quinta-feira, 7 de março de 2013

Adormecida 1 - Anna Sheehan (Parte 2)


— Capete! — ele sussurrou. Agarrou-me pelo ombro. — Você tinha razão da
primeira vez. Corra! — empurrou-me para longe da cadeira quebrada e por um
dos corredores. Então, correu para o lado oposto.



É claro que a coisa veio atrás de mim. Corri o mais rápido que pude, mas
quando ele me avistou, correu muito mais rápido. Meu coração pulsava
descompassado enquanto meus nanos esgotados reclamavam dos maus-tratos.
Com um estrondo apavorante, uma parede de prateleiras desabou atrás de mim,
derrubando caixas de roupas fora de moda e quebrando brinquedos de plástico à
medida que caíam. Com uma determinação implacável, o homem brilhante
caminhou com dificuldade entre os entulhos, amassando o alumínio das
prateleiras sob os pés. Bren tinha razão, a coisa definitivamente não era humana.



Aquilo era igualzinho aos meus pesadelos. Eu queria correr, mas meu
corpo afetado pela fadiga estase estava esgotado. Meus pulmões ardiam, meu
coração estava disparado e meus pés pareciam presos em cimento. Eu não
conseguia correr rápido o suficiente.



A coisa corria atrás de mim, e pude senti-lo se aproximando cada vez mais.
Até que algo atingiu as minhas costas.



Não tinha sido um golpe; ele apenas me tocara com o bastão. Mas mesmo
por cima da jaqueta do meu uniforme, o bastão conseguiu cumprir seu papel.



Meu corpo parou de funcionar. Era como se eu fosse uma máquina e
tivesse sido desligada. Eu queria gritar, mas não conseguia. Caí como uma
boneca de pano, todos os músculos do meu corpo estavam tensionados e sem
forças, eu parecia uma marionete cujas cordas tinham sido cortadas. A sensação
era pior do que se eu tivesse sido eletrocutada. Uma dor aguda irradiou do ponto


onde o bastão me tocara. Eu tinha certeza de que causara um curto-circuito em
meus nanorrobôs. Por quanto tempo eu ainda conseguiria sobreviver com meus
órgãos funcionando por conta própria?



Senti um toque ardente quando meu agressor me virou de frente. Eu não
conseguia me mover. Um estranho som saía da minha garganta, era o som da dor
agonizante que eu estava sentindo.



Eu ainda podia mover os olhos e avistei o colar controlador que o agressor
tentava prender ao redor do meu pescoço. Sabia que, uma vez que ele colocasse
aquela coisa em mim, eu não poderia mais assumir o controle de meu próprio
corpo. Mas estava além das minhas forças agora. Pelo menos ele não tinha
apanhado Bren.



Então, arregalei os olhos quando vi algo brilhante sobre a cabeça do
agressor, mas ele não viu. Mais uma das prateleiras muito altas estava
começando a tombar. Tudo se movia muito lentamente. Vi uma caixa caindo da
prateleira, um caixote, mais duas caixas e, então, toda a prateleira despencou
sobre as costas do agressor e sobre as minhas pernas.



Ele pareceu mais abalado do que desmaiado. Choraminguei quando uma
nova onda de dor se espalhou pela metade do meu corpo. Bren surgiu triunfante
atrás das prateleiras, mas se assustou quando me viu.



— Rose! — Ele correu sobre os entulhos e começou a me tirar de baixo de
meu agressor.



— Vamos — Bren disse, agachando-se ao meu lado. — Temos de sair daqui
antes que ele reinicie.




— Estou com muita dor — reclamei. Não conseguia elaborar nada mais
coerente.



— Eu sei — Bren disse. — Ele deslizou o braço ao redor dos meus ombros e
me colocou em pé.



Eu mal sentia os pés para conseguir firmar o peso sobre eles. Na verdade,
choraminguei, igualzinho Zavier tinha feito.



— Você foi atingida por um bastão paralisante. — Ele buscou entre os
escombros e arrancou o bastão do homem brilhante, imóvel. — Precisamos ligar
para a polícia. Você está com o seu telefone?



— Acho que o deixei sobre a minha cama — murmurei. Eu não estava nada
bem quando desci para entrar em estase.



— Vamos levá-la para cima e para longe dessa coisa, antes que ele reinicie.



— Coisa? Reiniciar?



— Sim, coisa — Bren disse. Ele me arrastou pelo depósito rumo à porta e
tirou um antigo cartão magnético do bolso. Fui atingida por uma onda de
nostalgia. Eu não via um daqueles desde que voltara da estase. Ele passou o
cartão por uma fenda ao lado da porta. — Cancelar, Sabah — ele disse. —
Trancar.



Um leve gemido soou da fenda e a porta fez clique.




— Pronto — Bren disse. Ele me segurou pelos ombros novamente e chamou
o elevador.



— O que você fez?



— Tenho a chave mestra — ele respondeu. — Somente eu e meus pais
podemos abrir a porta agora. — As portas do elevador se abriram e ele me puxou
para dentro. Arquejei quando o elevador começou a subir lentamente. Cada parte
do meu corpo doía. Quando o elevador parou, minhas pernas se curvaram e eu
caí. — Droga. Segure isto. — Bren colocou o bastão paralisante em minhas mãos
e me ergueu nos braços como se eu fosse uma criança.



— Não faça isso — eu disse, pois ficou evidente que ele pretendia me
carregar até o meu apartamento. — Sou muito pesada.



— Como você acha que eu a tirei do subsolo da primeira vez? — ele
perguntou. — Você só está um pouquinho mais pesada agora.



Fiquei surpresa quando Bren me ergueu como se fossemos recém-casados.



— Você me carregou?



— Eu não poderia simplesmente deixá-la lá — Bren disse bruscamente.



A ideia de Bren carregando meu corpo inconsciente para fora do porão era
ao mesmo tempo embaraçosa e atraente. Um príncipe encantado de verdade.
Aparentemente, o tênis dava-lhe alguma força, ou pelo menos encorajava a
teimosia. Fechei os olhos enquanto ele me carregava, dizendo para mim mesma
que, apesar da situação daquele momento, aquilo não significava nada. Mas meu


corpo não me ouvia. Recostei a cabeça sobre a sua camisa, inalando o cheiro de
sabonete de sândalo. Seus braços pareciam tão fortes ao meu redor, dane-se ele!
Brendan chutou a minha porta. Ninguém respondeu. Ouvi o som de vozes se
alterando vindo de lá de dentro. Será que Barry e Patty estavam brigando?



— Abram a maldita porta! — Bren gritou.



Para minha surpresa, foi a Sra. Sabah quem abriu a porta e seus olhos
amendoados se arregalaram ao me ver nos braços de seu filho.



— Meu Deus, traga-a para dentro! — ela berrou.



— Ela está bem — Bren disse, apesar do esforço por estar me carregando
começar a se mostrar na sua voz. Ele passou pela mãe e entrou na sala de estar.



O Sr. Guillory estava gritando com um senhor mais velho e grisalho que
imaginei ser o avô de Bren. Eu não via o avô de Bren desde o dia em que saí da
estase, quando ele não passou de um vulto branco. A discussão continuou
enquanto Bren caminhava comigo pela sala.



— Não, eu acho que os federais poderiam cuidar do trabalho; simplesmente
não creio que precisamos de mais forças militares do que a polícia da
ComUnidade! — Guillory disse, e sua voz soou muito alta no apartamento.



— E se ela não estiver mais na ComUnidade. Isso já lhe ocorreu? Nós
nunca a encontraremos! Ah, por que estou discutindo isso com você? Você foi o
primeiro a pensar que nunca deveríamos tê-la encontrado!




— A verdade é que eu gostaria que isso não tivesse acontecido! — Guillory
gritou. — Isso tudo não passa de um pesadelo de logística e de relações públicas!
Não vai ser nada fácil, você sabe. Ou acha que poderá continuar com os seus
projetos de estimação depois que ela colocar as mãos no conselho?



— Ei! — Bren interrompeu, chamando a atenção deles. — Saíam do
caminho.



Os dois homens se assustaram, ambos tinham a mesma fisionomia de
surpresa. Então, afastaram-se apressados, abrindo caminho até o sofá. Bren
passou entre eles e me colocou com todo o cuidado sobre o sofá.



— Ro... Ela está bem? — perguntou o avô de Bren.



— Telefone para a polícia — Bren disse, ignorando a pergunta. — Ela foi
atingida por um bastão paralisante.



— Eles são ilegais — disse Guillory.



Bren arrancou o bastão das minhas mãos e passou para o avô.



— Diga isso ao plastine lá embaixo.



— Um plastine?



— Sim, alguém está tentando assassiná-la.



— Onde ela estava? — perguntou o avô de Bren.




Bren hesitou, então disse:



— Lá embaixo, no subsolo. Ela estava, ah, abrindo caixas. Tentando ver se
encontrava algo que restara de seus pais.



Perguntei-me por que ele simplesmente não disse a verdade, mas estava
muito dolorida para dizer qualquer coisa.



O avô de Bren olhou para o bastão com olhos contraídos. Em seguida,
olhou para mim e seguiu em direção à porta.



— Vou telefonar para a polícia e para a emergência — ele disse. — Onde
está o plastine?



— Está reiniciando no subsolo — Bren respondeu. — Eu abortei, o plano
dele. Levará um minuto para que reformule um novo. — Enquanto o avô lhe dava
as costas, Bren o chamou — Leve a mamãe, você vai precisar da chave dela para
abrir a porta!



Depois disso as coisas pareceram turvas e incoerentes. Havia um monte de
pessoas entrando e saindo. Alguém fez com que eu me sentasse e verificou meus
sinais vitais, então, fez uma avaliação para garantir que o bastão paralisante não
tinha causado nenhum dano em meu organismo. Meus nanorrobôs ainda
precisavam ser reativados, mas um dos paramédicos tinha um controle remoto
que deu um jeito nisso. Meu coração pareceu melhor depois disso. Alguém tentou
me fazer perguntas, mas o mesmo paramédico que reativara meus nanorrobôs
me deu uma injeção de algo que, supostamente, relaxaria a musculatura tensa.
Infelizmente, o remédio pareceu agir em conjunto com o resto da estase química
que ainda havia no meu corpo e eu basicamente saí do ar. Durante a minha


letargia, eu podia ouvir a voz confiante de Bren contando a todos o que tinha
acontecido comigo.



Um momento se destacou, quando o som de gritos me despertou.



— O que você quer dizer com "não tem nada lá"! — era o avô de Bren
falando no tom de voz mais irado e assustador que eu já ouvira. — Desçam até
aquele subsolo e irão encontrar a maldita coisa!



De olhos fechados, eu me encolhi ao som dos gritos.



— Pai, psiu! — disse a Sra. Sabah. — Você vai acordá-la.



Uma mão delicada tocou meus cabelos, tão carinhosa que senti um aperto
no coração quando ela me deixou. Se estivesse mais desperta, eu teria suspirado.
Desejei que a minha mãe ainda estivesse por perto para acariciar meus cabelos,
para se preocupar se eu estava ou não infeliz.



— Sinto muito — o velho homem disse. Ele levou seja lá com quem
estivesse gritando, o seu celular ou a polícia, para fora da sala, e a conversa irada
foi sumindo até virar um murmúrio distante. Perdi a noção do tempo novamente.




















14





QUANDO ACORDEI DE VERDADE, MEUS PAIS ADOTIVOS, A SRA. SABAH, O SR.
GUILLORY e um dos policiais estavam sentados ao redor da sala de estar
conversando baixinho.



— Eu entendo — Patty estava dizendo. — Mas de quanto tempo estamos
falando? Tivemos de abrir mão de muitas coisas para ficar aqui com ela, e agora
você vai levá-la e nos deixar aqui?



— Não precisa se preocupar — disse a Sra. Sabah com visível sarcasmo.
Antes que Patty e Barry pudessem se defender, o Sr. Guillory tranquilizou-os.



— Ainda vamos precisar de vocês para cuidar do apartamento até que
possamos trazê-la de volta, e tem um cachorro, não tem? Eu não gostaria que ele
morresse de fome.



Barry resmungou.



— Por que um cachorro? — ele interpelou Guillory. — Por que você mandou
um cachorro para ela?



— Você não gosta do animal? — Guillory perguntou distraidamente. — Não
importa. Não se preocupe, oficial. Posso mantê-la perfeitamente em segurança.




— Se o senhor puder nos dar algumas garantias disso, Sr. Guillory — disse
o policial.



Foi aquela voz desconhecida que me fez abrir os olhos. O policial estava em
pé ao lado da lareira, com um supertablet em mãos, enquanto todos os demais
estavam calmamente sentados nas várias cadeiras. Bren estava espremido na
ponta do sofá verde, e meus pés de algum modo tinham ido parar no colo dele.
Olhei surpresa para eles algumas vezes. Alguém tinha tirado os meus sapatos, as
minhas meias estavam imundas. Odiei imaginar como o restante de mim estava
depois de ter rolado pelo chão do subsolo. Bren estava limpinho e lisinho como
um folheto do Preparatório Uni. Havia algo de muito íntimo em ter os meus pés
sobre o colo dele. Tentei me sentar. Até que não doeu tanto.



— Ela está viva — disse Bren com um meio sorriso. — As drogas já saíram
do seu organismo?



Resmunguei.



— Infelizmente.



A Sra. Sabah sorriu.



— Como você está, querida?



Bren soltou um sorriso malicioso para ela.



— Que pergunta tola. Como ela parece estar se sentindo?




A Sra. Sabah ergueu uma sobrancelha, concordando, mas foi o Sr. Guillory
quem falou.



— Você tem alguma ideia de quem fez isso com você?



— Se o senhor não se importar, Sr. Guillory — disse o policial —, acho
melhor eu fazer as perguntas.



— Acho que Rose provavelmente gostaria de ir ao banheiro primeiro, para
lavar o rosto — Bren disse. Sem esperar que eu concordasse, ele pegou minha
mão e me ajudou a ficar em pé. Eu estava trêmula e dolorida, mas ele tinha
razão. Eu definitivamente queria lavar o rosto antes de me submeter a um
interrogatório.



— Tudo bem, pode ir rápido — disse o policial.



Bren me conduziu até o corredor onde uma policial falava ao telefone. Bren
deu uma olhada nela, então, levou-me ao banheiro e entrou logo atrás de mim.



Os banheiros do apartamento eram espaçosos, mas mesmo assim não
pareceu ser espaçoso o suficiente para nós dois. Ele estava muito próximo. Eu
podia sentir o calor do seu corpo bem perto do meu e aquele maldito perfume
sedutor que vinha dele. Entre a estase e as drogas, minhas emoções não estavam
funcionando em sua mais plena forma. Eu queria envolvê-lo em meus braços,
mas também queria odiá-lo. Acima de tudo, eu simplesmente queria que ele se
fosse, para não me sentir mais daquele jeito.



— O que você está fazendo? — perguntei quando ele fechou a porta.




— Não conte a eles que você se colocou em estase — ele disse.



Eu não sabia o que esperava que ele fosse dizer, mas certamente não era
aquilo.



— Por que não?



— Porque eles vão rotulá-la como um caso de desajuste tipo A e você terá
meia dúzia de médicos analisando a sua cabeça — Bren disse. — O que até que
não seria má ideia, mas se isso acontecer, Guillory irá usar cada truque sujo que
constar no manual para conseguir que você seja declarada inapta para
administrar os bens de seus pais, e ele controlaria tudo pelo resto da sua vida.
Você teria tudo de que precisasse e, tecnicamente, seria a dona da empresa, mas
Guillory seria o seu dono.



Engoli em seco.



— Ah! — exclamei. — Obrigada. Mas o que vou dizer quando me
perguntarem onde estive durante os últimos dois dias?



— Patty e Barry nem notaram que você tinha desaparecido até esta manhã
— Bren disse. — Eu notei antes deles. E só por que você não foi para a escola
dois dias isso não quer dizer que você tenha ido a algum lugar. Diga apenas que
você estava se sentindo nostálgica e que não foi para a escola para procurar algo
em meio àqueles caixotes velhos.



— O que eu estava procurando?




— Não importa. Diga que, diga que isso não importa, que estava à procura
de algo.



Assenti.



— Está bem. — Olhei para a minha imagem no espelho. Estava imunda da
cabeça aos pés. Eu tinha profundas olheiras sob meus olhos e uma dobra na
bochecha feita pela almofada do sofá. Eu parecia um dos mendigos que
costumavam me cercar quando ia para as cidades. E Bren precisava ter me visto
assim? — Eu realmente gostaria de usar o banheiro, agora.



Ele entendeu a indireta.



— Claro. Vejo você na sala. — E saiu desconcertado.



Cinco minutos depois, retornei parecendo um pouco menos uma criança de
rua. Pensei em trocar o uniforme amassado, mas resolvi que, no fim das contas,
isso não tinha importância. Alguém parecia estar segurando os jornalistas do
lado de fora. Quando dei uma espiada pela janela, vi a cabeça branca do avô de
Bren falando com eles na entrada do prédio.



A primeira coisa que o policial me fez contar a eles, quando voltei, foi tudo o
que eu me lembrava sobre o primeiro ataque. Patty e Barry quiseram saber por
que eu não contara a eles antes.



— Não sei — eu disse. — Em parte por que não tinha certeza se aquilo
tinha mesmo acontecido. Tenho tido pesadelos, e todos eles pareciam muito
ruins. Quando voltei para casa depois da aula, a arrumadeira já tinha ido
embora, então, eu não estava certa se tinha apenas sonhado tudo aquilo.




Era verdade, mas não toda a verdade. Na realidade, eu não tinha me
sentido no direito de incomodar Patty e Barry com os meus problemas.



Segui o conselho de Bren e disse a eles que eu estava apenas fuçando
dentro dos caixotes no subsolo e que não tinha fugido. Não era a minha intenção
assustar ninguém. Eu não tinha ideia de que alguém notaria minha ausência e
ligaria para a polícia. Todos me asseguraram de que eu não tinha feito nada de
errado. Fiquei imaginando o que diriam se eu contasse que tinha me colocado em
estase. Bren achava que as reações seriam péssimas.



— Bem — disse Guillory. — Por enquanto você não deve andar por aí
sozinha. Não com um plastine à sua caça.



— O que é exatamente um plastine? — perguntei.



Três respostas me atingiram ao mesmo tempo.



— Um robô — Guillory disse.



— Uma arma — o policial respondeu.



— Um cadáver — Bren disse.



Encolhi os ombros.



— O quê?




— Um plastine é um corpo humano que foi plastificado, o que o torna
virtualmente indestrutível — Guillory contou. — Eles estavam em estágio
experimental quando você foi colocada em estase. Possuem todas as habilidades
e funções de um guerreiro humano, só que são vinte vezes mais fortes e
totalmente insensíveis à dor. Uma combinação incrível. Não têm emoções, é claro,
mas conseguiram integrar as programações por meio das vias neurais já
existentes, o que os torna quase tão inteligentes quanto um humano. E os
humanos são muito mais inteligentes do que se imagina, pense em todos os
cálculos de trajetória e variação do vento, e um milhão de outros fatores
necessários para, digamos, agarrar uma bola de beisebol. No entanto, os
plastines não se adaptam tão rápido quanto os humanos, como Bren provou esta
tarde.



— Eles são mortais — Bren disse. — E irão seguir quaisquer ordens que
receberem, desde levar o lixo para fora até cometer um genocídio. Os robôs que
nós produzimos possuem um bloqueio em seus sistemas que os impede de ferir
um humano. Os plastines não possuem tal programa. Com processadores
neurais humanos, não há como implementar tal coisa. Nesse sentido, eles são
muito humanos, foram desenvolvidos para serem soldados e assassinos. Há
trinta anos, por um acordo internacional, foram banidos, embora ainda sejam
utilizados em algumas colônias no exterior, onde é difícil encontrar seres
humanos dispostos a ocupar cargos que não sejam de comando. Acho
extremamente arriscado, se me perguntar. Sem mencionar a exploração mórbida
de restos humanos.



— Você é igualzinho ao Ronny — Guillory disse para Bren. — Não o vejo
reclamando da doação de órgãos. Você e seu avô não veem o potencial para a
humanidade se o acordo fosse banido.




— Vejo o potencial abuso por parte de todo o sistema! Vamos assassinar as
pessoas para que assim possamos executar mais pessoas. — Bren se voltou para
mim. — A maioria dos plastines foi feita a partir de prisioneiros executados que
vendiam seus corpos para que suas famílias ficassem com o dinheiro. O processo
tinha de ser iniciado com eles saudáveis, por isso, esses prisioneiros precisavam
ser mortos, ou seja, não podiam morrer de causas naturais. A China era um dos
piores lugares, o corpo provavelmente veio de lá. No entanto, o maior laboratório
de plastines ficava na Alemanha. Pergunte ao Wil. O avô dele administrava o
lugar. Aquilo era um matadouro. Literalmente.



— Mas eles se ofereciam... — Guillory iniciou.



— À força! — Bren gritou de volta.



— Isso não vem ao caso — disse a Sra. Sabah, interrompendo uma
discussão antiga de múltiplos argumentos. — O banimento não foi suspenso, o
que significa que, seja lá quem enviou aquela coisa, está burlando uma lei
internacional.



O policial limpou a garganta.



— Sequestro e assassinato, não importa que ferramenta você use, são
violações da lei internacional.



Eu tremia. Aquele plastine já tinha me assustado quando eu não sabia o
que ele era. Agora que eu sabia, era dez vezes pior.



— Ele não pode ser detido? — minha voz saiu misturada com uma lamúria
apavorada.




— É muito difícil detê-los — o policial disse, sem meias palavras. — Seria
necessário um tanque, um lança-chamas e provavelmente vinte homens. Além do
mais, pode haver mais deles, prontos para substituir esse aí. O melhor seria
encontrar quem o enviou e forçá-lo a revogar a ordem.



— E quem está atrás de mim? Nós sabemos?



— Infelizmente, não — disse Guillory. — Você é uma figura pública, e nem
tudo o que a UniCorp fez ao longo da sua extensa história foi considerado bom
para todos. Todos nós temos inimigos. Pode ser alguém que não se esquece de
algo que seus pais fizeram nos primórdios da companhia e que agora resolveu se
vingar de você. Assim como pode ser simplesmente algum maluco que teme ou
inveje a sua fama recente. Não há como saber.



— Vocês não poderiam perguntar a ele ou algo assim? Não existe um meio
de ler suas ordens?



Um silêncio desconfortável se seguiu.



— Poderíamos — Guillory disse —, mas infelizmente o plastine não foi
encontrado.



Uma gélida angústia de horror se apossou de mim.



— Ele fugiu?



— Temo que sim — disse uma nova voz, e o pai de Bren enfiou a cabeça
pela porta entreaberta. Eu não via o Sr.Sabah desde a minha estada no hospital,


quando ele me visitou uma ou duas vezes na companhia de Bren. Seus traços e
seus movimentos pareciam africanos, e havia também um leve sotaque em sua
voz grave. — Andamos por todo o depósito uma dúzia de vezes com todos os
sonares e sensores olfativos que a polícia pôde encontrar. Sinto muito, querida —
ele disse, olhando para mim. — A coisa desapareceu como se fosse um fantasma.



O Sr. Sabah se parecia muito com Bren, o que me distraiu um pouco. Eu
queria sorrir para ele, mas estava muito assustada.



— Como isso é possível? A porta estava trancada!



— Sim, estava — a Sra. Sabah disse. — Ninguém consegue entender.



— Uma vez que não conseguimos prender o plastine — disse o policial —, e
você nos contou que ele já a atacou antes, neste mesmo apartamento, vamos ter
de levá-la para um lugar seguro por alguns dias.



— Reggie tem várias opções — disse o Sr. Sabah, sentando-se no sofá de
dois lugares ao lado da esposa. — O céu é o limite para ele, não é mesmo Reg?



— Absolutamente — o Sr. Guillory respondeu.



— Esta noite, que tal você ficar com Roseanna e eu? Você terá de dividir o
quarto com Hilary, mas se não se importar...



— Adorei a ideia! — eu disse rápido demais. Então, olhei na direção de
Bren e quase desejei não ter concordado. Mas quais eram as outras opções? Eu
gostava do Sr. e da Sra. Sabah e, apesar de tudo, ainda gostava do Bren.




Meio que buscando um motivo para voltar atrás, eu disse:



— Mas... e a Patty e o Barry? E se a coisa vier à minha procura e encontrá-
los...



— Plastines não possuem um raciocínio tão fluido assim — disse o Sr.
Guillory. — Se as ordens são contra você, ele não verá nada além de você. Patty e
Barry podem passar na frente dele e acertá-lo com um taco de beisebol e ele nem
se daria ao trabalho de feri-los. Se não o impedirem de avançar em sua direção,
ele simplesmente os deixará para lá.



— Certo — respondi. Eu não queria passar a noite sozinha. — Posso levar
Zavier?



— Só por esta noite — concordou Guillory. — Não podemos levar um
cachorro para o local onde estou planejando levá-la.



— Não tem problema? — perguntei aos pais de Bren.



Eles assentiram. Fui até o meu quarto fazer uma mala para passar a noite.
Coloquei roupas o suficiente para passar um fim de semana e, então, corri ao
estúdio para pegar um novo bloco de desenho. Olhei durante um longo tempo
para as minhas pinturas a óleo. Tive esperança de que eles encontrassem logo o
robô, para que assim eu pudesse ter o meu estúdio de volta.



A Sra. Sabah esperava no corredor com Zavier preso na coleira.



— Está pronta? — ela perguntou.




— Sim — eu disse. — Não sei como agradecê-la, Sra. Sabah.



— Por favor, pode me chamar de Annie. — Ela pegou a mala da minha mão,
apesar dos meus protestos. — Você ainda está dolorida por causa do bastão
paralisante. Aposto que todos os seus músculos estão gritando. A primeira coisa
que vou fazer é colocar você em uma bela banheira com sal marinho e espuma.



— A senhora não precisa fazer isso.



— Por que não? — ela perguntou.



— Muito obrigada por ter me convidado, Sra. Sabah... Annie.



Ela riu.



— Na verdade, foi Bren que sugeriu isso a Mamadou. Você deveria
agradecer a ele.



Não sabia ao certo como me sentir sobre aquilo.



O apartamento de Bren era a imagem espelhada do meu. Mas, enquanto o
meu era quieto e ainda ecoava uma sensação de vazio, o apartamento de Bren
estava constantemente repleto de barulho, movimento e confusão. Bren era o
mais velho dos três filhos.



Hilary tinha a pele em um tom de marrom dourado e usava os cabelos
presos em trancinhas apertadas. Ela acabara de completar catorze anos e
começaria a estudar no Preparatório Uni no próximo outono. Kayin tinha dez
anos, a pele escura como ébano, pulava como um grilo e estava na fase dos


cavalos. Aparentemente, eu as tinha conhecido quando estava no hospital, na
volta da primeira estase, mas não me lembrava delas de jeito nenhum. Metade do
país, pelo visto, tinha passado pelo meu quarto de hospital durante aqueles dias.
Era impossível lembrar de todos.



Enquanto Zavier era levado para o jardim por Kayin, a Sra. Sabah seguiu
com seu plano de me colocar em uma banheira. Mas não em uma banheira
qualquer. Todas as banheiras do Condomínio Unicórnio eram imensas piscinas
de hidromassagem, e a Sra. Sabah colocou sais de banho, óleos aromáticos e
espuma o suficiente para que eu afundasse na água e me sentisse quase como se
estivesse entrando em estase. Eu quase adormeci, mas alguém enviou Hilary com
um prato cheio de delícias, e percebi que estava faminta. Eu não comia desde o
almoço do dia da minha malfadada tentativa de romance com Bren e, depois
disso, fiquei muito nervosa para fazer mais do que beliscar algumas coisinhas.
Somando tudo, dava mais de vinte e quatro horas, sem contar o tempo em que
permaneci em estase. De certa forma contava, pois, depois que tudo o que houver
em seu organismo for digerido, a estase apenas o impede de precisar de mais.
Tomei o cuidado de comer lentamente, para que a náusea não me abatesse.



Quando saí da banheira, olhei-me no espelho. Nunca fui de passar muito
tempo me olhando. Antes da última estase mais longa, mamãe costumava me
vestir, chegava até a fazê-lo várias vezes ao dia, por isso nunca tive de me
preocupar com minha aparência. Nos últimos tempos, eu estava tão atordoada
devido à fadiga estase e sofrendo com o choque cultural que não desenvolvi o
hábito de me olhar no espelho. Eu me olhava apenas o suficiente para escovar os
dentes e os cabelos, e isso era tudo. Parada ali, no meu pijama de seda, eu me
olhei de verdade.




Não é de admirar que Brendan tenha me comparado a um fantasma. Eu
havia emagrecido muito. Os quase dois meses depois da estase não tinham sido
suficientes para preencher os meus músculos. Minhas bochechas estavam ocas.
Xampus e vitaminas tinham quase restaurado o brilho dos meus cabelos loiros,
do jeito que eu me lembrava deles, mas minha pele ainda estava muito pálida.
Meus olhos me assustaram. As piscinas plácidas castanhas de que eu me
lembrava da minha infância agora não passavam de dois pontos sombrios
escondendo demônios. Engoli em seco, procurei dentro da mala um lápis carvão e
comecei a esboçar o rosto horrendo que olhava para mim. Eu sempre
compreendia melhor as coisas quando as desenhava.



Esse foi o primeiro autorretrato que fiz desde que Bren me salvara. Não
gostei do que vi naquela página. Otto tinha razão. Havia espaços vazios atrás dos
meus olhos.
































15





JANTAR FOI TRANQUILO E AMIGÁVEL. HAVIA UMA REGRA, TODOS TINHAM DE
contar algo sobre o seu dia. O Sr. Sabah reclamou bem-humorado por ter de criar
uma nova fechadura para a porta do subsolo. Hilary tinha alcançado um novo
nível em algum hologame. Kayin tinha começado a ler, pela terceira vez, um livro
muito antigo sobre um pônei chamado Misty. Bren sorriu, dizendo que lutou
contra um inimigo invencível e impiedoso, determinado a me destruir. Kayin riu
até Hilary dizer:



— Não, Kayin, ele está falando a verdade.



Então, foi a minha vez.



— Quem, eu? — perguntei.



— Você está à mesa, é a regra — disse Kayin.



Eu não sabia o que contar. Havia sido atingida por um bastão paralisante,
sofrido um colapso nervoso e contado para alguém sobre Xavier. Ainda sofria por
causa da afeição por um menino que não me queria.



— Hoje eu desenhei um autorretrato — disse, finalmente.



Bren olhou para mim, pensativo.




A Sra. Sabah se manifestou.



— Hoje, eu evitei que o avô de vocês tivesse um aneurisma de tanto gritar
com os policiais. Quem quer sobremesa?



Depois do jantar, assistimos a um filme antigo no holoprojetor. Antigo para
eles, eu nunca tinha visto. Havia sessenta e dois anos de holofilmes dos quais eu
nunca ouvira falar. Eu realmente pensei que aquela poderia ser a primeira boa
notícia que recebia sobre o meu salto de sessenta anos.



Bren mostrou o quarto de Hilary para mim e Zavier depois que o filme
terminou. Eu me sentia estranha, mas meus pais tinham me ensinado a ser uma
hóspede gentil.



— Tive uma noite muito divertida. Obrigada.



— Ótimo — disse Bren.



Eu precisava tirar algo a limpo:



— Sua mãe me disse que a ideia de me convidar foi sua — eu disse. — Você
não precisava ter feito isso.



— Precisava sim. — Bren pareceu sem jeito, mas endireitou os ombros. —
Sabe, eu estava muito bravo com você nesta tarde, porque achava que estava
tentando fazer com que eu me sentisse culpado, e seu plano tinha funcionado.
Fui rude com você, mas não foi de propósito, e tudo o que eu disse nem era
verdade. Bem, é verdade que o vovô me pediu para ficar de olho em você, e


percebi que ele estava certo. Quer dizer, você não conhece ninguém, eu
provavelmente teria tentado ser gentil de qualquer maneira. Além do mais, Otto
queria conhecê-la.



— Ele queria? Desde o começo?



— Sim. Por que acha que ele não olhou para você da primeira vez?



— Pensei que ele fosse tímido.



— Não, ele sabe que deixa as pessoas sem jeito, por isso quis garantir que
você estivesse bem antes de surpreendê-la. Na verdade, ele é muito atrevido e se
diverte assustando as pessoas. Ele não tem muitos amigos, mas não, ele não é
nem um pouco tímido.



— Ah! — Otto não tinha muitos amigos? Se o caso era esse, senti-me
lisonjeada por ele querer escrever para mim. — Hum... você poderia me
emprestar o seu supertablet? Acho que eu deveria dizer a ele que estou bem,
aposto que deve estar preocupado.



— Sim, deve estar. Hilary tem um monitor de parede, você pode falar com
ele de lá. O número de Otto está na rede daqui de casa.



— Obrigada — eu disse, realmente muito agradecida.



— Boa noite. Se Hilary causar algum aborrecimento, diga a ela que vou
contar para o papai e para a mamãe sobre o website que encontrei na tela dela.
— Ele soltou um sorriso malvado.




Dei risada.



Hilary me colocou para dormir no canapé que durante o dia abrigava uma
vasta e antiga coleção de bichinhos de pelúcia, ainda muito queridos para serem
guardados dentro de um baú no subsolo. Ela nem reclamou quando Zavier se
acomodou aos pés de sua cama, e ainda me deu algumas dicas de maquiagem
que, durante a minha ausência, haviam voltado à moda. Quando eu estava no
primeiro ano do ensino médio, maquiagem era considerada coisa do passado.
Experimentei o novo seletor de tons, que me ofereceu uma lista dos cosméticos
perfeitos para o meu tom de pele. A lista tinha meio metro de comprimento.



— Sabe de uma coisa? — eu disse, de repente. Coloquei o seletor de tons
sobre a penteadeira de Hilary. — Acho que não me importo mais com o que está
na moda ou não.



Hilary olhou para mim confusa.



— Passei horas da minha vida ouvindo as pessoas me dizendo o que eu
deveria vestir, pensar e fazer. E isso sempre mudava de um ano para o outro, ou
até em menos tempo. — Sempre, menos para mim, uma vez que eu nunca
passava um ano inteiro sem entrar em estase. Eu sempre estava recomeçando.
Balancei a cabeça ao me lembrar do quanto toda aquela futilidade me dominava.
— Que perda de tempo!



Hilary olhou para o seu rosto moreno dourado no espelho, modificado pela
maquiagem. Seus olhos castanhos escureceram ainda mais. Somente Bren tinha
herdado os olhos esverdeados da mãe.



— Talvez você esteja certa — ela disse. Franziu a testa, pensativa.




Perguntei a ela se poderia usar a sua tela de parede, e ela puxou uma
cadeira para mim.



— É toda sua — ela disse.



Cliquei no número de Otto e ele entrou na linha.



— Olá?



Demorou um bom tempo até que a mensagem voltasse para mim. Dei uma
olhada no relógio, já passava das onze. Ops. Pensei em desistir, mas achei que
Otto merecia saber que eu estava bem.



"Eu a conheço?" - Foi a mensagem que finalmente chegou.



"Sinto muito, é a Rose" — escrevi. — "Estou usando a tela da irmã do Bren.
Desculpe pelo horário. Jamal vai brigar com você?"



"Rose! Você está bem?"



"Acho que sim."



"Você estava em estase, não estava?"



Umedeci os lábios.



"Bren lhe contou?"




"Adivinhei quando você desapareceu. Você usa aquilo como se fosse uma
droga."



"Isso me torna uma pessoa estranha?"



"Você seria estranha de qualquer jeito. Como eu."



"Você acha que isso significa que eu seja atrapalhada ou maluca?"



Houve uma breve pausa antes de Otto escrever:



"Acho que você está enfrentando problemas que ninguém mais
compreende. Mas não. Por mais assustadora que seja a sua mente, tenho certeza
de que você não é maluca. Você é um pouco atrapalhada, mas imagino que sua
vida iria confundir qualquer um. Sinto muito sobre o Bren."



"Ai, ai..." — escrevi. — "C'est la vie."



"Ha, ha" — ele escreveu de volta. — "Que sera, sera."



"Olha" — escrevi. — "Pode ficar difícil entrar em contato com você por
alguns dias, não sei ao certo para onde estou indo."



"Você está indo para algum lugar?"



"Tenho de ir. Aparentemente alguém está tentando me matar."



Uma breve hesitação se seguiu.




"Certo, espero que seja algum tipo de metáfora."



"Não é uma metáfora. Parece que tem um plastine atrás de mim."



"UM PLASTINE?"



"Sim. E tenho a impressão de que isso é muito ruim."



"Pode crer, é ruim! Você já ouviu algumas das histórias de horror que saem
da boca de Wilhelm? Não, é melhor que não tenha ouvido. Pela primeira vez estou
feliz por você não conversar com mais ninguém. Aquelas histórias são o tipo de
preocupação de que você não está precisando no momento."



"Você não está ajudando."



"Acabei de descobrir que uma pessoa de quem gosto muito está na mira da
arma de uma máquina assassina morta-viva! Pensei que estivesse acostumado a
ver meus amigos sob sentença de morte. Acho que não, estou me sentindo
nauseado."



"Sinto muito. Deus, não consigo fazer nada certo!"



"Será que você não vai se preocupar com você mesma pelo menos uma
vez?"



"Não estou certa de que eu saiba como" — escrevi com sinceridade. — "Não
valho muito."




"Diga isso mais uma vez e vou lhe mostrar quem você é, com ou sem
espaços vazios. Você está bem? Ele a feriu? Ou você só ficou sabendo a respeito?"



"Não, eu vi a coisa de verdade. Ele me atingiu com um bastão paralisante."



Eu ia escrever mais, mas Otto me interrompeu.



"Seus nanos foram reativados? Alguém precisa fazer isso."



"Foram."



"Ótimo. Capete! Aquelas coisas MACHUCAM!"



"Como você sabe?"



"Você não vai querer descobrir. Parte disso inclui aquele lance de ética."



"Ah, certo."



"Não que eu possa continuar fingindo que sou um santo por muito mais
tempo. Você está em segurança?"



"Sim, agora estou segura. Estou na casa do Bren, lembra?"



"Ah, ISSO está ficando interessante. Ele mudou de ideia?"



"Não."



Otto não escreveu nada, por isso acrescentei:




"E eu não quero que ele mude."



Uma breve hesitação se seguiu.



"Quer sim."



"Não quero."



"Ele é a única coisa pela qual você mostrou interesse desde que eu a
conheci. Isso não passa assim tão rápido."



"Não passa mesmo" — escrevi. — "Mas estou fingindo que sim."



"Isso é bom."



"O que você quis dizer com 'não pode mais fingir que é um santo'?
Aconteceu alguma coisa?"



"Não. Mas deveria." — Houve uma longa pausa antes de ele escrever: "Você
quase quebrou o meu código de ética, três dias atrás".



"O quê? Como?"



"Quando tentei alcançá-la, naquela tarde, esperava que você ainda
estivesse muito nervosa para se declarar para Bren, que ainda estivesse
debatendo consigo mesma ou criando coragem. E, então, eu teria lhe dito para
não fazê-lo. Quando você não respondeu, soube que já era tarde demais. Aquilo


salvou o meu senso de ética mais arraigado e me senti péssimo por tê-lo mantido.
Queria ter segurado você e lhe contado tudo no pátio."



"Contar o quê?"



"Que Bren diria não. Eu quebrei o meu código de ética duas vezes, a
primeira ao sondar a mente dele para ver se havia algum pensamento oculto que
pudesse indicar um sim, e a outra ao querer lhe contar que não havia. Você é
uma influência corruptora."



"Eu não lhe pediria para fazer isso."



"Eu sei. Mas teria lhe poupado uma dor de cabeça."



"Talvez não. Eu teria me sentido rejeitada do mesmo jeito."



"Sim. Mas eu poderia ter lhe dito de um modo mais delicado. Que droga!"



"Por que você faria isso?"



"Basicamente eu vi tudo através da mente dele. Ele ficou bravo comigo
quando mostrei a minha desaprovação. Acho que ainda estamos estremecidos."



"Meu Deus, estou estragando uma amizade. Não se preocupe com isso, não
foi culpa dele, eu mereci."



"Você provavelmente deve pensar que merece aquele assassino também.
Você realmente se odeia, não é mesmo?"




Eu não sabia o que escrever. Otto era muito bom em ir ao fundo das coisas.



"Não culpe o Bren" — escrevi, mais para mudar de assunto. — "Ele não
entendeu direito. E, aparentemente, está se sentindo culpado."



"Ele deveria mesmo! Capete! Preciso ir, o monitor da noite viu que estou
com a tela ligada."



"Quando eu puder, tento falar com você novamente" — escrevi, mas ele não
respondeu. Acho que o monitor tinha sido apagado.



Desliguei a tela de Hilary.



— O que você estava fazendo? — Hilary me perguntou.



— Só estava escrevendo para um amigo da escola.



— Essa tela tem conexão com telefone celular.



— Ele não fala em celulares — respondi.



— Ah! — Ela se deu conta. — Você estava conversando com o Otto.



—Sim.



Ela franziu a testa.



— Ele é legal? Sei que ele e Bren são amigos, mas ele meio que me dá
nervoso.




Eu a fitei, e meu rosto corou. Mas, em contraste, minha voz soou fria.



— Otto é a pessoa mais legal que conheci desde que saí da estase.



— Desculpa.



Engoli de volta tudo o que eu disse. Otto era estranho, e ela não tinha
insinuado nada; só estava perguntando.



— Está tudo bem.



Apagamos a luz para dormir. Momentos depois, ouvi a voz de Hilary
espreitando na escuridão.



— Como é o ensino médio?



Contraí o cenho no escuro.



— Realmente não sou a pessoa indicada para você perguntar.



— Mas você está no ensino médio.



— Nunca fiquei em uma escola tempo suficiente para saber como é — eu
disse. — Sempre soube apenas como é ser a aluna nova na classe. E isso não é
nada divertido.



— Ah! — exclamou Hilary. — Eu não sabia.




— Não — eu disse. — Mas acho que vai gostar. Tudo o que você precisa é
fazer alguns amigos.



— Espero que eu consiga — ela retrucou.



Pensei no que ela tinha dito.



— Você tem amigos agora?



— Sim, mas nem todos vão para o Uni no ano que vem.



— Tudo bem — falei. — Se você tem amigos agora, conseguirá fazer novas
amizades depois.



— Você fez amigos? — ela perguntou.



— Como eu disse, realmente não sou a pessoa indicada para você
perguntar.




















16





NÃO DORMI BEM. NO MEU SONHO, O PLASTINE PERSEGUIA A MIM E A BREN
PELOS corredores do subsolo. Bren corria na minha frente. Eu não conseguia
alcançá-lo. Corria e corria e corria, mas a sua silhueta morena continuava se
distanciando de mim. E, então, quando ele contornou um canto próximo à
parede, olhou para mim e ele era Xavier.



— Venha, fique perto de mim! — ele gritou, mas eu não conseguia. As
passadas robóticas do plastine arrastavam-se implacavelmente no meu encalço, e
acordei quase gritando para que Xavier esperasse por mim.



Abri os olhos em um ambiente estranho e entrei em pânico até sentir o
peso reconfortante de Zavier em meus pés, e então lembrei-me de que estava no
quarto de Hilary. Meu sono foi inquieto depois disso, acordava ao primeiro sinal
de um sonho. Eu não tinha trazido as minhas pílulas para dormir, mas não sei se
as teria usado, considerando que o plastine, afinal, não era um pesadelo maluco.
Os comentários de Otto sobre o uso de drogas tinham me marcado.



O despertador de Hilary me libertou da cama mais cedo na manhã
seguinte. Eu não esperava Guillory antes das dez, mas levantei-me para tomar o
café da manhã com a família. Bren usou a sua raquete de tênis para me servir
uma barra de amaranto com mel no momento em que pisei na cozinha.




— Segure! — ele avisou, atirando-a com a precisão de um profissional na
minha mão.



Fiquei surpresa, mas consegui apanhar a barra antes que ela caísse no
chão.



— Uau! — disse Hilary, servindo dois copos de suco. — Eu ainda não
consigo pegar nada do que ele me serve.



— A pintura dá precisão às mãos — respondi. — E acho que a fisioterapia
está começando a surtir efeito.



Bren continuou usando a raquete para jogar pedacinhos de barra de
amaranto no ar e apanhá-los com a boca.



— Ah, pare de se exibir! — disse Kayin, marchando pela sala. Ela apanhou
um dos copos de suco de Hilary e desapareceu novamente.



— Ei! — Hilary chamou a atenção da irmã. Kayin nem reagiu. Hilary
encolheu os ombros. — Aquele copo era para você — ela disse, empurrando seu
copo para mim. Ela apanhou outro e o encheu de suco.



O Sr. Sabah se sentou, tomando café enquanto lia o jornal eletrônico. O
aparelho se parecia com um supertablet, só que não era interativo e estava
programado para facilitar a busca por notícias.



— Kayin, peça primeiro! — ele gritou da cozinha.



— Desculpe! — veio uma resposta falsa e abafada do outro cômodo.




Quanto mais tempo eu passava com a família de Bren, mais gostava deles.
Ao contrário de Patty e Barry, a família era genuinamente interessada no bem-
estar, interesses e realizações uns dos outros. Mas, ao contrário dos meus pais,
ninguém ficava em cima, dizendo ao outro o que deveria fazer, o que vestir, como
comer, o que pensar. Isso era... confortável.



Bren tocou no meu ombro quando estava saindo para ir ao treino de tênis.



— Aguente firme. A gente se vê quando tudo isso estiver resolvido.



— Sim — respondi, sentindo-me um pouco desamparada.



— Telefone se precisar conversar — Bren disse.



O apartamento pareceu muito quieto depois que as crianças se foram.
Andei pela sala de estar. Minha pequena mala de viagem já estava pronta e
esperando por mim. Pensei em pegar meu bloco de desenho, mas simplesmente
não estava com vontade de desenhar. Em vez disso, fui até a prateleira que ficava
sobre o holoprojetor e peguei o livro que vira na noite anterior.



O livro era um álbum de fotografias. Acomodei-me no sofá, Zavier subiu e
ficou ao meu lado, deitando a cabeça sobre o meu tornozelo. Uma rápida olhadela
no álbum e percebi que era uma seleção das "melhores fotos" da família,
cuidadosamente escolhidas e organizadas por data. Desejei ter superado por
completo a minha paixão por Bren, mas não tinha. Comecei pelo final, pelas fotos
mais recentes de Bren com sua família.




Sorri. Vi a foto do que devia ter sido o último aniversário de Kayin. Ela
estava abrindo um presente, um imenso cavalo de cerâmica de quase a metade
de sua altura. Bren estava ajudando-a a rasgar o papel.



E lá estava ele outra vez, segurando um troféu de tênis. Seus braços ainda
estavam inflados do jogo, fazendo com que as mangas da camiseta ficassem
estufadas. Os cabelos estavam um pouco úmidos de suor.



Não sei por quantas fotos passei antes de perceber que a Sra. Sabah estava
me observando.



— Sinto muito — eu disse. — Eu estava apenas... olhando... — realmente
não tinha nenhuma desculpa por estar xeretando nas coisas dela.



— Tem uma foto ótima dele, da nossa última viagem à estação de esqui,
dentro de uma piscina aquecida na neve — ela falou, sentando-se ao meu lado e
virando a página. E vi Bren, com seu peito moreno exposto, cercado de vapor, tão
lindo quanto o imaginara em meu estúdio.



Fiquei um pouco sem jeito.



— Está tão na cara assim?



— Não. Todas as garotas que ele traz para casa querem ver esta foto — ela
disse séria. Deu mais uma olhada na imagem e, distraidamente, virou outra
página. — Ele poderia ter uma bela coleção de fãs por causa do tênis, se quisesse.
Mas não parece muito interessado nas garotas. Só pensa no esporte.


Diz que quer ser profissional. O pai não aprova. — Ela tocou em uma foto
de seu marido, com bastões de esqui nas mãos. — Ele quer que o filho trabalhe
na UniCorp depois de se formar.



— A senhora acha que ele irá? — perguntei.



Ela encolheu os ombros.



— Não sei. — Em seguida, virou outra página e lá estava toda a família
reunida, o Sr. e a Sra. Sabah, Bren, Hilary e Kayin à frente, e os pais da Sra.
Sabah ao fundo; seu pai, de cabelos grisalhos, e uma senhora asiática com jeito
amigável e sorriso caloroso (a melhor palavra que encontrei para descrevê-la foi
"graciosa"). Ao lado dela, estava o irmão de Roseanna, com os mesmos olhos
verdes, e duas crianças; os primos de Bren, presumi, apesar de a mãe das
crianças aparentemente não estar na foto. — Meu irmão e eu não passamos de
duas crias da UniCorp. Tivemos ótimas oportunidades lá dentro, por intermédio
do papai, apesar de ele nunca ter se importado muito com o que fazíamos. Nós
apenas seguimos o caminho mais fácil que, nesta cidade, quase sempre conduz
para a UniCorp.



Ela tocou na fotografia do homem de olhos verdes.



— Ted sempre se arrependeu disso — disse. — Depois que a esposa o
deixou, ele levou as crianças para uma viagem pela colônia da Europa. Eles só
voltarão daqui a quatro anos, aproximadamente. — Ela suspirou. — Sempre
questionei se é bom ter algo tão imenso e difuso ditando as regras de nossas
vidas. Não tenho certeza se isso não sufocaria Bren.



— Mas o seu marido acha que é bom para ele?




— Sim. Mas Mamadou lutou para abrir caminho dentro da UniCorp. Ele é
muito dedicado e trabalha duro pelo bem-estar de todos, assim como pela
companhia. Mesmo assim, é uma batalha perdida. Ele nunca foi parte do que
papai costuma chamar ironicamente de "Famílias da Realeza".



— Famílias da Realeza?



— A dele, a de Guillory e os Nikio. E, é claro, a sua agora.



— Nikio?



— Eles são encarregados de quase todas as contas do planeta, você não os
conheceu ainda. Mas essas três famílias estão envolvidas quase desde o início
com a UniCorp. São os filhos de pessoas contratadas por seus pais. Uma vez que
a UniCorp a prende, ela nunca mais a solta. Fica impregnada na sua corrente
sanguínea. — Ela tocou o rosto do irmão.



Fiquei olhando para o homem. Ele tinha uma fisionomia gentil, mas parecia
um pouco perdido. Queria desenhá-lo, ele parecia familiar. Então, percebi que
todos eram. Quando olhei mais de perto, vi Bren refletido nos rostos de todos que
estavam na fotografia. Virei o rosto para longe do papel, como se ele pudesse me
morder, e concentrei-me na Sra. Sabah.



— A senhora não está atrasada para o trabalho?



— Vou esperar por Reggie — ela disse. A campainha tocou. — Falando no
diabo...




Ela me deixou no sofá olhando para o retrato da família de Bren. De
repente, fui tomada por um sentimento de inveja. Queria a família dele! Meu
coração doeu. Fechei o álbum de uma só vez e apanhei a mala, limpando as
lágrimas dos olhos.




















































17





DEIXEI ZAVIER NO MEU APARTAMENTO, NA ESPERANÇA DE QUE PATTY E
BARRY tivessem sido sinceros quando disseram que cuidariam dele. Pelo que já
conhecia deles, provavelmente iam contratar uma babá para o cachorro, mas não
me importei, contanto que ele ficasse bem até a minha volta. Senti-me um pouco
culpada por estar com uma imensa vontade de entrar em estase e deixá-lo para
trás por duas semanas. De algum modo, ficar em estase para mim já não parecia
tão real quanto era viver.



O Sr. Guillory me conduziu até o seu hovercraft, que fazia a minha
limobarca parecer uma canoa. Ele tinha um verdadeiro hover-iate, com assentos
revestidos de pelica azul macia. Finalmente entendi por que Guillory não quis que
eu trouxesse Zavier; ele teria mastigado as almofadas.



Depois que nos acomodamos nos espaçosos assentos e o barco acelerou,
Guillory abriu um pequeno frigobar instalado na lateral e me ofereceu vinho
gelado. Eu não sabia como lhe dizer que meu estômago ainda não estava bem,
por isso acabei aceitando. Se eu bebesse bem devagar, provavelmente não seria
tão ruim.



— Você gostaria de ouvir música ou assistir a um holoprograma? Temos
muitos quilômetros pela frente.




— Música seria ótimo — eu disse. Percebi que Guillory estava tão sem jeito
quanto eu. Ele disparou alguns nomes, mas o único que reconheci foi o de uma
banda sobre a qual eu ouvira o pessoal da escola comentando. Ao final de imensa
lista, ele adicionou:



— Tenho também algumas suítes de violoncelo de Bach.



— Seria ótimo — eu disse, agarrando-me ao conhecido.



Quando os compassos densos e adocicados da música inundaram a cabine,
encolhi-me no assento e desejei ter a cabeça sedosa de Zavier para acariciar. Ou
Xavier para abraçar, como havia tanto tempo eu estava desejando. Olhei pela
janela enquanto a ComUnidade ia ficando para trás, desaparecendo
gradualmente na cinzenta paisagem urbana.



Eu esperava ficar horrorizada. Afinal, sempre ficava quando ia para a
cidade. Mas não demorou muito para que percebesse que a cidade que eu
conhecia estava morta.



Também já não existiam mais as multidões de pessoas apressadas; as
fumaças venenosas e os sons das guerras de gangues que ecoavam aos ventos; as
crianças famintas que se aproximavam da janela quando o trânsito parava,
jogando pedrinhas para chamar a atenção; as empresas de segurança particular
com suas eletroarmas e escudos protetores letais, que capturavam os mendigos e
os empurravam para os becos escuros.



Não pude acreditar no que via.




— Estamos contornando a cidade? — perguntei, convencida de que
estávamos evitando os bairros mais perigosos.



Guillory olhou pela janela.



— Não — disse. — Esta é a cidade.



Suspeitei que houvesse algum tipo de gueto, um campo de concentração.



— Onde ficam os pobres?



Guillory observou as ruas.



— Acho que tem um ali — ele disse, apontando para uma jovem mãe que
estava com seu filho em um carrinho de bebê de segunda mão. Ela era uma
artista de rua e estava tocando um violão velho para as pessoas que passavam.



Fiquei olhando para ela através da janela de vidro escuro do hover-iate, ela
não estava morrendo de fome. Suas roupas eram velhas, mas não estavam
amassadas ou rasgadas. Seja lá qual fosse a sua situação, tivera tempo livre o
suficiente, quando não estava lutando por dinheiro ou comida, para aprender
algo tão luxuoso como a música. O filho segurava um copinho de criança cheio de
suco e parecia estar rindo com a música.



— O senhor está brincando! — eu disse.



— Não. — Ele sorriu para mim. — Tudo parece diferente, não é mesmo?
Depois dos Tempos Sombrios, não restaram muitas pessoas.




— Mas onde estão os seguranças?



— Se ninguém está desesperado, não há motivo para distúrbios. A maioria
das empresas de segurança fechou as portas no final da Reconstrução. — Ele
franziu o cenho. — A UniCorp perdeu muito dinheiro com isso — ele refletiu. —
Ainda bem que éramos diversificados.



Eu o encarei. Como Guillory era capaz de se preocupar apenas com os
lucros que a UniCorp tinha perdido quando as empresas de segurança deixaram
de ser necessárias? Ele era mais jovem do que eu, se levássemos em consideração
a minha data de nascimento. Eu já estava em estase quando Guillory nasceu. E,
mesmo assim, ele já não era mais jovem. Acho que deveria ter uns cinquenta e
poucos anos, o que significava que nascera durante os Tempos Sombrios.
Durante sua infância, ele deve ter visto a mesma miséria e diferenças sociais que
eu vi. O processo de Reconstrução tinha reparado todos os terríveis desníveis
sociais que eu vi como se fosse uma consequência dos fatos durante toda a
minha vida. Eu tinha ouvido sobre aquilo nas aulas de história, mas as palavras
não me pareceram reais até que eu visse. Parecia um milagre que aquilo era o
resultado de um colapso total e absoluto.



Guillory estava usando um terno azul-escuro, que o deixava menos
parecido com uma estátua dourada, mas, mesmo assim, ele ainda me irritava.
Apanhei meu bloco e comecei outro desenho do meu Xavier.



Era surpreendente eu nunca ter me esquecido dele, mas sabia que muito
provavelmente tinha sido por causa da estase. As lembranças dos dias que
antecediam a estase sempre pareciam muito mais vívidas do que as demais. A
estase as mantinha frescas na mente por muito mais tempo do que em uma
situação normal, quando iriam se acomodar no fundo do subconsciente até


ficarem gravadas para sempre. Eu ainda me lembrava da expressão de Xavier
quando disse adeus... por mais que eu não quisesse. Para afastar essa
lembrança, tentei pensar em todas as vezes que ele me envolvera em seus braços,
do quanto era bom despertar da estase e encontrar ele e Ǻsa esperando por mim.



O ano que passei com Xavier, quando eu tinha quinze anos, foi o melhor da
minha vida, apesar de o começo ter sido complicado. Pela primeira vez, fiquei com
medo de entrar em estase.



Uma coisa era despertar, descobrir que meu querido amigo tinha
completado seis anos e eu tinha perdido seu aniversário. Outra coisa era ficar
longe do meu namorado por quatro, seis, nove meses. O tempo nunca me
pareceu tão precioso.



E, pela primeira vez, tive sorte. Todas as vezes que eu saía da estase, nós
tínhamos uma nova criada. Dessa vez não foi diferente. Duas semanas depois de
Xavier e eu termos trocado nosso primeiro beijo, minha mãe contratou Ǻsa.



Ǻsa era sueca. Seus cabelos eram cor de mel, com algumas mechas
grisalhas. Ela era mais um sargento do que uma empregada. Forçava-me a
limpar o meu quarto, algo que nenhuma outra criada tinha feito. Ensinou-me a
lavar a minha roupa, a cozinhar refeições simples, a preencher as inscrições para
a faculdade. Eu achava que era um pouco cedo para aprender tudo aquilo, mas
ela insistiu. Eu achava que meus pais escolheriam a faculdade para mim... como
sempre. Mas ela simplesmente achava que eu precisava aprender as coisas, "só
para garantir". "Só para garantir" era a grande frase de Ǻsa.



Nunca contei para os meus pais sobre como Ǻsa era rígida comigo. Acho
que a teriam demitido, e eu gostava dela. Para mim, Ǻsa parecia muito real.




Algumas semanas depois da chegada da nova empregada, mamãe me
pegou de surpresa pouco antes do jantar.



— Tenho algo para você — ela disse.



— É mesmo? — levantei com um pulo e juntei as mãos educadamente.
Mamãe riu, deu-me um beijo e, então, ergueu as mãos fechadas. — Escolha uma
delas.



Franzi a testa e escolhi a da esquerda. Tinha um caramelo lá dentro. Fiquei
um pouco desapontada, mas peguei mesmo assim.



— Obrigada.



Mamãe riu e abriu a outra mão.



— Uau! — exclamei e, com todo cuidado, peguei a câmera digital que me
estendia. A câmera era do tamanho do meu dedo indicador, pequena o suficiente
para carregá-la dependurada no pescoço, e ela se ajustava automaticamente para
tirar fotos tão nítidas quanto quaisquer outros modelos disponíveis no mercado.



— É para você tirar fotos e usá-las como referência nas suas pinturas.



— Ah, mamãe. Muito obrigada! — eu lhe dei um abraço apertado e ela
acariciou meus cabelos.



— Vá procurar uma correntinha na caixinha de joias. Acho que aquela de
prata quadradinha vai ficar melhor. Depois vá se trocar para o jantar. Vista azul-


royal esta noite; acho que, nesta estação, você tem dois vestidos dessa cor. Pode
escolher um deles.



— Obrigada.



— A propósito, você deveria saber — ela disse enquanto eu seguia para o
meu quarto. — Vamos fazer uma viagem a negócios no fim do mês.



Parei.



— Ah! — eu disse. Voltei-me para ela, segurando firme a minha câmera. —
Vocês precisam mesmo?



— Sim, querida. Você quer ir para o seu tubo hoje à noite, ou prefere
esperar até o dia da nossa partida?



— Eu gostaria de esperar, mamãe — respondi.



Mamãe franziu a testa.



— Tem certeza? Estaremos muito ocupados nos próximos dias, fazendo as
malas, arrumando tudo.



— Quanto tempo vocês vão ficar fora?



— Somente um ou dois meses. Não precisa se preocupar.



Engoli em seco.




— Certo — eu disse.



Mais tarde, só belisquei a comida.



Depois do jantar, encontrei Xavier no jardim principal. Caí em seus braços
e ele me envolveu sem falar nada. Depois de alguns minutos, ele me deu um beijo
na testa.



— O que aconteceu, Rose?



— Mamãe e papai vão viajar — contei. — Outra vez.



Xavier me puxou de volta, assustado.



— Mas só faz três semanas que eles viajaram!



— Sei disso — eu falei. Não era justo. — Você vai esperar por mim?



Os olhos de Xavier se encheram de dor.



— Eu sempre vou esperar por você... Mas...



— Eu sei — falei, e a minha voz refletiu a dor de meus olhos.



— Quanto tempo?



— Eles disseram que será apenas um ou dois meses.




— Isso foi o que eles disseram da última vez e acabaram demorando mais
de sete.



Torci o nariz.



— Eu voltarei — disse. — Prometo.



— Sei que você vai voltar. Sei que vai. — Ele cobriu meu rosto de beijos até
que meus joelhos desabassem e eu derretesse em seus braços. — Vou sentir
saudade de você! — ele sibilou. — Droga! — ele me abraçou tão apertado que
quase me machucou. — Isso não é justo!



— É para o meu bem — eu disse, mais para mim do que para ele.



— Isso é o que você sempre diz. — Ele deslizou os dedos entre os meus
cabelos. — Você não percebe que é diferente agora?



— Claro que percebo! — Afastei-me dele. — Você acha que eu quero ficar
para trás?



— É você quem está me deixando para trás — Xavier observou. — Você não
pode pedir para eles deixarem você acordada? Já está com quase dezesseis anos,
não seria justo lhe darem um pouco de liberdade?



— Não — respondi. — Não tenho idade suficiente para ficar sozinha. Eles
sabem disso.



Os ombros de Xavier penderam.




— Eu poderia pedir para os meus pais deixarem você ficar conosco.



— Seus pais nunca permitiriam — eu disse. — Eles nunca iriam contra o
meu pai.



Isso era verdade. Eles trabalhavam para a UniCorp, assim como todos que
moravam na ComUnidade. Papai era o rei do lugar.



Xavier jogou a cabeça para o lado, como se estivesse tentando encontrar
uma solução.



— Você não poderia pedir para eles a levarem junto? Nós poderíamos
conversar pela internet. Isso seria melhor do que... do que...



— Eu sei — respondi. — Mas não há nada que eu possa fazer. Nós ainda
temos alguns dias antes de eles partirem. Não podemos simplesmente aproveitar?



Xavier cerrou os punhos.



— Peça para eles. Por favor, só peça para eles!



Eu não queria pedir para eles. Parecia errado questioná-los. Mas por
Xavier...



— Vou tentar — prometi.



— É claro que você não pode vir conosco, querida — disse mamãe quando
tentei, na noite seguinte. — Estaremos trabalhando o dia todo. Você vai ficar
sozinha.




— Eu sei — disse. — Mas eu poderia, sabe, aprender sobre a empresa, para
quando eu crescer. E...



Papai riu.



— Você não vai ter de se preocupar com isso, pequena. Continue brincando
com as suas tintas.



— Mas eu... — Eu sabia que não daria certo. Mas por Xavier, eu era capaz
de tentar qualquer coisa. — Acho que sou grande o bastante para cuidar de mim
mesma, eu poderia ficar aqui. Vocês poderiam contratar um tutor ou...



Mamãe me encarou como se tivesse me açoitado.



— Você quer ficar aqui sozinha? O que está pensando? Você é uma criança!
Mark, coloque algum juízo na cabeça da sua filha!



— Ouça a sua mãe — disse papai, sem olhar para mim.



— Mas papai...



Ele se virou para me encarar.



— Você acabou de dizer "mas" para mim?



— Não, senhor — eu disse, com os olhos voltados para o chão.



Meu pai estava bravo.




— Não me contradiga na minha própria casa, ouviu? Já aguento o
suficiente no trabalho. Espero ser obedecido na minha casa.



— Sim, senhor.



Um pesado silêncio seguiu-se enquanto papai olhava para a minha cabeça
abaixada.



— Assim é bem melhor — ele disse, fazendo um afago nos meus cabelos. —
Agora, peça desculpas para a sua mãe.



Voltei meu olhar para ela.



— Sinto muito, mamãe.



— Está tudo bem, querida — ela disse, envolvendo-me em um abraço
apertado. — Acho que você está um pouco agitada. Vá para o seu quarto e
arrume tudo. Acho que deveríamos colocar você em estase esta noite.



— Hoje? — tentei esconder o choque da minha voz quando olhei para ela.



— Você não acha que está muito agitada? — ela perguntou, olhando no
fundo dos meus olhos. Seus olhos azuis brilhavam preocupados.



Pensei a respeito. Eu me sentia agitada e infeliz. Ela provavelmente estava
certa.



— Sim, mamãe.




— Boa menina — disse, beijando meu rosto. — Eu sabia que tomaria a
decisão certa. Vou pedir um belo jantar para nós antes de você se deitar. Lagosta
ou codorna?



— Codorna, por favor — respondi, forçando um sorriso.



— Claro, querida. O que você quiser.



O que eu queria era ficar com Xavier, mas não ousei pedir outra vez.



Fui para o meu quarto, arrumei a cama e verifiquei se toda a roupa suja
estava separada para que Ǻsa pudesse cuidar de tudo por mim enquanto eu
estivesse em estase. Então, arrumei minhas tintas para que tudo ficasse certinho
e pronto para quando eu voltasse. Contraí as sobrancelhas, olhando para a
pintura a óleo que eu começara, era a paisagem de uma montanha tortuosa
reluzindo sob um céu noturno. Parecia uma paisagem alienígena, não fosse pela
vegetação que tinha começado a pintar, que parecia mais aquática do que
terrestre. Eu estava muito orgulhosa, mas sabia que provavelmente acabaria me
esquecendo da visão que tinha tido para o quadro depois que saísse da estase.
Minhas obras sempre evoluíam um pouco durante longos períodos de estase.



Xavier também evoluiria mais do que eu. Talvez ele voltasse para aquela
garota chamada Claire, ou talvez encontrasse outra pessoa. Lágrimas escorreram
por meu rosto e tentei forçá-las de volta. Mamãe e papai não podiam ver que eu
havia chorado. Eles estavam certos, eu era muito teimosa. Muito emotiva com
pequenas coisas.




Ǻsa abriu a porta do meu quarto com a cesta de roupa limpa embaixo do
braço.



— Desculpe, senhorita — ela disse com uma leve mesura. — Pensei que
estivesse com o seu namorado.



Xavier! Ele não sabia que eu entraria em estase naquela noite! Corri para o
bloco de desenho mais próximo e escrevi uma carta o mais rápido que pude.



— Ǻsa, preciso que você faça algo por mim! — pedi.



— O quê?



— Preciso que você entregue este bilhete para Xavier, amanhã. Você
poderia fazer isso?



— Claro que sim, senhorita. Mas você não pode entregar pessoalmente?



— Não, vou entrar em estase hoje à noite.



— Estase? Mas por quê?



— Mamãe e papai vão viajar a negócios — eu disse. — Por favor, apenas
entregue isso para Xavier.



Ǻsa olhou surpresa para mim durante alguns segundos e, então,
concordou. Assinei a carta: "Com amor, Rose", e arranquei a folha do bloco.
Dobrei o papel e entreguei a ela.




— Por que estase? — Ǻsa perguntou. Ela ainda não estava familiarizada
com as dinâmicas da nossa casa.



Suspirei, descontente.



— É difícil explicar.



A fisionomia de Ǻsa endureceu de repente.



— Ja, flicka — ela disse. — Farei o que você está pedindo.



Depois do nosso jantar de despedida, papai me deu um forte abraço antes
de mamãe me levar para o meu enorme closet, onde guardávamos o tubo de
estase. Ela me ajudou a entrar no aparelho e me deu um beijo.



— Estou muito orgulhosa de você. Você sabe disso, não é mesmo querida?
No fim, você sempre toma a decisão certa.



— Obrigada, mamãe — eu disse. — Amo você.



— Eu também a amo. Nós nos veremos dentro de alguns meses.



— Boa viagem.



— Boa noite.



— Boa noite.




A música começou, e pude sentir o perfume adocicado da estase química
enquanto a tampa lentamente se fechava sobre mim. Mamãe estava certa. Era a
decisão certa.



Tentei não pensar em Xavier.



* * *



A princípio, mantive os olhos fechados e tentei me prender ao meu sonho
estase, que envolvia velejar sobre uma brilhante superfície de lava derretida. A
lava, que supostamente seria quente, estava confortável como um banho
relaxante. Alguém segurou a minha mão delicadamente e fiquei surpresa. Mamãe
costumava me chacoalhar até que eu saísse do sonho e da estase. A calma
presença me despertou mais rápido do que os cutucões da mamãe. Para minha
surpresa, quando abri os olhos, o rosto que sorria para mim não era o de mamãe.



— Xavier?



Ele abriu um sorriso tão largo quanto a porta de uma igreja.



— Como você entrou aqui?



Ele inclinou a cabeça para trás e eu vi Ǻsa parada junto à porta.



— Bom dia, senhorita.



— O que está acontecendo? — perguntei, e a resposta fez com que eu me
sentisse alegre e culpada ao mesmo tempo.




Ǻsa entregara o bilhete a Xavier e perguntara a ele por que eu ia ser
colocada em estase. Xavier contou a verdade para ela, que meus pais
costumavam me colocar em estase regularmente. Quando ele admitiu que me
conhecia desde que eu tinha sete anos, Ǻsa não disse nada. Mas, na manhã em
que meus pais partiram, ela bateu na porta do apartamento de Xavier e
perguntou se ele sabia como funcionava o tubo de estase. Xavier era um hacker
talentoso e, em poucas horas, descobriu um modo de alterar o cronômetro do
meu tubo de estase para que o aparelho continuasse lendo que eu ainda estava lá
dentro.



Ǻsa decidira que ela podia tomar conta de mim enquanto meus pais
estavam fora. Eu poderia continuar indo para a escola, vivendo a minha vida, e
ficar com Xavier. Meus pais não veriam meus registros acadêmicos, e as escolas
não reclamam quando o aluno aparece — mas apenas quando o aluno não
aparece. Mamãe e papai nunca iriam ficar sabendo. No dia anterior à volta de
meus pais, eu voltaria para a estase e, graças às habilidades de Xavier, ninguém
perceberia. Quando perguntei para Ǻsa por que ela estava fazendo isso, ela disse
apenas que não cabia a ela discutir com os meus pais, mas que tinha sido
instruída para cuidar da casa da melhor maneira possível enquanto eles
estivessem ausentes.



Senti-me culpada por estar enganando meus pais daquela forma. Não fosse
por Xavier, eu teria pedido para me colocarem em estase novamente e esperado
obediente pelo retorno deles. Mas lá estava Xavier, e eu não podia abrir mão
daquela oportunidade.



Foi assim que começou o melhor ano da minha vida. Meus pais, de fato,
retornaram dois meses depois. Voltei alegremente para a estase e, oito horas
depois, estávamos tomando o meu café da manhã com champanhe.




Um mês e meio depois, quando meus pais partiram novamente, fui para a
estase sem reclamar. E, quando eles voltaram duas semanas depois, não faziam
ideia de que eu passara aquele tempo vivendo a minha vida. Aquilo se repetiu
várias vezes durante o ano todo. Eu teria perdido meu aniversário de dezesseis
anos, não fosse por Ǻsa e Xavier. Os dois fizeram uma festa particular para mim,
e Ǻsa cantou o "parabéns a você" em sueco. Pela primeira vez, vi as estações do
ano mudarem, do verão para o outono, para o inverno, e de volta para a
primavera.



Na primeira noite límpida de primavera, Xavier e eu sentamos no jardim,
enrolados em um cobertor, observando a lua se erguendo sobre o jardim.



— Eu realmente amo isso — sussurrei.



— Eu realmente amo você — Xavier sussurrou ao meu ouvido, fazendo com
que eu sentisse um calafrio percorrendo a minha espinha. — Estou tão feliz
porque não vou perdê-la novamente — ele disse, com um beijo sobre a minha
têmpora. — E novamente, e novamente. — Cada vez que ele dizia isso, me beijava
em um lugar diferente. — Cada vez é como se você tivesse morrido.



Olhei para seu rosto pálido à luz do luar.



— É essa a sensação que você tem?



— Sofro todas as vezes — ele disse. — Sempre tenho medo de nunca mais
ver você.




Estremeci, um resquício do inverno que morria nos cercava. Mas os braços
de Xavier me mantiveram aquecida.



— Isso não vai acontecer — garanti a ele.



— Como você sabe? — Xavier perguntou. — Você teria perdido sete dos
últimos dez meses e, se não fosse por Ǻsa, ainda estaria com quinze anos.



— E você teria me deixado para trás outra vez — sussurrei.



— É você quem sempre me deixa para trás.



— Até hoje eu tenho... esperado por você. Mas agora você foi longe demais.
Estou começando a ficar para trás.



Xavier tocou meus cabelos e olhou no fundo dos meus olhos.



— Você acha que deveríamos contar para alguém?



— Contar o que para alguém?



— Quanto tempo foi deixada em estase. Isso não deve ser bom para você.



— Sou muito tensa, preciso de um refresco de vez em quando.



Xavier zombou.



— Acho que seus pais colocariam em estase qualquer filho que tivessem,
fosse ele tenso ou não. Nunca. vi você agindo de um modo que não fosse dócil e


submisso. — Ele beijou toda a minha testa. — Você é quase divina de tão
angelical que é.



— Isso é porque sei que posso fugir de tudo, se precisar — eu disse.



— Estou inclinado a pensar que se trata de um feliz acidente de caráter —
Xavier disse. Então, suspirou e se afastou um pouco de mim. — Ou talvez não
seja tanta sorte assim. Talvez, se você não fosse tão obediente, não permitiria que
eles a mantivessem criança.



Afastei-me.



— Não coloque as coisas dessa maneira! — eu disse. — Além do mais, se eu
não tivesse sido colocada em estase, nós nunca poderíamos ter ficado juntos.



Ele sorriu, deslizando os dedos sobre as minhas sobrancelhas.



— Sete anos não é uma diferença de idade tão grande assim — falou.



Eu não disse nada, mas comecei a fazer cálculos. De acordo com a minha
certidão de nascimento, eu deveria estar com trinta e oito anos. Devo ter perdido
muitos mais anos do que imaginava, durante a minha infância. Mamãe e papai
não me pareciam tão velhos. Mas eles tinham feito muitas viagens
interplanetárias. Tinham passado muito tempo em estase também. Olhei para
Xavier. Se eu nunca tivesse sido colocada em estase, estaria com vinte e dois
anos quando ele nasceu. Eu poderia ser sua mãe.



Essa ideia fez com que me sentisse desconfortável. Eu o puxei para mais
perto.




— Amo você — sussurrei.



— Eu também amo você, Rose — ele disse. — Para sempre.



Para sempre. Fiquei imaginando se o espírito dele ainda olhava por mim, do
lugar para onde o espírito dos mortos vai. Será que ele ainda me amava?



Fiz os últimos retoques do meu último desenho de Xavier. Provavelmente
era um modo mórbido e obsessivo de passar o tempo, mas serviu para desviar a
minha mente de Bren e Guillory e do assassino que estava à minha procura.
Xavier ainda era a minha pedra de salvação, ao menos na minha mente.



Nunca perguntei para onde estávamos indo, mas, no meio da tarde, o
hover-iate de Guillory deslizava sobre o oceano rumo ao sul. O iate tinha de tudo.
Como se fosse um mágico, ele fez surgir um almoço com caviar logo após o
meio-dia. Até me perguntou se eu queria tomar um banho no pequeno e elegante
banheiro, que acabei recusando. Em vez disso, concentrei-me em meus retratos
de Xavier. Eu tinha resolvido encher aquele bloco com uma sequência de retratos
dele, desde bebê. Eu acabara de fazer o retrato de Xavier com doze anos quando
Guillory se ergueu, olhando pela janela.



Ele passou a maior parte da viagem falando ao celular com a secretária ou
trabalhando no supertablet. Agora, quando o sol estava começando a tornar o céu
dourado, ele se despediu da secretária, desligou o telefone e apontou para fora.



— Chegamos — ele disse.




Eu achava que ele fosse me levar para uma ilha particular, mas não
esperava tamanha extravagância. Estávamos rapidamente nos aproximando de
uma praia deserta.



— Para onde estamos indo?



— Tenho uma suíte incógnita neste hotel — Guillory explicou. — É muito
útil quando quero escapar por alguns dias. A maioria das pessoas daqui me
conhece como Sr. Jance, por isso, me chame de Reggie e não de Guillory, por
favor.



O hover-iate foi puxado para dentro de uma baía que ficava na linha
costeira, em vez de uma simples garagem de barcos. Contornando toda a linha
costeira da ilha havia uma imensa faixa magnética. Nenhum barco tinha
autorização para se aproximar. Aquilo me pareceu estranho. Sem mencionar que
era caro. As faixas magnéticas não eram nada baratas.



— Onde estamos?



— Nirvana — Guillory respondeu.



— Como?



— Ah, desculpe, como você poderia saber? — Guillory soltou a usa irritante
risada camarada. — A UniCorp criou uma série de ilhas artificiais ao norte... ah,
eu tinha me esquecido. Mas isso não importa. Este lugar é realmente muito lindo.
Eles removeram areia do fundo do oceano e construíram este pequeno
arquipélago. Quando você olha do alto, as ilhas formam o logotipo da UniCorp. O
nome desta ilha é Nirvana, e ela forma a cabeça e o chifre do unicórnio. As praias


ao longo do pescoço são maravilhosas. Somente a elite pode pagar por uma suíte
aqui.



Fiquei um pouco confusa.



— Ilhas artificiais? — não era uma ideia nova, mas todas as tentativas
anteriores no início do segundo milênio tinham dado muito errado, criando zonas
mortas e estagnadas no oceano, que resultaram em restingas estéreis e
venenosas e não em resorts de luxo. — O que há de errado com os resorts nas
ilhas naturais?



— Este lugar é considerado muito seguro. Estamos na parte mais segura do
oceano. Praticamente não há nenhum risco de furacões ou terremotos. E como
não há nativos, não roubamos a terra de ninguém.



Ele disse aquilo como se fosse uma virtude, e talvez fosse. Mas se eu havia
entendido corretamente, a população do mundo já tinha sido reduzida
substancialmente. Portanto, investir uma vasta quantia dos recursos financeiros
do planeta em resorts em um arquipélago artificial no meio do oceano em vez de
alavancar a economia de alguma ilha tropical, ou melhor, fazê-lo sem desperdiçar
os resorts que já existiam, pareceu-me um modo um tanto egoísta de cuidar do
planeta. As aulas de história que eu frequentara com Bren dedicavam uma
unidade inteira à economia da Reconstrução, e isso era contrário ao que
aprendemos. Sem mencionar a devastação que tal projeto deve ter causado ao
fundo do mar. Será que eles imaginavam quantas plantas e animais tinham sido
mortos impensadamente só para remover a areia? Só porque a UniCorp tinha
uma imensa quantia de dinheiro, de repente, a ecologia do oceano já não
importava mais?




Mas o que eu sabia?



Mais uma vez eu estava impressionada com todo o poderio da UniCorp. Ela
era dona de pessoas e colônias e até mesmo a Terra teve de se moldar aos seus
caprichos. O que mais a UniCorp estava tentando moldar? Pensei em Otto e
estremeci.



Carregadores surgiram do nada e levaram a minha mala. Respirei fundo e
segui-os rumo ao resort.



O Sr. Guillory nos registrou e tivemos de gravar nossas retinas para que as
portas pudessem se abrir. O nome do Sr. Guillory apareceu como Sr. Jance
quando sua retina passou pelo escâner e, na minha vez, ele me registrou como
Rose Sayer. Esperei que isso fosse o suficiente para que o assassino não
encontrasse meu paradeiro.



* * *



A constante verificação on-line detectou algo. Dessa vez, não foi o nome que
chamou a sua atenção; foi a verificação da retina que despontou em cores
brilhantes em seus processadores plastificados. O nome ligado à retina estava
incorreto, mas seu programa era flexível o suficiente para acreditar em um erro
humano.



ALVO IDENTIFICADO: COMBINAÇÃO DE RETINA CONFIRMADA, ROSE
SAMANTHA FITZROY.



LOCALIZAÇÃO RECONHECIDA: NIRVANA.




DIRETIVA: RETORNAR ALVO AO PRINCÍPIO.



Ele buscou pela localização das ilhas Unicórnio e tentou acessar meios
para conseguir chegar lá. Isso não seria fácil. Finalmente, constatou que teria de
comandar um dos novos veículos, cujas especificações estavam disponíveis na
rede. Enquanto uma das partes de seu processador cuidava disso, outra
executava a conhecida rotina de buscar pelo princípio na rede.



VERIFICAÇÃO... VERIFICAÇÃO... VERIFICAÇÃO... VERIFICAÇÃO...



PRINCÍPIO INDISPONÍVEL.



DIRETIVA SECUNDÁRIA REINSTALADA: EXTERMINAR ALVO.



INICIAR.



Seus processadores previram que poderia demorar aproximadamente dez
horas para chegar às ilhas Unicórnio se conseguisse encontrar rapidamente um
hovercraft. Ele estava com sorte. Um veículo atingiu-o assim que colocou os pés
na rua.



Ele foi derrubado pelo peso do barco, mas o motorista conseguiu manter o
controle, desacelerou e virou, batendo de um lado para o outro na estrada como
se fosse uma bola de tênis. Ele calculou o tempo de inércia da máquina e ficou
parado logo atrás, agarrando-se a ela para que parasse. A força cinética fez com
que o veículo girasse até parar. Uns vinte veículos acabaram se chocando atrás
daquele que ele tinha parado.




Ele arrancou a porta do barco e jogou-a, com um estalo, na estrada. O
condutor se encolheu dentro do veículo.



— Minha diretiva requer um meio de transporte — ele anunciou. — Vou
comandar este veículo. — E entrou sem mais preâmbulos.



O plastine ignorou o ocupante apavorado enquanto este saía pela porta
aberta. Não havia motivo para exterminar uma pessoa que não tentara impedi-lo.


























18





O CELULAR DO SR. GUILLORY TOCOU NO MOMENTO EM QUE ENTRAMOS NO
QUARTO do hotel.



— Reggie — ele disse ao atender.



— Sr. Guillory, pensei que o senhor fosse gostar da notícia — disse a voz
que reconheci como a da secretária dele. Guillory conversara com ela durante a
tarde toda. — Eles localizaram o plastine. Estou enviando a imagem da notícia
para sua tela agora.



— Que maravilha! — Guillory disse e abriu a tela.



Coloquei-me atrás dele para ver. A imagem holográfica saiu um pouco
distorcida e estranha na tela plana, mostrando meu agressor de plástico
brilhante pulando no meio de uma estrada. Enquanto os hovercrafts atrás do
plastine batiam de um lado para o outro entre as guias magnéticas de pedestre,
como se fossem discos sobre uma mesa de hóquei, o plastine arrancou a porta de
um barco que já estava todo batido e foi embora dirigindo do o veículo. Outra
cena, filmada de um ângulo distinto, mostrava o ocupante do barco cair na
estrada, rolar e continuar deitado, enquanto meia dúzia de hovercrafts passavam
por cima de sua cabeça sem causar nenhum ferimento.




Então, a cena mudou. Eu não conseguia ouvir a voz do repórter, mas
alguém estava entrevistando o homem, que tinha um arranhão no rosto causado
pela queda em alta velocidade na estrada.



A secretária do Sr. Guillory continuou.



— A polícia disse que está muito difícil rastrear o plastine, pois parece que
ele conseguiu desativar o link do barco com o satélite, mas disseram que devem
prendê-lo dentro de uma hora.



— Obrigado, Stella. Mantenha-nos informados. — Ele se voltou para mim.
— Viu? Eu disse que tudo daria certo.



Respirei fundo. Ao menos agora eu tinha certeza de que a coisa existia.
Guillory tocou na tela para ver que horas eram.



— Tem um ótimo restaurante a céu aberto, logo abaixo da base do chifre —
ele disse. — Gostaria de me acompanhar?



Balancei a cabeça.



— Eu não conseguiria comer — falei.



— Fique à vontade. Esta suíte é toda nossa. O seu quarto fica naquele
corredor, o meu é logo ali. Você pode ouvir música ou ligar a holovisão no volume
que quiser. Todos os quartos possuem isolamento acústico. Se precisar de
alguma coisa, não hesite em ligar para o serviço de quarto. Você tem o número do
meu celular?




Assenti, e Guillory me deixou com os meus equipamentos.



Senti-me desconfortável. Já estivera em suítes como aquela, normalmente
quando ia a algum baile de caridade com minha mãe. Eu sempre era exibida
naqueles bailes, mais como um acessório do que como uma pessoa. Da mesma
forma que Guillory me lembrava uma estátua de ouro, a suíte parecia uma
caixinha de joias. O lugar perfeito para guardar aquela estátua dourada. Suspirei
e fui procurar o banheiro.



Uma vez que o banho de banheira tinha me feito tão bem na noite anterior,
resolvi preparar outro naquele opulento banheiro e mergulhei na água pura e
importada. Eu sabia que a procedência da água não faria nenhuma diferença,
mas tudo aquilo pareceu falso para mim, como desenhar uma imagem em
computador em vez de usar pincel e tinta. Depois do banho, vesti um uniforme
limpo, deixando a mala e tudo o mais no banheiro.



Fui para a sala de estar da suíte à procura do meu supertablet. Ainda não
eram dez horas, mas Otto devia estar preocupado. Então me lembrei de que não
trouxera meu supertablet. Eu até poderia usar o de Guillory, mas ele não tinha
me oferecido, e eu não iria mexer na tela de alguém sem permissão. Havia tantas
coisas para contar a Otto. Principalmente os acontecimentos de hoje. Fiquei à toa
pensando se a secretária de Guillory já tinha telefonado para confirmar a captura
do plastine. Quem sabe eu não poderia voltar para casa amanhã? Eu realmente
queria conversar com Otto. Ele acharia este lugar hilário. A UniCorp brincando
de Deus com suas ilhas artificiais e suas pessoas artificiais. Pensei na Dra. Bija
também, será que Guillory ou alguém tinha se dado ao trabalho de avisá-la onde
eu estava? Fiquei com receio de perder a minha próxima sessão. Otto, a Dra.
Bija, Zavier, meu estúdio... eu não tinha me dado conta até aquele momento, mas


realmente havia criado algo parecido com uma vida. E agora estava preocupada:
e se o agressor tivesse a intenção de me fazer perder essa nova vida?



Não sabia se ligava ou não a holovisão que estava no canto, e decidi não
ligar. Dei uma olhada no relógio. Abri a janela que dava para a sacada, e o som
do mar invadiu meu corpo. Apesar de ser dourada e luxuosa, a sala era bem
confortável. Encolhi-me sobre um divã com o meu bloco de desenho, mas logo
comecei a cochilar. Com certo alívio, adormeci ao som das ondas lá de fora.



Meu descanso foi interrompido. O Sr. Guillory entrou barulhento na sala.



— Rose! Estou feliz que você ainda esteja acordada!



Pisquei com a visão turva. Estava muito escuro lá fora, com aquela
luminosidade característica que vem acompanhada de um cheiro no ar em algum
momento depois da meia-noite.



Guillory tinha trocado o terno azul por um marrom amarelado, obviamente
era a sua ideia de um traje mais descontraído. Ele deu uma olhada para o pátio
vazio, lá embaixo, por um momento antes de deslizar as portas de vidro, calando
o som das ondas artificiais. Em seguida, rumou na direção do bar e se serviu de
uma bebida.



— Estava com receio de que você já tivesse ido se deitar.



— Acabei dormindo aqui — murmurei, tentando pensar em um modo de
dizer: "Eu realmente deveria ir para o meu quarto, agora".




— Bom, bom — Guillory disse, sem me dar ouvidos. Ele se virou,
segurando o copo e puxou uma das poltronas douradas para um pouco mais
perto do meu divã. Em seguida, largou-se pesado sobre a poltrona. Em seu terno
marrom, sobre a poltrona dourada e com o copo cheio de um líquido âmbar na
mão, ele parecia a estátua egípcia de um faraó, um semideus, contemplando o
seu domínio. O gelo dentro do copo reluziu como se fosse um diamante.



— Então, Rose. Sabe, estive pensando. Foi uma tremenda surpresa quando
você ingressou na nossa pequena família da UniCorp. Ou melhor, reingressou.
Quando nos encontramos pela primeira vez, pensei que a tivesse conhecido de
verdade. Pensei que eu tinha entendido você, mas percebi que não. Eu apenas
criei uma imagem de você. Você não é nada parecida com seus pais, é?



Sentei-me um pouco melhor e abracei meu bloco.



— Não sei.



— Bem, eu sei — Guillory disse com um sorriso. — Estou administrando a
empresa deles, afinal. Um belo legado, isso sim. Você sabe que Jackie gostava de
se dedicar à caridade. Bailes e coisas do tipo.



— Sim, eu sei — disse, perguntando-me por que ele tinha chamado a
mamãe de Jackie. — Nós costumávamos sair para comprar vestidos que
combinassem, e ela me levava para bailes de gala de caridade, jantares,
campeonatos de pôquer.



— Isso deve ter sido muito divertido — Guillory comentou. — Devia chamar
muita atenção, duas lindas mulheres andando como se fossem um par de vasos.


Sua mãe era uma mulher muito bonita, na sua época. Vi as fotos. Você se parece
muito com ela.



Engoli em seco. A conversa estava me deixando desconfortável.



— Obrigada — sussurrei.



— Não é para menos que ela se casou com o seu pai, hein? O homem mais
poderoso do mundo.



— Não sei nada sobre isso — eu disse.



— Não mesmo — Guillory disse. Em seguida se inclinou para frente como
se fosse me contar um segredo. — Esqueça o que os outros dizem. Esqueça os
governantes eleitos, os líderes mundiais e os ícones religiosos. Eles estão indo
bem, obrigado, mas o poder... o verdadeiro poder está com pessoas como você e
eu.



Eu não tinha certeza se tinha ficado feliz por ele ter me incluído naquela
sentença.



— O seu pai sabia o que estava fazendo — Guillory continuou, recostando-
se de volta na poltrona. Ele tomou um gole da bebida. — Pense sobre isso.
Diversificar a empresa de modo que se uma das seções quebrar, as outras podem
compensar as perdas. Quer dizer, no começo eles tinham a NeoFusion, mas
depois eles simplesmente tinham um dedo em tudo. Selecionaram um grupo de
pessoas notáveis para administrar tudo. Essas pessoas compõem a verdadeira
nobreza do mundo, escreva as minhas palavras. E que belo legado eles deixaram:
a empresa, as colônias, a ComUnidade, a escola de vocês.




Aquele pensamento pareceu desviá-lo do caminho. Ele tomou outro gole.



— Mas me conte sobre a escola. Quando a coloquei no Preparatório Uni
minha intenção era de que você ficasse cercada das melhores pessoas. O que você
está achando?



As melhores pessoas?



— Hum... bom, eu acho.



— Estive dando uma olhada em suas notas — ele disse.



Arregalei os olhos. Meus boletins estavam indo para ele? Nem eu os tinha
visto ainda! Ele tinha acesso aos meus boletins escolares! Se ele tinha acesso aos
boletins, será que também tinha acesso aos arquivos da Dra. Bija? As notas da
escola não deveriam ser divulgadas somente para mim e meus guardiões? No
caso, Barry e Patty?



Nem tive tempo de me aborrecer muito com isso, porque ele continuou:



— Não fiquei nem um pouco impressionado. Estive pensando se não existe
um lugar melhor para você. — Ele franziu o cenho. — Você já considerou a ideia
de um colégio interno?



— Eu-eu pensei que o Preparatório Uni fosse um colégio interno — disse
apavorada. Eu nunca tinha estudado em um colégio interno, mas as poucas
vezes que perguntei aos meus pais sobre como eram essas escolas, eles só me
contaram histórias de horror; sobre como as crianças apanhavam dos professores


e passavam fome, e eram sexualmente molestadas pelos outros alunos, e como as
crianças ricas frequentemente eram sequestradas e mantidas como reféns. Eles
podiam cuidar de mim muito melhor do que qualquer colégio interno. Agora que
tinham partido, Guillory ia me mandar embora?



— Talvez — ele respondeu, olhando para a sua bebida. Não havia mais
nada dentro do copo além do gelo. Ele se levantou e foi até o bar para se servir de
mais. — Ainda é muito cedo para pensar em mudar você de escola — ele disse. —
Você só despertou há, quanto tempo, dois meses?



Ele não podia me mandar para longe. Eu iria melhorar as minhas notas.
Iria estudar com afinco. Engoli em seco quando ele se sentou na poltrona.



— Sabe, Rose, eu me lembro de quando era criança e meus pais
costumavam me perguntar quais eram meus sonhos e aspirações.



Franzi a testa. Onde essa conversa ia terminar?



— Você tem sonhos e aspirações?



— Hum... — eu não sabia o que dizer. Naquele momento, o meu maior
sonho era dormir uma noite inteira sem ter um pesadelo. Meu maior desejo era
deixar de ser perseguida pelo corpo reanimado de um soldado determinado a me
exterminar. Assim como também aspirava cair fora dessa conversa, mas não via
como fazê-lo. — Eu tinha alguns — eu disse. — Mas o mundo mudou muito.



— Sim! — Guillory falou, erguendo o copo como se estivesse brindando. —
Com certeza mudou. — Ele baixou os olhos para o copo, franziu a testa e
subitamente se deu conta de que cometera uma gafe. — Sinto muito por seus


pais, querida — ele disse, abaixando o copo. Eu estava prestes a agradecer
quando ele continuou: — Mas no fim das contas, convenhamos. Você não está se
divertindo mais agora?



Olhei para ele, horrorizada. Meu mundo tinha desmoronado e ele achava
que eu estava me divertindo?



— Quer dizer, quando eu era criança, seria capaz de dar o meu braço
esquerdo em troca de não ser mais supervisionado o tempo todo. Poder fazer o
que quisesse. Mas não, eu tinha meus pais de olho em mim o tempo todo. Não
tinha nem outros irmãos para aliviar a pressão sobre as minhas costas. Você
tinha irmãos ou irmãs?



— Não — sussurrei.



— Eu também não. Fui filho único, assim como o meu filho. Só tenho um
filho. O Hank. Eu sempre quis ter uma filha — ele disse.



Não entendi se ele estava dizendo se queria ou não ter tido o filho. Ele
tomou outro gole da bebida e inclinou a cabeça para mim.



— Hank está na faculdade. Eu gostaria muito que você conhecesse o meu
garoto. Ele virá para casa passar os feriados de fim de ano. Daremos uma festa e
então vocês poderão se encontrar. — Então, ele falou em um tom de voz meio
provocativo. — Nunca se sabe o que pode acontecer.



Não consegui conter um tremor.




Ele se levantou e caminhou de volta ao bar. Eu não havia notado que ele
secara outro copo. Quantas doses ele tinha bebido? Aquela era a terceira, pelo
menos, e, com certeza, já tinha bebido um pouco antes de me acordar. Guillory
colocou mais gelo dentro de outro copo e serviu uma dose.



— Você gostaria de tomar um pouco? — perguntou, estendendo o copo para
mim.



— Não.



Ele encolheu os ombros e virou o conteúdo em seu próprio copo.



— Falando nos seus pais — ele disse. Nós não estávamos falando neles. —
Sabe, no fim da vida, seu pai estava muito confuso. Ele simplesmente não
conseguia mais lutar. Provavelmente foi até bom ter partido. Se tivesse
continuado, teria deixado tudo em uma tremenda desordem. E, pelo menos, ele
não foi sozinho! Os dois foram juntos, deixando a empresa em boas mãos. — Ele
mexia o copo enquanto continuava em pé lá no bar, e eu me senti completamente
encurralada. Eu estava tentando encontrar uma desculpa para sair dali quando
ele disse: — Os Tempos Sombrios e tudo o mais. Provavelmente tudo aquilo que
aconteceu foi a melhor coisa para todo mundo.



Meu corpo parecia se esvair, de puro choque. O sangue sumiu do meu
rosto. Tudo o que conseguia fazer era olhar para ele. Como tinha coragem de
dizer aquilo? Como pôde falar que a morte de mais da metade da população do
planeta fora a melhor coisa para todo mundo?



— Eu sempre pensei assim — ele continuou, como se notasse o meu horror
e estivesse defendendo a sua posição. Ele tomou um bom gole antes de voltar


para a poltrona. Quase tropeçou no caminho, quando seu pé enroscou no tapete,
mas conseguiu se firmar e caiu pesado sobre a poltrona de veludo dourado. — Foi
incrível o que seu pai fez. Manter a empresa intacta como ele conseguiu. Você
sabe, com tantas pessoas partindo. O número de funcionários da UniCorp que
morreram durante os Tempos Sombrios foi tão grande que nem tivemos de
demitir muito. Ao contrário de outras empresas. Não que nós não tivéssemos tido
os nossos próprios Tempos Sombrios também. A empresa teve seus altos e
baixos, como eu lhe disse. Perdemos muito dinheiro aqui e ali. Dez anos atrás
ocorreu uma grande perda em ações e tivemos de demitir muitos funcionários.
Perdemos muitas pessoas boas. Eu estava trabalhando tanto que quase perdi a
minha esposa também.



Eu não queria ter ouvido isso. Eu não queria ter ouvido isso.



— Mas encontrei uma amiguinha no escritório que me ajudou muito — ele
continuou obstinado. — Ela é a trabalhadora mais esforçada que conheço, sabe?
E faz com que eu me sinta jovem novamente.



Corei. Essa era uma informação da qual eu não precisava, que eu não
queria, e que gostaria de esquecer. O que eu faria com tal informação? Aquilo não
era da minha conta!



— Eu me sinto quase tão jovem quanto você — ele prosseguiu, e eu fiquei
vermelha outra vez. — Sabe de uma coisa, vamos ter de arrumar um namorado
para você. O que está rolando entre você e aquele seu colega, Sabah? Qual é o
nome dele?



Eu não queria abrir a boca, mas fiquei com medo de não dizer o nome e a
conversa tomar um rumo ainda pior.




— Bren — sussurrei.



— Isso mesmo! Bren! Um bom menino, o Bren. Já ganhei dele no tênis
algumas vezes.



Desconfiei que fosse mentira, a menos que tivesse jogado com Bren quando
ele tinha apenas oito anos.



— A mãe e o pai dele são bons funcionários. Gosto do Sabah, ele tem
classe. Mas os opostos se atraem, sabe, sei que foi por isso que o Sabah se casou
com a Annie. — O que havia de oposto entre Annie e o Sr. Sabah? — Polos
opostos se atraem, quer você queira ou não. É preciso tomar muito cuidado com
as suas companhias. Nunca aprovei a amizade de Bren com aquele garoto da
Europa.



Não. Por favor, não traga Otto para esta conversa!



— Eu simplesmente não entendo — ele disse. Sua voz estava ficando
pastosa. — Todos me dizem que aquele garoto é tão inteligente, com toda aquela
história de bolsa de estudos e testes e tudo o mais, mas eu não vejo isso. Eles só
estão tentando aprimorar as diversidades ou qualquer coisa assim. Os relatórios
sobre ele são bons, mas, para mim, ele não passa de um zumbi. Não sabe nem
falar!



Não me surpreendi que Otto nunca tenha desejado tocar em Guillory,
mesmo quando teve oportunidade. Depois de tocar naquela mente, qualquer
pessoa precisaria de uma lavagem cerebral. Fiquei imaginando se não era por


isso que Otto frequentava o consultório da Dra. Bija; não por causa de seus
próprios problemas, mas por causa dos problemas das outras pessoas.



— Eles deveriam simplesmente aceitar que o garoto só vegeta e não há
nada que se possa fazer a respeito. — Ele balançou a cabeça e tomou outro gole
da bebida. — Acho que deveríamos simplesmente desistir daquele experimento
fracassado.



Ele estava dizendo o que eu entendi que estava dizendo? O sangue sumiu
do meu rosto outra vez e voltei a ser a rosa branca. Desistir? Isso significa o quê?
Matá-lo? Meus punhos cerraram de horror e raiva, eu não sabia ao certo por qual
dos dois. Eu deveria ter aceitado a bebida que ele ofereceu, para que pudesse
jogá-la na cara dele. Sentia a minha pele tentando se desgrudar de mim, supus
que ela estivesse tentando ficar longe daquela odiosa criatura dourada que estava
à minha frente.



Ele me encarou, sua visão estava desfocada.



— Você é uma garota muito engraçadinha, sabe — ele disse. — Uma garota
muito engraçadinha. — Ah, Deus! Ele não estava prestes a... me agarrar ou algo
do tipo, estava? Tentei me lembrar de onde eu havia deixado o meu celular.
Droga, estava no banheiro! Guillory balançava a cabeça. — É realmente uma
pena o que vai acontecer com você.



Inclinei a cabeça.



— O que... — minhas palavras se transformaram em um mero sussurro de
horror. — O que você está dizendo?




Naquele momento, descobri.



A porta se abriu, mas não assustou Guillory nem um pouquinho.



— Rose Samantha Fitzroy. Por favor, permaneça parada para identificação
de retina.



— Você! — gritei horrorizada para Guillory. Ele ergueu a cabeça e olhou
para mim, mas não consegui decifrar seus olhos bêbados. Tudo fez sentido. De
todas as pessoas do mundo que pudessem querer me matar, Guillory estava no
topo da lista. De que outra maneira o plastine poderia saber onde eu estava?



Recuei, segurando com força meu bloco de desenho como se ele fosse um
salva-vidas. Eu não podia correr. Meu corpo ainda não tinha se recuperado
ataque do dia anterior. Não havia ninguém para quem eu pudesse gritar pedindo
ajuda. Guillory não iria me ajudar, e o quarto do hotel possuía isolamento
acústico. Busquei pelos ensinamentos de meus pais. Corra, grite, lute. Escolhi a
terceira opção.



O plastine não tinha mais o bastão paralisante, mas ainda carregava o
colar controlador na mão esquerda. Ele queria me pegar com a mão direita.
Segurei-o pelo pulso, e torci. Abaixei, inclinei-me sobre seu braço, virando-o, e
dei-lhe uma cotovelada na lateral do corpo, para imobilizá-lo e, assim, ter uma
chance de escapar. Ou pelo menos esse era o plano. Em vez disso, acertei
costelas dele e quase quebrei meu braço. A dor subiu para o meu ombro antes
que todo o braço adormecesse de uma maneira agonizante. Achei que tivesse
estragado alguma parte do meu corpo para sempre e gritei de dor.




Enquanto isso, minha cabeça zumbia. A maldita coisa parecia de aço. Mas
me lembrei do que acontecera no meu estúdio. Troque a tática de defesa pela de
evasão, embora eu soubesse que não conseguiria continuar com aquilo por muito
mais tempo.



Dancei atrás do plastine, abaixei-me e me contorci, tentando ser
escorregadia como uma enguia. Eu já estava perdendo o fôlego. Mas estava tão
empenhada em me livrar do plastine que nem me lembrei que Guillory estava
atrás de mim. Ele tropeçou em mim e quase me derrubou. Fiquei surpresa que
ele não tenha gritado: "venha pegá-la!". Em vez disso, apenas arregalou os olhos.
Talvez não fosse sua intenção presenciar a minha morte. Maldito covarde.



O plastine voltou-se para mim, acertou-me com as costas da mão para me
derrubar. Tombei com o golpe, em vez de lutar, e bati a cabeça contra a de
Guillory. Ele agarrou meu braço e tentou me puxar, mas não conseguiu. Estava
usando sandálias, então, pisei com toda força em seu pé. Ele gemeu soltando
meu braço; com um coice, acertei meu calcanhar por entre as pernas dele. Ele
finalmente caiu, gemendo de dor.



Derrubei Guillory bem no momento em que o plastine acabava de recuperar
o equilíbrio depois do golpe que desferira em mim. O morto-vivo estava diante de
mim novamente, com o colar controlador prontinho. Eu me torci, girei para trás
dele e dei-lhe um chute no traseiro. Foi como chutar uma estátua, mas, como
uma estátua, ele também poderia cair. O plastine tombou como uma árvore na
floresta, e caiu bem em cima de Guillory.



Essa foi a minha chance, corri a toda velocidade para a porta.




Um dos elevadores acabava de abrir as portas. Pulei dentro e apertei o
botão do térreo.



— Para baixo, para baixo! — falei para a coisa, caso funcionasse com
comando de voz. A essa altura eu tinha certeza de que o plastine trabalhava
sozinho, mas ainda assim fiquei aliviada quando o elevador abriu as portas para
o saguão e lá só estavam um dos porteiros e o recepcionista. A menos que
Guillory tivesse comprado a todos e os funcionários do hotel também estivessem
trabalhando para ele. Mas ninguém tentou me impedir quando saí correndo pelo
luxuoso saguão rumo à inebriante noite tropical.



Capete! E agora? Eu não tinha ideia para onde ir. Não tinha dinheiro, meus
créditos estavam depositados no meu celular, que não podia me ajudar, pois
ainda estava no banheiro, lá em cima, junto com o assassino e seu mandante! O
que eu tinha? Nada! Estava, graças a Deus, com o uniforme da escola e não de
pijama, mas isso era tudo. Meus bens se resumiam ao meu corpo alquebrado e
as roupas que vestia. Olhei para as minhas mãos e, de repente, sorri.



Eu ainda estava com o meu bloco de desenho.


















19





— BREN? — CHAMEI.



Usei minha última moeda em uma holocabine. A holocabine estava suja
com substâncias desagradáveis escorrendo pelas paredes. Eu queria tanto estar
com o meu celular!



O telefone tocou sete vezes antes de Bren tatear em busca dele no seu
criado-mudo. Seu rosto meio adormecido, ainda sobre o travesseiro, surgiu na
lateral da holocabine. Ele parecia sonolento e vulnerável, como um menininho.



— Rose? — ele murmurou, ainda meio dormindo. — Rose, já é quase meia-
noite e eu tenho aula amanhã. O que aconteceu?



— Sinto muito — eu disse. — Só cinco minutos e então você pode voltar a
dormir.



Bren piscou uma ou duas vezes e se sentou. O celular se ajustou e
endireitou a sua holoimagem.



— O que foi?



— Preciso que você envie a minha limobarca para vir me buscar. Poderia
fazer isso? Depois, pode voltar para a cama.




— O quê?



— Preciso que você me mande a minha limobarca. Ela está lá embaixo, na
garagem. Sei que você tem a chave da garagem. Eu não tranquei com os códigos,
tudo o que você precisa fazer é dizer para ela onde eu estou e ela virá até aqui.



— Para onde você precisa ir?



— Estou na estação de ônibus-barcas, preciso que ela venha até aqui me
buscar.



— O que você está fazendo na estação ônibus-barcas?



Tentar explicar a minha situação para um garoto semi acordado foi bem
mais difícil do que eu tinha imaginado.



— Comprei uma passagem e voltei sozinha para casa — eu disse. As
palavras saíram triunfantes. Embora isso tivesse me custado a ingenuidade e um
dia inteiro, consegui pegar o caminho de volta sozinha.



A artista de rua que eu tinha visto quando estava a caminho de Nirvana me
deu uma ideia. Contando uma história sobre um tio esquisito que eu queria
evitar, consegui uma carona na balsa que fazia a travessia de Nirvana para uma
das ilhas Unicórnio mais comerciais, que se chamava Shangri-la. Havia turistas e
viajantes por todos os lados, mesmo depois da meia-noite. Eu me instalei do lado
de fora da estação de ônibus-barcas, fiz um cartaz e comecei a desenhar. Depois
de passar uma hora expondo os meus retratos, consegui a primeira cliente. Ela
me pagou para que eu desenhasse seu namorado. As pessoas pagariam muito


por um bom desenho para levarem como lembrança, especialmente em um
paraíso turístico como as ilhas Unicórnio. Mais três retratos e consegui ganhar o
valor de uma passagem de volta para a ComUnidade e uma refeição gordurosa
que dei um jeito de segurar no estômago.



Estava imensamente orgulhosa de mim mesma. Mamãe e papai sempre me
diziam que eu não era capaz de tomar conta de mim mesma, que, se fosse
deixada por conta própria, estaria completamente perdida. Talvez isso fosse
verdade naquela época, mas eu já não me sentia perdida agora. Sem nenhum
recurso, fui capaz de, quase que literalmente, trilhar meu caminho pelo mundo.



Finalmente, consegui fazer Bren entender o que eu queria, e ele me disse
que dentro de meia hora a limobarca chegaria. Agradeci e, em seguida, retomei
meu caminhar nervoso em meio às sombras da noite.



Estava em dúvida quanto às sombras. Elas certamente dificultavam que
alguém me visse, mas isso também significava que, se o assassino me atacasse,
ninguém poderia ver também. Não que isso fizesse alguma diferença para aquele
morto plastificado. Discrição definitivamente não constava na sua programação.
Fiquei surpresa por ele ter conseguido fugir da polícia. Mas é claro que agora eu
sabia quem o tinha ajudado escapar.



O plastine não era meu único temor. Ganhar o dinheiro para voltar para
casa tinha sido muito divertido, mas, na metade do caminho de volta, comecei a
me sentir deprimida. Nunca nenhum dos funcionários da UniCorp entrara na
ComUnidade em um ônibus-barca. As únicas pessoas que compartilhavam os
assentos comigo eram as famílias da classe trabalhadora, os criados, os garçons,
o tipo de gente que servia gente como eu. Não que eu não gostasse deles. Na
verdade, eles me pareceram consideravelmente mais autênticos do que qualquer


um dos altos escalões. Eles eram como Ǻsa. Mas foi quando me sentei lá, com o
uniforme do Preparatório Uni, que me dei conta de como eles deviam estar me
vendo. Como uma sanguessuga. Eu provavelmente parecia tão odiosa para eles
quanto Guillory parecia para mim, mesmo antes da noite passada.



Finalmente, avistei o reluzente perfil preto da minha limobarca perto do
meio-fio. Pisei sobre a faixa vermelha listrada de alerta para pedestres e abri a
porta. Planejava dizer para o barco rodar em círculos pela ComUnidade até que
eu descobrisse o que fazer. Mas meu plano foi frustrado.



— Agora você vai me contar exatamente o que está acontecendo? — Bren
perguntou, assim que eu enfiei a cabeça para dentro.



— O que você está fazendo aqui?



— Você acha que vou deixá-la andando sozinha no meio da noite? Minha
mãe me mataria. — Ele tomou o bloco de desenho das minhas mãos como se
fosse seu e colocou-o no assento ao seu lado.



— Ela não vai matá-lo por ter saído sem avisar? — perguntei.



— Provavelmente. Por isso é melhor que valha a pena. O que está
acontecendo? O que houve com o programa secreto de proteção às testemunhas
de Guillory?



Respirei fundo.



— Guillory me levou para Xanadu. Ou... Nirvana, seja lá como se chama o
lugar. A UniCorpr ealmente gastou tanto dinheiro naquela extravagância?




Bren mexeu a cabeça de um lado para o outro em sinal de desprezo.



— Enquanto estávamos lá, o plastine apareceu.



— O quê?! — Bren me encarou. — Outra vez? Mas vocês estavam
incógnitos!



Suspirei.



— Acho que alguém contou para ele onde me encontrar.



— Como você escapou?



— Eu o distraí. Tentei lutar. Quase quebrei meu cotovelo. Corri. Em
seguida, trabalhei com o meu bloco de desenho para conseguir voltar, tentando
me manter fora de vista de qualquer um que fosse da UniCorp.



Bren ficou horrorizado.



— Agora basta. — Ele sacou o celular de baixo da camiseta.



— O que você está fazendo?



— Vou telefonar para Guillory e depois para a polícia.



— Por que você está fazendo isso?



— Porque presumo que você não o tenha feito. Estou certo?




Ele estava.



— Você acabou de permitir que coisas terríveis acontecessem com você e
não contou nada para ninguém. Você não reclamou, no primeiro dia de aula,
quando foi torturada pela aula de história, você não contou ao Barry e a Patty
sobre a primeira tentativa de assassinato e você também não contou para
ninguém sobre o Barry e a Patty.



— Do que você está falando?



— Estou falando que aqueles dois são os pretextos mais mercenários de
pseudo pais que já colocaram na face da Terra, e eu não ouvi uma palavra de
reclamação sua sobre isso.



— Eles são bons — eu disse timidamente.



— Eles são bons porque deixam você sozinha, eu acho — Bren disse. —
Estou telefonando para Guillory.



— Não faça isso!



Ele me encarou, sua fisionomia estava rija.



— Diga por que não.



— Não conte para ele onde eu estou! Não conte para ninguém!



Bren franziu as sobrancelhas.




— Rose, você não pode lidar com essa situação sozinha.



— Sim, eu posso! Não ligue! Por favor, por favor, não telefone para o
Guillory!



— Por que não? — Bren berrou. — Diga! Seja qual for o segredo que você
está escondendo de mim, diga!



Pisquei. Por que eu estava guardando um segredo? Por que eu estava
protegendo Guillory? Eu não o conhecia. Era quase como se aquilo fosse um
hábito. Simplesmente parecia a coisa certa a ser feita, como se eu tivesse
guardado outros segredos como esse antes.



Eu ainda estava confusa por causa de tudo isso quando Bren murmurou.



— Dane-se — ele ergueu o celular novamente. — Guill...



Coloquei a minha mão sobre o celular.



— Acho que foi Guillory quem armou tudo isso para mim — falei.



Bren hesitou e, então, lentamente abaixou o celular.



— Por quê?



Engoli em seco, sem vontade de dar voz às minhas suspeitas. Além do
mais, eu não tinha certeza se ele estava perguntando por que eu achava aquilo,
ou por que Guillory queria aquilo.




— Eu não duvidaria muito se ele fizesse isso — Bren refletiu —, mas não é
muito o estilo dele.



— O que você quer dizer?



— Estou falando de quando ele manteve você em segredo no hospital,
aquele sim é mais o estilo dele. Quando ele contratou Barry e Patty, que
trabalhavam para ele na Flórida, para serem seus guardiões, isso sim é o estilo
dele. Ele está mais para... um verme, do que para uma cobra. Ele é capaz de
mentir, corromper e manipular, talvez até mesmo roubar para conseguir o que
quer, mas... assassinar? — ele piscou. — Não creio. Acho que essa é uma barreira
que ele não ultrapassaria.



— Não acho que ele tenha qualquer barreira — eu disse. — Ele quer matar
Otto. Disse que deveríamos desistir de todo aquele experimento fracassado.



Bren grunhiu de ódio.



— Idiota maldito! — Então, ele olhou para mim e pareceu entender tudo. —
Ele estava bêbado?



Assenti.



Bren suspirou.



— Sim, Guillory se transforma no maior idiota do mundo quando fica
bêbado. O que acontece quase todas as noites. Acho que eu deveria ter lhe
avisado.




— Bren — eu disse. — Não foi apenas isso. Ele parecia saber que o plastine
estava chegando e não tentou impedi-lo, ou telefonou para a segurança, ou algo
assim. Ele apenas ficou lá, sentado. Em seguida, tentou me derrubar, para que o
plastine pudesse me pegar. Para ele, eu sou como Otto. Um erro que nunca
deveria ter acontecido. Se eu não tivesse aparecido, ele não teria de se preocupar
em perder a empresa.



— Esse é um bom motivo — Bren bateu os dedos sobre o seu joelho. — Se
ele armou tudo para programar um plastine, deve existir algum registro disso nos
seus computadores.



— Será que tem alguma coisa lá? — perguntei. — Ele tinha um pseudônimo
em Nirvana.



— Os gastos precisam ser registrados, ou ele teria sido preso por sonegação
de impostos — Bren me contou. — Custa muito caro a montagem, o envio e a
programação de um plastine. Para conseguir armar tudo isso, com o tempo que
ele teve desde que você saiu da estase, ele deve ter usado dinheiro da empresa.
Qualquer pseudônimo que tenha usado deve ter sido filtrado pelo sistema da
UniCorp — ele refletiu. — Meu avô saberia.



— Você acha? — perguntei.



— Sim, ele só continua lá por causa do Guillory. Poderia ter o cargo de
Reggie se quisesse, mas não acho que gostaria. Ele sabe tudo sobre aquela
empresa.



Engoli em seco.




— Mas se Guillory está tentando me matar... — eu não queria dizer isso. —
Não pode ser possível que o seu avô e Guillory estejam... agindo em conjunto?



Bren ergueu a cabeça e me encarou.



— Se ele estivesse, mamãe e eu mandaríamos prendê-los nós mesmos. Não,
vovô tem princípios. Além do mais, duvido que ele se importe o suficiente com
você para odiá-la. O estilo do vovô é mais "deixe as águas rolarem".



Não era essa a imagem que o senhor carrancudo e bravo tinha me passado,
pelo pouco que vira dele, mas acho que Bren o conhecia melhor.



— Certo — eu disse. — O que vamos fazer então?



Bren olhou para o relógio. Era uma hora da manhã.



— Vovô provavelmente ainda está no escritório, vou telefonar para ele —
disse.



— Não diga o meu nome — alertei. — Meu nome pode aparecer, caso haja
um identificador de voz que verifique as ligações telefônicas e, se o plastine
estiver conectado ao sistema da UniCorp, ele poderá me encontrar.



— Bem pensado — Bren disse. — Você é inteligente.



— Não muito. Papai costumava fazer isso quando eu era criança —
respondi. — Ele ficava de orelha em pé para ouvir as fofocas sobre todo tipo de
coisas, tinha dúzias de palavras-chave.




Bren abriu o celular outra vez.



— Vovô — ele disse.



O aparelho chamou algumas vezes e, então, a carranca de cabelos grisalhos
surgiu no colo de Bren.



— O que aconteceu, Bren? Já é tarde.



Podia ser tarde, mas a cabeça no holograma não parecia estar com sono.
Deu para ver o colarinho do terno ao redor do pescoço. Bren estava certo, o avô
ainda estava acordado. Era um viciado em trabalho. Assim como papai.



— Estou com um problema sério, vovô. Nós podemos ir até aí para falar
com o senhor?



— Nós?



— Sim, estou com uma velha amiga — ele disse, enfatizando a palavra
"amiga" para indicar que provavelmente não se tratava de Anastásia ou Nabiki. —
Ela está em apuros.



O holograma permaneceu parado por tanto tempo que desconfiei que
tivesse ocorrido uma falha na conexão.



— Estarei em meu escritório — ele finalmente disse, e a imagem do
holograma desapareceu.




Bren assentiu.



— Certo. Vamos virar esta coisa. — Ele se inclinou para frente e tocou no
painel de controle da limobarca, ativando o controle de localização. — Edifício
Uni, por favor.



Minha limobarca diminuiu a velocidade, contornou lentamente, e seguiu de
volta para o centro da ComUnidade.



— Devemos chegar lá dentro de vinte minutos — Bren me informou



Eu tinha me distraído enquanto Bren se inclinara para frente para mexer
no painel de controle. Ele estava usando uma camiseta de tênis, provavelmente
estava dormindo com ela, uma vez que a roupa parecia um pouco amassada. As
mangas eram curtas, e os músculos de seus braços ondulavam como água.
Capete, como eles costumavam dizer agora. Como ele podia estar tão lindo depois
de ter acabado de acordar? Ele recostou de volta e o silêncio se impôs sobre nós.
O silêncio foi ficando cada vez mais pesado e pesado, até o ruído de nossa
respiração parecer estranho.



Droga. Eu havia estragado tudo. Eu e a minha paixonite tínhamos acabado
com a amizade que surgira entre nós desde que comecei a frequentar a escola.
Era sempre ele o mais falante, falava sobre tênis, seus amigos, a escola, mas a
minha paixão tinha matado uma parte de sua alegria, e era justamente essa
parte que ele compartilhava comigo.



— Você deve me odiar — eu disse.



Bren olhou para mim, mais surpreso do que qualquer outra coisa.




— Por que você está dizendo isso?



— Tudo o que faço é causar confusão para você — falei. — No momento que
nos conhecemos, eu desmaiei aos seus pés. Atraí todos aqueles repórteres para a
sua vida. Fico rondando você na escola como se fosse um albatroz e, então,
resolvi me apaixonar por você. Sabe, só para martelar o último prego do caixão
que tem sido o seu fardo.



Bren riu.



— Na verdade, gosto de você, Rose.



Então, percebi o que acabara de dizer.



— Sinto muito, eu não estava em busca de um elogio. Estava tentando me
desculpar.



— Eu sei — Bren disse. — Você não pede por elogios, ou atenção, ou
aprovação. Nem mesmo por um copo d' água, eu acho. — Bren suspirou. — Sabe,
quando vovô me pediu para ficar de olho em você, fiquei petrificado. Pensei:
"agora vou ter de lidar com um tipo de princesa acostumada a fazer tudo seu
jeito, todos os dias de sua vida." Pensei que você realmente fosse ficar me
rodeando como um albatroz. Pensei que você fosse arrogante e... orgulhosa. Mas
você não era. Não é. Fiquei surpreso por ter acabado gostando de você.



Fiquei confusa.



— Você gosta?




— Sim. Você é muito melhor do que eu podia esperar de alguém na sua
posição. Quer dizer, veja o modo como você trata o Otto. Nunca vi ninguém fazer
amizade com ele tão rápido. Você é simpática e gentil, e compreensiva, e bonita, e
você... é uma pessoa agradável de se estar junto.



Uma emoção irritante tomou conta de mim quando ele disse que eu era
bonita. De onde tinha vindo tudo aquilo?



— Você não é muito engraçada, mas isso é querer demais. Em vez disso, é
uma pessoa fácil. Você é... uma pessoa muito relaxante, é fácil passar o tempo ao
seu lado. — Ele encolheu os ombros. — Isso me surpreendeu.



Eu deveria ter deixado para lá. Deveria ter segurado a minha língua, mas
não pude evitar. O impulso perverso da minha paixão simplesmente teve de girar
a faca.



— Então por quê...? - Respirei fundo e engoli em seco. — Não estou
tentando fazê-lo mudar de ideia, ou qualquer coisa do tipo, mas se tudo o que
disse é verdade, então... por que não? — terminei sem completar. Eu sabia que
estava intensamente ruborizada quando terminei de falar, mas precisava saber.



— Por que não quis namorar você? — Bren perguntou.



Assenti com um gesto, incapaz de falar.



— Bem, em primeiro lugar, você me pegou de surpresa. Desde então, tenho
pensado sobre isso. — Ele suspirou. — É difícil explicar.




— Apenas... não rolou, ou...?



— Não é isso. — Ele balançou a cabeça. — Você não vai querer ouvir isso.



— Acho que vou — sussurrei.



Ele hesitou, então, disse:



— Certo. O negócio é... O negócio é o seguinte: sei que tenho comigo isso de
dar tudo de mim para a pessoa por quem eu me apaixono. E você é uma pessoa
muito fácil de se apaixonar. Mas isso é parte do problema. — Ele olhou para mim,
então, e eu engoli em seco enquanto ele examinava meu rosto. — Olho para
você... e tenho certa noção do que Otto vê quando toca em você. Espaços vazios.
Ou pior. Um abismo impenetrável dentro de sua alma.



As palavras foram dolorosas, mas eu nunca percebera que Bren tinha o
coração de um poeta.



— Pelo menos foi assim que ele colocou.



Ah! Era Otto quem tinha o coração de poeta. Certo, isso eu tinha percebido.



— Sei que eu poderia. Que eu poderia gostar de você, cuidar de você de
verdade. Mas se eu o fizesse, simplesmente sei que iria me atirar cada vez mais
dentro desse abismo e nunca conseguiria preenchê-lo. Rose, você simplesmente
precisa de muito mais do que tenho para lhe oferecer. Há tanta dor que eu sei
que nunca poderia curar, mas iria querer fazê-lo. Eu acabaria secando e
murchando muito antes de conseguir fazer com que você melhorasse. E, no fim,
seria pior para nós dois.




Suspirei. Ele estava certo. O que eu sentia por ele não era amor de verdade,
não passava de um mero desejo. Era uma necessidade. E não era como se eu
precisasse dele, eu simplesmente estava precisando de algo. Qualquer coisa. De
tudo.



De tudo o que eu tinha perdido.



— Sinto muito por ter colocado você nessa posição — eu disse.



— Pare de pedir desculpas por estar viva — Bren falou. — É como se você
pensasse que nem deveria ter nascido. — Ele balançou a cabeça. — Você tem
todo o direito de se apaixonar por quem quiser. Você não fez nada de errado
desde que eu a conheci. Nada do que aconteceu é culpa sua, Rose.



Mas isso era. Eu era culpada por existir.



Chegamos ao Edifício Uni um pouco depois disso.



O Edifício Uni era um maciço arranha-céu de monólito, projetado no
mesmo estilo art déco, pré-milênio, do Edifício Chrysler. Quase todos os que
moravam na ComUnidade tinham um membro da família que trabalhava naquele
edifício, ou ao menos prestava algum tipo de serviço. O edifício se erguia sozinho,
imponente, sobre um parque gramado, e eu sempre pensei que parecia um pouco
tolo. No entanto, espaço era artigo de luxo antes dos Tempos Sombrios e, por
isso, era muito mais fácil conseguir permissão para construir um arranha-céu do
que um mega complexo descentralizado e disperso que, por sinal, acabou sendo a
alternativa da UnrCorp quando eles precisaram expandir os negócios. Mas o
arranha-céu tinha certo prestígio.




Bren bateu na porta de neovidro à prova de foguetes. Do outro lado do
amplo saguão de mármore um segurança com cara de entediado olhou por cima
da sua bancada mal iluminada e cheia de monitores de segurança. Ele sorriu
quando viu Bren.



— Veio visitar o seu avô? — perguntou enquanto abria a porta.



— Sim, ele está esperando por nós.



— Encoste seu olho no identificador de retina ao passar. — disse o
segurança. Como se pudéssemos evitá-lo. O identificador de retina registrava
automaticamente todo mundo que entrasse ou saísse do prédio.







ALVO IDENTIFICADO: COMBINAÇÃO DE RETINA CONFIRMADA, ROSE
SAMANTHA FITZROY



Ele ficou aguçado. Achava que tinha perdido seu alvo para sempre.



LOCALIZAÇÃO RECONHECIDA: EDIFÍCIO UNI.



Ele reiniciou a sua dancinha pela rede em busca do princípio e novamente
restabeleceu a diretiva secundária quando o princípio não foi encontrado. O
barco que usara para chegar à ilha provavelmente fora apreendido pela polícia,
mas a sua mente plastificada tinha se tornado mais flexível com o uso. Agora ele
sabia que poderia usar um novo hover-iate. Antes de sair para a próxima
perseguição, acionou seus nanorrobôs para limpar seu corpo novamente.


Manchas de sangue acabariam assustando os humanos que o vissem e isso
atrasaria a sua busca pelo alvo primário.




































20





ERA ESTRANHO ESTAR DE VOLTA AOS CORREDORES DO EDIFÍCIO UNI.
ENQUANTO TUDO ao meu redor tinha mudado, o Uni era uma constante. O prédio
não tinha sofrido nenhuma mudança significativa. Bren e eu subimos pelo
elevador, e Bren apertou o botão para a cobertura. Deslizei os dedos
delicadamente pelas laterais de granito polido do elevador. Havia algumas
rachaduras na pedra, entalhes e repiques causados pelas incontáveis décadas de
mudanças de decoração nos escritórios, mas, tirando isso, não havia diferença
entre aquela época e a atual. Quando as portas do elevador se abriram, quase
pude imaginar meu pai, esperando para me dar as boas-vindas com um sorriso
simples e uma secretária para ficar de olho em mim.



Em vez disso, iria me encontrar com o avô carrancudo do Bren.



— Não gosto disso — falei. — De fazer um senhor sair de sua casa no meio
da noite.



— Não fizemos isso. Eu lhe disse, ele ainda está no escritório. Praticamente
vive aqui. Na verdade, ele tem até uma suíte que fica logo ao lado. Ele morava no
nosso prédio, mas costumava passar quase o tempo todo aqui. Quando Guillory
pediu o apartamento, ele simplesmente o entregou.



Meus ouvidos despertaram.




— Quando Guillory pediu?



— Ele o pediu para que você pudesse morar em seu antigo apartamento.



Engoli em seco.



— Você quer dizer que eu roubei a casa desse senhor?



— Na verdade não. Você pegou um elefante branco vazio e caro das mãos
dele, onde, por sinal, quase nunca colocava os pés. Não foi fácil quando a vovó
morreu. Ele já não tinha muitos motivos para voltar para casa. O homem é
totalmente viciado em trabalho. A menos que esteja de férias.



— Ele é diferente quando não está trabalhando?



— Sim, é bem mais simpático com a família do que quando está
trabalhando.



— Ainda bem — eu disse. — Porque ele me assusta.



— Eu também costumava me assustar — Bren confessou. — Até o dia em
que estávamos esquiando e ele me salvou de uma queda horrível, eu tinha dez
anos. Meu avô quebrou a perna para impedir que eu caísse de um penhasco. Eu
não sabia que havia um abismo. As placas de aviso sobre o perigo estavam
cobertas de neve. Nunca vi ninguém se mover tão rapidamente. Ele é... — Bren
encolheu os ombros, tentando encontrar as palavras certas. — Áspero, durão e
calado, mas sempre está lá quando você precisa dele.



— Espero que sim — eu disse —, pois, definitivamente, preciso de alguém.




O elevador parou e a porta se abriu para o tão familiar átrio do piso
superior do Edifício Uni. Minha mãe projetara o átrio no estilo de um jardim
romano tradicional, completo, com colunas e mosaicos. Havia uma fonte
luminosa no centro e uma cachoeira artificial cercada de plantas tropicais
importadas. As plantas tinham sido trocadas e percebi que várias delas agora
eram artificiais, uma degeneração que a minha mãe jamais teria aprovado se
estivesse viva.



O escritório do papai ficava na cobertura sobre o átrio, e achei que Bren
fosse me conduzir por uma escada em espiral que levava ao andar de cima, mas
ele me conduziu para trás da fonte, onde, antigamente, era a área dos assistentes
e das secretárias particulares.



A área tinha mudado drasticamente. Os escritórios foram abertos e
transformados em um segundo átrio, com uma coleção de plantas diferentes. Ao
final, havia uma salinha de espera de vidro que dava para o jardim, com uma
mesa para a recepcionista, que agora estava vazia. Atrás dela, havia uma porta
revestida de cobre, onde devia ser o escritório do avô do Bren. Sem muitos
preâmbulos, ele abriu a imponente porta e entrou na sala me arrastando junto.



As paredes da sala do presidente eram pintadas em um tom terracota, com
paisagens, e reconheci o mesmo estilo que tinha sido usado para decorar meu
apartamento. A mesa era de madeira, grande, mas com apenas um monitor.
Achei aquilo um tremendo contraste comparado à antiga mesa de meu pai, que
mais parecia uma unidade de comando, com meia dúzia de monitores conectados
à internet, mantendo-o informado sobre milhares de projetos e contas. Essa era a
mesa de um homem que tinha uma mente organizada e não tinha necessidade de
ter tudo em suas mãos, pois sempre sabia onde encontrar o que quisesse.




A cadeira de couro se afastou do monitor e revelou o avô de Bren esperando
por nós. Naquele momento percebi que nunca olhara de verdade para aquele
homem quando me encontrava com a vista embaçada devido à fadiga estase ou
medicada depois do golpe do bastão paralisante. Nas duas ocasiões, ele me
assustara com seu discurso irado e a feição desagradável. Agora que olhei para
ele a carranca me pareceu mais triste do que brava. Parecia um homem que
testemunhara os horrores que o mundo tinha a oferecer e estes pesaram tanto
em seu coração que ele mal conseguia disfarçar o fardo. Meu medo se desfez um
pouco.



Ele olhou atentamente para nós ao recostar-se na cadeira.



Bren não parecia nem um pouco sem jeito por ter invadido o escritório do
avô no meio da noite.



— Olá, vovô. Você já conhece a Rose.



— Sim, conheço — ele disse com um aceno formal. — É um prazer revê-la,
mocinha.



— Prazer em vê-lo, Sr. Sabah.



— Ele não é Sabah. Ele é o pai da minha mãe — Bren me corrigiu.



— Está tudo bem — o senhor atenuou, interrompendo Bren. — Pode me
chamar de Ron. Por favor, sente-se. — Ele apontou um sofá verde musgo
encostado na parede, onde me sentei. Em seguida, voltou-se para o neto. — Qual
é o problema?




— O assassino a seguiu até Nirvana, e Rose acha que Guillory armou tudo
contra ela — Bren disse sem preâmbulos.



Um lampejo de ira refletiu-se no rosto de Ron. Seus olhos ardiam ao me
fitarem.



— Você o quê?



Eu me encolhi.



— Eu não sei — falei. — A-acho que não tenho nenhuma prova...



Ele me encarou por mais um momento. Em seguida, falou tão baixinho que
mal ouvi a sua voz:



— Vou matá-lo — disse com um sorriso assustador e desagradável. Em
seguida, voltou-se para Bren. — Conte-me tudo.



Bren balançou a cabeça.



— Não posso. Ela ainda não me contou tudo. Só me disse que ele estava
bêbado e falastrão como sempre.



Ron voltou a sua carranca de volta para mim.



— O que a fez pensar que Reggie está por trás disso?




Eu não conseguia falar. Algo em seu olhar fez com que me sentisse mal e
tudo o que eu conseguia fazer era olhar para ele. Ron pareceu perceber meu
embaraço e se virou de costas para mim. Ele tirou os óculos e pressionou o ponto
entre o nariz e a testa.



— Bren, pergunte a ela — Ron disse e colocou os óculos novamente.



Bren se sentou ao meu lado no sofá.



— Está tudo bem. Apenas conte tudo a ele. Qual foi a primeira coisa que a
fez pensar que Guillory está por trás disso?



— Quando o plastine entrou, ele não telefonou para a segurança ou para
outra pessoa. Em seguida, ele me derrubou, por isso não pude correr. E ele
parecia saber que o plastine chegaria.



— Ele sabia?



— Sim. Guillory disse que eu era engraçadinha e que era uma pena o que
ia acontecer comigo.



Ouvi Ron soltando uma blasfêmia abafada.



— Certo. — Ele se voltou para o seu monitor. — Vou iniciar um programa
de busca agora mesmo, para verificar se Guillory tem mexido nos fundos. — Seus
dedos digitaram habilmente sobre o teclado e sua testa enrugou-se ainda mais. —
Pronto. — Ele se voltou para mim. — Isso vai demorar um tempo, existem vários
arquivos a ser verificados. Enquanto isso, conte-me tudo o que você sabe. Tem
mais alguma coisa que a faça pensar que foi ele quem fez isso?




Eu queria chorar quando me lembrei das palavras que ele tinha cuspido
para mim. A conversa fora tão assustadora que, quando o assassino chegou, eu
quase me senti aliviada!



— Ele foi tão desagradável — sussurrei. — Falava sobre Otto e que achava
que simplesmente deveriam desistir dele. Ele parecia querer... me atingir. E foi
tão insensível. Disse que os Tempos Sombrios tinham sido a melhor coisa que
poderia ter acontecido para todo mundo.



A testa de Bren se franziu ainda mais.



— Tem certeza?



— Não estou inventando.



— Não estou pensando isso, mas será que você ouviu direito? Digo, Reggie
é um idiota, mas nunca imaginei que fosse capaz de dizer algo assim. É como
afirmar que o holocausto foi uma ótima ideia.



— Bem — eu corrigi —, ele não se referiu especificamente aos Tempos
Sombrios. Ele disse que o melhor dia para o mundo foi aquele em que meus
pais... morreram. — Foi muito difícil pronunciar aquela última palavra. — E
que... foi só por isso que eu durei tanto. Se eles não tivessem morrido...



Ron me interrompeu com um rosnado.



— Ah — Ele se recostou de volta na sua cadeira, que se inclinou um pouco
para trás, e se acomodou em uma posição mais informal.




Bren franziu o cenho.



— Mas os Fitzroy morreram...



— Bren — seu avô o alertou. Um longo silêncio se seguiu enquanto Ron
parecia observar as próprias mãos. Ele batia o polegar pensativamente sobre o
pulso. — Não acho que tenha passado pela cabeça de Reggie lhe contar. Seu
raciocínio costuma ser egocêntrico. E isso, a polícia não vai descobrir. — Ele
suspirou. — Deixe comigo — Ron disse, quase que num sussurro. Em seguida,
voltou-se para mim. — Quanto você se lembra de seu passado, mocinha?



— Eu me lembro de tudo — respondi, surpresa. — O que o meu passado
tem a ver com isso?



— Apenas me escute. Bren me confiou um segredo, que você contou a ele
que você e seus pais costumavam usar a estase frequentemente como um...
mecanismo de superação?



Eu não sabia ao certo se deveria sentir medo ou indiferença. Antes de Bren
me falar sobre o rótulo de desajustada, eu estava bem quanto a essa situação,
nunca tinha me incomodado nem um pouco. Nunca senti vergonha daquilo.
Lancei um olhar questionador para Bren.



— Vovô não contaria a ninguém — Bren disse. — Eu simplesmente... não
conseguia entender.




Meu olhar questionador se tornou irritadiço. Achei que seria difícil explicar
a sensação de calma e destemor que a estase me dava para alguém que nunca a
tinha usado regularmente. Voltei-me para Ron outra vez.



— Sim — eu disse. — Bren disse a verdade para o senhor.



Ron assentiu.



— Bren também lhe contou que esse tipo de tratamento, especialmente
quando usado em um menor, passou a ser considerado crime?



— Sim — eu disse —, mas não entendi. Isso não é o mesmo que um
assalto. E se a estase é ilegal, por que existem câmaras de estase no hospital? Eu
as vi lá.



— Os hospitais têm uma permissão especial. Vítimas de determinadas
doenças ou aqueles que precisam de um transplante, mas não podem esperar,
podem ser colocados em estase. Ela ainda é usada em viagens interplanetárias,
em um rodízio entre os passageiros que estão acordados e os que estão em
estase, mas somente por causa dos muitos anos que dura a viagem de uma
colônia para outra. As viagens interplanetárias seriam impossíveis se tivéssemos
de manter todos os passageiros acordados. Não teríamos como construir
espaçonaves grandes o suficiente para acomodar alojamentos, suplementos ou
até fonte de oxigênio, e ainda termos verba para enviá-los pelo Sistema Solar.
Mas, apesar de serem seguras e eficientes, todas as estases são estritamente
reguladas e, em alguns casos, são proibidas.



Eu realmente não entendia. Por que alguém não podia simplesmente tirar
uma folga do mundo?




— Mas por quê? — perguntei.



— É um pouco difícil de explicar — Ron respondeu. — Sobretudo se
levarmos em conta o seu passado. Quando eu era jovem não havia leis
regulamentando a estase. Eu me lembro de vários casos que obrigaram a
instauração de tais leis.



Revirei os olhos. Todo aquele "juridiquês" estava me enlouquecendo.



— Como, por exemplo? — perguntei.



— Vou colocar desta maneira — Ron disse, juntando os dois dedos
indicadores para formar uma torre. — Imagine que você teve uma doença, uma
crise de apendicite, algo facilmente curável com uma cirurgia. Agora, imagine que
seu médico ainda não tenha almoçado. E, em vez de executar a cirurgia, ele a
coloque em estase até depois do almoço. — Ele encolheu os ombros. — Isso não
parece ruim. — E continuou:



— Agora, imagine que o seu médico, em vez de perder o almoço, tenha um
encontro marcado com sua esposa para aquela tarde e não queira ficar cansado.
Assim, em vez de operá-la, ele a mantém em estase até o dia seguinte. Daí já são
vinte e quatro horas. Você provavelmente nem vai perceber.

Mas, agora, imagine que o médico esteja para sair de férias, por isso ele
cuida para que você seja mantida em estase pelas próximas duas ou três
semanas, enquanto segue para Acapulco com a família. Para ele, foi muito mais
conveniente colocar o paciente em estase do que fazer a cirurgia. Portanto,
basicamente, para sua própria conveniência, esse médico roubou três semanas
da sua vida, quando tudo o que você precisava era de uma hora do tempo dele.


Ele poderia ter adiado as férias, poderia ter passado o seu caso para outro
médico, mas, porque ele queria realizar a sua cirurgia, só que não naquele exato
momento, ele roubou você. Ele lhe tirou algo muito precioso e irrecuperável. Ele
roubou o seu tempo.



Eu me senti enjoada. Não gostei do modo como ele colocou aquilo.



— Eu... nunca pensei sobre isso desse modo antes.



Ron lançou um sorriso triste.



— Eu sei — ele disse, e aquilo soou muito mais solidário do que eu
esperava. — Hoje em dia, para que os pais possam colocar um filho menor em
estase, eles precisam fazer um requerimento para o governo e ter um laudo
assinado por um médico que ateste que a estase é absolutamente necessária e
qual é o motivo. Muitas vezes, também é preciso pagar uma taxa, tudo para evitar
que os pais façam tais coisas livremente. Crianças portadoras de doenças
crônicas debilitantes são, às vezes, colocadas em estase, na esperança de mantê-
las vivas até que a cura seja descoberta. Somente nesses casos, e para crianças
transplantadas, existe uma permissão terrestre para menores serem colocados
em estase.



Alguma coisa começou a se agitar dentro do meu peito. Eu parecia um
pardal assustado. Minhas mãos estavam trêmulas.



— Eu ainda não entendi — eu disse.



A voz do avô de Bren continuou firme, sem se alterar.




— Imagine — ele disse — que os pais estejam se sentindo sobrecarregados
de trabalho. O bebê chorou o dia todo. Tudo o que eles precisam é de meia hora
de sono. Todos os pais já se sentiram assim. Eles colocam a criança em estase
até que se sintam capazes de lidar com a situação. Fizeram isso em vez de
arrumar uma babá para a criança, em vez de organizar melhor as suas agendas,
em vez de admitir que precisavam de ajuda. Fizeram pela própria comodidade.
Uma única vez pode não parecer abuso, eu lhe garanto. Simplesmente não parece
tão ruim assim. Mas, imagine agora que a criança tem dois ou três anos. Os pais
querem dar uma festa de fim de ano, mas a criança seria inoportuna caso ficasse
por ali. Colocam o filho em estase até depois da festa. Não vai demorar muito.
Pela própria comodidade deles. Agora, eles querem sair de férias.



Eu queria pular e detê-lo, mas fiquei com medo de que as minhas pernas
não me sustentassem.



— Ter uma romântica segunda lua de mel — Ron disse. — Uma criança de
cinco anos junto iria estragar o clima. Coloque-a de volta em estase. A criança
agora tem treze anos. Ela quer participar de uma excursão de uma semana e
briga com a mãe por causa disso. Ela não vai poder ir. Coloque-a em estase até
que passe. Problema resolvido.



Ele pousou as mãos lentamente sobre a mesa e inclinou o corpo para
frente, só um pouquinho. Não pude olhar em seus olhos, mas sua voz não iria
parar:



— Coloque-a em estase quando você estiver cansado. Coloque-a em estase
quando você estiver ocupado. Coloque-a em estase quando ela estiver irritante.
Coloque-a em estase quando você estiver aborrecido. Coloque-a em estase
quando ela não quiser fazer exatamente o que você quer que ela faça. Antes que


você perceba, os pais envelheceram dez, doze, treze anos... e a criança ainda é
uma criança.



Eu não tinha coragem de olhar para ele. Ele estava descrevendo a minha
vida. Eu queria bater nele. Queria que aquela sensação que me corroia por dentro
passasse. Não conseguia respirar. Parecia que estava parada à beira de um
imenso abismo, e não conseguia parar de tremer.



— Rose. — Sua voz suave e triste falseou devido à idade, mas soou muito
gentil. — O acidente de helicóptero que matou Mark e Jacqueline Fitzroy
aconteceu há trinta e dois anos, mais de vinte anos depois do término oficial dos
Tempos Sombrios. — Olhei para ele, então, sem conseguir entender o que estava
dizendo. — Aquilo não foi para salvar a sua vida. Eles nunca voltaram para
buscá-la — ele disse, sua voz não passava de um sussurro. — Eles nunca
soltaram você. Eles nunca deixaram você crescer.



Um segundo de escuridão, de silêncio, seguiu-se e, naquele momento, eu
podia jurar que tinha morrido.



— Não, não, não! — alguém gritou no meu ouvido. — Ninguém sabia que
eu estava lá! Todos tinham morrido! — desejei que ela se calasse, estava tentando
entender onde eu tinha ido parar naquela escuridão. Abri os olhos e vi uma jovem
desconhecida abaixo de mim, em pé sobre o piso de madeira, e seus punhos
estavam erguidos no ar, desafiadores. O senhor sentado à mesa a observava
atentamente com olhos sérios, e Bren recuou até encostar-se na parede, quase
com medo, o rosto estava tão pálido que sua pele morena parecia café com leite.
Só, então, percebi que a voz era minha. — Eles me amavam! — a garota gritou. —
Eles queriam me proteger! Não acredito em você!




O avô de Bren se levantou e saiu da sala. Pairando próxima ao teto, com
interesse imparcial, observei-o saindo. Será que a garota o tinha assustado tanto
quanto a mim? A garotinha lá embaixo parecia um fantasma. Parecia muito mais
com um corpo ambulante do que o plastine. Suas bochechas estavam manchadas
em um tom de vermelho intenso e as orelhas estavam rubras como morangos. Ela
era tão magrinha que pude ver cada um de seus músculos contraídos de fúria,
enquanto ela erguia o pulso impotente sobre a mesa vazia. Seus olhos castanhos
eram vazios, buracos negros. Espaços vazios. O que foi que Otto disse? "Esse
abismo impenetrável dentro da sua alma." Isso o assustou.



Isso me assustou também.



Achei que houvesse algo mais, embora pensasse que somente eu conseguia
ver. Podia ver a garota ardendo em um fogo fantasmagórico de raiva, forte o
bastante para engolir toda a sala. Forte o suficiente para reduzi-la a cinzas. Pairei
próxima ao teto, mas me perguntei se eu não era apenas parte daquele fogo; um
espírito ardendo de ódio e dúvida.



Algo sobre aquele pensamento me trouxe de volta para mim mesma e,
então, não pude mais ver o fogo ou eu mesma, via apenas meu punho cerrado
diante do meu rosto e Bren recostado contra a parede. Ele parecia muito
assustado.



— Não acredito nisso — sussurrei para ele.



Bren abriu a boca, mas então a fechou novamente, como se estivesse com
medo de dizer qualquer coisa.




Seu avô voltou à sala e ergueu uma fotografia emoldurada para eu ver.
Peguei a foto com a mão que ainda não estava cerrada.



Ele deve ter ido buscar a foto na sala de Guillory. Reconheci o lugar antes
de reconhecer as pessoas; o salão de baile no piso térreo do Edifício Uni. A
fotografia mostrava pessoas saudáveis trajando roupas caras. Reconheci até
mesmo uma figura sombria no canto, ao fundo, que devia ser o avô de Bren, bem
mais jovem. Devia ser a festa anual da companhia. A tradicional escultura do
unicórnio de gelo estava derretendo em segundo plano. Mamãe e papai estavam
mais velhos, muito mais velhos, mas eu os reconheci.



Mamãe ainda tinha belos cabelos loiros. Ela provavelmente os tingia, pois
os cabelos do papai tinham ficado completamente brancos. Mamãe parecia mais
jovem do que deveria e diferente, percebi os efeitos de cirurgias plásticas. Eu
tinha visto muitos desses sinais nos amigos da família. Papai ainda estava bem-
vestido e seu olhar ainda era distante. Seu sorriso ainda era rude e falso e ele
parecia estar com a cabeça em outro lugar. Eles eram velhos; dava para perceber
claramente que haviam se passado décadas desde que eu fora colocada em
estase. Mas a coisa mais detestável era a figura em pé entre eles, segurando uma
taça de champanhe e com um sorriso de orelha a orelha. Era um jovem de vinte e
poucos anos, que claramente tinha acabado de se formar em administração,
mostrando certa admiração pelas duas figuras que estavam ao seu lado. Reggie
Guillory.



Reggie Guillory, que ainda nem tinha nascido quando fui colocada em
estase. Não era de se admirar que Guillory tivesse falado como se conhecesse
meus pais. Nessa foto ele não devia ter muito mais do que vinte e cinco anos,
seus cabelos ainda eram naturalmente dourados, sua cara de rico estava mais
bronzeada, fazendo com que ele se parecesse ainda mais com uma estátua


dourada, uma vez que tinha aquela perfeição artificial que os escultores sempre
se empenham para alcançar.



Lá estava a prova, nas minhas próprias mãos e, mesmo assim, eu ainda
não queria acreditar. Ergui a fotografia e atirei-a com tremenda força contra a
parede mais distante. O vidro se espatifou e a moldura se abriu em duas.



Não foi o suficiente para destruir a prova. Eu precisava destruir tudo. Se o
meu tubo de estase estivesse lá, eu teria descarregado a minha fúria nele, mas
ele não estava. Em vez disso, arranquei uma das paisagens que enfeitavam a
parede e atirei como se fosse um frisbee. Bren se abaixou. Arremessei as
bugigangas que consegui alcançar, pesos de papel que deixaram marcas nas
paredes. Peguei os copos do bar e arremessei-os contra as janelas, onde eles
quebraram lindamente, virando magníficos cacos de vidro.



Pouco tempo depois, percebi que ninguém estava tentando me impedir. Na
verdade, o avô de Bren estava ao meu lado e pacientemente me entregava objetos
para eu jogar. Bren estava parado junto à soleira, longe dos estilhaços, com um
jeito que só posso descrever como um sorriso sério em seu rosto.



Atirei o último item — um copo de metal do bar. Ele caiu com um estalo no
chão, que eu acompanhei. Então, me senti melhor.



Uma mão gentil acariciou meus cabelos.



— Sinto muito, Rose — disse Ron. Então, ele se ergueu e eu o vi se dirigir a
Bren e tocar em seu ombro.




Seja lá o que ele tenha dito, Bren se aproximou e esfregou as minhas
costas.



— Você está bem agora — ele disse, mais para acalmar a si mesmo, eu
acho. - Ninguém vai permitir que nada daquilo aconteça novamente. Nós não
vamos deixar que aconteça. Eu, a mamãe e o vovô, todos nós vamos garantir isso.



Olhei para ele novamente. Senti um vazio.



— Estou cansada — sussurrei.



Bren soltou um leve sorriso e me ajudou a sentar.



— Não estou surpreso. Eu deveria levá-la para jogar tênis, você tem um
braço forte. — Ele me apoiou e permitiu que eu recostasse meu peso sobre seu
ombro enquanto me conduzia até o sofá. — Aqui — disse.



Encolhi-me no sofá e respirei fundo. Ron desapareceu novamente e, então,
reapareceu como mágica com uma manta de lã. Ele a colocou sobre mim com
todo o cuidado.



— Nada irá ferir você aqui. Eu prometo — sussurrou Ron. — Agora
descanse. — Sua voz estava mais relaxada.



Acho que devo ter dado um pequeno sorriso, mas dormi tão rapidamente
que quase pareceu que eu estava entrando em estase. Foi tão doce quanto. Meu
medo tinha me deixado. Eu já tinha perdido tudo. O que mais havia para temer?








21





NÃO DEVO TER DORMIDO MUITO, NÃO MAIS QUE UMA HORA. QUANDO
ACORDEI ainda estava escuro e Bren limpava alguns dos destroços do meu
acesso de raiva, jogando-os dentro de um latão de lixo. Respirei fundo e me
espreguicei. A sensação foi boa, quase de satisfação, como se eu estivesse dentro
de uma banheira de hidromassagem depois de um longo dia. A manta de lã
estava quentinha sobre o meu corpo e cheirava à colônia, provavelmente a de
Ron.



Bren e eu estávamos sozinhos na sala.



— Onde está o seu avô?



— Ainda está examinando as contas de Guillory — Bren disse. — Ele não
queria acordá-la enquanto fazia algumas ligações. Mesmo que não tenha sido
Guillory quem colocou aquele plastine na sua cola, vovô está reunindo algumas
coisas muito obscuras. Ele disse que não vinha prestando muita atenção nos
últimos meses. Está ficando cada vez mais bravo conforme vai descobrindo mais
coisas.



— Estou surpresa que ele não esteja bravo comigo — eu disse. Em seguida
joguei a manta para o lado e fui ajudar Bren a recolher os cacos. — Veja o que eu
fiz no escritório dele.




Bren sorriu.



— Ele a ajudou a fazer isso! Foi difícil segurar a risada enquanto eu
observava vocês dois.



— Não consigo me lembrar de quando foi a última vez que fiquei tão brava.
Se é que já fiquei brava daquele jeito algum dia.



— Provavelmente não — Bren disse.



Refleti a respeito. Ele estava certo. Eu não ficava brava, não reclamava, eu
sequer chamava atenção para mim. Pois se o fizesse...



Tentei afastar esse pensamento. Estranho, tive a sensação de que vinha
fazendo isso havia anos.



— Eu sei que nunca destruí totalmente uma sala — Bren continuou.



Cuidadosamente peguei outro caco de vidro.



— Eles devem ter faxineiros para fazer esse tipo de trabalho — eu disse.



— Não quero deixar o escritório do vovô nesse estado — Bren respondeu. —
Ele costuma ser muito exigente.



— Mas eles provavelmente têm vassouras — apontei. — Isto é vidro
quebrado.



Bren franziu a testa, encolheu os ombros e continuou recolhendo os cacos.




— Vou tomar cuidado.



Limpamos em silêncio durante um tempo.



— Sinto muito por não ter lhe contado — Bren disse sem jeito. — Nem me
ocorreu que você não soubesse. Todo mundo sabia. Esse é um dos motivos que
levou Otto a simpatizar com você. Ele se sente tão abandonado quanto você.



Fechei os olhos.



— Você realmente acha que eles quiseram... me deixar lá?



Bren hesitou.



— Eu não os conheci. Os Tempos Sombrios foram tão terríveis que até
entendo que alguém tenha resolvido manter a filha longe de tudo aquilo. Mesmo
que isso fosse perigoso.



Vinte anos em estase também poderia ter sido perigoso. Mas não tão ruim
quanto o que eu sofri sessenta e dois anos depois. Se eu tivesse sido retirada da
estase vinte anos depois, provavelmente seria capaz de voltar a comer
normalmente após dois meses. O contrário de agora.



— Mas... ele disse nove anos...



— Sim — Bren falou, seu tom era suave. — Vovô diz que eles tomaram
muito cuidado para que ninguém soubesse, ou notasse, que a sua infância estava
sendo prolongada. Foi por isso que não consegui encontrar o seu registro de


nascimento. Eles fizeram tudo o que puderam. Mudaram você de escola.
Apagaram a sua imagem dos arquivos públicos. Mantiveram você isolada, exceto
em festividades específicas. — Ele abaixou os olhos. — Mantiveram você com
medo. Talvez eles tivessem a intenção de tirá-la da estase no final, mas...



— Mais nove anos. — Não conseguia nem imaginar. — Será que eu era
realmente tão terrível? — sussurrei.



Bren jogou outro caco de vidro dentro do lixo.



— Ninguém pode ser tão terrível.



— Eu não deveria ter gritado com a mamãe — falei.



Bren contornou o vidro quebrado e veio se sentar um pouco atrás de mim.



— Grito com a minha mãe o tempo todo — ele falou. — Sou mandado para
o meu quarto. Não acredito que a estase seja um castigo equivalente.



— Aquilo não era um castigo! — eu disse, virando-me para ele.



O rosto de Bren estava impassível.



— O que era então? — ele tomou a minha mão e me ajudou a levantar. Em
seguida, levou-me de volta para o sofá e se sentou comigo. Seu braço envolvia
meus ombros e ele me abraçou com firmeza. Parecia que aranhas penetravam na
pele do lugar onde ele me tocava, eram quentes e delicadas aranhas, com suas
pequenas perninhas, fazendo cócegas.




— Não faça isso — falei, tentando me desvencilhar.



— Não posso ser seu amigo? — Bren perguntou.



— Você é, é que apenas... ainda não superei o que sinto por você, certo? É
perturbador.



— Ah! Desculpe. — Ele me soltou.



Coloquei as mãos na cabeça.



— Ah, Deus! Isso é tão constrangedor!



— O quê?



— Você sabe todas essas coisas a meu respeito. Isso não é justo. Conte-me
algo.



— O quê?



— Qualquer coisa — eu disse. — Conte-me algo pessoal. Eu mal o conheço.



Bren soltou uma risadinha.



— Não tenho... muitas coisas pessoais para contar — ele disse. — A coisa
mais importante da minha vida é o tênis... e estou pensando seriamente em
desistir disso depois que terminar o ensino médio. Pelo menos dos torneios.
Nunca me apaixonei, pois a ideia me assusta. Nunca passei mais do que duas
semanas fora da ComUnidade e, provavelmente, vou acabar voltando para cá


depois da faculdade, simplesmente porque não há nada forte o bastante dentro
de mim para me manter longe daqui. — Ele suspirou. — Agora que você me
perguntou sobre isso, achei meio deprimente. Costumo seguir o caminho mais
fácil. A coisa mais excitante que já aconteceu na minha vida foi naquele depósito
no subsolo.



Franzi o rosto ao ouvir aquela declaração.



— Você quer dizer que eu sou a coisa mais interessante que aconteceu na
sua vida?



— Sim. Mas isso não é de surpreender, Rose, você é a coisa mais
interessante que aconteceu para a humanidade desde que descobriram os
micróbios na Europa.



Ecos de Otto, novamente. Era como se estivéssemos ligados.



— Mesmo que você não fosse a filha de Mark Fitzroy, encontrar alguém em
estase por todo aquele tempo teria sido notícia mundial. Sendo quem você é...



Suspirei.



— Eu sabia que era uma aberração.



— Você pode estar certa — disse o avô de Bren ao entrar na sala. A
principio, pensei que ele estivesse lá me ouvindo, mas ele prosseguiu: —
Recentemente, Reggie sacou uma quantia considerável de dinheiro de uma das
contas da companhia. O valor não seria suficiente para pagar pelo plastine, mas


isso não significa que ele não tenha pegado mais de outros fundos. Eu ainda
estou procurando.



Bren se levantou para retomar a limpeza.



— O senhor acha que vai conseguir rastrear tudo, se ele fez mesmo isso?



— Espero que sim. — Ron olhou diretamente para mim. — Não se
preocupe. Tudo vai dar certo.



Por alguma razão, acreditei nele.



Parte de mim queria voltar a dormir novamente e parte de mim não queria
permanecer parada. Olhei para Bren e pensei em ajudá-lo com a limpeza, mas
algo em seu jeito me disse que ele queria pensar, e eu iria ficar no seu caminho.



Voltei para o meu bloco de desenho. Eu tinha terminado a sequência de
Xavier e precisava começar algo novo. Não estava com disposição para as
paisagens; muito agitadas. E não queria desenhar Bren. Por isso, resolvi
desenhar o avô dele.



Ron se sentou à mesa, depois de ter desligado a holoimagem do celular e
colocar o aparelho junto à orelha, para que assim pudesse ter uma conversa mais
reservada.



— Não, entendo — ele dizia. — Creio que seja urgente. Muito mesmo...
Bem, eu não gostaria de ter de contar isso para o conselho... só farei isso se tiver
de... — ele soou intimidador. Fiquei feliz por ele estar fazendo isso por mim, e não
contra mim. Eu nunca iria querer cruzar o caminho desse homem.




Era muito fácil fazer o traçado de seu rosto. Meu lápis desceu desenhando
a linha de seu nariz, sobre as maçãs do rosto, ao longo da linha do queixo. O
pescoço deu um pouco de trabalho. Eu não tinha tido muitas oportunidades de
desenhar um homem velho, portanto, não estava acostumada com as rugas da
pele. Depois que desenhei a linha geral do rosto, me concentrei em sua testa,
para me certificar de ter capturado seus olhos atrás dos óculos. Ele era muito
fácil de desenhar.



Muito fácil.



Eu conhecia os seus contornos. Olhei de volta para o senhor que estava
recostado na cadeira com jeito de quem tinha décadas de prática de se sentar ali.
Não podia ser. Eu só podia estar obcecada e vendo coisas.



Voltei-me para o meu bloco. Desenhei a linha do rosto novamente maçãs do
rosto, queixo, mandíbula, nariz, mas ignorei as pregas da pele, os óculos, o corte
de cabelo. Eu desenhei seus olhos novamente.



Não podia ser. Eu devia estar imaginando. Fechei os olhos por um
momento, então olhei novamente.



Eu conhecia aquele rosto. Conhecia muito, muito bem.



Meu sangue gelou. Senti um gosto enjoativo de ácido na minha boca, mas,
dessa vez, não me sentia nauseada. Eu simplesmente permaneci sentada ali,
encarando emudecida aquele homem velho, muito velho.




O avô de Bren desligou o celular e se levantou, virando-se na direção da
porta. Pulei do sofá, lutando para conseguir alcançar a porta antes dele. Meu
movimento assustou Bren, que derrubou a lata de lixo com um estrondo.



O avô de Bren ergueu uma sobrancelha quando parei diante dele.



— Pois não?



As palavras despencaram da minha boca.



— Qual é a sua desculpa?



Um lampejo de nervosismo passou pelo seu rosto.



— Para o quê? — ele perguntou.



Passei o bloco de desenho para ele. Ele franziu a testa ao observar o
desenho em carvão que eu tinha feito dele e o outro meio perfil desenhado ao
lado. Eu me aproximei e virei a página anterior para que ele pudesse ver.



Era a última imagem da minha sequência de Xavier. Xavier com dezessete
anos, com seu sorriso terno, seus olhos reluzentes, o pequeno cavanhaque, o
olhar retraído que sempre impediu que seu traço arrogante sobrepujasse.



O velho homem ficou surpreso com o desenho, seus olhos, que já eram
tristes, ficaram ainda mais tristes. Ele virou outra página e lá estava ele com
quinze anos, com uma barbicha rala no queixo, seu nariz ainda não tinha
crescido como o de um adulto, sua auto confiança mais evidente. De volta aos
doze anos, com um brilho traiçoeiro oculto nos olhos. Ele pulou algumas páginas,


fechando o bloco no desenho de quando ele tinha três anos, um querubim,
bochechas rechonchudas e com o nariz sujo de chocolate.



— Estou surpreso que você ainda se lembre — ele disse.



Fitei Xavier com olhos fixos, o meu Xavier, com setenta e poucos anos.
Apele estava flácida, os cabelos loiros estavam grisalhos, os olhos brilhantes
tinham se tornado tristes com a idade, havia um tremor mal disfarçado em sua
mão direita. O meu Xavier. Eu não sabia se queria rir ou chorar.O sentimento de
vazio e morte tinha voltado e eu não senti mais nada.



— Não faz tanto tempo assim — eu disse.



Xavier soltou um sorriso triste.



— Sim, faz.



Ele estava certo. Fazia tanto tempo que tinha sido em outra vida, quando
eu era outra garota. A princesa eleita da UniCorp, a rainha do champanhe todas
as vezes que eu abria os olhos, sempre na moda, serena. Uma garota cujos pais
devotados nunca a abandonariam para uma morte lenta, causada pela fadiga
estase, e que tinha um melhor amigo que a amava e sempre estaria lá para ela.
Eu vinha tentando me prender àquela vida, me convencer de que eu ainda era
aquela garota, mas não era. Eu era uma nova pessoa, perdida e sozinha, uma
criança fora de seu tempo, um fardo para Guillory, Bren e para todos que só
tinham sofrido por causa da minha volta. Um fardo para ele.



— Você arrumou o meu estúdio — eu disse, todos os mistérios começaram
a cair suavemente em seu lugar. — E o Estradas Desertas. E Bren... — minha voz


sumiu ao dizer esse nome e olhei de relance para o meu príncipe encantado. Bren
levantou-se, atordoado com a conversa, franzindo a testa, os olhos esverdeados
contraídos e confusos.



Agora que eu tinha me permitido, podia ver. Eu deixara que a pele morena
e os cabelos crespos e os olhos eurasianos mascarassem o seu queixo, o formato
do nariz, a cor de seus olhos. Não era de admirar que eu tenha caído por ele como
uma pedra despenca de um penhasco.



Eu me voltei para Xavier.



— Pode me chamar de Ron? — fechei os olhos. Ron. Ronald era o seu nome
do meio, ele começara a usar Ronny na escola, porque as crianças o provocavam
por causa do "x" de Xavier. Não foi nenhuma surpresa que ele continuasse
usando esse nome em sua vida profissional. Lágrimas estavam caindo, mas
nenhum soluço atormentava meu peito. A água simplesmente fluía descontrolada
de meus olhos.



— Como você pôde?



Xavier fechou os olhos por um momento, então, balançou a cabeça, seu
rosto era uma máscara de tristeza.



— Eu não sabia — ele sussurrou.



Sua desculpa esfarrapada fervilhou um rio de lágrimas dentro de mim.
Minha mão se ergueu e bati com força em seu rosto. Ele virou a cabeça para o
lado, desviando para que assim não sentisse muito a força da bofetada.




Fiquei preocupada no momento em que fiz aquilo. Tal ato era algo que eu
poderia ter feito com o meu Xavier, era até mesmo justificável. Mas um homem
velho merecia mais respeito da minha parte. Eu não sabia o que dizer, como me
sentir ou para quem recorrer. Fiz a única coisa que podia. Antes mesmo que
Xavier tivesse tempo de voltar seu rosto para mim, eu saí correndo.



Não tinha conseguido correr tão rápido assim nem do plastine. Meus
passos ecoaram como um trovão pelo átrio. Ouvi alguém gritando atrás de mim,
mas não parei. Bati com força no botão do elevador para descer. Ele ainda se
encontrava no último andar, esperando por mim. Pulei para dentro e apertei o
botão para fechar a porta. Através da minha visão embaçada pelas lágrimas pude
ver um vulto escuro correndo pelo átrio atrás de mim. Só podia ser Bren. Xavier
não conseguiria correr tão rápido. Não esperei por ele.



A porta se fechou e desci os oitenta andares até o piso térreo. Minha saída
apressada assustou o segurança, que pulou de sua alcova, com a arma erguida.



— Qual é o problema? — ele perguntou, e ficou um pouco mais calmo ao
ver que eu estava sozinha.



— Apenas abra a porta. — Fiquei surpresa por ter conseguido dizer algo
coerente.



O segurança abriu a porta e eu caí na luz azul esverdeada bruxuleante que
empurra a escuridão para dar lugar à manhã. Minha limobarca tinha se movido
durante a noite, e eu não sabia como chamá-la. Ela simplesmente sempre sabia
quando eu saía da escola. Entrei em pânico e comecei a correr. Eu não sabia ou
me importava para onde, simplesmente para qualquer lugar.




— Rose! — tropecei ao ouvir a voz e caí na grama. Tinha ido parar no
parque ornamental que ficava à esquerda do edifício. — Rose! — Bren me
alcançou, ofegante. Eu estava arfando como um peixe, meus músculos
queimavam, meus pulmões estavam explodindo. A resistência de Bren era muito
melhor do que a minha, pois ainda estava me recuperando lentamente.



Ele me segurou pelos ombros e me forçou a olhar para ele. Eu não queria
olhar para ele. Não queria ver o meu Xavier olhando para mim através daqueles
olhos amendoados. Engoli em seco e chorei, tentando me encontrar no meio
daquele suplício. Mas não consegui achar nenhuma parte de mim que parecesse
funcionar. Eu não conseguia me levantar outra vez, não conseguia me afastar.
Muito de mim tinha ficado parado por muito tempo.



— Rose, o que foi? O que foi? — ele soou preocupado, e suas mãos morenas
e quentes limparam um pouco das lágrimas das minhas faces. — Fale comigo,
parece que você viu um fantasma! O que aconteceu?



Virei o rosto, furiosa comigo mesma. Bren franziu a testa por um momento
e então pousou os braços sobre os meus ombros, puxando-me para perto dele.
Desejei querer me afastar. Mas não o fiz. Eu ainda queria Bren; ou alguém,
qualquer um; e não podia suportar aquilo. Permiti que ele me abraçasse
enquanto lutava contra as lágrimas. Afastei-me assim que consegui me conter.
Meus pulmões pareciam não querer funcionar, e tossi algumas vezes para tentar
limpá-los.



— Sinto muito — eu disse quando pude. — Sinto muito por tudo aquilo.
Sinto muito por ter me atirado sobre você, eu... não sabia... por quê.



— O que você está dizendo? — Bren perguntou.




Xavier não tinha explicado para ele? Não, supus que ele não teve tempo.
Olhei para Bren. Por que ele não tinha me contado? Por que não adivinhou? Ele
deve ter visto fotos do avô quando era jovem, por que não tinha ligado as fotos
aos meus retratos do Xavier?



Como se só o fato de pensar nos meus desenhos tivesse o poder de evocá-
los, notei meu bloco no chão, próximo aos joelhos de Bren. Ele deve tê-lo trazido.
Muita gentileza. Acho que notou que eu não ia para lugar algum sem o bloco.
Apanhei o bloco da grama e abri na página reveladora, onde havia a comparação
do homem velho com o jovem.



— Como você não percebeu?



Bren olhou os desenhos demoradamente e, então, como seu avô, folheou a
minha progressão pela idade de Xavier. Sua boca se abriu de espanto. Ele voltou
para o retrato de Xavier com dezessete anos, sorrindo.



— Eu não podia, pois este garoto está sorrindo - Bren disse. — Vovô nunca
sorri.



— Mas o nome...



— Eu sempre pensei que o nome do vovô fosse Ronny. Quer dizer, eu sei,
acho que já vi Xavier antes, em alguns registros que temos, mas ele não usa mais
esse nome. Acho que só o ouvi uma ou duas vezes em toda a minha vida. — Ele
se voltou para o retrato outra vez. Exalou, entre os lábios contraídos, quase um
assovio, como se estivesse tentando pensar no que dizer.




— Devo ter... visto ele em você — eu disse baixinho. — Acho que isso fez
com que eu agisse como uma tonta.



— Não foi uma tonta — Bren falou. — Esta é uma situação com a qual acho
que os seres humanos não são geneticamente programados para lidar. Às vezes
tenho medo de que a tecnologia ferre com a gente. Ela definitivamente ferrou com
você. — Ele se aproximou e tomou a minha mão — Sinto muito.



Puxei a mão. As coisas haviam ficado ainda piores. Eu vinha tentando
superar o modo como Bren fazia meu estômago se contorcer e meu coração
disparar; agora, sentia um estranho tipo de sentimento de proteção em relação a
ele, como o que eu tinha por Xavier quando ele ainda era criança. Mas ele me
parecia lindo como sempre me parecera, desde o começo, e os dois sentimentos
se misturaram e me confundiram, eu já não sabia o que estava sentindo. Aquilo
tudo foi demais. Imaginei se o fato de eu ter me apaixonado pelo neto do meu
namorado me colocava oficialmente acima de Otto na escala de aberração.



— Ele o mandou vir atrás de mim? — perguntei.



— Não — Bren respondeu. — Apanhei o seu bloco de desenho e a caminho
da porta perguntei para ele se eu deveria... ele assentiu. Acho que isso não conta
como me mandar.



— Não — falei. Senti-me um pouco melhor.



Ele balançou a cabeça.



— É simplesmente muito estranho. Você poderia ser a minha avó.




— É verdade — concordei. Ele estava certo. Eu poderia ter sido avó dele.
Ou de alguém como ele. Mas não era. E deveria ter sido. Deveria ter sido. Minha
vida tinha sido roubada de mim. Eu não me sentia muito normal desde que
acordara da estase, mas isso nunca me pareceu tão definitivo antes.



Avistei as luzes da minha limobarca se aproximando lentamente pela rua.
Ela devia ser equipada com um monitor de proximidade. Franzi a testa enquanto
pensava sobre isso, mas algo me distraiu.



— Santo capete! — disse Bren. Algo tinha acabado de lhe ocorrer.



— O que foi?



— O nome da mamãe é Roseanna — Bren disse. — Rose. Como você.



Quando ele disse aquilo meu coração se contorceu. Fiquei em pé.



— Se ele se importava tanto assim comigo, por que me deixou para
apodrecer?! — gritei. Eu me atirei para dentro da limobarca e fechei a porta antes
que Bren tivesse tempo de recuperar o juízo. Ele bateu na janela, mas eu já tinha
dado o comando para o barco seguir. Fui deixando-o para trás lentamente,
ganhando velocidade. Francamente, já não me importava mais se o plastine me
pegasse. Mas não sabia para onde estava indo. Eu realmente não sabia para onde
ir.




22





A LIMOBARCA CONTORNOU A COMUNIDADE SETE VEZES SOB UM
ALVORECER ROSA pálido. Eu não conseguia pensar. Tentei dormir e acabei sendo
acometida por sonhos; sonhos de Bren se transformando em Xavier, Xavier se
transformando em Guillory. Eu queria ir embora e pegar o meu cachorro, mas
estava com medo de ir para casa. Não estava com medo do plastine — a morte
parecia uma viagem convidativa naquele momento —, estava com medo de todas
as coisas que tinham feito parte da vida de Xavier. Agora eu podia ver. Seu gosto
estava espalhado por todas as paredes. Os quadros, as paisagens que se
pareciam um pouco com as minhas. A recriação do meu quarto. Meu estúdio. O
prisma. Fechei os olhos.



Por que ele tinha comprado o apartamento que pertencera aos meus pais?
Será que realmente estava tentando se prender à lembrança que tinha de mim?
Por que não deu uma olhada no depósito do subsolo? Por que não passou toda a
sua vida percorrendo o mundo em busca do meu tubo? E se não fez isso, por que
então simplesmente não me esqueceu? Por que agora ele tinha de ser essa
presença meio que assombrada?



Eu perdera meus pais, meu tempo e até mesmo o sonho do meu amor
morto. Toda a dor que senti pela morte dele ressurgiu dentro de mim, indigesta. E
doía mais do que quando tive de engoli-la.




Não queria que o sol nascesse. Não queria que o mundo continuasse
girando. Eu queria que todo o planeta fosse colocado em estase até que eu
conseguisse me recuperar.



Um bip familiar ressoou próximo ao painel de controle da limobarca. Ding,
ding... ding, ding... ding, ding...



Eu me sacudi e me arrastei até o canto escuro de onde o som viera. Era o
meu supertablet. Como tinha ido parar ali? Então me lembrei que fora eu mesma
quem o tinha deixado dentro do barco quando saí correndo da escola no dia em
que fiz a declaração a Bren.



Ding, ding... ding, ding... Apanhei o aparelho e abri o monitor.



Já havia uma página conectada à internet piscando. Entrei.



"Rose. Rose, droga, responda! Rose se você tiver retomado para a estase,
vou procurar pelo mundo todo para acordá-la novamente! Responda!"



Rapidamente puxei o teclado enquanto Otto continuava:



"Atenda! Onde você está? Por favor, não deixe que aquela coisa vá atrás de
você outra vez!"



"Estou aqui" — escrevi, atropelando o que ele tinha escrito. — "Ainda estou
aqui, infelizmente."



"Graças as todos os deuses que já foram inventados. Onde você está?"




"Em lugar nenhum" — respondi com toda a sinceridade. Eu realmente não
sabia onde estava, e não importava.



"Estou falando sério. Onde você está?"



"Honestamente, não sei" — contei a ele. — "Só estou flutuando em círculos
pela ComUnidade."



"Fiquei preocupado, você não estava respondendo no seu supertablet
ontem."



"Esqueci de levá-lo."



"Acabei de me encontrar com o Bren no pátio e perguntei se ele sabia o que
tinha acontecido com você. Ele está preocupado. Posso dizer a ele onde você
está?"



"Não. Você pode dizer a ele que estou bem, se quiser."



"Ótimo. Ele foi para casa e verificou o seu tubo depois que você fugiu.
Quando viu que você não estava lá, ficou assustado. Os pais dele obrigaram-no a
vir para a escola, mas ele não está conseguindo se concentrar."



"Acho que não dou a mínima" — escrevi.



"Espere um minuto, o Sr. Prokiov está pegando no meu pé para que eu não
entre na internet durante a aula. Já volto."




O monitor ficou um longo, longo tempo parado. Eu me encolhi no assento
do barco e tentei forçar a sanidade de volta à minha cabeça. Não consegui.



O tablet apitou novamente.



"Pronto, estou no pátio. Bren me contou o que aconteceu nesta
madrugada."



Só havia uma coisa que eu poderia dizer em relação àquilo.



"Capete!" — Então perguntei: — "Quanto ele contou?"



"Pode-se contar uma longa história através da mente com muita rapidez" —
ele escreveu.



"Capete" — escrevi novamente. — "Posso lhe pedir para aplicar o seu código
de ética e não espalhar essa história por aí? Não contar para Nabiki, e nem
mesmo para a sua família?" — Eu na verdade me importava com o que eles
pensavam sobre mim, e isso tudo era muito estranho, provavelmente até mesmo
para eles.



"Juro sobre o túmulo da 42."



Fiquei comovida.



"Obrigada."



"Nabiki e eu terminamos" — ele escreveu.




Eu não sabia ao certo por que ele estava me contando isso.



"Como? Por quê?"



"Você se lembra daquele lance forte de proteção que ela sentia por mim?"



"Sim"



"Bem. Quando você me contou que alguém estava tentando matar você, eu
meio que senti a mesma coisa. Passei os últimos dias fuçando na rede, tentando
encontrar qualquer coisa e tudo o que pudesse ajudar. Nabiki não gostou, disse
que eu não estava dormindo bem. Ela disse que você já tinha pessoas o suficiente
cuidando de você e que não precisava de mim. Eu quase... bem, foi só uma ideia,
mas ela estava me tocando naquele momento. Senti vontade de dar um tapa nela.
Sou um tanto pacifista, não costumo pensar nesse tipo de coisa com muita
frequência, nem quando batem em mim — e sim, isso já aconteceu. Nabiki disse
que se eu pensava daquela maneira, então talvez não precisasse mais dela. Ela
estava certa."



Se os elogios de Otto eram tão intensos quanto ele dizia que eram, eu não
quis nem pensar em como seria a sua ira.



"Não. Volte para ela" — escrevi. — "Peça desculpa. Não quero estragar o
relacionamento de ninguém."



"Você não estragou. Uma das conveniências sobre a minha forma de
comunicação é que posso me comunicar rapidamente e assimilar tudo o que o
outro está sentindo. Nabiki adorava ser útil. Agora que eu sou o único que...


Olhe, deixe eu ir até onde você está." — Fiquei comovida. Não que Otto pudesse
me proteger do plastine. — "Você está precisando de família. Onde você está?"



"Eu realmente não sei."



"Diga para o seu barco vir para a escola. Podemos conversar no
alojamento."



"Estamos conversando agora."



"Não estamos."



Levei um tempo para entender o que ele quis dizer.



"Você não vai querer entrar na minha cabeça neste momento" — escrevi.



"Talvez" — Otto respondeu.



"Otto, nem mesmo eu sei o que está se passando dentro da minha cabeça
neste exato momento."



"Talvez não" — ele escreveu. — "Mas você não pode ficar sozinha. Alguém
está tentando assassiná-la, Rose!"



Suspirei.



"Certo" — escrevi de volta. — "Mas não sei quão longe eu estou da escola."



"Estarei esperando."




O link desconectou e eu mandei o barco seguir para o Preparatório Uni. Ele
virou, a maquinaria fazia um zumbido muito mais satisfeito quando tinha um
destino definido em seus processadores.



Levei quase uma hora para chegar à escola. As andanças sem destino pela
ComUnidade tinham me levado para muito longe do caminho. O barco parou bem
ao lado do pátio, mas eu disse a ele para contornar a escola e seguir até os
alojamentos. Eu não sabia como faria para encontrar Otto, mas ele estava me
esperando em um banco sob uma árvore, bem ao lado do alojamento masculino.
Assim que avistou a limobarca, meu supertablet apitou.



"Estou aqui" — ele escreveu. — "Eu disse que estaria esperando."



Abri a porta e desci. Fui capaz de forjar um sorriso de saudação, mas ele
saiu tão forçado quanto costumava ser o de Otto. O sorriso se desfez quase que
instantaneamente.



Otto se aproximou e pousou a mão na parte baixa das minhas costas,
guiando-me na direção da escola sem tocar na minha pele. Senti-me muito
diferente por tê-lo ali, ao meu lado. Era quase como se o Otto que eu via na escola
e o Otto com quem eu conversava pelo computador fossem duas pessoas
distintas. Eu mal conhecia este Otto. Não sabia o que dizer. Caminhamos em
silêncio profundo.



Otto me observava com seus olhos amarelos. Ele forçou um sorriso e,
então, abriu a porta do alojamento para mim. Respirei fundo antes de entrar.
Houve um leve zumbido quando o sistema de segurança registrou a nossa
presença.








ALVO IDENTIFICADO: COMBINAÇÃO DE RETINA CONFIRMADA:
LOCALIZAÇÃO DE ROSE SAMANTHA FITZROY RECONHECIDA.



O alvo não estava na última coordenada reconhecida, no Edifício Uni, por
isso, ele resolvera retornar para a sua estação. Mas nem tinha chegado lá ainda
quando a informação foi filtrada por sua rede. Ele entrou com a nova localização
nos controles do hover-iate. Lentamente, o veículo virou rumo ao Preparatório
Uni.







Otto me levou para um tipo de sala de visitas. O local era claro e impessoal
e me lembrou o estilo de decoração dos meus pais. Eu ainda me sentia estranha.



— Realmente não sei o que dizer.



Otto balançou a cabeça, com um gesto que indicava que era para eu não
me preocupar. Em seguida estendeu a mão na direção da minha.



— Não — eu disse, afastando-me. Escondi os olhos sob as mãos. — Otto,
você realmente não vai querer saber.



Um longo momento de silêncio se seguiu e, então, meu supertablet apitou.
Ergui os olhos. Otto tinha cruzado a sala e estava sentado em umacadeira de
costas para mim. Engoli em seco e olhei para o supertablet.




"Como você está se sentindo?"



Eu me sentei, aliviada.



"Estou bem" — escrevi.



''Você não parece bem."



"Não dormi" — 'escrevi, — "Pela terceira vez fugi de um assassino
indestrutível, trabalhei, contando apenas com o meu bloco de desenho para
conseguir sair das ilhas Unicórnio, descobri que meus pais me abandonaram de
propósito em estase por pelo menos vinte anos, e, então, percebi que tinha me
apaixonado pelo neto do meu antigo namorado." — Abaixei o meu tablet e olhei
para ele. — Meu extremamente antigo namorado, eu diria — falei em voz alta.
Suspirei e escondi a cabeça entre as mãos.



Ouvi a movimentação de Otto e, então, o meu tablet apitou novamente.
Descobri os olhos. Otto tinha virado a cadeira de frente para mim, mas ele estava
olhando para o seu monitor.



"É isso o que está realmente lhe incomodando, não é?" — ele tinha escrito.
— "O seu Xavier."



"Mais ou menos" — admiti.



"Foi isso que a fez fugir."



"Deus, Bren realmente lhe contou tudo, não contou?"




"Ele sabe que a minha preocupação é verdadeira."



Balancei a cabeça, aliviada por ele finalmente poder ver isso.



— Por quê? — perguntei. — O que você vê em mim?



Ele ergueu os olhos do supertablet e estes buscaram os meus por um
momento.



"Eu poderia tentar lhe mostrar, se você quiser" — ele escreveu, voltando
seu olhar para o monitor. — "Não estou acostumado a buscar por palavras para
descrever esse tipo de coisa. Não se trata de algo tão simples que eu possa
encapsular em uma frase superficial." — Ele fez uma pausa antes de escrever
outra vez. — "Ou mesmo em uma frase séria dita do fundo do coração."



Eu não sabia o que dizer. Ele estava certo. Algumas coisas simplesmente
não são fáceis de serem transformadas em linguagem. Eu achava que seria capaz
de pintar um quadro que pudesse ter o mesmo impacto, mas mesmo o quadro
não teria o mesmo significado. Enquanto eu o observava, ele começou a escrever
novamente.



"Por que você continua falando comigo? Talvez a resposta esteja nisso."



Balancei a cabeça.



— Não sei — eu disse. — Você é interessante e diferente e qualquer um
ficaria curioso.




"Se fosse apenas curiosidade, você poderia ter seguido o meu conselho e
dado uma olhada nos meus prontuários médicos" — ele escreveu. Ele escrevia
muito mais rápido do que eu jamais tinha conseguido, mas supus que ele tivesse
mais prática. — "Isso é o que a maioria das pessoas faria.

Muito sobre a minha vida está em arquivos de acesso público, publicados
em dúzias de revistas científicas disponíveis na internet. Isso sem mencionar
todos os arquivos da UniCorp, que sei que você poderia acessar. Você procurou
em mim, não nos arquivos."



— É verdade — sussurrei. — Eu sinto... Falei sério quando disse que eu
poderia ser a sua família. Sinto como se já fosse.



"Você não tem outra família."



"Tive um dia. Eles me amavam."



Otto ergueu os olhos do monitor sem escrever outra palavra. Mas eu podia
ler em seus olhos. Amarelos. Não humanos. Seu DNA tinha sido retalhado e
costurado para formar um monstro alienígena, sem um lar, sem uma família,
sem uma raça. "Será que eles a amavam?", seus olhos diziam. "Será que amavam
mesmo? Ou será que a amavam do mesmo modo que a UniCorp me amou?"



— Por que você tentou a bolsa de estudos? — perguntei a ele, ignorando a
pergunta não dita.



Ele contraiu os olhos, perplexo. Achei que a minha pergunta tivesse sido
inconveniente. Ele se voltou para o seu tablet.




"Para conquistar a minha liberdade." — Ele hesitou, então perguntou: —
"Por quê?"



— Ganhei uma bolsa de estudos uma vez. — Doeu dizer aquelas palavras.
— Para a Academia de Arte Hiroko, sessenta e dois anos atrás.



"Por que você não foi?"



— Entrei em estase em vez de ir.



"Era isso que você queria fazer?"



Essa era a pergunta que eu vinha evitando fazer para mim mesma desde
que saíra da estase. A resposta me causou náusea.



— Sim — sussurrei.



"Por quê?"



Eu me levantei, derrubando o meu supertablet.



— Por que você continua perguntando por quê? — reclamei.



Otto me fitou e suas mãos se moveram em um intrincado arranjo que não
consegui ler.



— O quê?




Ele emitiu um barulho irritante parecido com os dos golfinhos e pegou o
seu supertablet. Em seguida depositou-o em minhas mãos.



"Por que me importo!" — estava escrito.



Inclinei a cabeça.



— Por quê?



Ele moveu as mãos novamente. Eu não conhecia a linguagem, mas ela era
bela. Ele repetiu a mesma série de gestos outra vez. Ergueu a palma da mão para
mim, então apontou com os dois dedos indicadores, bateu nas costas da sua mão
esquerda, e, então, levou a mão ao coração. E entendi aquilo, sem nenhuma
palavra. A sua dor toca na minha dor.



Mas as nossas dores eram diferentes. A de Otto tinha sido imposta a ele. A
minha fora abraçada por escolha.



— Eu magoei Xavier — sussurrei. — Parti seu coração. Usei tudo o que
sabia sobre ele, transformando o amor que ele sentia por mim em uma arma,
para fazer com que ele se fosse. Foi por isso que quis entrar em estase. Foi por
isso que fui esquecida. Foi por isso que não merecia despertar, nunca!



Otto pousou a mão sobre o seu coração e ergueu a outra mão. Pude ler o
significado em seus olhos: Por favor.



Hesitei, e sussurrei:




— Sinto muito. — Seu rosto se abateu, não tão inexpressivo como eu tinha
imaginado, agora que estávamos tão próximos. Mas ele me interpretou mal, Eu
estava pedindo desculpas pelo que a minha mente iria infligir contra ele. A
roseira cheia de espinhos da minha própria culpa.



Minha mão se ergueu para tocar na dele.








































23





FOI HÁ SESSENTA E DOIS ANOS, OITO MESES E DOZE DIAS QUE A MINHA
VIDA COMEÇOU a trilhar o caminho que conduziu ao horror que eu agora vivia.
Tudo começou com uma boa notícia. Eu estava saindo da aula de artes quando o
Sr. Sommers me deteve.



— Poderia falar com você por um momento, Rose? — ele perguntou.



Engoli em seco, com receio de que tivesse feito algo errado novamente. Você
deve ter imaginado que, com o meu amor pela arte, educação artística era a única
matéria na qual eu não tinha problemas. Não foi bem assim. Nas escolas, meus
professores me olhavam com certo desespero. Sempre tive professores de arte que
me olhavam ou com inveja escancarada ou com hostilidade aberta. A hostilidade,
em geral, resultava da minha frequência constante nas salas de aula deles, desde
manhã cedo até o fim da tarde e, às vezes, até mesmo durante a hora do almoço.
Acabava usando dez vezes mais material que qualquer outro aluno. Então, tinha
certeza absoluta de que ia levar outra bronca por ter desperdiçado os recursos da
escola.



— Rose, preciso conversar com você — o Sr. Sommers começou.



— Sinto muito — eu disse automaticamente.



O Sr. Sommers ergueu uma sobrancelha.




— Por quê?



— Por qualquer coisa que eu tenha feito — disse. — Sinto muito.



Então ele sorriu.



— Não se trata de nada ruim. — Olhei-o surpresa. — Você se lembra
daqueles quadros extras que você trouxe para mim?



— Sim — respondi.



A escola contava com uma pequena galeria, que expunha alguns dos
trabalhos de arte dos alunos junto com os dos artistas profissionais locais. Três
meses antes o Sr. Sommers tinha oferecido um ponto a mais para quem quisesse
levar um trabalho que tivesse sido feito fora da sala de aula para ser exposto na
galeria. Levei meia dúzia de pinturas a óleo. Nenhum dos trabalhos foi exposto na
galeria, mas não me importei. Eu ganharia o ponto extra, fossem eles escolhidos
ou não para serem expostos.



— Fiquei muito impressionado com o seu talento — o Sr. Sommers disse.
— Tão impressionado que juntei alguns dos trabalhos que você tinha feito em
classe com os quadros extras e enviei tudo para um amigo que faz parte do
comitê de premiação do Programa Jovens Talentos para Excelência Artística.
Você já ouviu falar deles?



Eu conhecia o programa. Ao longo dos últimos dez anos ele tinha servido
como palco de estreia mundial para estudantes de arte que levavam o assunto a


sério. Eu conhecia o programa desde que entrei no ensino médio... o que tinha
sido há vários anos.



— Ele gostou dos meus trabalhos? — perguntei, mais por curiosidade do
que por esperança. Se o amigo dele achasse que eu tinha potencial para entrar no
Programa Jovens Talentos dentro de dois ou três anos, já ficaria muito satisfeita.



— Ele gostou tanto que me enviou uma mensagem hoje, informando que
uma de suas pinturas foi selecionada como um dos dois primeiros colocados na
categoria "quadros".



Perdi o fôlego.



— O quê?! — aquilo era impossível! Aprendizes mais velhos de artistas
famosos entravam no Programa Jovens Talentos. Estudantes do último ano do
curso superior de arte. Artistas já estabelecidos com menos de vinte e um anos.
Uma estudante de ensino médio ter vencido uma das categorias era algo inédito.



— Q-qual dos quadros?



— Aquele que você chamou de Sob o Céu.



Quase chorei, mas de felicidade. Aquele era um quadro que tive certeza de
que nunca conseguiria terminar, com montanhas distorcidas e vegetação que
quase atingia o céu.



— A cerimônia de premiação acontece em Nova York, todos os anos, e você
já ganhou passagens de ida e volta para você e um membro de sua família.
Vencer em uma das categorias é uma honra imensa. — Ele nem precisava ter me


dito isso, então prosseguiu. — Isso faz de você uma das dez pessoas que pode
ganhar o Prêmio Jovens Talentos. Todas as suas obras que enviei serão
comparadas com as dos vencedores de outras categorias e descobriremos se você
ganhou ou não o título de Jovem Talento deste ano na cerimônia de premiação.
Caso você vença, receberá um pacote gratuito para participar do Tour de Arte de
Verão dos Jovens Talentos pela Europa, além de uma bolsa de estudos para a
Academia de Arte Hiroko, depois que concluir o ensino médio.



Nunca precisara me preocupar com dinheiro em toda a minha vida. Meus
pais eram tremendamente ricos. Mas, quando ele disse aquilo, dei-me conta de
que o dinheiro dos meus pais pertencia a eles. Se eu quisesse ir para a
universidade, teria de ser para uma que eles tivessem escolhido para mim. Se eu
tivesse de sair para um tour pela Europa, seriam eles que iriam me enviar. Uma
vez que eles nunca me davam permissão para sair da ComUnidade sozinha,
exceto para ir à escola, eu tinha certeza absoluta de que eles nunca permitiriam.



Se eu ganhasse o Prêmio Jovens Talentos, eu poderia...



Ficar livre deles?



Era um pensamento estranho. Mas foi o que passou pela minha cabeça. Eu
poderia ficar livre.



Mas tudo veio abaixo no segundo seguinte.



— Uma vez que você é menor de idade, precisarei do consentimento de seus
pais para você ir à cerimônia de premiação. Pode providenciar isso?



Hesitei por um momento.




— Eu... eu não sei o que dizer para eles — falei.



O Sr. Sommers assentiu.



— É compreensível. Posso telefonar para eles hoje à tarde e discutir a
oportunidade com eles. — Ele sorriu. — Você deveria estar muito orgulhosa de si
mesma, mocinha. Esta é uma honra que poucos atingem.



— Não sei como lhe agradecer — eu disse. Nunca notara o Sr. Sommers
prestando qualquer tipo de atenção particular em mim. Mas agora que pensei a
respeito, esta era a primeira vez que eu tinha o mesmo professor de arte por mais
de seis meses. Eu sempre trocava de escola e perdia meses com tanta frequência
que nunca tinha tempo de criar empatia com nenhum deles.



— Continue fazendo um bom trabalho, Rose. Amanhã nos vemos e
tomaremos todas as providências para a viagem.



Fui para casa com uma cópia do anúncio da premiação em mãos. Quando
passei pela porta, corri para Ǻsa e contei a novidade a ela.



— Ah, flicka — ela disse. — Eu sabia que você iria se sair bem. — Ela não
era de falar muito ou de dar beijos, mas começou a fazer biscoitinhos. Uma vez
que costumávamos pedir as nossas refeições na cozinha central do Unicórnio,
seu gesto foi sincero.



Quando contei a Xavier, ele me ergueu em seus braços com um giro.
Depois leu o anúncio em voz alta para as árvores e as flores e me fez fingir que


estava subindo no palco para receber o meu prêmio. Ele fez o papel de mestre de
cerimônias, surpreendendo-me ao me entregar uma rosa temporã do jardim.



— Uma rosa para a minha Rose — ele disse e me deu um beijo carinhoso.
— Estou tão feliz por você.



Quando voltei para casa, fiquei surpresa ao ver que meus pais já tinham
voltado. Mamãe me serviu uma taça de champanhe.



— O Sr. Sommers acabou de me contar — mamãe disse no momento em
que cruzei a soleira. — Muito bem, Rose!



— Boa menina — papai disse, mas mal ergueu os olhos de seus arquivos.
Eu já estava acostumada com isso.



— Vocês estão felizes? — perguntei surpresa. Eu não sabia por que
imaginava que meus pais não ficariam felizes. Eles sempre aprovaram que eu
passasse o tempo com, como papai dizia, o meu kit de pintura. Eles me amavam
e queriam o melhor para mim. É claro que ficariam felizes! Abri um largo sorriso.



— Foi uma bela conquista — mamãe falou. — Estou muito orgulhosa de
você. Mas não precisa se preocupar com nada. Eu já acertei tudo com o eu
professor. Disse para ele que você não poderia aceitar.



Meu sorriso morreu instantaneamente.



— O quê?



— Tomei conta de tudo por você. Não se preocupe.




— Do que... você está falando? Por que eu não poderia aceitar?



— Bem, querida, o seu professor de arte me disse que você teria de receber
o prêmio pessoalmente — mamãe disse. — Você sabe muito bem que no próximo
mês nós estaremos na Austrália.



Fiquei perplexa.



— Mas... mas eu tenho de aceitar. É o Programa para Jovens Talentos! — o
olhar vago e desatento de mamãe me preocupou. Ela não estava me ouvindo.
Falei mais alto, gritando de modo estridente. — Eles têm estudantes de arte de
todas as partes do planeta! Competi com universitários! Mãe!



— Não erga a voz para a sua mãe — papai disse, desviando os olhos de
seus arquivos. Este era um terreno perigoso. Distrair meu pai do seu trabalho...



Mas, pela primeira vez, não me importei com a desaprovação do papai.



— Vocês não entendem! Esse é o prêmio de maior prestígio para um jovem
artista! Ele é reconhecido mundialmente! Eu poderia começar a vender minhas
peças este ano.



— Você não tem nem dezesseis anos ainda, Rose — mamãe disse. Não era
verdade, mas ela não sabia. — Não acho que esse tipo de publicidade seria bom
para você nesta fase da vida.




— Eu não estaria com quinze se vocês não continuassem me colocando em
estase! — gritei. Eu não fazia a menor ideia de onde tinha vindo aquilo. Mamãe se
levantou da cadeira. Ela nunca se levantava quando falava comigo.



— Não ouse nunca mais erguer a voz para mim, mocinha! — ela disse
lentamente, em um tom de voz ameaçador.



— Por favor! — pedi, chorando de verdade. Eu estava desesperada. — Por
favor, não tirem isso de mim!



O rosto de mamãe estava comprimido e seu olhar se voltou para papai.



— Você não acha que ela está muito tensa? — mamãe perguntou.



Não. Eu não estava... Ela estava. Pude ver isso em seu rosto. Por um
momento, apenas fechei os olhos, curvando-me diante do inevitável.



A voz do Sr. Sommers ecoava na minha cabeça. "Uma bolsa de estudos na
Academia de Arte Hiroko!"



— Não — eu disse, banindo as lágrimas, tentando manter o tom de voz
calmo. Ergui os ombros, fingindo ser uma adulta. — Não estou agitada. Isso é
muito importante para mim.



Papai franziu o cenho.



— Tão importante a ponto de você ser rude com a sua mãe e desafiar o seu
pai? — ele perguntou. — Nós a amamos. Só queremos o melhor para você. Diga
que você sabe disso, Rose.




Não sei de onde tinha vindo a minha hesitação. Eu sabia a resposta. Sem
pensar.



— Sei disso, sim senhor — eu disse, finalmente encontrando as palavras
em meio à torrente de pensamentos.



— Você sabe o quê? — ele insistiu.



— Sei que vocês só querem o que é melhor para mim, senhor — sussurrei.



— Ótimo — papai disse. Ele suspirou. — Mas acho que você está muito
agitada por causa dessa história. Jackie, por que você não a leva para dentro,
acalma-a e, então, nós dois podemos discutir isso.



— Boa ideia. Venha, Rose.



Suspirei. Odiei quando eles fizeram aquilo comigo. Eles nem iam partir e
mesmo assim eu perderia horas preciosas com Xavier. Não haveria um jantar
especial naquela noite.



— Por quanto tempo? — perguntei à mamãe enquanto ela me colocava no
meu tubo de estase.



— Por um ou dois dias apenas, querida — mamãe disse. — Só precisamos
discutir o assunto. Você deve se acalmar.




— Certo — concordei. Deitei-me calmamente e deixei que a estase levasse
para longe o meu desapontamento. Eu tinha certeza absoluta do que eles iriam
decidir.



Não me surpreendi quando abri os olhos e encontrei Ǻsa olhando para
mim. Mamãe e papai tinham partido sem se despedir de mim. Tinha sido mais
fácil assim, sem ter de discutir inutilmente com eles, supus. E eles não podiam
descobrir que Ǻsa continuava me tirando da estase.



— Obrigada — eu disse. — Quanto tempo "passei fora"?



Os lábios de Ǻsa estavam contorcidos ao responder:



— Duas semanas. Eles partiram na noite passada para a Austrália.



Assenti. Não fiquei surpresa. Não era a primeira vez que eles simplesmente
me mantinham em estase até que um evento controverso passasse. Uma festa de
aniversário que eles não queriam que eu fosse, ou uma excursão da escola da
qual eles achavam que eu não deveria participar. Eu tinha toda certeza de que
eles simplesmente planejavam me deixar em estase até que a cerimônia do
Prêmio Jovens Talentos tivesse passado. E isso era algo que eu simplesmente
aceitava.



Não desta vez.



— Onde está Xavier? — perguntei.




— Na escola — Ǻsa disse. — Eu sempre espero algumas horas depois que
eles saem, no caso de terem se esquecido de algo e resolvam voltar. Ainda bem,
caso contrário eles teriam nos apanhado umas duas vezes.



Sorri, mas foi uma risada sem alegria.



— Tudo bem. De qualquer maneira, acho melhor comer algo antes de
conversar com ele.



Ǻsa pareceu perceber que havia algo mais implícito em meu tom do que
simplesmente querer ver o meu namorado.



— O que você precisa que o senhor Xavier faça? — ela perguntou.



Pousei a mão no metal lisinho e no neovidro do meu tubo de estase.



— Preciso do garoto que sabe hackear o meu tubo de estase — eu disse. —
Preciso de um garoto que saiba falsificar uma autorização dos meus pais para a
entrega do prêmio do Programa para Jovens Talentos.



* * *



Eu queria ter levado Xavier como meu acompanhante para Nova York, mas
não pude. Depois de ter enviado vários documentos forjados pela internet, Xavier
conseguiu convencer o Sr. Sommers de que meus pais queriam que ele me
acompanhasse para a cerimônia de premiação. O Sr.Sommers ficou muito feliz
com isso, uma vez que ele estava tentando ir de qualquer maneira, mas tal
viagem não cabia no orçamento de um professor.




Foi a cereja na cobertura para coroar o ano perfeito. Dividi um quarto de
hotel com mais três ganhadoras: uma universitária da Escola de Arte de Oriana,
uma artista gráfica de arte conceitual que tinha crescido em Luna e Céline, cuja
presença me surpreendeu. Céline era aprendiz de André Lefèvre, um escultor cujo
trabalho eu admirava desde que tinha seis anos de idade. Conversamos sobre
arte até as primeiras horas da manhã e, no dia seguinte, fomos todas para um
passeio pelo Museu de Arte Metropolitana de Nova York. Eu seria capaz de passar
um ano ali, mas, quando as portas se fecharam, voltamos para o hotel e fomos
levadas de limusine para o banquete de premiação. Depois de comermos, os dez
vencedores foram chamados ao palco e recebemos placas de ouro com nossos
nomes, categoria de premiação e o nome da obra. "ROSE FITZROY", estava
escrito na minha. "SOB O CÉU, PINTURA A ÓLEO". Então, fomos acomodados em
nossos lugares e esperamos para ver quem ganharia o prêmio.



Eu esperava que Céline fosse a vencedora. Apesar de a sua língua pátria
ser a francesa e os nossos meios de expressão serem imensamente distintos, nós
tínhamos gostos parecidos e o mesmo sentimento sinistro de felicidade em
relação ao nosso trabalho. Além do mais, ela era aprendiz de um artista
realmente brilhante.



Assim, quando meu nome foi anunciado, fiquei desapontada. Tinha me
virado para dizer a Céline que sentia muito por ela, quando percebi que o nome
que eu tinha ouvido, e que não era o de Céline, na verdade era o meu.



Virei a cabeça para o palco e fitei o mestre de cerimônias, completamente
incapaz de me mover. Foi preciso que todas as minhas amigas de quarto me
empurrassem para que eu me levantasse da cadeira.




O prêmio me foi entregue, um pedestal dourado apoiando um imenso
prisma redondo, e dentro dele estava o símbolo da categoria em que eu vencera,
no caso, um pincel. O prisma capturou as luzes da ribalta, que refletiram os tons
do arco-íris em meus olhos.



Esperava-se que eu tivesse um discurso pronto. Céline tinha. Rachel tinha.
Mas eu não tinha nada a dizer.



— Esperei por isso... durante toda a minha vida — sussurrei no microfone
e, então, as lágrimas deslizaram pelo meu rosto, abracei o prêmio contra o peito.
Uma salva de palmas reverberou pelo salão, e todo mundo sabia que, mesmo que
eu tivesse um discurso preparado, eu não conseguiria usá-lo naquele momento.
Imagens de meus trabalhos surgiram em um telão acima do palco,
acompanhadas por um belo concerto de violoncelo. Quando voltei trôpega para o
meu assento, Céline me contou, em inglês, com seu sotaque sensual, que os
"discursos elegantes e sofisticados" que ela e as outras tinham preparado
"empalideceram diante da pureza eloquente" das minhas lágrimas, embora eu
achasse que ela estava tentando fazer com que eu me sentisse melhor por estar
totalmente despreparada.



Quando eu e o Sr. Sommers voamos de volta para casa, Xavier estava
esperando por mim no carro elétrico dos pais dele. O Sr. Sommers foi para casa,
e eu fui embora com Xavier.



— Estou tão feliz por você que nem sei como lhe dizer — Xavier falou
enquanto dirigia de volta para a ComUnidade.




— Ainda não consigo acreditar que isso tenha acontecido de verdade — eu
disse. — Só tenho dezesseis anos, isso nunca aconteceu antes. Nunca na história
dessa premiação.



— Bem, você tem mais anos de experiência do que qualquer um dos outros
participantes — Xavier disse com uma risada. — Foi uma competição injusta.



— Pare com isso — eu disse. — Só tenho dezesseis anos.



— E é uma artista brilhante — Xavier disse.



— Não sou — falei. — Trapaceei. Ganhei o prêmio por causa de um sonho
estase. Todos aqueles trabalhos tinham sido sonhos estase. Foram eles que me
deram as cores.



Xavier me fitou durante tanto tempo que fiquei com medo de que nos
tirasse da estrada, mas eu não disse nada.



— Você usou a sua experiência de vida — ele finalmente disse. Em seguida,
olhou de volta para a estrada. — Tenho certeza de que as outras pessoas fizeram
a mesma coisa.



Isso era verdade. Os contornos intrincados formados pelas colisões dos
asteroides permitiram que Rachel criasse as suas obras no computador, e as
atuações circenses e as dançarinas que André usou como modelos também
tinham influenciado Céline. Eu sabia que ele estava certo.



— Mesmo assim ainda sinto que estou trapaceando — insisti.




— Os sonhos estases são sonhos — disse Xavier. — Eles vêm da sua
cabeça, não do seu tubo de estase.



Baixei os olhos para o troféu que estava em minhas mãos.



— Ainda não consigo acreditar que é real.



Quando entramos no elevador, confiei o troféu a Xavier.



— Você poderia guardar para mim?



Xavier desviou os olhos do troféu para mim.



— Eu não poderia — ele disse. — Você o ganhou.



— E se meus pais o virem, o que você acha que pode acontecer? —
perguntei. — Devolva-o quando eu for para a universidade, quando eu aceitar
aquela bolsa de estudos.



Xavier sorriu.



— Trato feito — ele disse.



Já no elevador, ele me beijou tão demoradamente e com tanto ardor que
comecei a me questionar se o elevador não estava caindo (na verdade, ele já tinha
parado e aberto as portas e esperava pacientemente que terminássemos nossos
"assuntos" para partir novamente).



— Eu amo você — eu disse.




— Eu amo você — Xavier falou. — Estou muito orgulhoso de você. — Ele
me deu um beijo na ponta do nariz. — A gente se vê amanhã.



Seguimos para caminhos distintos, abri a porta do meu apartamento e
entrei saltitante.



— Ei, Ǻsa! Cheguei!



Ǻsa não respondeu com seu sueco brusco "Jal", assim terminei de entrar e
enfiei a cara na sala de estar.



— Ǻsa?



Senti um frio percorrendo a espinha, deixando um gosto amargo na minha
boca.



— Ǻsa não está aqui — mamãe disse, encarando-me.



Umedeci os lábios. Mamãe e papai estavam sentados lado a lado no sofá da
sala de estar, esperando por mim.



— Eu... eu posso explicar — disse.



— É melhor mesmo — mamãe falou. — Chegamos mais cedo,
especialmente para levá-la para esse... negócio que você tanto queria. E o que
descobrimos? Que você já tinha partido. O tubo estava vazio. Quase telefonamos
para a polícia. Você sabe o que isso teria significado para a imagem do seu pai
diante da sociedade? Nossa filha, sequestrada? Ou pior, uma fugitiva ingrata.




— Sinto muito, mamãe, eu só...



— É melhor que realmente esteja sentindo muito — papai disse. — Quando
descobrimos que você não estava esperando por nós, falamos com Ǻsa. Ela
confessou que vinha tirando você da estase. Não, eu pensei. A nossa filha não
faria uma coisa dessas! Ela não ousaria mentir na minha cara! — papai se
levantou para que toda a sua altura se abatesse sobre mim. — Ou pelo menos foi
o que pensei.



Estremeci e meu estômago se contorceu.



— Sinto muito, papai — sussurrei.



Mamãe se levantou, então, e colocou-se ao lado dele.



— Ela nos contou que você tem um namorado. Você ainda não tem idade
para namorar.



— Mamãe, já tenho dezesseis anos — sussurrei.



Papai explodiu então. Eu nunca o vira realmente bravo, não que eu me
lembrasse. E era o medo daquela ira que eu via oculta sob a superfície que
sempre me impediu de desafiá-lo.



— Sua vadia mentirosa! Ainda bem que estamos aqui para cuidar de você,
sabia? Você sabe o que poderia ter lhe acontecido se fosse filha de qualquer um?
Teria sido diagnosticada como louca! Eles a teriam abandonado nas ruas!
Ninguém merece perder tempo com você, muito menos nós! Você é uma inútil!


Uma imbecil, fingida, uma larva traidora que não merece nem mesmo lamber
nossos pés!



— Eu cuido disso, Mark — mamãe disse, com os olhos contraídos.



— Faça essa criança se comportar, ou você nunca mais a verá novamente!
— papai gritou para ela.



— Não se preocupe, querido — mamãe disse. — Rose e eu vamos resolver
isso. Ela sabe o que é melhor para ela.



Engoli em seco. De repente, senti mais medo da calma da mamãe do que da
fúria do papai.



Duas horas depois, eu estava indo para a cama, trêmula, exausta, com o
rosto ardendo de tanto chorar. Mas mamãe estava certa, como ela sempre
costumava dizer, repetidas vezes. Eu sabia o que era melhor para mim.



Esperei o dia todo no jardim. Eu poderia ter ido bater na porta de Xavier,
dito aos seus pais que gostaria de vê-lo. Eles sabiam muito bem o que existia
entre nós, e nunca se incomodaram.



Mas eu não queria tirá-lo de sua felicidade. Parecia que, quanto mais eu
esperasse por ele, maior seria o tempo que seu mundo continuaria completo. Eu
me sentia como Ofélia. "Meu senhor, tenho comigo umas lembranças suas que há
muito tempo gostaria de lhe restituir..." A devolução confusa e desajeitada dos
presentes e cartas de Hamlet, sabendo, o tempo todo, que seu pai a esperava
atrás da tapeçaria. Mamãe e papai não estavam em nenhum lugar onde
pudessem ser vistos, e eu sabia que eles não estavam escutando. Mas, mesmo


assim, eu sabia o que tinha de fazer. Perguntei-me se, depois que tudo tivesse
terminado, não me atiraria no lago do jardim, envolta em flores. Perguntei-me se
faria alguma diferença.



Ele me viu no momento em que pisou no jardim. Deu um sorriso tão largo e
feliz que meu coração se contorceu. Eu estava prestes a estragar tudo. Mas sabia
o que era melhor.



Ele me envolveu em seus braços, e ansiei por retribuir o abraço. Mas não o
fiz. Permaneci ali parada como um poste de madeira.



Xavier se afastou e olhou para mim, beijando a minha testa.



— Ainda está surpresa com o que aconteceu ontem?



Respirei fundo.



— Eu... eu acabei conhecendo muito bem as outras artistas durante o
tempo que passei lá. — Eu sabia que esse era o único caminho que poderia
pegar. Afinal, este era o único episódio da minha vida do qual ele não tinha
participado. — Dividimos um quarto.



— Foi o que você disse — Xavier falou, sorrindo. — Você aprendeu novas
técnicas?



— Não — respondi. — Bem, sim, mas... mas aprendi mais sobre a vida.
Todas eram mais velhas do que eu.



Ele desarrumou meus cabelos.




— Elas devem ter paparicado você.



Eu me afastei.



— Para com isso.



Ele finalmente percebeu que havia algo errado.



— Rose? O que foi? Qual é o problema?



— É que... — eu disse. Não podia prolongar mais aquilo, tinha de sair
daquela situação o mais rápido possível. Era como se eu estivesse cortando os
pulsos, se tentasse fazê-lo lentamente, nunca iria conseguir. — Não está mais
dando certo.



Xavier franziu as sobrancelhas.



— O que não está dando certo?



— Nós — eu disse, apontando o espaço entre nós. — Quero dizer que não
somos... mais os mesmos.



Xavier ergueu uma sobrancelha.



— Espero que não. Ia ser muito difícil beijá-la se ainda fôssemos.



— Estou falando sério — disse com rispidez.




Xavier percebeu.



— Pare com isso, o que há de errado?



— Não há nada de errado — eu disse. — Só não posso mais continuar com
isto.



— Com isto o quê?



— Ficar com você — falei.



Xavier ficou paralisado por um momento.



— Por que não? — ele finalmente perguntou.



— Porque simplesmente... não posso.



— Não — Xavier disse, agora com raiva. — Nada de "simplesmente". Você
vai me dizer o que está acontecendo.



Eu sabia o que aconteceria no momento em que saí pela porta. Sabia que
dizer a ele que não o amava não iria funcionar. Ele me conhecia o bastante para
desconfiar se eu dissesse que amava outra pessoa. Eu não podia contar para ele
que meus pais desaprovavam nosso namoro, pois ele encontraria um jeito de me
ver, apesar deles. Ou ele iria esperar que eu os desobedecesse, e eu simplesmente
não poderia fazer isso. Assim como não poderia suportar ver a dor em seus olhos
quando dissesse, repetidas vezes, que tinha escolhido meus pais em vez dele. Por
isso, fiz a única coisa que podia. Falei a realidade, da maneira mais dura e
desonesta possível.




— É muito esquisito, Xavier — eu disse. — Quer dizer, eu... cresci com
você. Troquei as suas fraldas, pelo amor de Deus! É como... como se fôssemos
irmãos, ou... ou... — eu não conseguia seguir a minha linha de pensamento, e
deixei por isso mesmo.



— Você não achou muito esquisito na noite passada. O que aconteceu
nesse espaço de tempo?



— Nada! — eu disse, provavelmente muito rápido. — Na noite passada
estava muito... cansada e feliz, e não quis tentar mudar nada. Mas eu já sabia...
— fiquei com receio de que ele tivesse percebido a mentira embutida na minha
voz, por isso, voltei ao começo. — Sempre fui mais velha do que você, tentei
cuidar de você. Quer dizer, você até me confidenciou sobre a sua primeira paixão.



— Não, eu não contei — ele retrucou. — A minha segunda, a terceira, sim.
Mas a minha primeira paixão foi você.



— Viu? — eu disse, pulando a última parte. — Não pode ser real. Isto é...
não passa de uma necessidade de sanar um desejo adolescente. Não pode ser
bom para nenhum de nós.



— Rose, o que você está dizendo?



Eu não conseguia olhar em seu rosto. Não queria ver o olhar abatido que
sabia que estaria impresso lá. Mas podia ouvir a tensão em sua voz, o pânico mal
disfarçado. Esperei que meu tom de voz não estivesse tão fácil de decifrar.




— Estou dizendo que não podemos continuar juntos — falei. — Estou
dizendo que não é certo.



— Não... é certo?



Eu sabia o que ele estava pensando. Que era a coisa mais certa do mundo.
Que, quando estávamos juntos, o mundo todo parecia se endireitar por completo.



— Não. — Esperava que não tivesse notado quando engasguei com aquela
palavra. Respirei fundo. Eu precisava ir embora dali. Não poderia suportar aquilo
por mais um segundo sequer. — Adeus, Xavier — sussurrei. Segui pelo gramado.



A porta nunca me pareceu tão distante. Um passo. Dois. Três. Quatro.
Consegui dar seis passos até que Xavier me agarrasse por trás, e me virasse de
frente para ele.



— Não! — ele me segurou pelos ombros e me chacoalhou. — Não! Eu não
aceito! Quem se importa com o que o mundo considera certo ou errado? Não
somos aberrações da natureza! Nosso namoro não pode estar ofendendo
ninguém! Como alguém pode dizer que o que estamos fazendo é errado? Não
somos irmãos, não temos nem mesmo idades diferentes! A culpa por você ter
demorado tanto para crescer não é sua!



— É minha culpa sim — sussurrei.



— Cale-se! — ele gritou. — Pare de fazer isso com você, pare de se culpar!
Odeio aqueles vampiros com quem você vive, odeio-os! Eles sugaram até tirar de
você todo e qualquer senso de autoestima e normalidade! Você não vai encontrar


outra pessoa que a compreenda como eu! Não haverá ninguém, você me
entendeu? Ninguém!



Naquele momento, ele tinha perdido todo o seu bom senso e eu poderia
usar isso contra ele. Eu me odiei por estar fazendo aquilo, mas joguei tudo na
cara de Xavier.



— Agora quem está me dizendo que eu não valho nada? — gritei. — Posso
fazer o que quiser, conquistar quem eu quiser. Enquanto você ainda está preso a
um amor imaturo de doze anos de idade. Cresça! Esqueça-me! Valho dez vezes
mais do que você! — eu o empurrei e, apesar da força de suas mãos, ele me
soltou.



Disparei, correndo em direção à porta como se os cães do inferno
estivessem no meu encalço. Os cães do inferno já estavam dentro de mim,
dilacerando meu coração, e pude sentir seus dentes rasgando meu peito.



Tive de lutar para conseguir abrir a porta, enquanto mal conseguia manter
o equilíbrio. E, naquele breve momento de silêncio antes que eu conseguisse abrir
a porta, senti Xavier atrás de mim.



— Espere — ele disse.



— Não. — Eu já sabia que não conseguiria me conter.



Ele segurou a minha cabeça entre as suas mãos e me virou lentamente de
frente para ele. Eu não queria ver seu rosto. O coração partido que estava ali era
uma agonia para mim.




— Por favor, Rose — ele sussurrou. Então inclinou a cabeça até a minha e
nos unimos em um último beijo.



Pude sentir o gosto da sua dor, a agonia profunda e desesperada que o
estava destruindo. Eu não iria conseguir me segurar por muito mais tempo.
Estava vazia, tudo em mim que significava alguma coisa evaporou-se, fugiu de
mim, como se eu estivesse escapando de um prédio em chamas e correndo para o
santuário daquele beijo. Com aquele beijo angustiado e sombrio, Xavier pegou a
minha alma e guardou-a em um lugar seguro. Uma breve eternidade pairou entre
nós quando ele quebrou o beijo. Seu nariz tocou o meu. Ainda pude sentir seu
hálito nos meus lábios, como se ele não pudesse suportar a ideia de se afastar.
Não consegui abrir meus olhos quando ele me deixou. Eu não queria ver seu
rosto novamente.



— Saiba que eu sempre a amarei — foi o que ele disse.



Eu também queria dizer isso a ele, mas a porta atrás de mim se abriu e
mergulhei na escuridão total. Encontrei o caminho de volta para meu
apartamento com a visão embaçada pelas lágrimas. Mamãe e papai já tinham
saído para trabalhar, e Ǻsa nunca mais voltaria. Tateei o caminho até a minha
cama e lá fiquei quietinha, como se estivesse em estase.



— Mamãe, coloque-me em estase — choraminguei quando ela chegou em
casa.



— Não, querida — ela disse, enxugando as lágrimas do meu rosto. Elas
estavam saindo havia tanto tempo e com tanta intensidade que nem tinham mais
um gosto salgado. Ela me deu um abraço apertado. — Você fez a coisa certa,
querida. Estou muito orgulhosa.




Eu não sabia o que dizer. Quando Xavier disse aquilo sobre o meu
trabalho, agradeci. Quando mamãe disse o mesmo sobre o que eu fizera, senti
vontade de morrer.



— Por favor — implorei. — Não quero mais me sentir assim.



Mamãe franziu a testa, e finalmente disse:



— Por um dia, se você quiser. Mas você fez a coisa certa, e não vou permitir
que fuja disso.



As coisas pareceram um pouco melhores quando a estase química varreu o
horror do rosto angustiado de Xavier e a tortura da minha alma perdida. Mas,
quando mamãe me acordou e me forçou a ir para a escola no dia seguinte, tudo
voltou a ser tão ruim quanto antes. Provavelmente pior, com a lembrança vívida
que a estase deixara em mim.



O mês seguinte não passou de ondas e mais ondas de tormenta. Eu via
Xavier às vezes, nos corredores do prédio, e me virava de costas para que ele não
se aproximasse de mim. Mas, no final da tarde, quando costumávamos caminhar
juntos pelos jardins, eu ia até a janela e ficava observando-o lá embaixo,
enquanto ele vagava sozinho pelos caminhos. Ele parecia tão perdido. Meu
coração sentiu pena dele, do mesmo jeito que sentira quando ele tinha cinco anos
e perdeu seu coelhinho de pelúcia. Quando tinha sete anos e caiu da bicicleta.
Quando tinha treze anos e admitiu que estava com o coração partido por causa
de uma menina, que pensei ter sido a sua primeira paixão. Quando a vontade de
correr para ele e pedir desculpas ficou muito grande, corri para a minha mãe e
implorei que me colocasse em estase, por mais uns dois dias pelo menos.




E ela concordou.





— Até nunca mais me acordar novamente — sussurrei.














24





TODA A HISTÓRIA FOI DERRAMADA NA MENTE DE OTTO. NÃO LEVOU MAIS
DO QUE cinco minutos. Em algum momento da torrente de autoacusação, Otto
soltou a minha mão para pousar os braços ao redor de meus ombros, seu rosto
recostou-se contra o meu. Ele era quente e calmo e seu hálito soprava contra a
minha orelha.



Fiquei surpresa por não estar recebendo nenhum pensamento de Otto. Eu
quase podia sentir algo em um canto da minha mente, um pensamento
inacabado, sereno, sem tocar em nada. Afastei-me um pouquinho, mas a mão de
Otto ainda estava ao redor do meu pulso.



— Por que você não está atirando contra mim todos os chavões, como: você
não teve culpa, não poderia saber, seus pais impuseram isso a você, ninguém
merece uma morte lenta por estase, não importa o que tenha feito, e tudo o mais?



Os cantinhos dos olhos de Otto se enrugaram um pouquinho e então
percebi que aquele era o seu sorriso verdadeiro, não o forçado que ele criou para
a sociedade.



— Você mesma fez isso — pensei na voz de outra pessoa.



— Não acredito nisso.




— Sim, você acredita. — Otto me falou, em pensamentos que eram mais do
que palavras. — Você sempre acreditou. Mas apenas odiava muito a si mesma
para admitir.



Otto realmente não mentira. Pude captar o sentimento nas coisas que ele
disse. Ele sentiu o quanto eu ocultava atrás da minha falta de amor próprio. Um
dia, eu acabaria enxergando tudo sozinha, mas, com a ajuda de Otto, tudo veio à
tona muito mais rápido.



Meus pais sempre estiveram errados. Eles tinham me moldado de tal modo
que fui forçada a acreditar que eles estavam certos. Não era Xavier quem eles
desaprovavam, era qualquer um que soubesse o que eles tinham feito comigo. Foi
por isso que tentei proteger Guillory, ao deixar de dar voz às minhas suspeitas.
Eu estava acostumada a fazer isso. Vinha protegendo mamãe e papai de todas as
pessoas, guardando segredo de cada maldade que eles disseram para mim, de
cada pensamento humilhante que me impuseram, de cada período em estase,
quando eles me colocavam de lado para que, assim, não tivessem de lidar com a
filha deles.



Quando ganhei o Prêmio Jovens Talentos, eles entraram em pânico. Eu
ganhara minha liberdade, assim como Otto quando conquistou a bolsa de
estudos. Eles não teriam mais a filhinha perfeita e doutrinada. Por isso, tiveram
de tirar aquilo de mim de um modo que parecesse que eu tinha recusado. Eles
me fizeram desistir de Xavier, para que pudessem me trancafiar sem que ele
contasse nada a ninguém.



Perguntei-me se algum dia meus pais planejaram me acordar. Talvez. Foi
apenas um ano e meio depois que os Tempos Sombrios tiveram início, e eles
podem ter me deixado lá para a minha própria segurança. Talvez tivessem apenas


se esquecido de mim nos últimos nove anos, ou talvez me manter em estase tinha
se tornado um hábito para eles. Mas eu sabia, sem sombra de dúvida, que eles
não tinham me colocado em estas e para o meu próprio bem.



Eles me mantiveram criança enquanto puderam, por egoísmo. Para que
mamãe tivesse a sua boneca de carne e osso para vestir e brincar. Para que papai
tivesse a sua pequena servil, sempre pronta para dizer "Sim, senhor. O senhor
sabe o que é melhor para mim". Eles constantemente me mudavam de escola
para fazer com que eu pensasse que era burra. Eles me colocavam em estase
regularmente para me manter jovem, e eles me fizeram acreditar que era isso que
eu queria. Eles me deixaram brincar com as minhas pinturas, pois era algo que
não representava uma ameaça, era inofensivo e ajudava a me distrair... até que
ganhei o Prêmio Jovens Talentos. Então, isso foi demais para eles.



Será que eles mentiram?, questionei. Será que realmente vieram para casa
para me levar à cerimônia de premiação? Se Otto não estivesse em minha mente,
eu provavelmente teria pensado que sim. Mas, com o meu sentimento de culpa
fora do caminho, pude ver, tão clara quanto a luz do dia, a desconfiança que
sentia por eles. Eles me amedrontavam. Sempre me amedrontaram. Eu os amei
com cada átomo, mas eles me amedrontavam e eu não confiava neles.



— Você acha que meus pais me amavam? — perguntei em pensamento para
a presença silenciosa.



— Eles provavelmente achavam que sim — pensou a outra voz na minha
cabeça. — Não acho que eles soubessem quanto.



Suspirei e tentei me esquivar. Otto segurou firmemente o meu pulso.




— Eu vou lhe dar amor — ele pensou para mim. — Podemos ser uma
família. — Em seguida beijou a minha têmpora muito carinhosamente e me
surpreendi sorrindo.



Ele soltou meu pulso então, e a presença silenciosa desapareceu da minha
mente.



— Obrigada — sussurrei. — Eu ainda o assusto?



Otto assentiu, mas os cantinhos de seus olhos se enrugaram. Sua mão
roçou a minha face e o pensamento de uma roseira selvagem envolvendo um belo
castelo passou pela minha mente. O castelo da Bela Adormecida. Somente ele
não me via como a bela amaldiçoada e passiva, esperando calmamente para ser
despertada por seu príncipe encantado. Eu era a impressionante roseira,
selvagem e impenetrável, e forte o bastante para resistir a centenas de anos de
pessoas tentando forçar um caminho entre os meus espinhos, para atingir os
vulneráveis inocentes que eu protegeria. A cerca viva que sabia que pessoas,
quais pessoas, podiam entrar.



Franzi a testa.



— Quem estou protegendo?



Os olhos de Otto sorriram, e ele pousou a mão no meu coração. "Você."
Então, tocou no próprio coração. "Eu." Cruzou as mãos e gesticulou, indicando o
mundo todo. Ele tocou de brincadeira o meu nariz, e um pensamento rápido me
ocorreu.




— Eu confio em você. — Não tinha sido exatamente um "Eu". Nabiki estava
certa, o que ele pensava nem sempre podia ser traduzido em linguagem. Havia
um "nós" no que ele disse, como se a sua família fizesse parte. Mas era ele quem
me conhecia.



Um telefone celular tocou. Otto enfiou a mão por baixo de sua camisa e
puxou o seu celular.



— Para que você tem um celular? — perguntei.



Ele olhou para mim e balançou a cabeça. Percebi, então, mesmo sem ele ter
me dito, que os outros podiam falar com ele. Ele fez o som de um estalo com o
canto da boca, que obviamente ativou a chamada. O rosto de Bren se
materializou na mão de Otto.



— Otto, você conseguiu falar com a Rose?



Otto assentiu e me entregou o celular.



Eu me senti estranha.



— Hum, oi — eu disse.



— Rose, graças a Deus! Você está bem?



— Sim, por quê?



— Vovô me telefonou. O plastine atacou o prédio da Uni há cerca de vinte
minutos.




Pisquei.



— Ele o quê?



— Ele arrancou uma parede e começou a chacoalhar a guarita de
segurança. Tentaram detê-lo, mas é impossível parar uma coisa daquelas. Ele
causou muito estrago, e algumas pessoas que tentaram detê-lo estão no hospital
agora. Quando não a encontrou, ele foi embora. A polícia está tentando
rastreá-lo, mas o plastine possui um tipo de modo secreto conectado aos pontos
de acesso da UniCorp. Nem mesmo as câmeras de segurança da Uni registram a
presença dele. Os computadores da Uni digitalizaram-no com uma correção
automática. É assim que ele tem conseguido vagar pela ComUnidade sem ser
detectado. O plastine definitivamente está agindo sob o comando de alguém de
dentro da UniCorp.



— Como Xavier está? — perguntei, e não consegui ocultar o pânico na
minha voz.



— Vovô está bem. Ele está indo buscar você. Eu também estou a caminho.
Devo demorar cinco minutos para cruzar o campus. Você está com Otto?



— Sim, no alojamento. Olha, não acho que eu esteja pronta...



— Mais tarde podemos lidar com qualquer coisa que não seja o seu fim
iminente! Por enquanto, apenas esqueça! — Bren esbravejou, e eu sabia que ele
estava certo.



— Certo. Alguém encontrou Guillory?




O rosto de Bren obscureceu.



— Sim. Não achamos que tenha sido ele quem enviou aquela coisa atrás de
você.



— Por que não?



— Ele foi encontrado no quarto do hotel, espancado até a morte — Bren
disse. — Só ficamos sabendo agora, pois ele se registrara com o nome de Jance.



Não engoli aquilo.



— Então o que ele quis dizer quando falou que seria uma pena o que
aconteceria comigo?



— Provavelmente o que ele sempre costumava dizer — Bren respondeu. —
Que você vai envelhecer e deixará de ser bela. Ele disse isso para Hilary também.
Estava bêbado.



Senti um calafrio. O homem ainda era um idiota, e eu ainda não gostava
dele, mesmo estando morto. Mas se não era ele que estava tentado me matar, eu
não desejava a sua morte, não importa o tremendo idiota que ele era, não importa
as atrocidades que ele dissera ou pensara enquanto estava bêbado.



— Então, quem está tentando me matar? — perguntei com voz trêmula.



— Ainda não sabemos. Onde está o Otto?




Otto apanhou o celular de volta.



— Otto, fique com ela até eu chegar aí. Só vou demorar um minuto.



Aquele minuto foi muito demorado. Uma sombra preencheu a porta de
entrada da sala de estar. A voz plástica, com um carregado sotaque alemão
quebrou o silêncio.



— Você é Rose Samantha Fitzroy Por favor, permaneça parada para
identificação de retina.








































25





NÃO TIVE TEMPO DE REAGIR. FUI ABORDADA DUAS VEZES, PRIMEIRO PELO
CORPO DE Otto e mais uma vez por sua mente, que fez aquilo com uma onda
desenfreada de pânico defensivo. Ele me jogou para trás do sofá, grunhindo de
modo incoerente.



Subcorrentes sensíveis percorreram os pensamentos de Otto, buscando por
tudo o que eu sabia sobre aquela criatura. Ele sabia que o plastine era metódico,
distraía-se com facilidade, não sentia dor. Captei uma informação com muita
distinção, "Queime-o, não jogue tinta!", enquanto seus olhos percorriam a sala em
busca de uma possível arma. Ele empurrou a minha cabeça para baixo.



— Não fale nada! O plastine pode usar a sua voz para confirmar a
identificação inicial dele. Se pensar que você não é você, acabará desistindo. Vou
distraí-lo, você corre para a porta.



Antes que eu tivesse tempo de lembrá-lo sobre o que acontecera com
Guillory, ele já tinha ido, esgueirando-se pelos cantos da sala, fora do campo de
visão imediato do plastine. Enquanto eu me arrastava para trás de uma cadeira,
Otto jogou uma mesinha de centro entre mim e o plastine. A criatura ergueu a
mesa, deixou-a em frangalhos e me segurou pelo tornozelo.



Gritei e me arrastei para trás de outra cadeira. Com um golpe súbito, o
plastine quebrou a cadeira que me escondia. O enchimento se espalhou e a


almofada saiu voando pela sala. Rolei para o lado, meu coração afetado pela
fadiga estase protestava contra o esforço. Eu não consegui recuperar o fôlego,
mas fui capaz de ficar em pé. O plastine ainda estava entre mim e a porta. Eu
estava encurralada.



Otto chamou a minha atenção enquanto eu tentava escapar entre os
móveis. Ele tinha apanhado algo — a almofada da cadeira destruída. Ele
terminou de abri-la e removeu o recheio de espuma. Em seguida, engatinhou
como um gato e, então, pulou sobre as costas do plastine. A capa da almofada
desce sobre a cabeça e os braços do plastine, aprisionando-o dentro do tecido.
Otto olhou diretamente para mim, inclinando a cabeça na direção da porta.



Não foi preciso mandar duas vezes. Com o coração na garganta, passei
correndo pelo assassino cego. Ao fazer isso, vi seu braço plastificado se erguendo
para alcançar o braço de Otto.



Eu estava quase chegando à porta quando ouvi o som de algo sendo
esmagado. Meu coração gelou. E me virei no mesmo instante em que o grito
começou. Era um som que nunca mais vou querer ouvir novamente. Era algo
muito humano, mas totalmente sem linguagem. Uma vez, em uma viagem que fiz
ao campo com a minha mãe para um jantar de caridade, ouvi um coelho gritando
enquanto era morto por um cachorro. Aquilo tinha gelado meu sangue. O grito de
dor de Otto era cem vezes pior. O som de tecido sendo rasgado veio em seguida,
quando o plastine arrancou a capa da almofada da cabeça e atirou Otto junto
com ela. Otto bateu contra a parede, tinha um braço torcido em um ângulo
impossível, e deslizou até cair como um amontoado que se movia com dificuldade.
Mas Otto ainda estava entre mim e o plastine.




Eu não podia permitir aquilo. O que aconteceu com Guillory provou quão
fatal era o plastine. Quando ele se abaixou para agarrar Otto pela camisa, eu me
atirei para frente e me espremi entre eles.



Os olhos brilhantes do plastine varreram a minha face uma vez e então ele
soltou Otto, que caiu no chão com um estrondo que doeu até mesmo na minha
cabeça. O plastine pegou o meu pulso.



— Você é Rose Samantha Fitzroy. Por favor, permaneça parada para
identificação de retina.



Permaneci totalmente imóvel e deixei que ele varresse meus olhos com seus
olhos mortos.



— Identificação confirmada. — Ele ergueu o colar controlador e colocou-o
ao redor do meu pescoço. Eu não lutei.



Com um grito de terror, Otto surgiu por detrás e tentou, com o braço que
não estava quebrado, arrancar o colar antes que ele se fechasse. O plastine
ergueu a mão para atirá-lo para longe, com uma força letal, mas a minha mão foi
mais rápida.



Segurei o braço de Otto, e fiz algo intencionalmente cruel. Juntei toda a dor
mais profunda e sombria que eu sentia, o recanto mais escuro, emaranhado e
espinhoso da minha mente; combinei com a lembrança da dor e da fadiga que eu
sentira quando saí da estase e pensei com tanta força naquilo que Otto arfou com
o golpe. Ele se afastou instintivamente, tempo o suficiente para que o plastine
prendesse o colar em volta do meu pescoço com um clique final.




Os primeiros segundos sob o colar controlador foram um choque. Minha
mente gritou em pânico. Era como entrar em estase sem os calmantes químicos.
Meu corpo se recusava a funcionar. Todo o meu sistema dependia dos eletrodos
que tinham se incrustado em meu cérebro. Por uma fração de segundo, tudo
parou e, naquele segundo, eu morri. Então, as coisas começaram a funcionar
novamente, mas de modo estranho, artificial. Meu coração rugiu de volta para a
vida, meus pulmões estreitaram-se, buscando por ar, e meus músculos
contraídos relaxaram quando o plastine aclimatizou seus processadores para o
meu sistema natural.



Agora que tinha cumprido a fase um de seu programa, ele deu início à fase
dois.



Minhas pernas o seguiam enquanto os sinais de seu programa plastificado
eram despejados no meu cérebro através da rede. Não pude dar uma olhada para
ver se Otto estava bem. Eu mal conseguia pensar. A princípio, tudo o que podia
fazer era seguir, sem me importar se estava sentindo dor em algum ponto. O
plastine estava movendo as minhas pernas por mim, forçando meus pulmões a
continuar funcionando e meu coração a bater. Mas ele não sabia qual era a
melhor maneira de mover meus músculos, e comecei a sentir cãibras. Ele não
conhecia os ritmos do meu corpo, por isso meu coração batia fora de compasso.
Cada vez que eu respirava, doía, porque ele aspirava muito ar para os meus
pulmões e, em seguida, expirava com força.



Estávamos andando pelo campus. Ele não tinha levado em consideração
meus canais lacrimais e a produção de fluidos, por isso meus olhos estavam
secos e arregalados, e eu não conseguia nem mesmo piscar. Apesar disso, ainda
conseguia enxergar. O plastine estava seguindo na direção de um


hovercraft. Não era um hovercraft qualquer. Era o luxuoso hover-iate de
Guillory



A porta do barco se abriu, e o plastine entrou. Meu corpo foi forçado a se
curvar e segui-lo. Quando eu estava chegando à porta, um corpo me atingiu, forte
o bastante para me machucar. Fiquei surpresa ao ver Bren. Eu só via na direção
que o plastine permitia, por isso, eu não tinha visto Bren se aproximando ao rés
do chão.



Os dedos de Bren estavam tentando arrancar o colar do meu pescoço. O
plastine se virou. "Não!", pensei. "Não, Bren, corra! Corra! Corra, corra, corra!"
Enquanto meu corpo era contorcido para dentro do iate, o plastine abaixou a
minha cabeça e os eletrodos perderam contato com o meu cérebro por um
milésimo de segundo. Consegui gritar apenas uma palavra, mas foi o suficiente.



— Corra!



Bren me ouviu. Para minha surpresa, ele levou o conselho a sério. Atirou-
se no chão e rolou para baixo do iate antes que o plastine tivesse tempo de
classificá-lo como um alvo.



Durante a eternidade de um milésimo de segundo, o plastine se abaixou na
porta do iate, buscando por opções em seus processadores. Então, com o
obstáculo fora do caminho, ele deu meia-volta, entrou no iate comigo e nós
partimos. Fiz força para me virar e verificar se estava tudo certo com Bren, mas
meu corpo pertencia ao plastine.



Mas era um corpo complexo. Uma centena de funções automáticas, um
milhão de nervos controlando todos os meus controles motores. Havia tantos


sistemas na minha programação natural que ele foi forçado a trabalhar com seus
processadores no limite. E isso o deixou mais lento.



Lento o bastante para que eu conseguisse me adaptar. Tentei descobrir que
parte da minha mente ainda estava sob o meu controle. Havia restado o
suficiente de mim para que eu sentisse dor, então, eu sabia que restara o
suficiente para que eu pudesse pensar. Otto havia manipulado meus impulsos
elétricos com sutileza e delicadeza, de uma maneira fácil de romper. Suspeitei
que, se quisesse forçar Otto a sair da minha mente, eu teria conseguido. Os
impulsos do colar controlador eram desajeitados, uma forma violenta de controle,
que roubava todas as minhas funções automáticas e todo o meu controle motor.



Mas o cérebro com função superior ainda era o meu.



Além disso, não estava totalmente sozinha. Como acontecera com Otto, eu
podia sentir a presença do plastine no canto de minha mente. Ele estava ligado
aos meus sistemas, mas — sem que ele estivesse inteiramente ciente disso — eu
também estava ligada ao dele. O controle era todo do plastine. Mas a minha
atenção podia ir para onde eu quisesse.



Assim que me sintonizei com os processadores do plastine, a presença
ecoando em minha mente se tornou quase opressiva. Era um zumbido de
informações ensurdecedor, muito forte para que meus processadores orgânicos
pudessem aguentar. Se conseguisse fechar os olhos e me virar de costas, eu o
teria feito. Mas aquilo estava dentro de mim, e eu não conseguia. O pânico
aumentou, e fiquei com medo de enlouquecer. Mas, então, o fluxo de
informações, por misericórdia, cessou.




FLUXO DE DADOS 197: VERIFICADO, surgiu na minha cabeça. PRINCÍPIO
INDISPONÍVEL.



Como? O que significava aquilo?



INICIAR VERIFICAÇÃO DE FLUXO DE DADOS 198: INICIADA.



Um novo conjunto de informações incompreensíveis passou pela minha
consciência. Mas eu achei ter reconhecido algo daquilo. Com um rompante de
compreensão, percebi que o plastine estava buscando pela net. Depois que
descobri que o fluxo de informações vinha da net, e não do plastine em si,
consegui me distanciar de tudo e me concentrar mais nisso do que no programa
do plastine.



A princípio, tudo o que consegui captar foi BUSCANDO... BUSCANDO...
BUSCANDO...



FLUXO DE DADOS 198: VERIFICADO. PRINCÍPIO INDISPONÍVEL.



Concentrei-me no significado da palavra "princípio". Lá em seu programa,
havia um subarquivo conectado à palavra. PRINCÍPIO: PROGRAMA DE
OPERAÇÃO PRIMÁRIA. Só podia ser a pessoa que o tinha programado. A pessoa
que o mandara atrás de mim. Olhei com mais atenção. O primeiro arquivo do
programa de operação primária tinha sido ajustado para a leitura de retina, o que
não significou nada para mim. O segundo era um programa de reconhecimento
de voz, o que não era nada além de ondas de modulação. O terceiro era um nome.



MARK ANDREW FITZROY.




Papai.



Todas as funções que poderiam fazer com que eu empalidecesse, chorasse
ou sentisse náuseas estavam sob o controle do plastine, desse modo, tudo o que
consegui sentir foi uma queimação dentro da minha cabeça. Mas tudo fez
sentido.



Mamãe e papai eram pessoas de alto prestígio, figuras famosas. Eles me
alertaram um milhão de vezes sobre os perigos de ser sequestrada e mantida
como refém por pessoas que queriam prejudicá-los. Levei os avisos a sério e temia
sair dos padrões preestabelecidos que definiram para mim. Da escola para casa,
de casa para a escola, nunca saindo do Condomínio Unicórnio, certamente nunca
deixando a ComUnidade. Se não estivesse em nenhum desses lugares, eu sempre
estava com eles.



Esse horror plastificado tinha sido programado para me resgatar, caso eu
fosse sequestrada. Guillory estava morto; Otto, Bren e Zavier tinham sido alvos
porque o plastine estava programado para desativar ou eliminar os
sequestradores.



Sim, era assustador. Triste... porém calculado. Mas supondo que eu não
tivesse sido sequestrada. Supondo que eu tivesse fugido.



Supondo, simplesmente supondo, que a perfeita e encantadora filhinha
deles tivesse decidido que não queria mais viver com eles. O que iriam fazer.
Permitir que uma criança indisciplinada arruinasse a imagem deles na
comunidade global? Deixar que as pessoas soubessem que eu não era a criança
modelo perfeita que eles tentaram forjar? Permitir que seus segredos fossem
revelados, que todos os seus defeitos fossem expostos, que todos os esqueletos


escondidos no armário fossem colocados em um desfile pela rua principal? Não.
Isso não!



Melhor fingir, então, que eu tinha sido sequestrada. Mesmo que eu tivesse
partido de livre e espontânea vontade, o plastine não iria se importar com o que
eu dissesse — ele não estava programado para me obedecer. Fora programado
para entender que qualquer um que tentasse impedir a sua missão era um
cúmplice. Qualquer um que tentasse impedi-lo de me resgatar — amigo, colega
de classe, policial — era classificado como um alvo hostil e deveria ser destruído.
Sem registros. Sem impressões digitais. Sem nenhum rastro que pudesse
incriminar meus pais pelas mortes.



FLUXO DE DADOS 199: VERIFICADO. PRINCÍPIO INDISPONÍVEL.



É claro que o princípio estava indisponível. Papai tinha morrido havia
muito tempo. Mas eu não poderia explicar isso para o plastine.



Tentei avaliar seu programa como um todo. No topo de toda a sua
programação estava o arquivo DIRETIVA PRIMÁRIA. Concentrei-me nesse
arquivo. E vi o que esperava encontrar: DIRETIVA PRIMÁRIA: RETORNAR ALVO
PARA PRINCÍPIO. Eu era o alvo, e deveria ser devolvida para o papai.



Mas o que vi em seguida era algo que teria feito meu sangue gelar, se meu
sistema ainda fosse dominado por minhas emoções. DIRETIVA SECUNDÁRIA,
PRINCÍPIO INDISPONÍVEL: EXTERMINAR ALVO.



Ele fora programado para me exterminar se tivesse plena certeza de que
não poderia me devolver para os meus pais. Todo o horror do plano dos meus
pais começou a ficar claro para mim. Eu sabia que o plastine era um assassino.


Mas meus próprios pais preferirem me ver morta a estar fora de seu controle?
Isso não era amor. Era escravidão.



Já desconfiada do que eu iria encontrar, voltei a minha atenção para a data
da implementação da missão do plastine. Aquela coisa macabra havia sido
encomendada logo depois que recebi o meu prêmio Jovens Talentos. Meu pai, e
provavelmente a minha mãe também, só resolveram programá-lo para vir atrás de
mim depois que demonstrei que já não era mais deles. Meu amor por eles foi se
transformando em ódio à medida que eu lia as regras implementadas na missão
do plastine.



Mas a minha atenção foi atraída pelo arquivo ALVO. Para minha surpresa,
vi mais do que um subarquivo lá.



O primeiro, quando olhei melhor, continha o que eu suspeitava. Imagem de
retina, gravação de voz e o meu nome, ROSE SAMANTHA FITZROY.



Os outros dois arquivos também continham imagens de retina e gravações
de vozes. E mais dois nomes.



STEPHANO LUCIUS FITZROY



SERAPHINA ALEXANDRA FITZROY



Os dois arquivos ainda estavam ativados. As pessoas que aqueles arquivos
representavam não tinham sido eliminadas.



Seraphina... o nome me lembrou algo. Sarah. Minha amiguinha Sarah, do
tempo que eu era tão pequena. E se ela não fosse a filha do zelador? Seraphina


Alexandra Fitzroy. Sarah era a minha irmã! Minha irmã mais velha! Eu não
estava sozinha. Tinha uma família. Tinha um irmão e uma irmã em algum lugar,
provavelmente em estase, assim como eu estivera. Eu precisava encontrá-los.
Meu ódio inútil se transformou em algo forte e protetor e, de repente, não
importava que encontrá-los fosse algo impossível.



Forcei a minha atenção de volta à busca que o plastine fazia pela rede. Ele
estava executando uma verificação sistemática de todas as triagens possíveis.
Embora a busca parecesse não ter fim e variar de maneira constante, ela
eventualmente chegaria ao fim. Ele precisava encontrar e verificar seu caminho
por todos os fluxos de dados possíveis e, se não conseguisse encontrar uma
imagem de retina, gravação de voz ou uma entrada atual com o nome de MARK
FITZROY, ele me eliminaria. Então, para onde, afinal, ele estava me levando?



Até mesmo para essa pergunta, ele me forneceu resposta. Estava lá no seu
programa. RETORNAR PARA BASE. Ótimo. Onde era a base? Busquei o arquivo e
encontrei a latitude e a longitude exatas, até mesmo os quinquagésimos decimais,
mas aquilo não significou nada para mim. Olhei com mais atenção e consegui
encontrar um relatório tático da base. Era uma cadeira, provavelmente uma base
para recarga de energia. Voltei e tentei encontrar um registro de sua
movimentação nos últimos dias.



Ele andou ocupado. Busquei pelo arquivo na ordem inversa. Ele invadiu o
Preparatório Uni e conseguiu completar o primeiro estágio de suas diretivas.
Reter-me. Um momento antes, ele estava a caminho de sua base, no hover-iate de
Guillory; quando captou uma verificação de retina na rede do Preparatório Uni.



Foi o leitor de retina! Toda vez que eu passava por um leitor de retina, ele
era alertado pela rede. Eu fora salva pelo antiquado leitor de impressões digitais


de meu apartamento e pelo fato de nunca ter ido a lugar nenhum, além da escola
e do consultório da minha fisioterapeuta. Se Otto tivesse resolvido conversar
comigo no pátio, em vez de no alojamento, nós ainda estaríamos lá, sãos e salvos,
em vez de Otto estar com o braço quebrado e ferido, e eu não estaria a caminho
de meu fim.



Antes disso, ele estivera no Edifício Uni, averiguando se eu não passara por
ali. Muitos seguranças e vidros quebrados. Cheguei até mesmo a ver Xavier de
relance, gritando com alguém, e o meu coração disparou.



Voltei para a viagem em Nirvana. Mentalmente me encolhi ao ver a imagem
da morte de Guillory. Ninguém merecia um destino como aquele. E, para piorar
ainda mais as coisas, eu odiara Guillory o tempo todo, quando, na verdade, ele
estava tentando deter aquela coisa horrenda. Ele deve ter segurado meu braço
para tentar me tirar do caminho, mas estava muito bêbado para conseguir fazê-
lo. Voltei para a viagem no hovercraft roubado. E vi, na ordem inversa e sob uma
perspectiva diferente, o noticiário que eu assistira em Nirvana, do plastine
surrupiando o barco.



E lá estava. Finalmente, acessei o arquivo do plastine percorrendo uma
área. O lugar parecia ser um jardim. Uma entrada secreta? Eu não fazia ideia de
onde ele estava até que vi de relance os portões de entrada do Condomínio
Unicórnio.



A criatura maldita estava debaixo dos meus pés o tempo todo! A imagem
continuou no sentido inverso e vi o plastine passando pelo subsolo, por meu tubo
de estase! Ele deve ter passado por mim quando me encontrava encolhida lá
dentro, na primeira noite que me atacou.




Uma porta secreta... ou, provavelmente, não tão secreta. Simplesmente
esquecida. Um painel de metal se abriu e o plastine retomou, no sentido
contrário, para a base que ficava no canto da sala.



A sala era assombrosamente familiar. Reconheci a disposição dos móveis. O
escritório de papai, no Edifício Uni, era exatamente igual, com todos os monitores
ligados à rede, a luxuosa cadeira de couro próxima à mesa. Os monitores
estavam apagados e empoeirados agora, somente um ou dois ainda piscavam vez
ou outra, quando a energia passava de maneira inconsistente pelos cabos. O
couro da cadeira tinha rachado, e algum roedor fizera um ninho no estofamento.
Mas eu sabia que aquele só podia ser o segundo escritório do papai, o local de
onde ele podia gerenciar todos os negócios não muito legais que transformaram a
UniCorp na maior corporação comercial da história da humanidade.



Parei de prestar atenção na reprise. Eu sabia para onde ele estava indo
agora. E sabia, ou pensei que soubesse, como iria detê-la. Tudo dependia de um
segundo crucial, quando o plastine fizesse eu me levantar e sair do hover-iate. O
único segundo em que tive algum controle sobre meu corpo foi quando ele girou o
meu pescoço para me fazer entrar no iate. Se eu pudesse me aproveitar daquele
milésimo de segundo enquanto os implantes do colar controlado r estivessem
parcialmente desconectados, eu conseguiria escapar dessa.



O plastine estacionou o hover-iate no pátio do Condomínio Unicórnio e
desceu. Minhas pernas se moveram para segui-lo, meus braços se ergueram em
busca de equilíbrio e, então, minha cabeça se abaixou para evitar que o precioso
alvo do plastine sofresse alguma avaria ao sair do iate.



Mas, antes de ele me mover, eu já estava dizendo para o meu braço subir.
Suba, droga, e segure o meu pescoço! Quando a minha cabeça se abaixou, a


conexão falhou e meu braço reagiu ao impulso constante que eu vinha enviando.
Ele subiu tão rapidamente, como se tivesse colocado a mão no fogo. Minha mão
direita agarrou o colar...



O momento tinha passado. Eu movi minha mão, mas não rápido o
bastante. Em vez de arrancar o colar controlador de meu pescoço, tudo o que
consegui fazer foi forçar meus dedos por baixo dele. Era desesperador. Se eu
pudesse, teria desistido. Mas, agora, eu estava andando pela garagem rumo ao
subsolo, para o meu iminente fim. Meu braço pendia de uma maneira estranha,
meus dedos continuavam presos ao colar.



Mas estava acontecendo algo. Eu podia me mover. Não muito. Pude puxar a
perna, só um pouquinho, em seguida, ela voltou a seguir os impulsos do plastine.
Choraminguei de dor por uma fração de segundo antes que tais reações fossem
contidas. O que estava acontecendo?



Percebi que o sistema sobrecarregado do plastine tinha me abatido com
outra arritmia. Enquanto meu coração pulsava com força, meus dedos
encontraram energia para se apoderar do colar. Era a minha pulsação. O
movimento do sangue em meus dedos estava fazendo a ligação para eu puxar o
colar. Tudo aconteceu em menos de um milésimo de segundo. Mas foi tempo o
suficiente.



Desejei poder piscar para conseguir enxergar melhor. As coisas apareciam
embaçadas diante de meus olhos secos e sem lubrificação. Mas, quando fizemos
uma curva, pude enxergar o suficiente. Lá estava. O meu tubo de estase, a
plaquinha brilhante da NeoFusion era visível mesmo através da visão embaçada.




Com cada pulsação de meu limitado controle, inclinei meu corpo para a
esquerda. Estava andando logo atrás do plastine, mas, lentamente, conseguia
alterar o meu percurso para colidir contra o tubo de estase. O botão de ativar
estava logo à minha esquerda, na altura do meu joelho. Depois de tudo o que
Xavier tinha feito para hackear a coisa, o botão era acionado ao mínimo toque. Se
eu conseguisse me colocar na posição correta, quando colidisse com o tubo, o
botão seria acionado.



Era um plano desesperado. Se falhasse, seria o meu fim — assim como
meus pais tinham planejado.



O plastine continuou avançando, sem se dar conta da minha ligeira
alteração de percurso. Ele passou pelo tubo de estase. Mas eu não.



Com uma nova explosão de dor meu joelho esquerdo colidiu contra o tubo
estase, e o zumbido silencioso da música suave ressoou pela cama acolchoada.
Ele fora ativado. O impacto causado pela colisão derrubou meu corpo de boneca
de pano e caí de cabeça sobre o tubo. O programa do sistema de estase assumiu
o resto do processo. Estases químicas sopraram dentro dos meus pulmões,
embalando-me em um estado de sonho sem medo. A tampa translúcida do tubo
começou a se fechar automaticamente. E, na minha posição de boneca de pano
largada, ele começou a se fechar sobre as minhas pernas. Mas, o mais
importante, sobre o meu braço torcido — o braço cujos dedos estavam presos ao
redor do colar controlador. Enquanto meu cotovelo era forçado sobre a minha
orelha, e meu ombro era quase deslocado, o colar controlador foi arrancado.



Quase pude ouvir o som da sucção quando os eletrodos foram arrancados
do meu crânio. A estase química estava quase completando o seu trabalho, e
meus olhos se fecharam sonolentos. Eu sempre me deixava levar pelos sonhos


estase. Mas, naquele momento, eu lutava contra eles, expulsando as trovoadas
calmas da minha imaginação, forçando meus olhos a verem o cinza azulado do
subsolo, e não as cores vibrantes de meus sonhos. Agarrei-me à dor no joelho, ao
padecimento de meu ombro e ao ardor em meus olhos e me afastei do tubo. Ele
apitou, detectando uma falha no sistema. Lentamente, a tampa se abriu.



Com a química ainda em meu organismo, não senti medo quando vi que o
plastine já tinha se virado, por ter descoberto a interrupção em seu procedimento
programado. Ele parou, seus sistemas estavam reiniciando, pois o plano original
tinha sido frustrado. Estaria atrás de mim dentro de poucos minutos, seu
programa estava se adaptando. Eu poderia ter corrido, mas não teria conseguido
chegar muito longe. Sentia muita dor e meus nanos não estavam funcionando; o
plastine teria me agarrado antes mesmo de eu conseguir me aproximar do
elevador. Mas havia uma alternativa de fuga.



Não ter medo de nada sempre foi um meio sereno de ver as coisas com
clareza. Acho que era por isso que eu sempre tentava me prender à estase, até
mesmo quando não precisava. A clareza me fez ver que só havia um modo de
derrotar o inimigo plástico sem coração.



Calor.



Usando a borda do colar controlador, arranquei o cetim rosa macio que
revestia o interior do meu tubo. Os eletrodos afiados se enroscaram no tecido, e
as bordas resistentes do colar arrancaram nacos do acolchoado. Eu sabia o que
procurava e onde estava.



Com tiras do cetim lisinho grudadas em minhas mãos, encontrei as
conexões da bateria NeoFusion que alimentava o tubo de estase. Segui as


conexões, arrancando o painel de segurança secundário, e lá estava. A bateria,
um recipiente metálico e cilíndrico do mesmo comprimento do meu antebraço e
com a mesma circunferência da minha cabeça. Adrenalina foi a única coisa que
me deu forças para arrancar a bateria de seu compartimento. Ela era pesada,
mas não impossível de ser erguida.



Com um gemido zangado, meu tubo de estase morreu, suas luzes e os
dispositivos que liberavam a química desligaram em um piscar de olhos. O
plastine tinha começado a se mover novamente e estava a menos de cinco metros
de mim. Sacudi a bateria com o enorme logotipo da UniCorp estampado,
estimulando os neutrinos e revertendo a sua polaridade natural. Mentalmente
amaldiçoei meu pai por me ter feito acreditar que eu era burra demais para
entender as coisas. Eu poderia ter assumido a UniCorp sem problema algum.
Tinha conhecimento suficiente sobre o produto mais impressionante da UniCorp,
não tinha? As baterias NeoFusion não podiam ser utilizadas nos barcos ou em
qualquer outro objeto que corresse risco de colisão. Elas eram muito voláteis.



Assim como eu.



Atirei a bateria contra o plastine, esperando que ela explodisse com o
impacto. O plastine apanhou-a com precisão, e meu coração se contorceu. Caí
sobre o meu tubo estragado, na esperança de captar os resíduos químicos, na
esperança de não sentir medo em meus últimos momentos. Eu estava morta.
Adeus, Xavier. Adeus, Bren, Otto, Mina, sol, lua, estrelas, amor, dor,
arrependimento, alegria, arte, beleza.



Mas eu me esquecera da força do plastine e de sua programação. Deter
qualquer coisa que tentasse impedir a recuperação do alvo. Com um movimento


rápido das mãos, o plastine esmagou o invólucro da bateria, e a força bruta
surgiu.



Atirei-me para frente, agarrei a tampa do meu tubo, forçando para que ela
se fechasse sobre a minha cabeça. Não fui rápida o bastante. A primeira labareda
de calor atingiu-me dolorosamente, e todo o meu corpo ficou muito vermelho,
como se eu estivesse com queimaduras solares. As pontas de meus dedos, que
foram as últimas partes do meu corpo a entrar no tubo, ficaram cheias de bolhas.
Mas o tubo tinha sido projetado para resistir às chamas, a grandes
profundidades e ao holocausto nuclear. Ele poderia me proteger de muito mais do
que a simples explosão de uma bateria NeoFusion.



Comprimi os olhos no momento da pior explosão. Quando os abri
novamente, uma luz bruxuleante estava piscando e ousei olhar através do
NeoVidro da tampa do tubo. A rápida explosão de calor já tinha passado — ela
durava apenas alguns segundos, caso o invólucro fosse danificado — mas,
durante aqueles poucos segundos de intenso calor, o plastine pegou fogo.



A criatura estava derretendo, chamas saltavam de seu corpo plastificado,
mas, mesmo assim, ele continuava vindo lentamente na direção do meu tubo.
Seus sistemas não reconheciam a dor. Ele continuou queimando, o fogo
chamuscava o teto do subsolo. Um alarme de incêndio disparou, mas o calor da
explosão inicial foi tão forte que o sistema de contenção de incêndio acima de
nossas cabeças acabou danificado. Prateleiras cheias de coisas velhas
queimavam atrás e ao redor dele. Uma de suas pernas caiu e derreteu-se em uma
poça. Um braço pingava como se fosse uma vela queimando.



Abri a tampa do meu tubo e fiquei assistindo enquanto meu inimigo, a
ferramenta de meu pai, desmanchava em uma poça ardente. Com a cabeça em


chamas, metade de seu rosto já tinha derretido, ouvi um último comando,
desmanchando junto com o plástico derretido.



— Missão abortada. Relatório de danos... capacidade... 11... por cento... 10
por cento... 6... por... — a voz derreteu junto com o restante do corpo.



Eu queria ter me sentido vitoriosa. Mas tudo o que senti foi um imenso
cansaço.



Atrasado, o programa de contenção de incêndio finalmente foi ativado, e fui
atingida por um súbito banho de chuva. Por alguma razão, aquilo me fez rir. A
umidade fria aplacou a dor das minhas queimaduras. Ergui o rosto e os braços.
Contra todas as probabilidades, eu ainda estava viva. O último vestígio de
controle dos meus pais estava derretido aos meus pés, uma massa disforme em
uma teia de espinhos de onde ele nunca conseguiria escapar. Eu era a rosa. Eu
era a roseira selvagem.


























26





A ÁGUA NÃO FEZ MUITO EFEITO SOBRE O PLÁSTICO EM CHAMAS, E EU
TINHA CERTEZA de que a fumaça que se espalhava pelo cômodo era letal. Acho
que eu estava parecendo uma verdadeira bruxa quando Bren, Otto e Xavier
entraram correndo no subsolo para me salvar. Eu estava em pé junto ao entulho
do meu tubo de estase destruído, de braços abertos, soltando uma risada meio
histérica sob a chuva artificial, com os restos do plastine ainda em chamas atrás
de mim. Abaixei as mãos quando os avistei, sorrindo meio sem jeito. O resgate
atrasado deles tinha sido frustrado. Quase me senti mal por isso.



Foi Xavier quem falou. Cautelosamente, como se estivesse com medo de
que o atacasse, ele perguntou:



— Rose? Você está bem?



Eu ri, então tossi, tremendo. A água fria e a fumaça do plástico em chamas
estavam acabando com o meu corpo enfraquecido pela estase.



— Sim — respondi. — O que vocês estão fazendo aqui? Por que não
telefonaram para a polícia? Otto, o seu braço! — O braço dele não tinha sido
devidamente tratado, mas estava pendurado em uma tipoia improvisada.
Reconheci o tecido estragado da almofada do alojamento.




Xavier parecia completamente perdido, molhado, frágil e velho. Foi Otto
quem se aproximou de mim, pousou seu braço bom sobre o meu ombro e me
conduziu, com cuidado, de volta ao elevador (muito gentilmente, seu polegar
tocou o meu pescoço e contei a ele o quanto eu estava ferida).



— Vou ficar bem — ele sussurrou dentro da minha mente. — Já passei por
situação pior. Telefonamos para a polícia, mas o avô de Bren sabia que
conseguiríamos chegar mais rápido. Ele sabia muito bem para onde aquilo estava
indo, e o plastine ainda estava em modo secreto. Ficaria difícil para a polícia
rastreá-lo.



— Sinto muito por você ter se ferido.



Otto lançou uma rajada de pensamentos na minha mente, de como ele teria
se sentido se tivesse ficado parado e deixado tudo aquilo acontecer. Eu me retraí.
Ele estava certo. Teria sido pior.



— Sinto muito pela dor que infligi contra você em pensamento.



— Sei por que você fez aquilo. — A imagem da roseira selvagem guardiã
surgiu outra vez em minha mente.



— Você estava certo — contei a ele silenciosamente. — Eu sei quem eu tenho
de proteger.



O brilho de horror que surgiu em seus olhos amarelos quando pensei em
Seraphina e Stephano certamente refletiu meus pensamentos.



— Tem algo que eu possa fazer? — ele se ofereceu.




Bren estava esperando por nós no elevador. Ele tinha feito a água parar de
cair.



— Vou cuidar do incêndio — ele disse, puxando uma mangueira de
combate a incêndio de dentro de um armário vermelho na parede.



— Diga para Xavier que estarei esperando por ele, lá em cima — falei para
Bren, que se afastava.



Ele lançou-me um meio sorriso de volta. Então, permiti que Otto me
empurrasse para dentro do elevador e subimos para o meu apartamento.



— Você tem certeza de que está bem? — perguntei para ele depois que
entramos no elevador. — O seu braço.



— Vou me consultar com o meu médico. De qualquer maneira, Penny vai
querer ouvir sobre tudo o que aconteceu. Ela adora histórias de aventura.



— Seu médico fica no laboratório?



— É claro. Quem mais poderia saber como eu funciono? Eu nem cicatrizo do
mesmo jeito que vocês! Além do mais, é você quem realmente está precisando de
um médico. Está vermelha como uma rosa.



— Mas uma rosa viva.



Os olhos de Otto se contraíram.




— Onde estão seus pais? — ele não estava pensando exatamente na palavra
"pais", mas era a tradução mais próxima.



— Conhecendo Barry e Patty, acho que eles devem estar jogando golfe ou
algo assim — eu disse. — Não, foi maldade minha. Provavelmente estão
trabalhando.



— Só perguntei porque a polícia vai telefonar para eles. Acho que você vai
querer saber quando eles chegarem.



Assenti.



— Certo — eu disse. Fui para o meu quarto e tirei um uniforme limpo do
armário. Com os dedos queimados, me trocar foi muito mais difícil do que eu
imaginara. Eles ainda estavam ardendo. "Ai!" resmunguei, puxando o tecido de
algodão macio sobre a pele vermelha e queimada. Meu ombro deslocado também
doeu e meu joelho latejou, meus olhos ainda ardiam um pouco e todos os meus
músculos estavam doloridos. Além disso, Bren tinha me machucado de verdade
quando tentou arrancar o colar do meu pescoço. Para completar, meu cotovelo
ainda estava inchado de quando eu acertara o plastine em Nirvana. Foi difícil me
vestir. Só coloquei uma camisa e uma saia e acabei abandonando o restante do
uniforme.



Quando voltei mancando para a sala de estar, percebi que Otto apanhara o
kit de primeiros socorros que ficava em cima da geladeira. Com habilidade,
usando o braço bom, ele conseguiu enrolar algumas ataduras Icestrip sobre os
meus dedos, o que fez com que eu sentisse frio, mas as queimaduras pararam de
arder tanto. Em seguida, ele me fez engolir um analgésico, e estava passando


uma pomada refrescante no meu rosto levemente queimado quando Barry e Patty
chegaram em casa.



— O que você está fazendo aqui? — Barry disse.



— Em que confusão se meteu dessa vez? — Patty perguntou.



— Por que a polícia telefonou para nós?



— Quem ou o que é isso? — Patty acrescentou, apontando para Otto, que
revirou os olhos.



Ignorei as perguntas deles.



— Vocês estão despedidos.



— O quê? — Barry e Patty olharam surpresos para mim, e Otto soltou um
estranho som abafado. Ele estava rindo, o que fez com que eu me sentisse mais
forte.



— Eu disse que vocês estão despedidos. Saiam do meu apartamento.



A expressão de Patty era de alguém que não podia acreditar.



— Não sei o que você está pensando, mocinha, mas nós somos seus
guardiões legais...



— Não são não — eu disse, sem raiva. — Guillory contratou vocês para
ficarem de olho em mim. Vocês nunca foram meus guardiões legais, tudo tinha


de ser aprovado por ele. Bem, Guillory morreu. E, até que alguém reorganize a
empresa, eu sou a empregadora de vocês. E vocês estão demitidos. Dessa função,
de qualquer maneira. Voltem para a Florida e retomem seu trabalho no ponto que
Reggie fez com que abandonassem.



Eles protestaram até que Xavier entrou, molhado e elegante, pelo hall de
entrada.



— Ouçam o que a chefe de vocês está dizendo — ele disse calmamente. —
Se não querem ouvi-la, ouçam a mim. Se ela não quer vocês, está dito.



Incapaz de decidir para qual de nós olhar, Barry perguntou:



— Você falou sério quando disse que nós poderíamos voltar para os nossos
empregos na Uni Flórida?



— Sim — eu disse.



— Eu garanto — Xavier adicionou.



Barry assentiu.



— Está certo, então. — Ele se voltou para a esposa. — Vamos fazer as
malas.



Os dois desapareceram rumo à suíte do casal.



Xavier balançou a cabeça para as duas figuras que saíam.




— Vou arrumar alguém melhor — ele disse para mim. Encarei-o. Ele
desviou o olhar, voltando-se apara a porta. — Alguém precisa telefonar para a
polícia, dizer para eles que o pior já passou.



— Já fiz isso — Bren disse, surgindo por detrás dele. — No caminho,
desativei o sistema de incêndio.



— Vamos precisar de um paramédico.



— Já providenciei. Telefonei para a mamãe também. Eles estão a caminho.



Xavier assentiu.



— Sim. Bem, vou esperar pela ambulância.



— Não — eu disse para Xavier. — Você fica.



Xavier olhou para mim com o canto dos olhos.



— Acho que alguém deveria mostrar a cena do crime para a polícia.



— Bren pode fazer isso, ou Annie — respondi. — Precisamos conversar.



Xavier curvou a cabeça.



— Agora talvez não seja o melhor momento — ele disse.



— Agora é o único momento em que vou conseguir que você fique na
mesma sala comigo — eu disse. — Você tem me evitado desde que eu voltei.




Xavier engoliu em seco.



— Você tem razão. Tenho mesmo.



Dei uma olhada para Otto. Otto, que sabia de toda a história. Ele tomou a
minha mão.



— Vou acompanhar Bren até o jardim, para esperarmos pela polícia.



— Obrigada — agradeci. Observei os dois se retirando e então me virei para
Xavier.



Ele estava molhado e desarrumado e, provavelmente, não dormia havia
dias. Dava para perceber que não queria ter essa conversa. Fui ao banheiro e
peguei uma toalha, para que ele pudesse ao menos secar os cabelos.



Zavier ficara trancado no banheiro, com uma tigela cheia de comida para
cachorro e um osso de brinquedo. Ele deu um salto assim que abri a porta e
quase gritei quando bateu a pata e o focinho em todos os meus pontos mais
doloridos.



— Ah! Sentado! Fica, Zavier!



Ele se sentou, ofegante, visivelmente feliz por me ver novamente. Apanhei
uma toalha limpa e permiti que me seguisse de volta à sala.



— Tome — eu disse, jogando a toalha para Xavier.




Ele apanhou com muita habilidade, para um homem velho, e secou o rosto
e os ombros com eficiência militar.



— Você gostou de Tonto? — ele perguntou, quase distraidamente.



Voltei-me para Zavier.



— Você se chama Tonto? — perguntei. Ele pareceu confuso por um
momento, então abanou o rabo conciliador. Afaguei sua cabeça dourada. — Eu o
chamei de Zavier — eu disse, torcendo levemente os lábios. — Com Z.



Xavier paralisou.



— Ah! — ele exclamou. Então, encobriu o rosto com a toalha novamente,
desconfiei que foi mais para ter algo que fazer do que por seu rosto ainda estar
molhado.



Fitei Xavier, esforçando-me para ver o menino que eu conhecia. Não foi
difícil. Não pude acreditar que não percebi da primeira vez. Mas, desde então, ele
não tinha estado mais do que cinco minutos na mesma sala comigo, até a noite
passada. E eu provavelmente não quis enxergar. Acariciei a cabeça do cachorro.



— Preciso lhe fazer uma pergunta.



— Eu sei — Xavier disse, e sua voz soou pesada como chumbo.



Respirei fundo.




— Como você pôde me deixar daquele jeito? Por tanto tempo? — perguntei.
A pergunta não tinha maldade.



Xavier soltou um longo suspiro e lentamente se sentou em uma poltrona.



— Você não faz ideia do quanto isso me torturou — ele disse, recusando-se
a olhar em meus olhos. — Tenho me feito a mesma pergunta a cada hora desde
que Bren a encontrou. Mal tenho dormido. Eu... — ele suspirou novamente e, em
seguida, se forçou a olhar para mim. — Eu realmente não sabia.



— Como você não sabia?



A cabeça de Xavier se moveu do mesmo modo que ele fazia quando era
criança, quando achava que eu não compreendera algo.



— Rose. — Ele fez uma pausa. — Você tinha terminado comigo.



Assenti, tentando entender. Encolhi-me no sofá.



— Então, você pensou... que eu não era mais problema seu.



— Não — ele disse.



— Por favor, estou tentando entender, Xavier. Ou você se isentou da
responsabilidade por mim, ou achou que eu merecia perder a minha vida. E eu
me recuso a acreditar nisso. Apesar de... — foi muito difícil arrancar a dor das
palavras seguintes. — Apesar de você ter se mantido distante mesmo depois da
minha volta.




— Não, droga... — Ele hesitou, sem conseguir encontrar as palavras. — Não
tem perdão! Você sabe há quanto tempo isso aconteceu? Tenho pensado nos
últimos cinquenta, sessenta anos, em cada momento da minha vida, tentando ver
como pude deixar isso acontecer, e não existe nenhuma desculpa que possa me
absolver dessa... negligência. Como eu poderia deixar você ficar sabendo, agora?
Como eu poderia... torturá-la ao saber sobre mim? Achei melhor deixar você
acreditar que eu tinha morrido, junto com todos os outros.



Olhei para ele. Esse realmente não era o meu Xavier. Os olhos do meu
Xavier costumavam sorrir. Meus olhos avistaram o bloco de desenho que eu
abandonara quando apanhei um novo para a viagem com Reggie. O bloco estava
sobre a mesinha de centro. Eu sabia que ainda tinha uma página vazia. Peguei-o
e encontrei a folha em branco.



— Você tentou me achar? — perguntei, puxando o lápis de carvão de
dentro da espiral.



— Sim — ele disse, surpreendendo-me. — Aparentemente, não o bastante.



— Conte-me — eu disse. Recostei no sofá e fiquei observando-o, deixando
que minhas mãos iniciassem outro desenho de Xavier.



— A princípio, eu não sabia o que tinha acontecido — ele disse. — Depois
que você disse adeus, eu a via nos corredores, mas você me evitava. Você
aparecia e desaparecia, e comecei a ficar nervoso. Mas você sempre voltava, e
continuava me evitando. No começo, achei que você realmente não queria ficar
comigo. E, então, quando você finalmente desapareceu por um longo tempo,
fiquei feliz. Eu não queria ver você. Sabe... Naquela idade tudo é tão importante.
Doía vê-la e não poder estar com você.




Soltei um sorriso triste. Eu ainda estava com aquela idade.



— Mas, então... um ano se passou. Ǻsa tinha ido embora, e comecei a
imaginar se talvez... talvez Mark e Jacqueline não a tivessem obrigado a terminar
comigo. E, porque você não estava sendo a criança perfeita que eles tinham
criado, a colocaram em estase, só para se livrarem de você. A princípio, foi apenas
uma suspeita. Então, aquilo começou a crescer dentro de mim, e me corroeu e
me corroeu, até que eu estava prestes a ir para a universidade.



Rascunhei um estudo das mãos enrugadas de Xavier enquanto ele as
movia dando ênfase ao seu discurso.



— Quer dizer, eu poderia ir embora. E, então, não restaria mais ninguém
que soubesse de sua existência. Por isso, esperei até que seus pais saíssem para
um dos bailes de caridade da sua mãe e invadi o seu apartamento.



Pude imaginá-lo, invadindo o computador central do Unicórnio, hackeando
os códigos até que pudesse entrar no meu apartamento.



— Eu não sabia se você iria ou não ficar feliz. Mas eu estava com dezoito
anos e já tinha uma vaga garantida em Princeton. E não importava o que você
achava de mim, um ano em estase sem motivo era para lá de ridículo. E eu já
tinha chegado à conclusão de que aquilo era abusivo.



Ele suspirou.



— Pensei que eu poderia lhe dar a opção... não de ficar comigo, mas apenas
de... cair fora dali. De dar um basta naquela história de estase, de brincar de


bonequinha viva para a mamãe vestir, dar um basta em "Sim, papai, é claro,
papai". E ser apenas você. Apenas a Rose.



Ainda sofrendo com as queimaduras do ataque do plastine, eu podia
imaginar o que teria acontecido se Xavier tivesse conseguido. O plastine teria ido
atrás de nós em Princeton, novo, moderno, sem ter sofrido os efeitos de sessenta
e dois anos de esquecimento. Programado para matar qualquer um que tentasse
impedi-lo.



Aquele pensamento fez com que eu fizesse uma pausa. Se tivesse me sido
dada a oportunidade de escolher, antes de entrar em estase: abrir mão do meu
amor por Xavier ou deixá-lo morrer, eu sabia o que teria escolhido. Eu teria
sacrificado com todo prazer sessenta e dois anos da minha vida por ele. O destino
sempre esteve contra nós, não importa o quanto eu o tenha amado.



Xavier respirou fundo.



— E sim, se você quisesse ficar comigo, só nós dois. Como sempre
estivemos. Sentia saudades de você.



Fechei os olhos ao ouvir aquilo. Fui invadida por uma sensação dentro do
peito que ainda não sentira desde que tinha acordado. Não uma agitação nervosa
e estonteante advinda de esperanças incertas, mas uma faísca de alegria
verdadeira.



— Eu me arrastei até o seu closet, mas o seu tubo não estava lá — Xavier
continuou. — Seu quarto ainda estava lá, todas as suas coisas, mas você tinha
ido embora. Fiquei lá parado, sem saber o que fazer. Então, aparentemente as
minhas habilidades como hacker mostraram que não estava à altura do desafio.


Eu tinha disparado um alarme, a polícia chegou e me prendeu. Eles me
colocaram em uma cela na cadeia, por uma noite, e tentaram entrar em contato
com Mark e Jacqueline, para que eles dessem queixa contra mim por
arrombamento e invasão. — Ele respirou fundo. — A acusação não deu em nada.
Antes do amanhecer, quase todos que estavam na delegacia tinham morrido.



Ergui os olhos do meu bloco de desenho, horrorizada.



— Não — sussurrei.



Ele assentiu.



— A ocasião não poderia ter sido melhor para mim, eu acho. Mas, então, se
eu a tivesse despertado naquele momento, você poderia ter adoecido também. A
peste atingiu a ComUnidade naquele dia. — Ele respirou fundo. — Eu estava lá,
sozinho na minha cela. A queixa ainda não tinha sido registrada. E, enquanto
esperava, de repente vi as pessoas através das barras da minha cela,
transpirando, tossindo e apertando o peito, e, em seguida, gritando e gritando...
— ele balançou a cabeça. — Eu me encolhi em um canto, para ficar o mais
distante possível que podia da morte. Eu estava... com medo. Fiquei tão feliz por
não ter encontrado você. Eu podia ouvir os gritos que vinham das ruas e o
lamento das sirenes das ambulâncias. E, então, eles pararam, percebi que o
silêncio deles era ainda mais assustador. — Suas mãos tremiam. — Fiquei sem
comida e água durante dois dias. E, então, comecei a adoecer.



— Não!



Ele franziu os lábios para mim, tentando me dizer que estava tudo bem.




— Eu estava afastado da população em geral, não tinha tocado em
ninguém, por isso, a doença não me pegou até se tornar contagiosa pelo ar.
Comecei a tossir, no final, quando os corpos começaram a se decompor. A essa
altura, eu já não tinha medo. Era quase um alívio para mim. Eu não queria mais
ficar lá. E quando já estava preparado para morrer, os seguranças da UniCorp,
trajando macacões especiais à prova de contágio biológico, empurraram as portas
contra as pilhas de mortos e injetaram antibióticos em minhas veias.



Ele encolheu os ombros.



— Minha mãe e meu pai tinham morrido. Princeton virara uma cidade
fantasma. Mark e Jacqueline desapareceram, tinham ido, descobri depois, para
uma de suas colônias fora do planeta. Por um milagre eles não levaram a peste
junto. Fui convocado para a Defesa Civil e passei os cinco anos seguintes
cuidando das vítimas da peste, contendo motins e distribuindo suplementos. —
Ele olhou para mim. — Não vou dizer que você não estava em meus
pensamentos, pois estava. Tinha de estar. Você fizera parte da minha vida por
tanto tempo que ficou impressa na minha mente. Mas havia morte ao meu redor.
Eu sabia que você só poderia estar em um de dois lugares: ou segura, em estase,
ou morta, em paz. De qualquer maneira, não havia nada que eu pudesse fazer.



No meu desenho, sombreei os olhos dele. Sim, pude ver o horror dentro
deles. As linhas severas de tantas tragédias que marcavam seu rosto.



— Quando terminei meus serviços, candidatei-me a um cargo interno na
UniCorp. A universidade acabou ficando pelo caminho, mas a minha experiência
na Defesa Civil acabou contando no meu currículo. Fiquei surpreso quando me
aceitaram, meu sobrenome era conhecido. Meus pais tinham trabalhado para
Mark, e seus pais ainda se lembravam de mim. Aparentemente, com todo aquele


caos, eles nunca souberam que eu invadira a casa deles. — Ele respirou fundo. —
Só entrei para a UniCorp por um motivo. Para me aproximar deles, perguntar
sobre você.



Isso me espantou. Erguei os olhos do meu desenho.



— É verdade?



Ele me encarou.



— Você sempre esteve nos meus pensamentos, Rose. Eu sempre desejei
poder esquecê-la, mas nunca consegui. Eu sonhava com você. Os sonhos
surgiam do nada, sem aviso. Eu nem precisava estar conscientemente pensando
em você, e lá estava você novamente. E cada vez que você aparecia, eu passava o
sonho todo tentando lhe dizer o quanto sentia sua falta. Eu acordava e passava a
manhã martelando na minha cabeça, resmungando "Mente estúpida!". Parecia
que eu tinha sido moldado de acordo com o seu modelo. Você era o meu padrão
de referência. Cada pessoa com quem eu falei, cada amigo que tive, cada mulher
que olhou em minha direção eram comparados à lembrança que eu tinha de você.



Eu queria sorrir, queria gritar. Era trágico. Acalmei-me para terminar o
desenho.



— Quando, finalmente, consegui me aproximar deles, perguntei sobre você.
Eles ficaram bravos; seu pai quase me bateu. "Deixe o passado no passado", ele
disse. "Não queremos desenterrar os nossos mortos." Eu acreditei nele. — A voz
de Xavier diminuiu até quase virar um sussurro. — Como um tolo. — Ele
balançou a cabeça. — Eu tinha vinte e quatro anos. Deveria ter tentado mais. —
O sentimento de culpa era evidente em sua voz.




Vinte e quatro anos. Ele seria, então, apenas oito anos mais velho do que
eu. Encolhi-me ao me dar conta daquilo.



Ele se endireitou um pouco no assento.



— Sei que eles falaram em me demitir depois disso, mas pessoas saudáveis
com meio cérebro se tornaram escassas durante os Tempos Sombrios. Eles não
podiam se dar ao luxo de me perder. Por isso, acabei ficando. Trabalhando para o
diabo. Pensei em sair, mas naquela época a verdadeira tragédia da Iniciativa
Global em Prol do Alimento tinha estourado. E eu também fora envenenado,
como milhões de pessoas. Nada de filhos. Nunca. Ou foi o que pensei, as medidas
defensivas confiáveis ainda não tinham sido desenvolvidas. E eu os odiei tanto.
Eu sabia que a UniCorp tinha muito poder. Pensei: "se eu ficar, posso conseguir
desfazer um pouco dos piores males".



E continuou:



— Comecei tentando sabotar a corporação, fazer com que tudo fosse por
água abaixo, mas então percebi que poderia trabalhar tangencialmente, e usar a
corporação para fazer o bem. Foi um processo lento, e muito do que fiz foi em
segredo. Eu não queria o poder, queria neutralizar o poder de homens como o seu
pai e Reggie. Foi tudo o que me restou para fazer.



— Você tem noção de que agora é o presidente? — perguntei.



— Infelizmente, sim. Tenho tentado evitar isso. Acho que tenho mais
controle quando as pessoas não estão olhando diretamente para mim.




— Promova o pai de Bren — eu disse. — Delegue a função a ele. Ele é um
homem bom e gosta do trabalho. Você está... — tentei pensar em uma palavra
que não fosse velho — quase para se aposentar, o conselho vai entender.



Xavier franziu o cenho.



— Essa é uma ideia. Você está certa, ele poderia assumir. Annie teve bom
gosto.



— Gosto dela — disse a ele.



— Ela gosta de você — Xavier me falou. — Ela me contou.



Não pude conter a pergunta:



— Por que Roseanna?



Xavier baixou os olhos.



— A irmã da minha mulher também havia morrido. Ela se chamava
Hannah. Nós juntamos os nomes.



— Ela sabia sobre mim?



— É claro. Nós nos amávamos.



Eu queria sentir ciúme, mas tudo o que conseguia sentir era curiosidade.



— Como ela era?




— Como você. — ele respondeu. — Compassiva. Fiel. Artística. Eu lhe disse
que você era o meu parâmetro. Ela era um pouco mais durona do que você, mas
os sobreviventes dos Tempos Sombrios tendiam a sê-lo. Era uma designer do
departamento de artes gráficas. Ela desenvolveu um joguinho para si própria,
para me fazer sorrir sempre que me via. Foi surpreendente que ela tenha
percebido algum resquício humano em mim quando nos conhecemos. E ela
aguentou o meu mau humor. Assim como todos os procedimentos invasivos que
foram necessários para termos Ted e Annie.



— Estou feliz — sussurei. — Estou muito feliz. — Nem precisei dizer mais
nada. — Você sente saudades dela?



— Na verdade, não muito. Não que eu não desejasse que ela ainda estivesse
aqui, claro que desejo. Mas sinto que parte dela ainda está aqui — ele apontou
para o apartamento. — A sua alma, talvez. Esperando por mim. — Ele encolheu
os ombros. — Mas, o que sei eu? Eu também pensava isso da sua alma!



— E estava — falei. — Eu lhe dei a minha alma para você guardar, junto
com o meu Prêmio Jovens Talentos.



— Eu ainda tenho aquele troféu — Xavier sussurrou.



— Bem, você ainda está com a minha alma, também. Eu a dei junto com
aquele último beijo.



— Eu nunca quis ficar com a sua alma — Xavier disse.




— Quero que você fique com ela. Guarde-a — falei com um sorriso. — Vou
criar uma nova. — Olhei para o relógio de pêndulo na parede. Os paramédicos já
deviam ter chegado. Otto. Ele deve tê-los segurado lá embaixo. Ainda bem. Xavier
pareceu estar mais relaxado, mas eu ainda não tinha feito a pergunta mais difícil.



— Por que não me contou quem você era?



Ele meneou a cabeça.



— Como poderia? Depois de passar sessenta anos pensando que você
estava morta, meu neto me telefona, do nada, para me contar que tinha
encontrado Rose Fitzroy no subsolo, e o mundo todo desabou. — Ele esfregou as
têmporas, como se estivesse com dor de cabeça. — Tudo voltou para mim de
repente. Eu me parti em dois por dentro. Como se tivesse falhado em ter a vida
que eu deveria ter tido, e como se a vida de outra pessoa tivesse vindo e roubado
todos aqueles anos. Lá estava eu: o pai, o avô, o homem de negócios. E, então,
aquele adolescente ferido e irado surgiu do nada, e você não vai acreditar no
quanto ele me odiava. Ele começou a gritar comigo. Às vezes, passava metade da
noite gritando: "O tempo todo ela estava lá, literalmente sob os seus pés! Como
você não foi até lá e a resgatou?" — Xavier suspirou. — Ele me culpou de tudo.



Ele arfou e fechou os olhos.



— Você estava de dar dó, só pele e osso. E tão dolorosamente jovem.



Pensei a respeito. Ele tivera uma esposa. Criara dois filhos. Seu neto e eu
éramos da mesma idade. Eu não passava de uma criança para ele. Que irônico.
Eu tinha ensinado Xavier a andar.




— Pensei em contar para você, logo no começo, enquanto ainda estava no
hospital. Mas, quando você não me reconheceu, pensei... talvez seja melhor
assim. Como você não iria me culpar por tê-la deixado lá? Quando eu era o único
que sabia.



Meu desenho estava terminado. Lá estava ele. Um espantalho, um homem
velho atormentado internamente, com o coração partido por detrás de seus olhos.
Eu sempre compreendi melhor as coisas quando as desenhava. O sorriso de
Xavier tinha morrido durante os Tempos Sombrios. Era meu trabalho ressuscitá-
lo, tirá-lo da estase e colocá-lo de volta em seu lugar. Fiquei de pé.



Xavier olhou para mim, seus olhos verdes leitosos estavam curiosos. Sorri.



— Você cresceu tanto! — eu disse.



Ele me fitou confuso.



— Como?



— Eu sempre disse isso — falei. — É uma tradição.



Xavier respirou fundo e baixou os olhos.



— Não tenho certeza se isso é verdade, dessa vez. A idade tende a encolher
as pessoas.



— Assim como a culpa — eu disse. Pousei minha mão sobre seu ombro. —
Pare de se odiar. Não foi culpa sua. Nem minha. Apenas aconteceu.




Ele ergueu uma mão e colocou-a sobre a minha por um momento, então,
deixou-a cair novamente.



— Senti saudade de você — ele sussurrou.



Lágrimas feriram meus olhos.



— Senti saudade de você — eu disse. — Senti saudade de tudo.



Permanecemos em silêncio por um momento. Fiquei de joelhos e recostei a
cabeça sobre o braço da poltrona dele.



— Bem — eu disse. — Pelo menos agora você pode ter o seu apartamento
de volta.



Xavier balançou a cabeça.



— Não. É seu.



Balancei a minha cabeça também.



— Eu não disse que estava indo embora.



— O que você quer dizer?



Endireitei meus ombros e enfrentei-o resolutamente.




— Quero dizer que, finalmente, aprendi a tomar decisões sozinha. Chega de
me deitar passivamente e esperar que os outros me digam o que tenho de fazer.
Sei o que eu quero, e quero você. Quero que você seja o meu guardião.



Xavier balançou a cabeça grisalha, inflexível.



— Não posso fazer isso, Rose. Não seria correto.



— Quem disse? Xavier, desde quando estarmos juntos foi errado? Não sou
boba — acrescentei, cortando qualquer resposta que ele pudesse dar. — Sei o que
pode e o que não pode haver entre nós. Perdemos algo. Aquela chama ardente do
primeiro amor. E isso não é justo. — Quase não consegui conter as lágrimas da
minha voz, mas engoli-as. Eu precisava fazê-lo enxergar. — Isso nunca será
justo. E eu sempre sofrerei, assim como você sofreu. Meus pais roubaram você de
mim, assim como roubaram a minha vida. Mas isso não era tudo o que tínhamos.
Era apenas parte. Tivemos algo mais verdadeiro, algo que o tempo e a diferença
de idade simplesmente não podem matar. Eu conheço você, Xavier! Sempre
estivemos juntos. Nem sempre foi romântico. Você começou como meu
irmãozinho, então se tornou meu melhor amigo. Por que não podemos continuar?
Transformarmo-nos em algo mais? Estou tão sozinha. Preciso de você. Preciso da
minha família! — Droga, eu estava chorando.



Então, seus braços frágeis estavam ao redor do meu corpo.



— Shh, shh. Calma. — Ele beijou a minha testa com a mesma ternura que
eu costumava beijar a sua quando ele não passava de um bebê.



Afastei-me e olhei para ele.




— Xavier, desde o começo você vem fazendo tudo o que está ao seu alcance
para me mostrar que ainda me ama. Meu estúdio, meu bloco de desenho,
Estradas Desertas. — Sorri. — O prisma. Foi a sua mão que senti acariciando
meus cabelos, nesta mesma sala, depois de ter sido atacada.



Seus olhos abaixaram e vi que eu estava certa.



— Sei que você quer ficar comigo. Que você quer ser a minha família. Você
só não faz isso porque acha que as pessoas podem interpretar mal. Bem, que se
danem! Eles não sabem o que representamos um para o outro. Sei que você
provavelmente deve estar horrorizado com a ideia do que fomos um para o outro,
tão horrorizado quanto eu ficaria se, de repente, você voltasse a ter três anos e eu
dezesseis. Mas aquilo tudo acabou. Aquela menina morreu. E aqui estou eu
agora. — Olhei para o chão por um momento, buscando forças de todas as
minhas roseiras internas retorcidas. — Você vai ter coragem de me negar o único
amor que tive?



Xavier olhou para mim por um longo momento e franziu a testa.



— Você e Bren estão...? — ele perguntou.



Ri, o que felizmente ajudou a espantar as lágrimas contra as quais vinha
lutando. Eu sabia que ficaria com o rosto rosado de rubor se já não estivesse
vermelha por causa das queimaduras.



— Por que a pergunta?




Xavier desviou o olhar e percebi que ele estava com medo de que eu
estivesse esperando algo impossível dele, que não estava pronta para deixar que
aquela parte da minha vida continuasse sem ele.



— Não sei — disse, com o máximo de segurança que pude. — Talvez um
dia. Por enquanto, eu o assusto.



— Você está me assustando — Xavier disse. — Nunca a vi agindo de outro
modo além do passivo.



Encolhi os ombros.



— Não me ajudou muito. Então — eu disse —, terei você como minha
família, ou vou ter de pedir para o meu conselho demiti-lo?



Xavier riu.



— Estou falando sério — disse. — Agora que o encontrei, não vou deixá-lo
escapar novamente.



Xavier piscou para mim.



— Pensei que essa fala fosse minha.



Um sorriso surgiu no meu rosto.



— Você quer dizer que vou ficar com você?



Ele suspirou.




—Por que não? Sempre fui seu, de qualquer maneira.



Dei um salto e abracei-o. Ele tinha cheiro de velho e daquela colônia que eu
notara em seu escritório, e não parecia mais o meu Xavier quando eu o abracei.
Mas eu o amava tanto quanto antes. Irmão. Melhor amigo. Avô. O que importava?
Ele era o meu Xavier.












































 í





DE AGORA EM DIANTE, VOU TENTAR ME AGARRAR AOS MEUS SONHOS O
MÁXIMO que puder. Passei da hora de ficar perdendo meu tempo, me prendendo
a fantasias, negando o que está dentro do meu coração e diante dos meus olhos.
Tento me manter ocupada, com o coração aberto, e me recuso a cair em
desespero quando acordo chorando no meio da noite sem motivo.



Costumo jantar na casa de Bren e ele, com todo o seu bom humor, tenta
me ensinar a jogar tênis, sem muito sucesso. Não sei mais como me sinto com
relação a ele. Ele é meu amigo bonito e sexy que poderia ter sido meu neto. É
tudo muito confuso e embaraçoso, mas, mesmo assim, é bom.

Gostamos muito um do outro — quase como se fossemos da mesma
família, mas não somos. Não por enquanto.



Entro em contato com Otto todas as noites, e tentamos encontrar novos
motivos para rir. Também não sei o que sinto por ele. Sei o que ele sente por
mim, apesar de ele achar que guarda esse sentimento em segredo. Ele tem a
minha simpatia e o meu amor... mas que tipo de amor é nem tentei descobrir
ainda. O que temos é o que é, e é assim que quero que seja. Por enquanto.



Quanto ao Xavier, ele é muito formal comigo, e não o culpo por isso. Nossa
situação é um tanto constrangedora. Ele me abraça (com um braço apenas) e se
for necessário; ou seja, se eu estiver chorando. Do contrário, ele não me toca.
Respeito seu distanciamento. Ele está me ensinando a cozinhar e ainda se senta
comigo para me ajudar com os estudos. Essa parte do nosso relacionamento não


mudou em sessenta anos. Minhas notas estão melhorando. Não sou tão burra
quanto imaginava que fosse.



Não sei onde meu irmão e a minha irmã estão. Xavier me ajudou a rastrear
pistas sobre eles — meus pais não conseguiram apagar todos os rastros de seus
nascimentos, e os registros médicos estavam arquivados nos arquivos locais. Se
Sarah estiver viva, ela já estaria em estase por quase oitenta anos. Stephano
estaria em estase por mais de noventa. Só de pensar nisso, sinto o gosto amargo
de bile na minha garganta.



Sonho encontrá-los um dia. Sonho que um dia eu realmente vou acreditar
que tenho um lugar neste mundo. Sonho que sou forte. E tenho três amigos que
sonham comigo.



Meu nome é Rose Samantha Fitzroy. Tenho cem anos de idade. Sou livre.
Ainda tenho meus tormentos. Mas, pelo menos, estou bem acordada.

Um comentário:

  1. mmm e que tal ler o livro inteiro?
    http://portugues.free-ebooks.net/ebook/Adormecida-2

    ...de nada! :P

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