu o vejo.

 Caleb.










 Capítulo 32



 Eu acordo com dor de cabeça. Tento voltar a dormir – pelo menos enquanto estou
dormindo eu fico calma – mas a imagem de Caleb parado na porta passa pela minha cabeça de
novo e de novo, acompanhada pelo som dos grasnados dos corvos.

 Por que eu nunca me perguntei como Eric e Jeanine sabiam que eu tinha aptidão para
três facções?

 Por que nunca me ocorreu que só três pessoas no mundo sabiam desse fato particular:
Tori, Caleb e Tobias?

 Minha cabeça lateja. Não vejo nenhum sentido nisso. Não sei por que Caleb me trairia.
Eu me pergunto quando isso aconteceu – depois da simulação do ataque? Depois que ele
escapou da Amizade? Ou foi antes disso – foi quando meu pai ainda estava vivo? Caleb nos
disse que ele deixou a Erudição quando descobriu o que eles estavam planejando – ele estava
mentindo?

 Devia estar. Eu pressiono minha testa com as mãos. Meu irmão escolheu a facção
antes do sangue. Deve haver um motivo. Ela deve ter ameaçado ele. Ou coagido ele de alguma
forma.

 A porta abre. Eu não levanto a cabeça ou abro os olhos.

 “Careta”. É o Peter. É claro.

 “Sim”. Quando eu deixo minha mão cair do meu rosto, uma mecha de cabelo cai junto
com ela. Eu olho para a mecha com o canto do olho. Meu cabelo nunca esteve tão oleoso
antes.

 Peter coloca uma garrafa de água e um sanduíche ao lado da cama. A ideia de comer
me dá náuseas.

 “Você teve morte cerebral?” Ele pergunta.

 “Acho que não”.

 “Não tenha tanta certeza”.

 “Ha-há”, eu digo. “Por quanto tempo eu estive dormindo?”

 “Quase um dia. Eu devo levá-la aos chuveiros”.

 O quarto gira quando eu levanto minha cabeça, mas consigo colocar minhas pernas
para fora da cama e me levantar. Peter e eu andamos pelo corredor. Quando ele vira a esquina
para o banheiro, porém, há algumas pessoas no fim do corredor.

 Uma delas é Tobias. Eu posso ver aonde nossos caminhos vão se encontrar, entre o
lugar que estou agora e minha cela. Eu olho, não para ele, mas para onde ele estará quando
alcançar minha mão, do modo como ele fez na última vez em que passamos um pelo outro.
Minha pele formiga de antecipação. Por apenas um momento, eu vou tocá-lo novamente.

 Seis passos até que nos encontremos. Cinco passos.

 Faltando quatro passos, Tobias para. Seu corpo inteiro fica flácido, pegando o traidor
que o escoltava de surpresa. O guarda perde o aperto nele por um momento e Tobias se
amassa no chão.

 Depois ele começa a girar. Dá uma guinada para frente. Pega uma arma no coldre
menor do traidor.

 A arma dispara. Peter mergulha para a direita, me arrastando com ele. Minha cabeça
roça a parede. A boca do soldado traidor está aberta – ele deve estar gritando. Eu não consigo
ouvi-lo.


 Tobias lhe dá um chute forte no estômago. A parte audaciosa em mim admira sua
forma – perfeita – e sua velocidade – incrível. Depois ele se vira, apontando a arma para Peter.
Mas Peter já me soltou.

 Tobias alcança meu braço esquerdo, me ajuda a ficar de pé e começa a correr. Eu
tropeço atrás dele. Cada vez que meu pé bate no chão, a dor corta minha cabeça, mas não
posso parar. Eu pisco enquanto as lágrimas caem de meus olhos. Corra, eu digo a mim mesma,
como se fosse tornar mais fácil. A mão de Tobias é áspera e forte. Eu deixo que ela me guie
pelos corredores.

 “Tobias”, eu arquejo.

 Ele para e olha para mim. “Ah, não”, ele diz, passando os dedos na minha bochecha.
“Venha. Nas minhas costas”.

 Ele se inclina e eu coloco meus braços ao redor de seu pescoço, enterrando meu rosto
entre suas omoplatas. Ele me levanta sem dificuldade e segura minha perna com sua mão
esquerda. A mão direita ainda segura a arma.

 Ele corre, e mesmo com meu peso, ele é rápido. Eu penso Como ele pode ter sido da
Abnegação? Ele parece ter um design específico para a velocidade e para a precisão mortal.
Mas não a força, não particularmente - ele é inteligente, mas não é forte. Só é forte o bastante
para me carregar.

 Os corredores estão vazios agora, mas não por muito tempo. Logo todos os membros
da Audácia no edifício estarão correndo em nossa direção, partindo de todos os ângulos, e nós
estaremos presos nesse labirinto pálido. Eu me pergunto como Tobias pretende passar por
eles.

 Eu levanto minha cabeça o suficiente para ver que ele acabou de passar por uma saída.

 “Tobias, você perdeu”.

 “Perdi... o que?” Ele diz entre suas respirações.

 “Uma saída”.

 “Não estou tentando escapar. Nós levaríamos um tiro se tentássemos”, ele diz. “Estou
tentando... achar algo”.

 Eu suspeitaria que estivesse sonhando se a dor na minha cabeça não fosse tão intensa.
Normalmente só os meus sonhos fazem tão pouco sentido. Por que, se ele não está tentando
escapar, ele está me levanto com ele? E o que ele está fazendo, se não está fugindo?

 Ele para abruptamente, quase me deixando cair, quando alcança um extenso corredor
com vidraças em ambos os lados, revelando escritórios. Os membros da Erudição estão
congelados em suas mesas, nos encarando. Tobias não presta atenção neles; seus olhos, pelo
que eu consigo ver, estão fixos na porta no fim do corredor. Uma placa do lado de fora diz
CONTROLE-A.

 Tobias procura por todas as partes da sala, e depois atira na câmera presa ao teto na
nossa direita. A câmera cai. Ele atira na câmera à nossa esquerda. A lente dela despedaça.

 “Hora de descer”, ele diz. “Não vamos correr mais, eu prometo”.

 Eu deslizo por suas costas e seguro sua mão. Passamos por uma porta que estava
fechada e entramos em um armário de suprimentos. Ele fecha a porta e coloca uma cadeira
em baixo da maçaneta. Eu olho para ele, uma prateleira estocada com papéis atrás de mim.
Acima de nós, a luz azul pisca. Seus olhos percorrem meu rosto quase com fome.

 “Eu não tenho muito tempo, então serei direto”, ele diz.

 Eu concordo.


 “Eu não vim aqui em uma missão suicida”, ele diz. “Eu vim por duas razões. A primeira
era para descobrir as duas salas centrais de controle da Erudição, então quando nós formos
invadir, saberemos o que destruir primeiro para nos livrar de todos os registros das simulações
e ela não vai poder ativar os transmissores da Audácia”.

 Isso explica a corrida sem querer escapar. E nós encontramos uma sala de controle, no
final daquele corredor.

 Eu o encaro, ainda atordoada pelos últimos minutos.

 “A segunda”, ele diz, limpando a garganta, “é para ter certeza de que você continua
firme, porque nós temos um plano”.

 “Que plano?”

 “De acordo com um de nossos informantes, sua execução está marcada para daqui a
duas semanas”, ele diz. “Pelo menos essa é a data alvo de Jeanine para a nova simulação à
prova de Divergentes. Então quatorze dias daqui, os Sem Facção, os membros leais da Audácia
e da Abnegação que estão querendo lutar, irão invadir a sede da Erudição e tomar sua melhor
arma – o computador do sistema. Isso significa que nós vamos ter um número maior que os
traidores e, por tanto, que a Erudição”.

 “Mas você contou à Jeanine onde as casas seguras dos Sem Facção estão”.

 “É”. Ele faz uma carranca. “Isso é problemático. Mas como nós sabemos, muitos dos
Sem Facção são Divergentes e muitos deles já estavam indo para o setor da Abnegação
quando eu fui embora, então apenas algumas das casas seguras serão afetadas. Eles ainda vão
ter uma população gigante para contribuir com a invasão”.

 Duas semanas. Eu serei capaz de aguentar mais duas semanas disso? Eu já estou tão
cansada que acho difícil ficar de pé. Nem o resgate que Tobias está propondo consegue me
afetar. Eu não quero liberdade. Quero dormir. Quero que isso acabe.

 “Eu não...” Eu engasgo com as palavras e começo a chorar. “Eu não consigo...
aguentar... tanto tempo”.

 “Tris”, ele diz severamente. Ele nunca me mima. Eu queria que, só dessa vez, ele me
mimasse. “Você tem que aguentar. Você tem que sobreviver a isso”.

 “Por que?” A pergunta se forma em meu estômago e sai da minha garganta como um
gemido. Eu sinto como se estivesse esmurrando meus punhos contra meu peito, como uma
criança petulante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e eu sei que estou sendo
ridícula, mas não consigo parar. “Por que eu tenho que aguentar? Por que alguma outra
pessoa não pode fazer alguma coisa pelo menos uma vez? E se eu não quiser fazer isso mais?”

 E o que isso é, eu percebo, é viver. Eu não quero isso. Eu quero meus pais e tenho
querido-os por semanas. Eu estive tentando cortar meu caminho de volta para eles e agora
estou tão perto e ele está me dizendo para não ir.

 “Eu sei”. Eu nunca ouvi sua voz soar tão suave. “Eu sei que é difícil. A coisa mais difícil
que você já teve que fazer”.

 Eu balanço minha cabeça.

 “Eu não posso forçá-la. Não posso fazer você querer sobreviver”. Ele me empurra
contra ele e corre sua mão por meu cabelo, colocando-o atrás da minha orelha. Seus dedos
trilham meu pescoço e meu ombro, e ele diz “Mas você vai fazer isso. Não importa se acredita
que pode ou não. Você vai, porque é assim que você é”.


 Eu olho para cima e encaixo minha boca na dele, não gentilmente, não
hesitantemente. Eu o beijo da forma como costumava fazer, quando eu me sentia segura por
nós e corro minhas mãos por suas costas.

 Não quero contar a ele a verdade: Que ele está errado e eu não quero sobreviver.

 A porta abre. Traidores da Audácia entram no armário de suprimentos. Tobias dá um
passo para trás, gira a arma em sua mão e a oferece para o traidor mais próximo a ele.




Um comentário: