domingo, 13 de outubro de 2013

Peças Infernais 1 - Anjo Mecanico

Clockwork Angel





Canção do Rio Tâmisa1
1 Rio localizado no sul da Inglaterra, atravessa cidades como Londres e Oxford e deságua no sul.

Uma pitada de sal
escorrega e o rio sobe,
escurecendo para a cor de chá,
expandindo para encontrar o verde.
Acima de suas margens as engrenagens e rodas
de máquinas monstruosas
zunem e giram, o fantasma de dentro
desaparece em suas bobinas,
sussurrando mistérios.
Cada pequena engrenagem dourada tem dentes,
cada grande roda movimenta
um par de mãos que pega
a água do rio,
devora-a, converte-a em vapor,
coage a grande máquina a correr
na força de sua dissolução.
Gentilmente, a maré está subindo,
corrompendo o mecanismo.
Sal, ferrugem e sedimentos
retardando as marchas.
Embaixo nas margens
os tanques de ferro
oscilam em suas amarras
com o boom oco
de um sino gigantesco,
de tambor e canhão
que clamam em uma língua de trovão
e o rio rola abaixo.

—Elka Cloke


Prólogo


Londres, abril de 1878.

O demônio explodiu em uma chuva de icor2 e entranhas.
2 Na mitologia grega, Icor é o fluido eterno, presente no sangue dos deuses gregos. Quando um deus era machucado e
sangrava, o icor fazia seu sangue venenoso para mortais.
3 Rua de Londres; significa Rua Estreita.
4 Limehouse e Whitechapel: bairros de Londres
5 Pub londrino.
William Herondale puxou de volta o punhal que estava segurando, mas era tarde
demais. O ácido viscoso do sangue do demônio já tinha começado a corroer a lâmina
brilhante. Ele amaldiçoou e jogou a arma de lado; ela caiu em uma poça imunda e
começou a inflamar como um fósforo apagando. O demônio, é claro, tinha desaparecido—
enviado de volta para qualquer que fosse o mundo demoníaco de onde ele tinha vindo,
mas não sem deixar uma bagunça para trás.
“Jem!” Will chamou, se virando. “Onde está você? Você viu isso? Matei-o com um
golpe! Nada mau, hein?”
Mas não houve resposta para o chamado de Will; seu parceiro de caçada estava
logo atrás dele na rua úmida e tortuosa alguns momentos antes, protegendo sua
retaguarda, Will tinha certeza, mas agora Will estava sozinho nas sombras. Ele franziu a
testa em aborrecimento—era muito menos divertido se gabar sem Jem para ver. Ele olhou
para trás, para onde a rua se estreitava em uma passagem que dava para a água preta
ondulante do Tâmisa à distância. Através da abertura Will podia ver os contornos escuros
dos navios atracados, uma floresta de mastros como um pomar sem folhas. Nada de Jem
lá; talvez tivesse voltado para a Narrow Street3 em busca de uma iluminação melhor.
Dando de ombros, Will voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo.
A Narrow Street atravessa o Limehouse, entre o cais ao lado do rio e as favelas
apertadas espalhadas para o oeste em direção a Whitechapel4. A rua era tão estreita quanto
o seu nome sugeria, alinhada com armazéns e edifícios de madeira assimétricos. No
momento ela estava deserta; até os bêbados cambaleando para casa estrada acima depois
do Grapes5 tinham encontrado algum lugar para se recolher à noite. Will gostava do
Limehouse, gostava da sensação de estar na margem do mundo, onde os navios partiam a
cada dia para portos inimaginavelmente distante. Como a área era um lugar frequentado

por marinheiros, e consequentemente cheio de casas de jogos de azar, antros de ópio, e
bordéis, não machucava também. Era fácil se perder em um lugar como este. Ele nem
mesmo se importava com o cheiro—fumaça, Rohypnol6 e alcatrão, especiarias estrangeiras
misturadas com o cheiro de água de rio suja do Tâmisa.
6 Medicamento que induz o sono de forma rápida e intensa, utilizado em golpes conhecidos como Boa Noite
Cinderela.
7 Na demonologia, Shax é o Grande Marquês do inferno, e tem sob seu comando trinta legiões de demônios. Seu
oficio é esvair o entendimento ou inteligência de homens ou mulheres; e entrar em recintos fechados.
8 Unidade monetária usadas em diversos países. No contexto, seria um prateado escuro.
Olhando de um lado para o outro na rua vazia, ele esfregou a manga do casaco em
seu rosto, tentando limpar o icor que ardia e queimava sua pele. O tecido saiu manchado
de verde e preto. Havia um corte nas costas de sua mão também, um bem desagradável.
Ele poderia usar uma runa de cura. Uma das de Charlotte, de preferência. Ela era
particularmente boa em desenhar iratzes.
Uma forma se destacou das sombras e encaminhou-se para Will. Ele começou a
avançar, depois parou. Não era Jem, mas sim um policial mundano vestindo um capacete
em forma de sino, um casaco pesado, e uma expressão de perplexidade. Ele olhou para
Will, ou melhor, através de Will. Por mais acostumado que estivesse ao encanto, sempre
era estranho ser olhado através, como se ele não estivesse lá. Will foi dominado por um
súbito desejo de pegar o cassetete do policial e assistir enquanto o homem se agitava,
tentando descobrir para onde ele tinha ido, mas Jem o tinha repreendido as poucas vezes
que ele havia feito isso antes, e embora Will nunca pudesse realmente compreender a
objeção de Jem por toda a ação, não valia a pena chateá-lo.
Dando ombros e piscando os olhos, o policial atravessou Will, sacudindo a cabeça e
resmungando baixinho algo sobre o juramento de abandonar o gim antes que realmente
começasse a ver coisas. Will se afastou para deixar o homem passar, então levantou a voz
para chamar: “James Carstairs! Jem! Onde você está, seu bastardo traidor?”
Desta vez, uma resposta fraca respondeu-lhe. “Aqui. Siga a luz de bruxa.”
Will se moveu em direção ao som da voz de Jem. Parecia estar vindo de uma
abertura escura entre dois armazéns; um brilho fraco era visível dentro das sombras, como
a luz lançada de um fogo de Santelmo. “Você me ouviu antes? Aquele demônio Shax7
pensou que conseguiria me pegar com suas malditas grandes garras, mas eu o encurralei
em um beco—”
“Sim, eu ouvi você.” O jovem que apareceu na boca do beco era pálido à luz do
lampião—ainda mais pálido do que ele geralmente era, que na verdade era bastante
pálido. Ele estava de cabeça descoberta, o que chamava a atenção imediatamente para o
seu cabelo. Era de uma estranha cor de prata brilhante, como um xelim8 imaculado. Seus
olhos eram do mesmo prateado, e seu rosto de ossatura fina era angular, a ligeira curva
dos seus olhos a única pista de sua herança.

Havia manchas escuras na parte da frente da sua camisa branca, e suas mãos
estavam intensamente manchadas de vermelho.
Will ficou tenso. “Você está sangrando. O que aconteceu?”
Jem acenou afastando a preocupação de Will. “Não é meu sangue.” Ele virou a
cabeça em direção ao beco atrás dele. “É dela.”
Will olhou para além de seu amigo, para as sombras mais densas do beco. No canto
distante dele estava uma forma enrugada—apenas uma sombra na escuridão, mas quando
Will olhou de perto, ele pode distinguir a forma de uma mão pálida, e um tufo de cabelo
louro.
“Uma mulher morta?” Will perguntou. “Uma mundana?”
“Uma menina, na verdade. Não mais de quatorze anos.”
Diante disso, Will amaldiçoou em alto e bom som. Jem esperou pacientemente que
ele terminasse.
“Se tivéssemos aparecido apenas um pouco mais cedo,” Will disse finalmente.
“Aquele maldito demônio—”
 “Essa é a coisa estranha. Eu não acho que isso é obra do demônio.” Jem franziu a
testa. “Demônios Shax são parasitas, parasitas de ninho. Ela teria preferido arrastar a
vítima de volta ao seu covil para colocar ovos em sua pele enquanto ela ainda estivesse
viva. Mas esta menina—ela foi esfaqueada, repetidamente. E eu não acho que foi aqui,
tampouco. Simplesmente não há sangue suficiente no beco. Eu acho que ela foi atacada em
outro lugar, e se arrastou até aqui para morrer de seus ferimentos.”
 “Mas o demônio Shax—”
“Eu estou te dizendo, eu não acho que foi o Shax. Eu acho que o Shax a estava
perseguindo—caçando-a por outro algo, ou alguém.”
“Shaxes têm um grande senso de olfato,” Will admitiu. “Já ouvi falar de feiticeiros
usando-os para seguir as pistas dos desaparecidos. E ele parecia estar se movendo com um
estranho tipo de propósito.” Ele olhou para além de Jem, para a lamentável insignificância
da forma enrugada no beco. “Você não encontrou a arma, encontrou?”
“Aqui.” Jem tirou algo de dentro de sua jaqueta—uma faca, envolta em um pano
branco. "É uma espécie de misericórdia9, ou punhal de caça. Olhe como a lâmina é fina.”
9 Um punhal longo e estreito usado nos tempos medievais para dar o golpe de misericórdia em um cavaleiro ferido
gravemente.
Will a pegou. A lâmina era realmente fina, terminando em um cabo feito de osso
polido. Tanto a lâmina quanto o cabo estavam manchados com sangue seco. Com uma

careta, ele limpou a superfície lisa da faca através do tecido áspero de sua camisa,
esfregando para limpar até um símbolo, gravado na lâmina, tornou-se visível. Duas
serpentes, uma mordendo a cauda da outra, formando um círculo perfeito.
“Ouroboros10,” disse Jem, inclinando-se próximo para olhar fixamente a faca. “Um
duplo. Agora, o que você acha que isso significa?”
10 Símbolo representado por uma serpente, ou um dragão, que morde a própria cauda. É um símbolo para a
eternidade.
11 Maior cidade portuária da costa sul da Inglaterra
“O fim do mundo,” disse Will, ainda olhando para o punhal, um pequeno sorriso
brincando em sua boca, “e o começo.”
Jem franziu a testa. “Eu entendo a simbologia, William. Eu quis dizer o que você
acha que sua presença no punhal significa?”
O vento vindo do rio estava despenteando o cabelo de Will; ele o afastou de seus
olhos com um gesto de impaciência e voltou a estudar a faca. “É um símbolo alquímico, e
não um de feiticeiro ou Habitante do Submundo. Isso geralmente significa seres
humanos—os tipos mundanos tolos que pensam que trafegar em magia é o bilhete para a
obtenção de riqueza e fama.”
“O tipo que geralmente acaba em uma pilha de trapos sangrentos dentro de algum
pentagrama.” Jem soou cruel.
“O tipo que gosta de espreitar nas partes do Submundo da nossa bela cidade.”
Depois de envolver o lenço ao redor da lâmina cuidadosamente, Will a deslizou para o
bolso de sua jaqueta. “Você acha que Charlotte vai me deixar guiar a investigação?”
“Você acha que você pode ser confiável no Submundo? As casas de jogos, os antros
de perversão mágica, as mulheres de moral duvidosa...”
Will sorriu da maneira como Lúcifer poderia ter sorrido, momentos antes de cair do
céu. “Será que amanhã seria muito cedo para começar a procurar, você acha?”
Jem suspirou. "Faça o que quiser, William. Você sempre faz.”

Southampton11, maio.

Tessa não podia se lembrar de um momento em que ela não tivesse amado o anjo
mecânico. Tinha pertencido à sua mãe anteriormente, e sua mãe o estava usando quando
morreu. Depois disso tinha repousado no porta-joias de sua mãe, até que seu irmão,
Nathaniel, o tirou um dia para ver se ainda estava funcionando.

O anjo não era maior do que o dedo mindinho de Tessa, uma pequena estatueta
feita de latão, com asas fechadas de bronze não maiores que as de um grilo. Tinha um
delicado rosto de metal com pálpebras fechadas em forma de crescente, e as mãos
cruzadas sobre uma espada na frente. Uma corrente fina que passava por trás das asas
permitia que o anjo fosse usado ao redor do pescoço como um colar.
Tessa sabia que o anjo era feito de partes mecânicas, porque se ela o erguesse para
seu ouvido podia ouvir o som do seu mecanismo, como o som de um relógio. Nate tinha
exclamado com surpresa que ele ainda estava trabalhando depois de tantos anos, e tinha
procurado em vão por um botão ou um parafuso, ou algum outro método pelo qual o anjo
pudesse ser acionado. Mas não havia nada para encontrar. Com um encolher de ombros
ele tinha dado o anjo para Tessa. A partir desse momento ela nunca o tinha tirado; mesmo
à noite o anjo repousava contra seu peito enquanto ela dormia, seu constante tiquetaque,
tiquetaque, como o bater de um segundo coração.
Ela o segurava agora, apertado entre os dedos, enquanto o Main abria seu caminho
entre outros gigantescos navios a vapor para encontrar um lugar na doca de Southampton.
Nate tinha insistido para que ela viesse para Southampton, em vez de Liverpool, aonde a
maioria dos transatlânticos a vapor chegavam. Ele tinha alegado que era porque
Southampton era um lugar muito mais agradável para se chegar, então Tessa não podia
deixar de estar um pouco decepcionada com isso, sua primeira visão da Inglaterra. Era
sombriamente cinza. A chuva tamborilava para baixo em direção às torres de uma igreja
distante, enquanto fumaça negra subia das chaminés dos navios e manchava o já opaco
céu. Uma multidão de pessoas com roupas escuras, segurando guarda-chuvas, estava de
pé no cais. Tessa se esforçou para ver se o seu irmão estava entre eles, mas o nevoeiro e o
borrifo do navio estavam muito densos para ela distinguir qualquer pessoa em grande
detalhe.
Tessa estremeceu. O vento do mar era frio. Todas as cartas de Nate tinham
afirmado que Londres era linda, o sol brilhava todos os dias. Bem, pensou Tessa, com
sorte o clima lá era melhor do que aqui, porque ela não tinha roupas quentes com ela,
nada mais substancial do que um xale de lã que havia pertencido à tia Harriet, e um par de
luvas finas. Ela tinha vendido a maior parte de suas roupas para pagar o funeral da sua
tia, tranquila com a informação de que seu irmão iria comprar mais quando ela chegasse a
Londres para viver com ele.
Um grito elevou-se. O Main, em seu casco brilhante pintado de preto reluzindo
molhado pela chuva, tinha ancorado, e rebocadores avançavam com dificuldade em seu
caminho através das agitadas águas cinzentas, prontos para carregar bagagens e
passageiros para a praia. Passageiros corriam para fora do navio, claramente desesperados
para sentir a terra sob seus pés. Tão diferente de sua partida de Nova York. O céu estava
azul então, e uma banda de música estava tocando. Entretanto, sem ninguém lá para
dizer-lhe adeus, não tinha sido uma ocasião agradável.

Curvando os ombros, Tessa se juntou à multidão desembarcando. Gotas de chuva
atormentavam sua cabeça e pescoço desprotegido como alfinetadas de pequenas agulhas
geladas, e suas mãos, dentro de suas luvas sem substância, estavam pegajosas e molhadas
pela chuva. Chegando ao cais, ela olhou ao redor ansiosamente, buscando uma visão de
Nate. Já fazia quase duas semanas desde que ela tinha falado com uma alma, tendo se
mantido quase que inteiramente sozinha a bordo do Main. Seria maravilhoso ter seu irmão
para conversar novamente.
Ele não estava lá. Os desembarcadouros estavam amontoados com pilhas de
bagagens e todos os tipos de caixas e carga, até mesmo montes de frutas e verduras
murchando e dissolvendo na chuva. Um navio a vapor estava partindo para Le Havre12 ali
perto, e marinheiros de aparência úmida dirigiam-se para perto de Tessa, gritando em
francês. Ela tentou se mover para o lado, apenas para quase ser pisoteada por uma
multidão de passageiros desembarcando correndo para o abrigo da estação ferroviária.
12 Uma cidade portuária no norte da França sobre o Canal Inglês, na foz do rio Sena.
Mas Nate estava longe de ser visto.
“Você é a Srta. Gray?” A voz era gutural, com forte sotaque. Um homem havia se
movido para postar-se na frente de Tessa. Ele era alto, e usava um extenso casaco preto e
um chapéu alto, sua aba juntando água da chuva como uma cisterna. Seus olhos eram
estranhamente salientes, quase protuberantes, como os de um sapo, sua pele de aparência
tão áspera quanto de tecido de cicatrização. Tessa teve que lutar contra o impulso de
encolher-se de medo para longe dele. Mas ele sabia o nome dela. Quem aqui poderia saber
seu nome exceto alguém que conhecia Nate, também?
“Sim?”
 “Seu irmão me enviou. Venha comigo.”
“Onde ele está?” Tessa perguntou, mas o homem já estava se afastando. Seu passo
era irregular, como se ele fosse manco por uma lesão antiga. Depois de um momento Tessa
recolheu sua saia e correu atrás dele.
Ele andou através da multidão, avançando com velocidade proposital. As pessoas
saltavam para o lado, murmurando sobre sua rudeza enquanto ele empurrava com o
ombro para passar, com Tessa quase correndo para acompanhar. Ele virou-se
abruptamente em torno de uma pilha de caixas, e parou na frente de um grande coche
negro e brilhante. Letras douradas haviam sido pintadas em toda a sua lateral, mas a
chuva e a neblina estavam muito espessas para Tessa lê-las claramente.
A porta da carruagem abriu e uma mulher se inclinou para fora. Ela usava um
enorme chapéu de plumas que escondia seu rosto. “Srta. Theresa Gray?”

Tessa assentiu. O homem de olhos esbugalhados correu para ajudar a mulher a sair
da carruagem—e em seguida, uma outra mulher, logo após ela. Cada uma delas
imediatamente abriu um guarda-chuva e levantou-o, abrigando-se da chuva. Em seguida,
fixaram os olhos em Tessa.
Elas eram um par estranho, as mulheres. Uma era muito alta e magra, com um rosto
ossudo, muito fino. Cabelos sem cor estavam escovados para trás em um coque na parte
de trás da cabeça. Ela usava um vestido de seda violeta brilhante, já salpicado aqui e ali
com manchas de chuva, e luvas violeta combinando. A outra mulher era baixa e gorda,
com pequenos olhos profundamente afundados em sua cabeça; as luvas rosa brilhante,
esticadas sobre suas mãos grandes as faziam parecem patas coloridas.
“Theresa Gray,” disse a menor das duas. “Que prazer em conhecê-la, finalmente.
Eu sou a Sra. Black, e esta é minha irmã, Sra. Dark13. Seu irmão nos enviou para
acompanhá-la a Londres.”
13 Em tradução literal: Sra. Negra e Sra. Escura.
Tessa—úmida, fria e perplexa—apertou o xale molhado com mais força em torno
de si mesma. “Eu não entendo. Onde está Nate? Por que ele mesmo não veio?”
“Ele foi detido de forma inevitável pelos negócios em Londres. Mortmain não podia
dispensá-lo. Ele enviou adiantado uma nota para você, no entanto.” Sra. Black estendeu
um pedaço de papel enrolado, já umedecido com a chuva.
Tessa o pegou e virou-se para ler. Era uma breve nota de seu irmão se desculpando
por não estar no cais para encontrá-la, e deixando-a saber que ele confiava na Sra. Black e
na Sra. Dark—eu as chamo as Irmãs Sombrias, Tessie, por razões óbvias, e elas parecem achar o
nome agradável!—para trazê-la com segurança para a sua casa em Londres. Elas eram, dizia
sua nota, suas senhorias bem como amigas de confiança, e tinham sua mais alta
recomendação.
Isso a convenceu. A carta era certamente de Nate. Tinha sua caligrafia, e ninguém
mais nunca a chamou Tessie. Ela engoliu em seco e enfiou a nota em sua manga, voltando-
se para encarar as irmãs. “Muito bem,” disse ela, lutando contra seu sentimento
persistente de decepção—ela estava tão ansiosa para ver seu irmão. “Devemos chamar um
carregador para buscar minha mala?”
“Não há necessidade, não há necessidade.” O tom alegre da Sra. Dark estava em
desacordo com suas características pálidas muito finas. “Nós já arranjamos para que fosse
enviada na frente.” Ela estalou os dedos para o homem de olhos esbugalhados, que se
impulsionou para o assento do condutor na parte da frente da carruagem. Ela colocou a
mão no ombro de Tessa. “Venha, criança; vamos tirar você da chuva.”
Enquanto Tessa aproximava-se da carruagem, impulsionada pela mão ossuda da
Sra. Dark, a neblina clareou, revelando a reluzente imagem dourada pintada na lateral da

porta. As palavras ‘O Clube Pandemônio’, enroladas intricadamente em torno de duas
serpentes que mordiam a cauda uma da outra, formando um círculo. Tessa franziu a testa.
“O que isso significa?”
“Nada com que você precise se preocupar,” disse a Sra. Black, que já havia subido
para dentro e tinha sua saia espalhada por um dos assentos de aparência confortável. O
interior da carruagem era ricamente decorado com assentos elegantes de veludo roxo de
frente um para o outro, e cortinas de franjas douradas penduradas nas janelas.
A Sra. Dark ajudou Tessa a subir na carruagem, em seguida subiu depois dela.
Enquanto Tessa acomodou-se no assento do banco, a Sra. Black esticou-se para fechar a
porta da carruagem atrás de sua irmã, fechando lá fora o céu cinzento. Quando sorriu,
seus dentes brilhavam na escuridão como se fossem feitos de metal. “Acomode-se,
Theresa. Nós temos uma longa viagem pela frente.”
Tessa colocou a mão no anjo mecânico em sua garganta, tirando conforto de seu
constante tique, à medida que o carro balançava para frente na chuva.














Seis semanas mais tarde


1
A Casa Sombria


Além deste lugar de ira e lágrimas
Avulta-se apenas o Horror das sombras
—William Ernest Henley, Invictus


“As Irmãs gostariam de vê-la em seus aposentos, Srta. Gray.”
Tessa colocou o livro que estava lendo sobre a mesa de cabeceira, e virou-se para
ver Miranda parada na porta de seu pequeno quarto—exatamente como ela fazia nesta
mesma hora todos os dias, transmitindo a mesma mensagem que ela transmitia todos os
dias. Em um momento, Tessa iria pedi-la para esperar no corredor, e Miranda sairia do
quarto. Dez minutos mais tarde ela iria retornar e dizer a mesma coisa outra vez. Se Tessa
não viesse obedientemente após um algumas destas tentativas, Miranda a agarraria e a
arrastaria, chutando e gritando, escada abaixo até a quente e fedorenta sala onde as Irmãs
Sombrias esperavam.
Isso aconteceu todos os dias da primeira semana que Tessa esteve na Casa Sombria,
como ela tinha vindo a chamar o lugar onde a mantinham prisioneira, até que
eventualmente Tessa tinha percebido que os gritos e chutes não faziam muita coisa e
simplesmente desperdiçavam sua energia. Energia que era provavelmente melhor
poupada para outras coisas.
“Um momento, Miranda,” disse Tessa. A criada inclinou-se numa reverência
desajeitada e saiu do quarto, fechando a porta atrás dela.
Tessa levantou-se, olhando em volta do pequeno quarto que tinha sido sua cela por
seis semanas. Ele era pequeno, com papel de parede florido, e pouca mobília—uma mesa
simples com uma toalha de renda branca onde ela comia suas refeições; a estreita cama de
latão onde ela dormia; o lavatório rachado e o jarro de porcelana para suas lavagens; o
peitoril da janela onde ela empilhava seus livros, e a pequena cadeira onde sentava a cada
noite e escrevia cartas para seu irmão—cartas que ela sabia que nunca poderia enviar,
cartas que mantinha escondidas sob seu colchão onde as Irmãs Sombrias não iriam

encontrá-las. Esta era sua maneira de manter um diário e de assegurar-se, de certo modo,
de que ela iria ver Nate de novo um dia e seria capaz de dá-las a ele.
Ela atravessou o quarto para o espelho que pendia contra a parede oposta, e alisou
seu cabelo. As Irmãs Sombrias, como de fato elas pareciam querer ser chamadas,
preferiam que ela não parecesse bagunçada, embora elas não parecessem notar sua
aparência de uma forma ou de outra após isso—o que era afortunado, porque o seu
reflexo a fez estremecer. Havia o pálido oval de seu rosto dominado por vazios olhos
cinza—um rosto sombreado sem cor nas bochechas ou esperança em sua expressão. Ela
usava o desfavorável vestido preto de instrutora escolar que as Irmãs tinham-lhe dado
quando chegou, sua mala nunca a seguiu, apesar de suas promessas, e esta agora era a
única peça de roupa que ela possuía. Ela desviou o olhar rapidamente.
Nem sempre ela se acovardou de seu reflexo. Nate, com sua boa aparência loira, era
o único que a família geralmente concordava ter herdado a beleza de sua mãe, mas Tessa
tinha sempre estado perfeitamente satisfeita com o seu próprio cabelo castanho liso e
sóbrios olhos cinza. Jane Eyre tinha cabelos castanhos, e muitas outras heroínas, além
disso. E não era tão ruim ser alta, também—mais alta do que a maioria dos rapazes da sua
idade, isso era verdade, mas Tia Harriet sempre disse que enquanto uma mulher alta se
portasse bem, ela iria sempre parecer régia.
Ela não parecia régia agora, entretanto. Ela parecia oprimida e esfarrapada e
totalmente como um espantalho assustado. Ela se perguntava se Nate sequer iria
reconhecê-la se a visse hoje.
Neste pensamento, seu coração pareceu encolher dentro do peito. Nate. Ele era o
motivo pelo qual ela estava fazendo tudo isso, mas às vezes ela sentia tanta falta dele que
parecia que tinha engolido vidro quebrado. Sem ele, estava completamente sozinha no
mundo. Não havia ninguém de qualquer modo para ela. Ninguém no mundo que se
importava se ela vivesse ou morresse. Às vezes, o horror desse pensamento ameaçava
dominá-la e mergulhá-la em uma escuridão sem fim da qual não haveria retorno. Se
ninguém no mundo inteiro se preocupa com você, você realmente existe?
O clique da fechadura cortou abruptamente seus pensamentos. A porta se abriu;
Miranda parou na soleira.
“É hora de vir comigo agora,” disse ela. “Sra. Black e Sra. Dark estão esperando.”
Tessa olhou para ela com repugnância. Ela não podia adivinhar quantos anos tinha
Miranda. Dezenove? Vinte e cinco? Havia algo de eterno em seu liso rosto redondo. Seu
cabelo era a cor de água de vala, puxado para trás rigidamente por trás de suas orelhas.
Exatamente como o cocheiro das Irmãs Sombrias, ela tinha os olhos que se projetavam
como de um sapo e faziam seu olhar parecer como se fosse surpreendida
permanentemente. Tessa pensava que eles deviam ser relacionados.

Enquanto elas desciam juntas, Miranda marchando junto com sua marcha
desajeitada e cortada, Tessa levantou sua mão para tocar a corrente em torno de sua
garganta, onde o anjo mecânico pendia. Isso era um hábito—algo que ela fazia cada vez
que era forçada a ver as Irmãs Sombrias. De alguma forma, a sensação do pingente em seu
pescoço a tranquilizava. Continuou segurando-o enquanto elas passavam patamar após
patamar. Havia vários níveis de corredores na Casa Sombria, embora Tessa não tivesse
visto nada disso exceto os aposentos das Irmãs Sombrias, os corredores e escadas, e seu
próprio quarto. Finalmente elas chegaram ao obscurecido porão. Era frio e úmido aqui, as
paredes pegajosas com desagradável umidade, embora, aparentemente, as Irmãs não se
importassem. Seu escritório era em frente, através de um conjunto de amplas portas
duplas. Um estreito corredor conduzia para longe na outra direção, desaparecendo na
escuridão; Tessa não tinha ideia do que tinha naquele corredor, mas algo sobre a
densidade das sombras a fez feliz de nunca ter descoberto.
As portas do escritório das Irmãs estavam abertas. Miranda não hesitou, mas se
arrastou para dentro, Tessa seguindo após ela com grande relutância. Ela odiava esta sala
mais do que qualquer outro lugar na Terra.
Para começar, estava sempre quente e úmida por dentro, como um pântano, mesmo
quando o céu lá fora estava cinzento e chuvoso. As paredes pareciam filtrar umidade, e o
estofamento nas cadeiras e sofás estava sempre florescendo com mofo. Cheirava estranho
também, como as margens do Hudson em um dia quente: água e lixo e lodo.
As Irmãs já estavam lá, como sempre estavam; sentadas atrás de sua enorme mesa
de recepção. Elas estavam em seus coloridos usuais, Sra. Black em um vestido rosa-salmão
vibrante e Sra. Dark em uma toga azul-pavão. Acima dos cetins brilhantemente coloridos,
seus rostos eram como balões cinza vazios. Ambas usavam luvas apesar de quão quente a
sala era.
“Deixe-nos agora, Miranda,” disse a Sra. Black, que estava girando o pesado globo
de metal que mantinham na mesa com um dedo roliço coberto pela luva branca. Tessa
tinha tentado muitas vezes obter uma melhor visão do globo—algo sobre a forma como os
continentes estavam estabelecidos nunca pareceu muito correto para ela, especialmente o
espaço no centro da Europa—mas as Irmãs sempre a mantiveram longe dele. “E feche a
porta atrás de você.”
Inexpressiva, Miranda fez o que foi pedido. Tessa tentou não estremecer quando a
porta fechou atrás dela, barrando a pouca brisa que havia neste lugar sem ar.
Sra. Dark inclinou sua cabeça para o lado. “Venha aqui, Theresa.” Das duas
mulheres, ela era a mais gentil—mais propensa a adular e persuadir do que sua irmã, que
gostava de convencer com tapas e sibilar ameaças. “E pegue isso.”
Ela segurava alguma coisa: um pedaço estragado de tecido rosa amarrado em um
laço, o tipo que pode ser usado como um laço de cabelo de garota.

Ela estava acostumada a receber coisas das Irmãs Sombrias agora. Coisas que
outrora tinham pertencido a pessoas: alfinetes de gravata e relógios, joias de luto, e
brinquedos infantis. Uma vez os cadarços de uma bota, outra um único brinco, manchado
de sangue.
“Pegue isso,” disse a Sra. Dark novamente, uma pitada de impaciência em sua voz.
“E Transforme-se.”
Tessa pegou o laço. Ele estava em sua mão, leve como uma asa de mariposa, e as
Irmãs Sombrias olharam impassivelmente para ela. Ela se lembrou de livros que tinha
lido, romances em que personagens foram a julgamento, de pé trêmulos no banco dos réus
do Old Bailey14 e rezando por um veredito de inocente. Ela muitas vezes sentia que estava
ela própria em julgamento nesta sala, sem saber de que crime ela era acusada.
14 Principal Corte de Justiça Criminal na Inglaterra, assim chamado devido ao nome da rua em que é localizada, é um
edifício judiciário, um dos vários edifícios da Corte da Coroa.
Ela virou o laço em sua mão, lembrando-se da primeira vez que as Irmãs Sombrias
tinham lhe entregue um objeto—uma luva de mulher, com botões de pérola no pulso. Elas
tinham gritado para ela se Transformar, deram-lhe tapas e sacudiram-na enquanto ela
dizia a elas uma e outra vez com crescente histeria que não tinha ideia do que elas estavam
falando, nenhuma ideia do que elas estavam pedindo para fazer.
Ela não tinha chorado, embora quisesse. Tessa odiava chorar, principalmente em
frente de pessoas que não confiava. E as duas únicas pessoas no mundo em que ela
confiava, uma estava morta e a outra presa. Elas lhe disseram isso, as Irmãs Sombrias,
disseram a ela que elas tinham Nate, e se ela não fizesse o que elas dissessem, ele
morreria. Elas lhe mostraram o anel dele, o que tinha sido de seu pai—manchado com
sangue agora—para provar. Elas não a tinham deixado segurá-lo ou tocá-lo, tinham
apanhado de volta enquanto ela alcançava-o, mas ela reconheceu. Era de Nate.
Depois disso, ela fez tudo o que tinham pedido. Tinha bebido as poções que tinham
dado a ela, feito as horas de exercícios agonizantes, se forçado a pensar do jeito que elas
queriam. Disseram-lhe para imaginar-se como argila, sendo moldada no prato giratório do
oleiro, sua forma amorfa e mutável. Elas tinham lhe dito para pegar nos objetos que
haviam dado a ela, a imaginá-los como seres vivos, e para tirar o espírito que os animava.
Levou semanas, e a primeira vez que ela havia se Transformado, tinha sido tão
absurdamente doloroso que ela vomitou e desmaiou. Quando ela acordou, estava deitada
em um das cadeiras apodrecidas na sala das Irmãs Sombrias, um pano úmido sendo
passado em seu rosto. A Sra. Black estava inclinada sobre ela, sua respiração amarga como
vinagre, seus olhos acesos. “Você fez bem hoje, Theresa,” ela disse. “Muito bem.”
Naquela noite, quando Tessa foi para seu quarto, haviam presentes para ela, dois
novos livros sobre sua mesa de cabeceira. De alguma forma, as Irmãs Sombrias tinham

percebido que a leitura e os romances eram a paixão de Tessa. Havia uma cópia de Grandes
Esperanças15 e—de todas as coisas—Mulherzinhas16. Tessa tinha abraçado os livros e,
sozinha e sem ninguém para olhar em seu quarto, tinha se permitido chorar.
15 Romance de 1860 do autor inglês Charles Dickens
16 Romance de 1868 da autora americana Lousa May Alcott
Tinha ficado mais fácil desde então, a Transformação. Tessa ainda não entendia o
que acontecia dentro dela para tornar isso possível, mas ela tinha memorizado a série de
passos que as Irmãs Sombrias lhe ensinaram, do jeito que uma pessoa cega pode
memorizar o número de passos que leva para andar de sua cama até a porta de seu
quarto. Ela não sabia o que estava em torno dela no estranho lugar escuro que elas
pediram-na para viajar, mas ela conhecia o caminho através dele.
Ela chamou essas memórias agora, intensificando seu aperto no pequeno farrapo de
tecido cor de rosa que ela segurava. Ela abriu a mente e deixou a escuridão descer, deixou
a conexão que a prendia à fita de cabelo e o espírito dentro dela—o eco fantasmagórico da
pessoa que tinha possuído uma vez isso—desemaranhar como um fio dourado que
conduz através das sombras. A sala em que ela estava, o calor opressivo, a respiração
ruidosa das Irmãs Sombrias, tudo caiu por terra enquanto ela acompanhava o fio,
enquanto a luz ficava mais intensa em torno dela e ela se embrulhava nela como se ela
estivesse se envolvendo em um cobertor.
Sua pele começou a formigar e picar com milhares de pequenos choques. Esta tinha
sido a pior parte, uma vez—a parte que tinha a convencido que ela estava
morrendo. Agora ela estava acostumada a isso, e suportava estoicamente enquanto ela
estremecia toda, de seu couro cabeludo até os dedos dos pés. O anjo mecânico em torno de
sua garganta parecia funcionar mais rápido, como se estivesse em sincronia com a
aceleração do seu coração. A pressão dentro de sua pele aumentou—Tessa ofegou—e seus
olhos, que tinham estado fechados, voaram abertos enquanto a sensação aumentava em
um ritmo crescente—e então desapareceu.
Tinha acabado.
Tessa piscou vertiginosamente. O primeiro momento após uma Transformação era
sempre como piscar água fora de seus olhos depois de mergulhar na banheira. Ela olhou
para si mesma. Seu novo corpo era delicado, quase frágil, e o tecido do vestido estava
solto, amontoado no chão sob os pés. Suas mãos, cruzadas em sua frente, eram pálidas e
magras, com pontas rachadas e unhas roídas. Mãos desconhecidas, estranhas.
“Qual é seu nome?” Sra. Black exigiu. Ela tinha se levantado e estava olhando para
Tessa com seus olhos pálidos queimando. Ela parecia quase faminta.
Tessa não teve que responder. A menina cuja pele ela usava respondeu por ela,
falando por meio dela do modo que diziam que os espíritos falavam com seus médiuns—

mas Tessa odiava pensar desta maneira; a Transformação era muito mais intimista, muito
mais assustadora, do que isso. “Emma,” a voz que veio de Tessa disse. “Srta. Emma
Bayliss, senhora.”
“E quem é você, Emma Bayliss?”
A voz respondeu, palavras rolando da boca de Tessa, trazendo fortes imagens com
elas. Nascida no Cheapside17, Emma foi uma de seis filhos. Seu pai estava morto, e sua
mãe vendia água de hortelã em uma carroça no East End18. Emma tinha aprendido a
costurar para trazer dinheiro quando ela ainda era uma criança pequena. Noites, ela
passava sentada na pequena mesa na cozinha, costurando remendos à luz de uma vela de
sebo. Às vezes, quando a vela queimava e não havia dinheiro para outra, ela ia para fora
nas ruas e sentava-se debaixo de um dos lampiões à gás municipais, utilizando sua luz
para costurar...
17 Rua de Londres.
18 Área ao leste da cidade de Londres. O East End se tornou sinônimo de pobreza, doenças, superlotação e
criminalidade.
“É isso que você estava fazendo na rua na noite que morreu, Emma Bayliss?”
perguntou a Sra. Dark. Ela estava sorrindo um pouco agora, passando sua língua sobre o
lábio inferior, como se ela pudesse sentir o que seria a resposta.
Tessa viu ruas estreitas e sombrias, envoltas em espessa névoa, uma agulha
prateada trabalhando na débil luz amarela a gás. Um passo, abafado no nevoeiro. Mãos
que se estenderam das sombras e agarraram seus ombros, mãos que a arrastaram,
gritando, para a escuridão. A agulha e linha caindo de suas mãos, o laço arrancado de seu
cabelo enquanto ela lutava. Uma voz rouca gritando algo irritado. E, em seguida, a lâmina
prata de uma faca refletindo através da escuridão, cortando sua pele, extraindo o sangue.
Dor que era como fogo, e terror como nada que ela já conheceu. Ela chutou o homem
segurando-a, conseguindo derrubar a adaga de sua mão; ela pegou a lâmina e correu,
tropeçando enquanto enfraquecia, o sangue drenando dela rápido, tão rápido. Ela
contorceu-se em um beco, ouvindo o grito sibilante de algo atrás dela. Ela sabia que a
estava seguindo, e ela estava esperando morrer antes disso alcançá-la...
A Transformação quebrou como vidro. Com um grito Tessa caiu de joelhos, o
pequeno laço rasgado caindo de sua mão. Era sua mão de novo—Emma tinha ido, como
uma pele jogada fora. Tessa estava mais uma vez sozinha dentro de sua própria mente.
A voz da Sra. Black veio de longe. “Theresa? Onde está Emma?”
“Ela está morta,” murmurou Tessa. “Ela morreu em um beco—sangrou até a
morte.”
“Bom.” Sra. Dark exalou, um som de satisfação. “Muito bem, Theresa. Isso foi
muito bom.”

Tessa não disse nada. A frente de seu vestido estava manchada com sangue, mas
não havia dor. Ela sabia que não era o seu sangue; não era a primeira vez que isso tinha
acontecido. Ela fechou os olhos, girando na escuridão, determinada a não desmaiar.
“Nós devíamos tê-la mandado fazer isso antes,” disse a Sra. Black. “A questão da
menina Bayliss tem me incomodado.”
A resposta da Sra. Dark foi seca. “Eu não tinha certeza de que ela estava à altura
disso. Você se lembra do que aconteceu com a mulher Adams.”
Tessa sabia imediatamente do que elas estavam falando. Semanas atrás, ela havia se
Transformado em uma mulher que morreu de um tiro no coração; sangue tinha escorrido
por seu vestido e ela tinha se Transformado de volta imediatamente, gritando em terror
histérico até que as Irmãs fizeram-na ver que ela estava ilesa.
“Ela tem avançado maravilhosamente desde então, você não acha, Irmã?” Sra. Black
disse. “Dado o que nós tivemos que trabalhar no início—ela nem mesmo sabia o que era.”
“Certamente, ela era absolutamente barro informe,” Sra. Dark concordou. “Nós
verdadeiramente trabalhamos um milagre aqui. Eu não posso ver como o Magister19
poderia deixar de ficar satisfeito.”
19 Magister significa mestre em latim.
Sra. Black deu um pequeno suspiro. “Isso significa—você acha que é o momento?”
“Ah, com certeza, minha querida irmã. Ela está tão pronta quanto jamais vai estar. É
o momento para nossa Theresa encontrar seu mestre.” Havia uma nota regozijante na voz
de Sra. Dark, um som tão desagradável que cortou a vertigem cega de Tessa. Sobre o que
elas estavam falando? Quem era o Magister? Ela observou através dos cílios abaixados a
Sra. Dark sacudir o cordão de seda do sino que convocaria Miranda para vir e levar Tessa
de volta para seu quarto. Parecia que a aula estava acabada por hoje.
“Talvez amanhã,” disse a Sra. Black, “ou mesmo esta noite. Se dissermos ao
Magister que ela está pronta, eu não posso imaginar que ele não se apressaria em vir aqui
sem demora.”
Sra. Dark, saindo de trás da mesa, deu uma risadinha. “Eu entendo que você está
ansiosa para ser paga por todo o nosso trabalho, querida irmã. Mas Theresa tem que estar
não simplesmente pronta. Ela tem que estar... apresentável tão bem como puder. Você não
concorda?”
Sra. Black, seguindo sua irmã, murmurou uma resposta que foi interrompida
conforme a porta abriu e Miranda entrou. Ela apresentava o mesmo olhar apagado de
sempre. A visão de Tessa agachada e sangrenta no chão parecia não causar nenhuma

surpresa nela. Então novamente, Tessa pensou, ela tinha provavelmente visto coisas muito
piores neste quarto.
“Leve a menina de volta até seu quarto, Miranda.” A ansiedade tinha ido embora
da voz da Sra. Black, e ela era toda rispidez novamente. “Pegue as coisas—você sabe,
aquelas que mostramos a você—e deixe-a vestida e pronta.”
“As coisas... que você me mostrou?” Miranda soava inexpressiva.
Sra. Dark e Sra. Black trocaram um olhar enojado, e se aproximaram de Miranda,
bloqueando a visão Tessa da garota. Tessa as ouviu sussurrando para ela, e pegou
algumas palavras—“vestidos” e “closet” e “fazer o que puder para fazê-la parecer bonita”,
e então, finalmente, Tessa ouviu o bastante cruel, “Eu não tenho certeza se Miranda é
inteligente o bastante para obedecer instruções vagas desse tipo, irmã.”
Fazê-la parecer bonita. Mas por que elas se importavam se ela parecia bonita ou não,
quando podiam forçá-la a parecer de qualquer forma que quisessem? De que importava
como sua verdadeira aparência era? E por que o Magister iria importar-se? Porém, estava
muito claro pelo comportamento das Irmãs que elas acreditavam que ele iria.
Sra. Black saiu da sala, sua irmã seguindo atrás dela, como ela sempre fazia. Na
porta, a Sra. Dark fez uma pausa, e olhou para Tessa. “Lembre-se, Theresa,” ela disse,
“que este dia—esta mesma noite—é o motivo de toda a nossa preparação.” Ela pegou as
saias com ambas as mãos esqueléticas. “Não nos desaponte.”
Ela deixou a porta bater fechando atrás dela. Tessa se encolheu com o barulho, mas
Miranda, como sempre, parecia completamente inalterada. Em todo o tempo que ela
passou na Casa Sombria, Tessa nunca tinha sido capaz de assustar a outra garota, ou
apanhar de surpresa uma expressão sem guardas dela.
“Venha,” Miranda disse. “Temos que ir lá para cima agora.”
Tessa levantou-se, lentamente. Sua mente estava girando. Sua vida na Casa Sombria
tinha sido horrível, mas ela tinha—ela percebeu agora—ficado quase acostumada a ela. Ela
sabia o que esperar de cada dia. Ela sabia que as Irmãs Sombrias a estavam preparando
para alguma coisa, mas não sabia que coisa era. Ela tinha acreditado—ingenuamente,
talvez—que elas não iriam matá-la. Por que desperdiçar todo esse treinamento nela se ela
só iria morrer?
Mas algo no regozijante tom de Sra. Dark a fez pausar. Alguma coisa tinha mudado.
Elas haviam conseguido o que queriam com ela. Elas iriam ser “pagas”. Mas quem ia fazer
o pagamento?
“Venha,” disse Miranda novamente. “Temos que prepará-la para o Magister.”

“Miranda,” disse Tessa. Ela falou baixinho, do jeito que ela teria falado com um
gato nervoso. Miranda nunca tinha respondido a uma pergunta de Tessa antes, mas isso
não significava que não valia a pena tentar. “Quem é o Magister?”
Houve um longo silêncio. Miranda olhou para frente, seu rosto amassado
impassível. Então, para surpresa de Tessa, ela falou. “O Magister é um homem muito
importante,” disse ela. “Será uma honra para você quando você se casar com ele.”
“Casar?” Tessa ecoou. O choque foi tão intenso que ela podia de repente ver o
quarto inteiro mais claramente—Miranda, o tapete respingado de sangue no chão, o
pesado globo de metal sobre a mesa, ainda na posição inclinada que a Sra. Black havia
deixado. “Eu? Mas—quem é ele?”
“Ele é um homem muito importante,” disse Miranda novamente. “Será uma
honra.” Ela moveu-se para Tessa. “Você precisa vir comigo agora.”
“Não.” Tessa se afastou da outra menina, recuando até que a parte baixa de suas
costas bateu dolorosamente contra a mesa. Ela olhou em volta desesperadamente. Ela
poderia correr, mas nunca passaria por Miranda até a porta; não havia janelas, nem portas
para outras salas. Se ela se escondesse atrás da mesa, Miranda iria simplesmente arrastá-la
e levá-la a seu quarto. “Miranda, por favor.”
“Você precisa vir comigo agora,” repetiu Miranda, ela quase tinha alcançado Tessa.
Tessa podia ver-se refletida nas pupilas negras dos olhos da outra menina, podia sentir o
cheiro o cheiro fraco, amargo, quase carbonizado que se agarrava à roupa e pele de
Miranda. “Você precisa—”
Com uma força que não sabia que possuía, Tessa agarrou a base do globo de bronze
sobre a mesa, ergueu-o e golpeou com toda força na cabeça de Miranda.
Ele bateu com um som doentio. Miranda recuou—e então se endireitou. Tessa
gritou e soltou o globo, encarando—o lado esquerdo inteiro da face de Miranda estava
esmagado, como uma máscara de papel que tinha sido amassada de um lado. Sua maçã do
rosto estava achatada, seus lábios amassados contra os dentes. Mas não havia sangue, sem
sangue absolutamente.
“Você precisa vir comigo agora,” disse Miranda, no mesmo tom monótono que ela
sempre usava.
Tessa olhou boquiaberta.
“Você precisa vir—você p-precis—você—você—você—voccccccccc—” a voz de
Miranda estremeceu e partiu, degenerando em uma corrente de sons inarticulados. Ela se
moveu em direção a Tessa, em seguida, sacudiu para o lado, contorcendo-se e
tropeçando. Tessa afastou-se da mesa e começou a recuar enquanto a menina ferida
girava, mais e mais rápido. Ela titubeou através da sala como um bêbado cambaleante,

ainda gritando, e se chocou contra a parede—o que pareceu atordoá-la. Ela caiu no chão e
ficou imóvel.
Tessa correu para a porta e saiu para o corredor, parando apenas uma vez, logo fora
da sala, para olhar para trás. Pareceu, naquele breve momento, como se um fio de fumaça
preta estivesse subindo do corpo de bruços de Miranda, mas não havia tempo para olhar.
Tessa correu pelo corredor, deixando a porta aberta atrás dela.
Ela se precipitou para a escada e se lançou violentamente para cima, quase
tropeçando em suas saias e batendo os joelhos dolorosamente em um dos degraus. Ela
gritou e subiu adiante, até o primeiro andar, onde ela correu para o corredor. Ele se
estendia à sua frente, longo e curvo, desaparecendo nas sombras. Enquanto ela corria, ela
viu que ele era alinhado com portas. Ela parou e tentou uma, mas esta estava trancada, e
também a próxima, e a próxima depois desta.
Outro conjunto de escadas levava para baixo no final do corredor. Tessa desceu-as
correndo e encontrou-se em um corredor de entrada. Parecia como se tivesse sido
esplêndido um dia—o chão era de mármore rachado e manchado, e janelas altas em
ambos os lados estavam protegidas com cortinas. Um pouco de luz derramava através da
renda, iluminando uma enorme porta de entrada. O coração de Tessa pulou. Ela
mergulhou para a maçaneta, segurou-a, e arremessou a porta aberta.
Ali havia uma estreita rua de pedra além, com fileiras de casas geminadas alinhadas
de ambos os lados. O cheiro da cidade acertou Tessa como um golpe—fazia tanto tempo
desde que ela respirou o ar exterior. Era perto de anoitecer, o céu do escurecido azul do
crepúsculo, obscurecido por manchas de neblina. À distância, ela podia ouvir vozes, os
gritos de crianças brincando, o clop dos cascos dos cavalos. Mas aqui a rua estava quase
deserta, exceto por um homem encostado numa lâmpada de gás nas proximidades, lendo
um jornal sob sua luz.
Tessa arremeteu descendo as escadas em direção ao desconhecido, pegando-o pela
manga. “Por favor, senhor—se você puder me ajudar—”
Ele se virou e olhou para ela.
Tessa abafou um grito. Seu rosto era tão branco e pálido quanto tinha estado na
primeira vez que ela o viu, na doca de Southampton; seus olhos esbugalhados ainda
lembraram-na dos olhos de Miranda, e seus dentes brilhavam como metal quando ele
sorriu.
Era o cocheiro das Irmãs Sombrias.
Tessa virou-se para correr, mas já era tarde demais.


2
O Inferno é Frio


Entre dois mundos paira a vida como uma estrela,
Entre noite e manhã, em cima da linha do horizonte.
Quão pouco sabemos o que somos!
Quanto menos o que nós podemos ser!
—Lorde Byron, Don Juan


“Sua garotinha estúpida,” Sra. Black cuspiu enquanto apertava os nós que
prendiam os pulsos de Tessa à armação da cama. “O que você pensava que iria conseguir,
fugindo dessa forma? Onde você pensou que possivelmente poderia ir?”
Tessa não disse nada, simplesmente ergueu seu queixo e olhou para a parede. Ela se
recusava a deixar a Sra. Black, ou sua irmã horrível, verem quão perto ela estava das
lágrimas, ou o quanto as cordas que amarravam seus tornozelos e pulsos à cama
machucavam.
“Ela é totalmente insensível à honra que está sendo feita a ela,” disse a Sra. Dark,
que estava perto da porta, como se para ter certeza que Tessa não se livrasse das amarras e
saísse correndo por ela. “É repugnante de se ver.”
“Nós fizemos o que pudemos para ela estar pronta para o Magister,” Sra. Black
disse, e suspirou. “Uma pena que tivemos um barro tão fraco para trabalhar, apesar de seu
talento. Ela é uma pequena tola traiçoeira.”
“De fato,” concordou a irmã. “Ela se dá conta, não é, do que irá acontecer com o
irmão dela se ela tentar nos desobedecer novamente? Podemos estar dispostas a ser
clementes desta vez, mas da próxima...” Ela assobiou por entre os dentes, um som que fez
os pelos se arrepiassem na nuca de Tessa. “Nathaniel não será tão afortunado.”
Tessa não pôde mais suportar; mesmo sabendo que não deveria falar, não devia
dar-lhes a satisfação, ela não pôde conter as palavras. “Se vocês me dissessem quem o
Magister é, ou o que ele quer de mim—”

“Ele quer se casar com você, tolinha.” Sra. Black, tendo terminado com os nós, deu
um passo para trás para admirar a sua obra. “Ele quer lhe dar tudo.”
“Mas por quê?” Tessa murmurou. “Por que eu?”
“Por causa de seu talento,” disse a Sra. Dark. “Por causa do que você é, e o que você
pode fazer. O que nós a treinamos para fazer. Você deveria ser grata a nós.”
“Mas meu irmão.” Lágrimas queimavam por trás dos olhos de Tessa. Eu não irei
chorar, eu não irei chorar, eu não irei chorar, ela disse a si mesma. “Vocês me disseram que se
eu fizesse tudo o que vocês dissessem, o deixariam ir—”
“Uma vez que você estiver casada com o Magister, ele lhe dará o que você quiser.
Se é o seu irmão, ele dará a você.” Não havia remorso ou emoção na voz da Sra. Black.
Sra. Dark riu. “Eu sei o que ela está pensando. Ela está pensando que se pudesse ter
o que quisesse, ela iria nos matar.”
“Não desperdice sua energia mesmo imaginando a possibilidade.” Sra. Black
segurou Tessa sob o queixo. “Temos um contrato rígido com o Magister. Ele não pode nos
fazer mal, nem iria querer. Ele nos deve tudo, por dar você a ele.” Ela se inclinou mais
perto, soltando sua voz em um sussurro. “Ele a quer saudável e intacta. Se não quisesse,
eu teria espancado você violentamente. Se você ousar desobedecer-nos outra vez, eu irei
desafiar os desejos dele e você será chicoteada até sua pele soltar. Você entendeu?”
Tessa virou o rosto para a parede.

Houve uma noite no Main, quando eles passavam pela Terra Nova, em que Tessa
não tinha conseguido dormir. Ela tinha saído para o convés para obter uma lufada de ar, e
tinha visto o mar noturno flamejante com montanhas brancas reluzentes—icebergs, um
dos marinheiros tinha lhe dito quando passou, desprendidos das camadas de gelo do
norte pelo clima mais quente. Eles tinham flutuado lentamente na água escura, como as
torres de uma cidade branca submersa. Tessa havia pensado que nunca tinha visto uma
visão tão solitária.
Tinha apenas começado a imaginar a solidão, ela agora sabia. Assim que as Irmãs
saíram, Tessa percebeu, ela já não sentia como se ela quisesse chorar. A pressão na parte
de trás de seus olhos se foi, substituída por um sentimento vago de desespero oco. Sra.
Dark tinha razão. Se Tessa pudesse matar as duas, ela teria.
Ela puxou experimentalmente as cordas amarrando suas pernas e braços na
armação da cama. Elas não se moveram. Os nós eram apertados; apertados o suficiente
para cavar em sua carne e fazer suas mãos e pés formigarem e arrepiarem com alfinetes e
agulhas. Ela tinha alguns minutos, ela estimou, antes de suas extremidades ficarem
dormentes por completo.

Parte dela—e não uma pequena parte—queria parar de lutar, ficar lá molemente até
o Magister chegar para levá-la embora. O céu já estava escurecendo fora da pequena
janela, não poderia demorar muito mais agora. Talvez ele realmente quisesse casar com
ela. Talvez ele realmente quisesse lhe dar tudo.
De repente ela ouviu a voz de Tia Harriet em sua cabeça: Quando você encontrar um
homem com quem deseja se casar, Tessa, lembre-se: Você saberá o tipo de homem que ele é não pelas
coisas que ele diz, mas pelas coisas que faz.
Tia Harriet tinha razão, claro. Nenhum homem com quem ela jamais iria querer se
casar teria arranjado para ela ser tratada como uma prisioneira e uma escrava, aprisionado
seu irmão, e fazê-la ser torturada em nome do seu “talento”. Isso era desculpa e uma
piada. Só o céu sabia o que o Magister queria fazer com ela uma vez que tivesse as mãos
nela. Se fosse algo que ela pudesse sobreviver, ela imaginava breve o bastante ela desejaria
não ter sobrevivido.
Deus, que talento inútil que ela tinha! O poder de mudar sua aparência? Se ela
tivesse o poder de incendiar as coisas, ou quebrar metal, ou fazer facas crescerem de seus
dedos! Ou se ela só tivesse o poder de tornar-se invisível, ou encolher ao tamanho de um
rato—
Ela ficou de repente quieta, tão quieta que ela podia ouvir o tique-taque do anjo
mecânico contra o peito. Ela não tinha que se encolher até o tamanho de um rato, não é?
Tudo o que ela tinha a fazer era fazer-se pequena o suficiente para que os laços em torno
de seus pulsos ficassem frouxos.
Era possível para ela se Transformar em alguém uma segunda vez, sem tocar em
nada que lhes haviam pertencido—desde que ela tivesse feito isso antes. As Irmãs a
tinham feito memorizar como fazer isso. Pela primeira vez, ela estava feliz por algo que
elas obrigaram-na a aprender.
Ela se pressionou contra o colchão duro e fez-se lembrar. A rua, a cozinha, o
movimento da agulha, o brilho da luz do gás. Ela desejou isso, quis a Transformação
viesse. Qual é seu nome? Emma. Emma Bayliss...
A Transformação abateu sobre ela como um trem, quase tirando seu fôlego—
remodelando sua pele, reformando seus ossos. Ela estrangulou seus gritos e arqueou as
costas—
E estava feito. Piscando, Tessa olhou para o teto, então olhou para os lados, olhando
para o pulso, a corda em torno dele. Ali estavam suas mãos—as mãos de Emma—finas e
frágeis, o círculo da corda frouxo em torno de seus pulsos pequenos. Triunfalmente, Tessa
libertou as mãos e sentou-se, esfregando as marcas vermelhas onde a corda tinha
queimado a pele.

Seus tornozelos estavam ainda atados. Ela se inclinou para frente, seus dedos
trabalhando rapidamente nos nós. A Sra. Black, ao que parecia, podia dar nós como um
marinheiro. Os dedos de Tessa estavam sangrando e feridos quando a corda caiu e ela
ficou em pé.
O cabelo de Emma era tão fino e delgado que tinha escorregado dos grampos que
prendiam o próprio cabelo de Tessa na sua nuca. Tessa empurrou o cabelo para trás com
impaciência sobre os ombros e sacudiu-se livre de Emma, deixando a Transformação ir
embora dela, até que seu cabelo deslizou por entre seus dedos, grossos e familiares ao
toque. Olhando o espelho do outro lado da sala, ela viu que a pequena Emma Bayliss
havia ido embora e ela era ela mesma outra vez.
Um ruído atrás dela a fez se virar. A maçaneta da porta do quarto estava se
virando, torcendo para frente e para trás como se a pessoa do outro lado estivesse tendo
dificuldade para conseguir abri-la.
Sra. Dark, ela pensou. A mulher estava de volta, para chicoteá-la até que ela
estivesse sangrando. De volta para levá-la ao Magister. Tessa se apressou pelo quarto,
pegou o jarro de porcelana da pia, e depois ficou vigiando ao lado da porta, o jarro
apertado arduamente em sua mão esbranquiçada.
A maçaneta girou; a porta se abriu. Na escuridão tudo que Tessa podia ver eram as
sombras enquanto alguém entrava no quarto. Ela pulou para frente, balançando o jarro
com toda a sua força—
A silhueta sombreada se moveu, tão rápido como um chicote, mas não rápido o
suficiente; o jarro bateu no braço estendido da figura antes de voar do aperto de Tessa
para colidir com a parede distante. Cacos quebrados choveram sobre o chão enquanto o
desconhecido gritava.
O grito era inegavelmente masculino. Assim como a inundação de praguejos que se
seguiu.
Ela recuou, então se arremessou para a porta—mas ela tinha se fechado, e por mais
que ela puxasse a maçaneta, a porta não se movia. Uma luz resplandecente brilhou pelo
quarto como se o sol se tivesse nascido. Tessa girou, piscando para longe as lágrimas em
seus olhos—e olhou.
Havia um garoto parado na frente dela. Ele não poderia ser muito mais velho do
que ela era—dezessete ou possivelmente dezoito anos. Ele estava vestido com o que
parecia roupa de operário—uma jaqueta preta desgastada, calças, e botas resistentes. Ele
não usava colete, e grossas tiras de couro cruzavam sua cintura e peito. Presas às tiras
estavam armas—punhais e facas dobradiças, e coisas que pareciam lâminas de gelo. Em
sua mão direita ele segurava uma espécie de pedra brilhante—aquilo estava brilhando,
proporcionando a luz no quarto que tinha quase cegado Tessa. Sua outra mão—esguia e

de dedos compridos—estava sangrando onde ela tinha ferido as costas dela com o seu
jarro.
Mas não foi isso que prendeu seu olhar. Ele tinha o rosto mais bonito que ela já
tinha visto. Cabelos pretos bagunçados e olhos como vidro azul. Maçãs do rosto elegantes,
uma boca cheia, e cílios longos, grossos. Mesmo a curva de sua garganta era perfeita. Ele
parecia com cada herói fictício que ela já tinha evocado em sua cabeça. Embora ela nunca
tivesse imaginado um deles xingando-a enquanto sacudia a mão sangrando de uma forma
acusatória.
Ele pareceu perceber que ela o estava encarando, porque o xingamento parou.
“Você me cortou,” disse ele. Sua voz era agradável. Britânica. Muito comum. Ele olhou
para sua mão com interesse vital. “Pode ser fatal.”
Tessa olhou para ele com olhos arregalados. “Você é o Magister?”
Ele inclinou a mão para o lado. O sangue escorria dela, salpicando o chão. “Meu
Deus, perda maciça de sangue. Morte pode ser iminente.”
“Você é o Magister?”
“Magister?” Ele parecia um tanto surpreso com sua veemência. “Isso significa
‘mestre’ em latim, não significa?”
“Eu...” Tessa estava se sentindo cada vez mais como se estivesse presa em um
sonho estranho. “Eu suponho que sim.”
"Eu já dominei muitas coisas na minha vida. Navegar pelas ruas de Londres, dançar
a quadrilha, a arte japonesa de arranjos florais, mentir em charadas, esconder um estado
altamente embriagado, deliciar mulheres jovens com meus encantos...”
Tessa olhou.
“Infelizmente,” continuou ele, “nunca ninguém realmente se referiu a mim como ‘o
mestre,’ ou ‘o magister,’ que seja. Uma pena...”
“Você está altamente embriagado no momento?” Tessa tinha perguntado com toda
a seriedade, mas percebeu no momento as palavras saíram de sua boca, que ela deve ter
soado muito rude—ou pior, flertante. Ele parecia muito firme sobre seus pés para estar
realmente bêbado, de qualquer maneira. Ela tinha visto Nate embriagado vezes suficientes
para saber a diferença. Talvez ele fosse simplesmente insano.
“Como você é direta, mas eu suponho que todos os americanos o são, não são?” O
garoto parecia divertido. “Sim, o seu sotaque lhe entrega. Qual é o seu nome, então?”
Tessa olhou para ele, incrédula. “Qual é o meu nome?”
“Você não sabe?”

“Você—você entrou arrebentando em meu quarto, me assustou quase até a morte, e
agora você quer saber o meu nome? Qual, diabos, é o seu nome? E quem é você, afinal?”
“Meu nome é Herondale,” o garoto disse alegremente. “William Herondale, mas
todos me chamam de Will. Este é realmente o seu quarto? Não é muito agradável, não é?”
Ele andou em direção à janela, parando para analisar as pilhas de livros sobre a mesa de
cabeceira dela, e depois a própria cama. Ele acenou para as cordas. “Você costuma dormir
amarrada na cama?”
Tessa sentiu suas bochechas em chamas e achou incrível, dadas as circunstâncias,
ela ainda tinha a capacidade de ficar envergonhada. Ela deveria lhe dizer a verdade? Seria
possível que ele fosse o Magister? Embora qualquer um que parecesse com ele, não teria
necessidade de amarrar garotas e aprisioná-las, a fim de fazer que elas se casassem com
ele.
“Aqui. Segure isso.” Ele entregou-lhe a pedra brilhante. Tessa a segurou, meio que
esperando que fosse queimar seus dedos, mas estava fria ao toque. No momento em que
atingiu a palma da sua mão, a sua luz reduziu a um piscar cintilante. Ela olhou para ele
com espanto, mas ele tinha feito o seu caminho até a janela e estava olhando para fora,
aparentemente despreocupado. “Pena que estamos no terceiro andar. Eu poderia aguentar
o salto, mas isso iria provavelmente te matar. Não, temos que ir pela porta e apostarmos
nossas chances na casa.”
“Ir pela—quê?” Tessa, sentindo-se mergulhada em um estado de quase permanente
de confusão, chacoalhou a cabeça. “Eu não entendo.”
“Como você pode não entender?” Ele apontou para os livros dela. “Você lê
romances. Obviamente, eu estou aqui para te resgatar. Eu não pareço com Sir Galahad20?”
Ele levantou os braços dramaticamente. “‘Minha força é a força de dez, Porque meu coração é
puro—’”
20 Galahad é um personagem lendário das histórias do ciclo Arturiano. Ele era um dos Cavaleiros da Távola Redonda
do Rei Artur e um dos três que conseguiu alcançar o Santo Graal.
Algo ecoou, muito longe dentro da casa—o som de uma porta batendo.
Will disse uma palavra que Sir Galahad nunca teria dito, e saltou para longe da
janela. Ele aterrissou com uma careta, e olhou melancolicamente para baixo para sua mão
ferida. “Eu precisarei cuidar disso mais tarde. Venha comigo...” Ele olhou para ela
incisivamente, uma pergunta nos seus olhos.
“Srta. Gray,” disse ela baixinho. “Srta. Theresa Gray.”
“Srta. Gray,” repetiu ele. “Venha, então, Srta. Gray.” Ele passou rapidamente por
ela, moveu-se até a porta, encontrou a maçaneta, virou-a, puxou—

Nada aconteceu.
“Não irá funcionar,” disse ela. “A porta não pode ser aberta por dentro.”
Will sorriu ferozmente. “Não pode?” Ele buscou por seu cinto, por um dos objetos
que pendiam dele. Ele escolheu o que parecia ser um graveto longo e fino, limpo de galhos
menores, e feito de um material prata-esbranquiçado. Ele colocou a ponta dela contra a
porta e desenhou. Grossas linhas pretas espiralaram da ponta do cilindro flexível, fazendo
um audível barulho de assobio enquanto se espalhavam por toda a superfície de madeira
como um derramamento de tinta controlado.
“Você está desenhando?” Tessa perguntou. “Eu realmente não vejo como isso pode
possivelmente—”
Houve um barulho como vidro rachando. A maçaneta, intocada, girou—
rapidamente, em seguida mais rapidamente, e a porta se abriu, uma nuvem tênue de
fumaça subindo das dobradiças.
“Agora você vê,” Will disse, e, embolsando o estranho objeto, gesticulou para Tessa
segui-lo. “Vamos.”
Inexplicavelmente, ela hesitou, olhando para trás em direção ao quarto que tinha
sido sua prisão por quase dois meses. “Meus livros—”
“Eu darei mais livros a você.” Ele a apressou para o corredor à sua frente, e fechou a
porta atrás deles. Depois de segurar no pulso dela, ele puxou-a pelo corredor e por um
canto. Ali estavam as escadas que ela tinha descido tantas vezes com Miranda. Will desceu
dois degraus de cada vez, puxando-a atrás dele.
De cima deles Tessa ouviu um grito. Era inequivocamente da Sra. Dark.
“Elas descobriram seu desaparecimento,” disse Will. Eles tinham chegado ao
primeiro andar, e Tessa desacelerou seu ritmo—apenas para ser empurrada para frente
por Will, que parecia inclinado a parar.
“Não estamos saindo pela porta da frente?” ela perguntou.
“Não podemos. O prédio está cercado. Há uma fila de carruagens estacionadas na
frente. Eu pareço ter chegado em uma hora inesperadamente emocionante.” Ele começou a
descer as escadas novamente, e Tessa o seguiu. “Você sabe o que as Irmãs Sombrias
tinham planejado para esta noite?”
“Não.”
“Mas você estava esperando alguém chamado Magister?” Eles estavam no porão,
agora, onde as paredes rebocadas cederam de repente à pedra úmida. Sem a lanterna de
Miranda era muito escuro. O calor chegou para atingi-los como uma onda. “Pelo Anjo,
aqui embaixo é como o nono círculo do Inferno—”

“O nono círculo do Inferno é frio,” disse Tessa automaticamente.
Will olhou para ela. “O quê?”
“No Inferno,” disse ela. “O Inferno é frio. É coberto de gelo21.”
21 Este trecho, assim como o título do capítulo, é uma referência ao Inferno, primeira parte da Divina Comédia escrita
por Dante Alighieri.
Ele olhou para ela por outro longo momento, os cantos de sua boca se contraindo,
em seguida, estendeu a mão. “Dê-me a luz de bruxa.” À expressão em branco dela, ele fez
um barulho impaciente. “A pedra. Dê-me a pedra.”
No momento em que a mão dele fechou sobre a pedra, luz resplandeceu dela
novamente, irradiando através de seus dedos. Pela primeira vez Tessa viu que ele tinha
um desenho nas costas da mão, desenhado ali como se fosse tinta preta. Parecia um olho
aberto. “Quanto à temperatura do Inferno, Srta. Gray,” ele disse, “deixe-me dar-lhe um
conselho. O belo rapaz jovem que está tentando salvá-la de um destino horrível nunca está
errado. Nem mesmo se ele disser que o céu é roxo e feito de ouriços.”
Ele realmente é louco, Tessa pensou, mas não o disse; ela estava alarmada demais com
o fato de ele ter começado andar para as largas portas duplas dos aposentos das Irmãs
Sombrias.
“Não!” Ela pegou em seu braço, puxando-o para trás. “Não por esse caminho. Não
há nenhuma saída. É um beco sem saída.”
“Corrigindo-me outra vez, eu vejo.” Will virou-se e caminhou para o outro lado,
para o corredor sombrio que Tessa sempre havia temido. Engolindo em seco, ela o seguiu.
O corredor se estreitou conforme eles iam ao longo dele, as paredes pressionando
em ambos os lados. O calor era ainda mais intenso aqui, fazendo o cabelo preso de Tessa
enrolar-se em cachos e grudar em suas têmporas e pescoço. O ar parecia espesso e era
difícil respirar. Durante algum tempo eles andaram em silêncio, até que Tessa não
aguentou mais. Ela tinha que perguntar, mesmo sabendo que a resposta seria não.
“Sr. Herondale,” disse ela, “meu irmão te enviou para me encontrar?”
Ela meio que temia que ele fizesse algum comentário louco em resposta, mas ele
simplesmente olhou para ela com curiosidade. “Nunca ouvi falar de seu irmão,” ele disse,
e ela sentiu a dor surda de desapontamento consumir seu coração. Ela sabia que Nate não
podia tê-lo enviado—ele teria conhecido o seu nome então, não teria?—mas ainda doía. “E
fora os últimos dez minutos, Srta. Gray, eu nunca tinha ouvido falar de você, também.
Tenho seguido o rasto de uma menina morta por mais ou menos dois meses. Ela foi
assassinada, deixada em um beco para sangrar até a morte. Ela estava fugindo de...
alguma coisa.” O corredor chegou a um ponto de bifurcação, e depois de uma pausa Will

virou para a esquerda. “Havia um punhal ao lado dela, coberto do sangue dela. Ele tinha
um símbolo. Duas cobras, engolindo uma o rabo da outra.”
Tessa sentiu um solavanco. Deixada em um beco para sangrar até a morte. Havia um
punhal ao lado dela. Certamente, o corpo tinha sido de Emma. “É o mesmo símbolo que está
no lado da carruagem das Irmãs Sombrias—assim é como eu as chamo, a Sra. Dark e Sra.
Black, eu quero dizer—”
“Você não é a única que as chama assim; os outros Habitantes do Submundo fazem
o mesmo,” disse Will. “Eu descobri esse fato durante a investigação do símbolo. Devo ter
carregado aquela faca por uma centena de covis do Submundo, procurando alguém que
pudesse reconhecê-la. Eu ofereci uma recompensa por informações. Eventualmente, o
nome das Irmãs Sombrias chegou aos meus ouvidos.”
“Submundo?” Tessa repetiu, confusa. “É um lugar em Londres?”
“Esqueça isso,” disse Will. “Eu estou me vangloriando de minhas habilidades de
investigação, e prefiro fazer isso sem interrupção. Onde eu estava?”
“O punhal—” Tessa se interrompeu quando uma voz ecoou pelo corredor, alta,
doce e inconfundível.
“Srta. Gray.” A voz da Sra. Dark. Parecia flutuar entre as paredes como fumaça
serpenteando. “Oh, Srta. Graaaay. Onde você está?”
Tessa congelou. “Oh, Deus, elas nos alcan—”
Will agarrou o seu pulso novamente, e eles estavam correndo, a luz de bruxa em
sua outra mão emanando um padrão selvagem de sombras e luz contra as paredes de
pedra, enquanto eles se arremessavam pelo corredor espiralado. O piso inclinou para
baixo, as pedras sob os pés ficando gradativamente mais lisas e úmidas enquanto o ar em
torno deles ficava cada vez mais quente. Era como se eles estivessem correndo para o
próprio Inferno enquanto as vozes das Irmãs Sombrias ecoavam pelas paredes. “Srta.
Graaaaaay! Não deixaremos que você fuja, você sabe. Não deixaremos que você se esconda! Nós
iremos encontrá-la, querida. Você sabe que iremos.”
Will e Tessa cambalearam em torno de uma curva, e pararam imediatamente—o
corredor terminava em um par de altas portas metálicas. Soltando Tessa, Will jogou-se
contra elas. Elas estouraram abertas e ele cambaleou para dentro, seguido de Tessa, que
girou para fechá-las atrás dela. O peso delas era quase demais para ela conseguir, e ela
teve que jogar suas costas contra elas para forçá-las, finalmente, a fechar.
A única iluminação do quarto era a pedra brilhante de Will, sua luz diminuída
agora para uma brasa entre seus dedos. Aquilo o iluminou na escuridão, como o holofote
em um palco, enquanto ele passava os braços em volta dela para fechar com força o
ferrolho na porta. O ferrolho era pesado e descamando com ferrugem, e, estando tão

próximo a ele como ela estava, ela podia sentir a tensão em seu corpo enquanto ele o
fechava e o deixava cair no lugar.
“Srta. Gray?” Ele estava encostado contra ela, as costas dela contra a porta fechada.
Ela podia sentir o ritmo acelerado do coração dele—ou era o seu? A estranha iluminação
branca lançada pela pedra brilhava contra o ângulo agudo das maçãs do rosto dele, o
brilho fraco de suor em sua clavícula. Havia marcas lá também, ela viu, saindo da gola
desabotoada da camisa—como a marca em sua mão, grossa e preta, como se alguém
tivesse pintado desenhos em sua pele.
“Onde nós estamos?” Ela sussurrou. “Nós estamos seguros?”
Sem responder, ele se afastou, levantando a mão direita. Quando ele levantou, a luz
brilhou mais forte, iluminando a sala.
Eles estavam em um tipo de cela, embora fosse muito grande. As paredes, piso e
teto eram de pedra, inclinando para baixo para um grande ralo no meio do chão. Havia
apenas uma janela, bem alto na parede. Não havia portas fora as que eles tinham entrado.
Mas nada disso foi o que fez Tessa inspirar fundo.
O local era um matadouro. Havia longas mesas de madeira percorrendo todo o
comprimento da sala. Corpos estavam em uma dela—corpos humanos, despidos e
pálidos. Cada um tinha uma incisão preta em forma de Y marcando seu peito, e cada
cabeça pendia para trás sobre a borda da mesa, os cabelos das mulheres varrendo o chão
como vassouras. Na mesa de centro estavam pilhas de facas manchadas de sangue e
maquinaria—rodas dentadas de cobre e engrenagens de bronze e serrotes prateados de
dentes afiados.
Tessa colocou uma mão em sua boca, sufocando um grito. Ela provou sangue
quando mordeu seus próprios dedos. Will não pareceu notar; ele estava pálido enquanto
olhava em volta, murmurando alguma coisa em voz baixa que Tessa não conseguia
entender.
Houve um barulho de batida e as portas de metal estremeceram, como se algo
pesado tivesse se arremessado contra elas. Tessa abaixou a mão sangrando e exclamou:
“Sr. Herondale!”
Ele virou-se, quando as portas estremeceram novamente. Uma voz ecoou do outro
lado delas: “Srta. Gray! Saia agora, e nós não iremos machucar você!”
“Elas estão mentindo,” Tessa disse rapidamente.
“Oh, você realmente acha?” Tendo colocado tanto sarcasmo na pergunta quanto era
humanamente possível, Will embolsou sua luz de bruxa brilhante e saltou para a mesa de
centro, a coberta de maquinário ensanguentado. Ele se abaixou e pegou uma engrenagem
aparentemente pesada de bronze, e sentiu o peso em sua mão. Com um grunhido de

esforço, ele s atirou a na direção da janela alta; o vidro se estilhaçou, e Will levantou a sua
voz. “Henry! Alguma assistência, por favor! Henry!”
“Quem é Henry?” Tessa perguntou, mas naquele momento as portas estremeceram
pela terceira vez, e fissuras finas apareceram no metal. Claramente, eles não iriam
aguentar por muito tempo. Tessa correu para a mesa e pegou uma arma, quase ao acaso—
essa era uma serra de metal com dentes irregulares, do tipo que os açougueiros usam para
cortar através do osso. Ela virou, agarrando-a, quando as portas se abriram.
As Irmãs Sombrias estavam na soleira da porta—a Sra. Dark, alta e ossuda como
um ancinho em seu brilhante vestido verde-limão, e a Sra. Black, de rosto vermelho, os
olhos reduzidos em fendas. Uma coroa brilhante de fagulhas azuis as rodeava, como
minúsculos fogos de artifício. Seus olhares deslizaram sobre Will—que, ainda de pé em
cima da mesa, tinha pegado uma de suas lâminas de gelo de seu cinto—e vieram parar em
Tessa. A boca da Sra. Black, um talho vermelho em seu rosto pálido, esticou em um
sorriso. “Pequena Srta. Gray,” disse ela. “Você deveria pensar melhor antes de fugir. Nós
lhes dissemos o que aconteceria se você fugisse de novo...”
“Então o faça! Chicoteie-me até sangrar. Mate-me. Eu não me importo!” Tessa
gritou, e ficou satisfeita ao ver que as Irmãs Sombrias pareciam, pelo menos, um pouco
surpresas com sua explosão; ela tinha estado aterrorizada demais para levantar a voz para
elas antes. “Eu não deixarei vocês me darem ao Magister! Eu prefiro morrer!”
“Que inesperada língua afiada você tem, Srta. Gray, minha cara,” disse a Sra. Black.
Com grande deliberação, ela tirou a luva da mão direita, e pela primeira vez, Tessa viu sua
mão nua. A pele era cinza e grossa, como o couro de um elefante, suas unhas longas garras
escuras. Elas pareciam tão afiadas como facas. A Sra. Black deu a Tessa um sorriso fixo.
“Talvez se cortarmos sua cabeça fora, você aprenda a ter boas maneiras.”
Ela se moveu em direção a Tessa—e foi bloqueada por Will descendo da mesa para
se colocar entre elas. “Malik,” disse ele, e sua lâmina de gelo branco brilhou como uma
estrela.
“Saia do meu caminho, pequeno guerreiro Nefilim,” disse a Sra. Black. “E leve suas
lâminas de serafim com você. Esta batalha não é sua.”
“Você está errada sobre isso.” Will estreitou os olhos. “Eu ouvi algumas coisas
sobre você, minha senhora. Sussurros que correm pelo Submundo como um rio de veneno
negro. Disseram-me que você e sua irmã pagam muito bem pelos corpos de humanos
mortos, e vocês não se importam muito com como eles chegaram a ficar assim.”
“Tanto alarido por uns poucos mundanos.” Sra. Dark riu e se moveu para ficar ao
lado de sua irmã, de modo que Will, com sua espada flamejante, ficasse entre Tessa e as
duas senhoras. “Nós não temos nenhuma desavença com você, Caçador das Sombras, a
menos que você escolha arranjar uma. Você invadiu nosso território e quebrou a Lei do
Tratado fazendo isso. Nós poderíamos relatar você à Clave—”

“Enquanto a Clave desaprova invasores, estranhamente eles têm uma visão ainda
pior sobre decapitação e esfolamento de pessoas. Eles são peculiares dessa maneira,” disse
Will.
“Pessoas?” Cuspiu a Sra. Dark. “Mundanos. Você se importa tanto com eles quanto
nós.” Ela olhou para Tessa então. “Ele já lhe disse o que ele realmente é? Ele não é
humano—”
“Olhe quem fala,” disse Tessa com a voz trêmula.
“E ela lhe disse o que ela é?” Sra. Black perguntou a Will. “Sobre o seu talento? O
que ela pode fazer?”
“Se eu fosse arriscar um palpite,” Will respondeu, “eu diria que tem algo a ver com
o Magister.”
Sra. Dark olhou desconfiada. “Você sabe do Magister?” Ela olhou para Tessa. “Ah,
eu vejo. Só o que ela lhe disse. O Magister, pequeno garoto anjo, é mais perigoso do que
você jamais poderia imaginar. E ele esperou muito tempo por alguém com a habilidade de
Tessa. Você pode até dizer que foi ele a causa dela ter nascido—”
As palavras dela foram engolidas em uma quebra colossal assim que toda a parede
leste da sala de repente desabou. Era como as muralhas de Jericó desmoronando nas
histórias do livro de imagens da velha Bíblia de Tessa. Um momento a parade estava lá, e
no próximo não estava; havia um enorme buraco retangular no lugar, fumegando com
redemoinhos asfixiantes de pó de gesso.
Sra. Dark deu um grito fino e agarrou as saias com as mãos ossudas. Evidentemente
ela não havia esperado a queda do muro, mais do que Tessa tinha.
Will pegou a mão de Tessa e puxou-a para si, bloqueando-a com seu corpo,
enquanto pedaços de pedra e gesso chovim sobre eles. Enquanto os braços dele a
cercavam, ela põde ouvir a Sra. Black gritando.
Tessa se torceu no aperto de Will, tentando ver o que estava acontecendo. Sra. Dark
estava de pé, apontando um dedo enluvado e tremendo em direção ao buraco escuro na
parede. A poeira mal estava começando a abaixar—o suficiente para que as figuras se
movendo em direção a eles através dos destroços começassem lentamente a tomar forma.
Os contornos sombrios de duas figuras humanas tornaram-se visíveis; cada um estava
segurando uma espada, e cada lâmina brilhava com a mesma luz azul-esbranquiçada da
de Will. Anjos, Tessa pensou, imaginando, mas ela não disse isso. Aquela luz, tão
brilhante—o que mais poderia ser?
A Sra. Black deu um grito e se lançou para frente. Ela lançou as mãos, e faíscas
saíram delas como fogos de artifício explodindo. Tessa ouviu alguém gritar—um grito
muito humano—e Will, libertando Tessa, rodou e golpeou sua brilhante espada flamejante

na Sra. Black. A espada chicoteou pelo ar, girando completamente, e se enterrou no peito
dela. Gritando e se retorcendo, ela cambaleou para trás e caiu, batendo em uma das
horríveis mesas, que desmoronou um caos de sangue e fragmentos de madeira.
Will sorriu. Não era uma espécie agradável de sorriso. Ele se virou para olhar para
Tessa, então. Por um momento eles se encararam, silenciosamente, através do espaço que
os separava—e então seus outros companheiros fluíram em torno dele, dois homens em
casacos escuros bem ajustados, brandindo armas brilhantes, e se movendo tão rápido que
a visão de Tessa ficou turva.
Tessa recuou em direção à parede oposta, tentando evitar o caos no centro da sala,
onde a Sra. Dark, uivando maldições, estava afastando seus agressores com as faíscas
ardentes de energia que voavam de suas mãos como uma chuva de fogo. A Sra. Black
estava se contorcendo no chão, camadas de fumaça negra subindo de seu corpo como se
estivesse queimando de dentro para fora.
Tessa se moveu em direção à porta aberta que levava para o corredor—e mãos
fortes a agarraram e a puxaram para trás. Tessa gritou e se contorceu, mas as mãos
circundando os seus braços eram fortes como ferro. Ela virou a cabeça para o lado e
afundou os dentes na mão segurando seu braço esquerdo. Alguém gritou e a largou;
girando, ela viu um homem alto, com um choque de cabelo ruivo desgrenhado olhando
para ela com uma expressão de reprovação, sua mão esquerda sangrando embalada contra
seu peito. “Will,” ele gritou. “Will, ela me mordeu!”
“Foi mesmo, Henry?” Will, parecendo divertido como de costume, apareceu como
um espírito convocado do caos de fumaça e chamas. Atrás dele, Tessa podia ver o
segundo de seus companheiros, um jovem musculoso de cabelos castanhos, segurando
uma Sra. Dark que se contorcia. Sra. Black era uma forma escura arqueada no chão. Will
levantou uma sobrancelha na direção de Tessa. “É má educação morder,” ele informou a
ela. “Rude, você sabe. Nunca ninguém lhe disse isso?”
“Também é rude ir agarrando mulheres às quais não se foi apresentado,” disse
Tessa com firmeza. “Nunca ninguém lhe disse isso?”
O homem de cabelos ruivos que Will tinha chamado de Henry abanou a mão
sangrando com um sorriso arrependido. Ele tinha uma espécie agradável de rosto, Tessa
pensou; ela quase se sentiu culpada por tê-lo mordido.
“Will! Cuidado!” O homem de cabelos castanhos gritou. Will girou enquanto algo
voou pelo ar, errou por pouco a cabeça de Henry, e se chocou contra a parede atrás de
Tessa. Era uma enorme roda dentada de metal, e ela bateu na parede com tanta força que
ficou presa lá como uma bolinha de gude firmada em um pouco de massa. Tessa se
virou—e viu a Sra. Black avançando em direção a eles, seus olhos ardendo como carvão no
rosto branco enrugado. Lambidelas negras de fogo subiam em torno do punho da espada
que se projetava de seu peito.

“Maldição—” Will estendeu a mão para o punho de outra lâmina firmada no cinto
em sua cintura. “Eu pensei que nós tínhamos acabado com essa coisa—”
Arreganhando os dentes, a Sra. Black atacou. Will saltou para fora do caminho, mas
Henry não foi tão rápido; ela o golpeou e o derrubou para trás. Agarrando-se como um
carrapato, ela o montou até o chão, rosnando, suas garras afundando em seus ombros
enquanto ele gritava. Will girou, a lâmina agora em sua mão; levantando-a, ele gritou
“Uriel!” e ela acendeu-se repentinamente em seu punho como uma tocha ardente. Tessa
caiu para trás contra a parede enquanto ele golpeava a lâmina para baixo. A Sra. Black
recuou, suas garras estendidas, tentando alcançá-lo—
E a lâmina cortou destramente sua garganta. Completamente separada, sua cabeça
acertou o chão, rolando e batendo, quando Henry, gritando de nojo e embebido em sangue
escuro, empurrava os restos do seu corpo de cima dele e ficava de pé.
Um grito terrível rompeu pela sala. “Nããããão!”
O grito veio da Sra. Dark. O homem de cabelos castanhos segurando-a soltou com
um grito repentino quando fogo azul saiu das mãos e dos olhos dela. Gritando de dor, ele
caiu para o lado enquanto ela se afastava dele e avançava sobre Will e Tessa, os olhos da
Sra. Dark queimando como tochas negras. Ela estava sibilando palavras numa língua que
Tessa nunca tinha ouvido. Soava como chamas crepitantes. Levantando uma mão, a
mulher atirou o que parecia ser um relâmpago em direção de Tessa. Com um grito Will
saltou na frente dela, sua lâmina brilhante estendida. O relâmpago ricocheteou na lâmina e
atingiu uma das paredes de pedra, que brilhou com uma súbita luz estranha.
“Henry,” Will gritou, sem se virar, “se você puder remover a Srta. Gray para um
lugar seguro—logo—”
A mão mordida de Henry desceu sobre o ombro de Tessa, enquanto a Sra. Dark
arremessava outra lâmina de raio em direção a ela. Por que ela está tentando me matar? Tessa
pensou vertiginosamente. Por que não Will? E então, quando Henry a puxou para ele, mais
luz abrasou da lâmina de Will, refratando em uma dúzia de cacos ardentes de brilho. Por
um momento, Tessa olhou, capturada pela beleza improvável daquilo—e então ela ouviu
Henry gritar, dizendo-lhe para deitar no chão, mas já era tarde demais. Um dos cacos
flamejantes tinha acertado seu ombro com uma força incrível. Foi como ser acertado por
um trem desgovernado. Ela foi arremessada para fora do alcance de Henry, suspendida, e
atirada para trás. Sua cabeça bateu na parede com força cegante. Ela esteve consciente,
apenas brevemente, da risada alta e estridente da Sra. Dark, antes que o mundo se fosse.


3
O Instituto


Amor, esperança, medo, fé—isso faz a humanidade;
Estas são sua marca e sinal e característica.
—Robert Browning, Paracelso


No sonho Tessa estava novamente amarrada à estreita cama de latão na Casa Sombria. As
Irmãs se inclinavam sobre ela, batendo pares de longas agulhas de tricô e rindo em vozes agudas
estridentes. Enquanto Tessa observava, as características delas mudavam, seus olhos afundando em
suas cabeças, seus cabelos caindo, e linhas aparecendo em seus lábios, costurando-os. Tessa gritou
sem voz, mas elas não pareciam ouvir.
As Irmãs desapareceram inteiramente então, e Tia Harriet estava em pé sobre Tessa, seu
rosto corado de febre como tinha estado durante a terrível doença que a matou. Ela olhava para
Tessa com grande tristeza. “Eu tentei,” disse ela. “Eu tentei amar você. Mas não é fácil amar uma
criança que não é nem um pouco humana...”
“Não é humana?” disse uma voz feminina desconhecida. “Bem, se ela não é humana, Enoch,
o que ela é?” A voz se acentuou com impaciência. “O que quer dizer, você não sabe? Todo mundo é
alguma coisa. Esta menina não pode ser nada...”

Tessa acordou com um grito, seus olhos se abrindo rapidamente, e viu-se olhando
para sombras. A escuridão a envolvia densamente. Ela mal conseguia ouvir o murmúrio
de vozes através de seu pânico, e esforçou-se para sentar, chutando cobertores e
travesseiros. Vagamente, ela percebeu que o cobertor era grosso e pesado, não o fino e
adornado com fitas que pertencia à Casa Sombria.
Ela estava em uma cama, assim como tinha sonhado, em um grande quarto de
pedra, e não havia quase nenhuma luz. Ela ouviu o arranhar de sua própria respiração
enquanto se virava, e um grito forçou-se para fora de sua garganta. O rosto de seu
pesadelo pairava na escuridão diante dela—uma grande lua branca de um rosto, sua
cabeça careca raspada, suave como o mármore. Onde os olhos deveriam estar havia

apenas entalhos na carne—não como se os olhos tivessem sido arrancados, mas como se
nunca tivessem crescido ali. Os lábios eram unidos com costuras pretas, o rosto rabiscado
com marcas pretas como as da pele de Will, embora estas parecessem como se tivessem
sido talhadas com facas.
Ela gritou novamente e se arrastou para trás, meio caindo da cama. Ela bateu no
chão de pedra fria, e o tecido da camisola branca que estava vestindo—alguém deve ter
vestido nela enquanto ela estava inconsciente—rasgou na bainha quando se apressou em
ficar de pé.
“Srta. Gray.” Alguém estava chamando seu nome, mas em seu pânico, ela sabia
apenas que a voz não era familiar. Quem falava não era o monstro que estava olhando
para ela da cabeceira, seu rosto cheio de cicatrizes impassível; ele não se moveu quando
ela o fez, e embora não mostrasse sinais de persegui-la, ela começou a recuar,
cuidadosamente, apalpando atrás de si por uma porta. O quarto estava tão escuro, que ela
só conseguia ver que era mais ou menos oval, as paredes e o piso todos em pedra. O teto
era alto o suficiente para estar na sombra negra, e havia longas janelas em toda a parede
oposta, o tipo de janelas em arco que poderiam ter pertencido a uma igreja. Muito pouca
luz filtrava através delas; parecia que o céu lá fora estava escuro. “Theresa Gray—”
Ela encontrou a porta, a maçaneta de metal; girando, segurou nela
agradecidamente, e puxou. Nada aconteceu. Um soluço subiu na garganta.
“Srta. Gray!” a voz disse novamente, e de repente o quarto foi inundado com luz—
uma acentuada luz branca prateada que ela reconheceu. “Srta. Gray, eu sinto muito. Não
era nossa intenção assustá-la.” A voz era de uma mulher: ainda desconhecida, mas jovem
e preocupada. “Srta. Gray, por favor.”
Tessa virou-se lentamente e encostou-se contra a porta. Ela podia ver claramente
agora. Ela estava em um aposento de pedra, cujo foco central era uma grande cama de
dossel, sua colcha de veludo agora amarrotada e pendurada para o lado onde ela tinha se
arrastado para fora do colchão. Cortinas de tapeçaria estavam puxadas, e havia um
elegante tapete sobre o chão de outro modo vazio. Na verdade, o quarto em si era bastante
vazio. Não havia quadros ou fotografias pendurados na parede, nem enfeites enchendo as
superfícies do mobiliário em madeira escura. Duas cadeiras estavam de frente uma para a
outra ao lado da cama, com uma pequena mesa de chá entre elas. Um biombo em um
canto do quarto escondia o que eram, provavelmente, uma banheira e um lavatório.
Ao lado da cama estava um homem alto que usava manto como um monge, de um
longo e áspero material da cor de pergaminho. Runas vermelho-amarronzadas circulavam
os punhos e a bainha. Ele carregava um cajado prateado, a cabeça esculpida na forma de
um anjo e runas decorando seu comprimento. O capuz de seu manto estava abaixado,
deixando descoberto seu rosto branco, cheio de cicatrizes, e cego.

Ao lado dele estava uma mulher muito pequena, quase do tamanho de uma
criança, com espesso cabelo castanho preso na nuca, e um pequeno rosto limpo e
inteligente, com olhos escuros e brilhantes como os de um pássaro. Ela não era
exatamente bonita, mas havia um olhar calmo e bondoso em seu rosto que fez a dor de
pânico no estômago de Tessa aliviar um pouco, embora ela não pudesse dizer exatamente
o porquê. Em sua mão ela segurava uma pedra branca e brilhante como a que Will tinha
na Casa Sombria. Sua luz brilhava entre seus dedos, iluminando o quarto.
“Srta. Gray,” ela disse. “Eu sou Charlotte Branwell, diretora do Instituto de
Londres, e este ao meu lado é o Irmão Enoch—”
“Que tipo de monstro é ele?” Tessa murmurou.
Irmão Enoch não disse nada. Ele estava totalmente inexpressivo.
“Eu sei que existem monstros nessa terra,” disse Tessa. “Você não pode me dizer o
contrário. Eu os vi.”
“Eu não gostaria de lhe dizer o contrário,” disse a Sra. Branwell. “Se o mundo não
estivesse cheio de monstros, não haveria necessidade dos Caçadores das Sombras.”
Caçador das Sombras. O que as Irmãs Sombrias tinham chamado Will Herondale.
Will. “Eu estava—Will estava comigo,” disse Tessa, com a voz trêmula. “No porão.
Will disse—” Ela parou e se encolheu. Ela não deveria ter chamado Will por seu nome de
batismo; implicava uma intimidade entre eles que não existia. “Onde está o Sr.
Herondale?”
“Ele está aqui,” a Sra. Branwell disse calmamente. “No Instituto.”
“Ele me trouxe aqui também?” Tessa murmurou.
“Sim, mas não há nenhuma necessidade de se sentir traída, Srta. Gray. Você tinha
batido a cabeça muito forte, e Will estava preocupado com você. Irmão Enoch, embora sua
aparência possa assustar você, é um profissional qualificado da medicina. Ele constatou
que o ferimento na sua cabeça é pequeno, e basicamente você está sofrendo de choque e
ansiedade nervosa. Na verdade, seria melhor se você se sentasse. Estar assim descalça
perto da porta só irá lhe trazer um resfriado, e não fazer nada bem.”
“Você quer dizer porque eu não posso fugir,” Tessa disse, lambendo os lábios secos.
“Eu não posso escapar.”
“Se você quiser escapar, como você colocou, depois que nós conversarmos, deixarei
você ir,” disse a Sra. Branwell. “Os Nefilins não prendem Habitantes do Submundo sob
coerção. Os Acordos proíbem.”
“Os Acordos?”

A Sra. Branwell hesitou, então se virou para o Irmão Enoch e disse-lhe algo em voz
baixa. Para grande alívio de Tessa, ele puxou o capuz de suas vestes cor de pergaminho,
escondendo o rosto. Um momento depois, estava se movendo em direção a Tessa; ela
recuou rapidamente e ele abriu a porta, parando apenas por um momento na soleira.
Nesse momento, ele falou com Tessa. Ou talvez, “falou” não fosse a palavra para
isso: Ela ouviu a voz dele dentro de sua cabeça, ao invés de fora dela. Você é Eidolon,
Theresa Gray. Trocadora de formas. Mas não de uma espécie que é familiar para mim. Não há
nenhuma marca do demônio em você.
Trocadora de formas. Ele sabia o que ela era. Ela olhou para ele, seu coração
acelerado, enquanto ele atravessava a porta e a fechava atrás dele. Tessa sabia de alguma
forma que se ela fosse correr para a porta e tentar a maçaneta iria encontrá-la novamente
trancada, mas o desejo de escapar a tinha deixado. Seus joelhos pareciam como se
tivessem se transformado em água. Ela afundou-se numa das grandes cadeiras ao lado da
cama.
“O que foi?” A Sra. Branwell perguntou, movendo-se para se sentar na cadeira em
frente a Tessa. Seu vestido caía tão solto em sua estrutura pequena, que era impossível
dizer se ela usava um espartilho por baixo, e os ossos em seus pequenos pulsos eram como
os de uma criança. “O que ele disse para você?”
Tessa balançou a cabeça, segurando as mãos juntas no colo para que a Sra. Branwell
não pudesse ver seus dedos tremendo.
A Sra. Branwell a olhou intensamente. “Em primeiro lugar," ela disse, ”Por favor,
me chame de Charlotte, Srta. Gray. Todos no Instituto chamam. Nós Caçadores das
Sombras não somos tão formais como a maioria.”
Tessa assentiu, sentindo suas bochechas ruborizarem. Era difícil dizer quantos anos
Charlotte tinha; ela era tão pequena que parecia muito jovem na verdade, mas seu ar de
autoridade a fazia parecer mais velha, velha o suficiente para que a ideia de chamá-la pelo
seu nome de batismo parecesse muito estranha. Entretanto, como Tia Harriet teria dito,
quando em Roma…
“Charlotte,” disse Tessa, experimentalmente.
Com um sorriso, a Sra. Branwell—Charlotte—inclinou-se ligeiramente para trás em
sua cadeira, e Tessa viu com alguma surpresa que ela tinha tatuagens escuras. Uma mulher
com tatuagens! Suas marcas eram como as que Will tinha: visíveis em seus pulsos abaixo
dos punhos apertados do vestido, com uma como um olho nas costas da mão esquerda.
“Em segundo lugar, deixe-me dizer o que eu já sei sobre você, Theresa Gray.” Ela falou no
mesmo tom calmo que tinha antes, mas os olhos dela, embora ainda gentis, estavam
afiados como alfinetes. “Você é americana. Veio para cá de Nova York porque estava
seguindo seu irmão, que lhe enviou uma passagem de navio a vapor. O nome dele é
Nathaniel.”

Tessa congelou. "Como você sabe de tudo isso?”
“Eu sei que Will encontrou você na casa das Irmãs Sombrias,” Charlotte disse. “Sei
que você afirmava que alguém chamado Magister estava vindo por você. Sei que você não
tem ideia de quem é o Magister. E sei que em uma batalha com as Irmãs Sombrias, você
ficou inconsciente e foi trazida aqui.”
As palavras de Charlotte foram como uma chave destravando uma porta. De
repente Tessa se lembrou. Lembrou-se de correr com Will pelo corredor; lembrou-se das
portas de metal e a sala cheia de sangue do outro lado; lembrou-se da Sra. Black, sua
cabeça decepada; lembrou-se de Will arremessando a faca—
“Sra. Black,” ela sussurrou.
“Morta,” disse Charlotte. “Completamente.” Ela acomodou seus ombros contra o
encosto da cadeira; ela era tão pequena que a cadeira se erguia bem alto acima dela, como
se fosse uma criança sentada na cadeira do pai.
“E a Sra. Dark?”
“Sumiu. Procuramos em toda a casa, e na área vizinha, mas não encontramos
qualquer indício dela.”
“A casa toda?” a voz de Tessa tremeu, muito levemente. “E não havia ninguém
nela? Mais alguém vivo ou... ou morto?”
“Nós não encontramos seu irmão, Srta. Gray,” Charlotte disse. Seu tom era gentil.
“Não na casa, nem em qualquer dos edifícios vizinhos.”
“Vocês—estavam procurando por ele?” Tessa estava confusa.
“Nós não o encontramos,” Charlotte disse novamente. “Mas nós encontramos as
suas cartas.”
“Minhas cartas?”
“As cartas que você escreveu para seu irmão e nunca enviou,” disse Charlotte.
“Dobradas sob seu colchão.”
“Vocês as leram?”
“Nós tivemos que lê-las,” disse Charlotte no mesmo tom gentil. “Peço desculpas
por isso. Não é sempre que nós trazemos um Habitante do Submundo para o Instituto, ou
qualquer pessoa que não seja um Caçador das Sombras. Isso representa um grande risco
para nós. Tínhamos que saber que você não era um perigo.”
Tessa virou a cabeça para o lado. Havia algo de terrivelmente violador sobre essa
estranha ter lido seus pensamentos mais íntimos, todos os sonhos e esperanças e medos

que ela tinha derramado, não imaginando que alguém jamais iria vê-los. Os fundos de
seus olhos ardiam; lágrimas estavam ameaçando, e ela as trouxe de volta, furiosa consigo
mesma, com tudo.
“Você está tentando não chorar,” Charlotte disse. “Eu sei que quando eu mesma
faço isso, às vezes ajuda olhar diretamente para uma luz brilhante. Tente a luz de bruxa.”
Tessa desviou seu olhar para a pedra na mão de Charlotte e olhou para ela
fixamente. Seu brilho aumentou na frente de seus olhos como um sol em expansão.
“Então,” ela disse, lutando contra o aperto em sua garganta, “vocês decidiram que eu não
sou um perigo, afinal?”
“Talvez apenas para si mesma”, disse Charlotte. “Um poder como o seu, o poder de
mudar de forma—não é de admirar que as Irmãs Sombrias quisessem colocar as mãos em
você. Outros também irão.”
“Assim como você?” disse Tessa. “Ou você irá fingir que me deixou entrar em seu
precioso Instituto simplesmente por caridade?”
Um olhar de mágoa passou pelo rosto de Charlotte. Foi breve, mas foi real, e fez
mais para convencer Tessa de que ela poderia ter estado errada sobre Charlotte do que
qualquer coisa que a outra mulher poderia ter dito. “Não é caridade,” disse ela. “É a
minha vocação. Nossa vocação.”
Tessa simplesmente olhou para ela sem expressão.
“Talvez,” disse Charlotte, “seria melhor se eu explicasse a você o que somos—e o
que fazemos.”
“Nefilim,” disse Tessa. “Foi como as Irmãs Sombrias chamaram o Sr. Herondale.”
Ela apontou para as marcas escuras na mão de Charlotte. “Você é uma também, não é? É
por isso que você tem essas—essas marcas?”
Charlotte assentiu. “Eu sou uma dos Nefilins—os Caçadores das Sombras. Nós
somos… uma raça, por assim dizer, de pessoas, pessoas com habilidades especiais. Somos
mais fortes e mais velozes do que a maioria dos humanos. Somos capazes de nos ocultar
com magias chamadas glamours. E somos especialmente hábeis em matar demônios.”
“Demônios. Quer dizer—como Satanás?”
“Demônios são criaturas do mal. Eles viajam grandes distâncias para vir a este
mundo e se alimentar aqui. Eles o devastariam a cinzas e destruiriam seus habitantes se
nós não evitássemos.” Sua voz era decidida. “Como é o trabalho da polícia humana
proteger os cidadãos desta cidade um do outro, é nosso dever protegê-los de demônios e
outros perigos sobrenaturais. Quando há crimes que afetam o Mundo das Sombras,
quando a Lei do nosso mundo é quebrada, temos que investigar. Estamos obrigados pela
Lei, na verdade, a fazer perguntas até mesmo por um rumor da Lei do Tratado estar sendo

violada. Will lhe falou sobre a menina morta que ele encontrou no beco; ela foi o único
corpo, mas tem havido outros desaparecimentos, rumores sombrios de meninos e meninas
mundanos desaparecendo das ruas mais pobres da cidade. Usar magia para assassinar
seres humanos é contra a Lei, e, portanto, uma questão para a nossa jurisdição.”
“O Sr. Herondale parece muito jovem para ser uma espécie de policial.”
“Caçadores das Sombras crescem rapidamente, e Will não investigou sozinho.”
Charlotte não soou como se quisesse entrar em detalhes. “Isso não é tudo o que fazemos.
Protegemos a Lei do Tratado e defendemos os Acordos—as leis que governam a paz entre
Habitantes do Submundo.”
Will tinha usado essa palavra também. “Submundo? É um lugar?”
“Um Habitante do Submundo é um ser—uma pessoa—que é parte sobrenatural em
sua origem. Vampiros, lobisomens, fadas, feiticeiros—todos eles são Habitantes do
Submundo.”
Tessa a encarou. Fadas eram contos para crianças, e vampiros coisa de romances
melodramáticos. “Estas criaturas existem?”
“Você é uma Habitante do Submundo,” Charlotte disse. “Irmão Enoch confirmou
isso. Nós simplesmente não sabemos de que tipo. Veja, o tipo de magia que você pode
fazer—sua habilidade—não é algo que um ser humano comum poderia fazer. Nem é uma
coisa que um de nós, um Caçador das Sombras, poderia fazer. Will pensou que você fosse
provavelmente uma feiticeira, que é o que eu mesma poderia imaginar, mas todos os
feiticeiros têm alguma característica que lhes marca como um feiticeiro. Asas, ou cascos,
ou pés com membranas, ou, como você viu no caso da Sra. Black, as mãos com garras. Mas
você, você é completamente humana na aparência. E está claro pelas suas cartas que você
sabe, ou acredita, que ambos os seus pais são humanos.”
“Humanos?” Tessa fitou os olhos. “Por que não teriam sido humanos?”
Antes que Charlotte pudesse responder, a porta se abriu, e uma menina esguia de
cabelos escuros com uma touca e avental brancos entrou, carregando uma bandeja com
chá, que ela colocou na mesa entre elas. “Sophie,” Charlotte disse, soando aliviada ao ver a
menina. “Obrigada. Esta é a Srta. Gray. Ela será nossa convidada esta noite.”
Sophie endireitou-se, virou para Tessa, e inclinou-se em uma reverência.
“Senhorita,” ela disse, mas a novidade de ter sido reverenciada se perdeu em Tessa
quando Sophie levantou a cabeça e seu rosto inteiro se tornou visível. Ela deveria ter sido
muito bonita—seus olhos eram castanho-claros luminosos, sua pele macia, seus lábios
suaves e delicadamente formados—mas uma cicatriz prateada grossa e alta cortava do
canto esquerdo da boca até sua têmpora, puxando seu rosto para o lado e distorcendo suas
feições em uma máscara deformada. Tessa tentou esconder o choque em seu próprio rosto,
mas ela pôde ver quando os olhos de Sophie escureceram que não havia funcionado.

“Sophie,” Charlotte disse, “você trouxe aquele vestido vermelho escuro mais cedo,
como eu pedi? Você poderia limpá-lo e escová-lo para Tessa?” Ela virou-se para Tessa
enquanto a camareira concordava e ia até o guarda-roupa. “Tomei a liberdade de ter um
dos velhos vestidos de nossa Jessamine reformado para você. As roupas que você estava
vestindo foram arruinadas.”
“Muito obrigado,” Tessa disse rigidamente. Ela detestava ter de ser grata. As Irmãs
tinham fingido que estavam fazendo favores a ela, e veja como aquilo tinha terminado.
“Srta. Gray.” Charlotte olhou seriamente para ela. “Caçadores das Sombras e
Habitantes do Submundo não são inimigos. Nosso acordo pode ser desconfortável, mas é
minha convicção que devmos confiar nos Habitantes do Submundo—que, de fato, eles
têm a chave para o nosso eventual sucesso contra os reinos demoníacos. Existe algo que eu
possa fazer para lhe mostrar que não pretendemos nos aproveitar de você?”
“Eu…” Tessa respirou fundo. “Quando as Irmãs Sombrias me falaram pela
primeira vez sobre o meu poder, eu pensei que estavam loucas,” disse ela. “Eu disse a elas
que tais coisas não existiam. Então pensei que estava presa em uma espécie de pesadelo
onde elas existiam. Mas então veio o Sr. Herondale, e ele entendia de magia, e tinha aquela
pedra brilhante, e eu pensei, Aqui está alguém que talvez possa me ajudar.” Ela olhou para
Charlotte. “Mas você parece não saber por que eu sou do jeito que sou, ou mesmo o que eu
sou. E mesmo se você não…”
“Pode ser… difícil aprender como o mundo realmente é, vê-lo em seu verdadeiro
aspecto e forma,” Charlotte disse. “A maioria dos seres humanos nunca aprende. A
maioria não podia suportar. Mas eu li suas cartas. E sei que você é forte, Srta. Gray. Você
resistiu ao que pode ter matado outra moça, Habitante do Submundo ou não.”
“Eu não tive escolha. Eu fiz isso pelo meu irmão. Elas o teriam assassinado.”
“Algumas pessoas,” Charlotte disse, “teriam deixado isso acontecer. Mas eu sei, de
ler as suas próprias palavras, que você nunca sequer considerou isso.” Ela se inclinou para
frente. “Tem alguma ideia de onde seu irmão está? Você acha que ele provavelmente está
morto?”
Tessa engoliu uma respiração.
“Sra. Branwell!” Sophie, que tinha estado ocupada com a bainha de um vestido
vermelho-vinho com uma escova, ergueu os olhos e falou com um tom de censura que
surpreendeu Tessa. Não era a função dos empregados corrigir seus patrões; os livros que
ela tinha lido deixaram isso muito claro.
Mas Charlotte só pareceu arrependida. “Sophie é o meu bom anjo,” ela disse.
“Tenho tendência de ser um pouco brusca demais. Eu pensei que pudesse haver algo que
você soubesse, algo que não estava em suas cartas, que pudesse nos dar conhecimento do
seu paradeiro.”

Tessa balançou a cabeça. “As Irmãs Sombrias me disseram que ele estava preso em
um local seguro. Presumo que ele ainda está lá. Mas não tenho ideia de como encontrá-lo.”
“Então você deve ficar aqui no Instituto até que ele possa ser localizado.”
“Não quero sua caridade.” Tessa disse obstinadamente. “Eu posso encontrar outro
local de hospedagem.”
“Não seria caridade. Somos obrigados por nossas próprias leis a ajudar e apoiar
Habitantes do Submundo. Mandar você embora sem ter para onde ir quebraria os
Acordos, que são regras importantes que devemos obedecer.”
“E você não pediria nada em troca?” A voz de Tessa era amarga. “Você não irá me
pedir para usar minha—minha habilidade? Você não irá exigir que eu me Transforme?”
“Se,” disse Charlotte, “você não deseja usar o seu poder, então não, não iremos
forçá-la a usar. Embora eu realmente acredite que você mesma possa se beneficiar em
aprender como ele pode ser controlado e utilizado—”
“Não!” o grito de Tessa foi tão alto que Sophie pulou e deixou cair sua escova.
Charlotte olhou para ela e depois de volta para Tessa. Ela disse, “Como quiser, Srta. Gray.
Há outras maneiras que você poderia nos ajudar. Tenho certeza que há muita coisa que
você sabe que não estava contido em suas cartas. E em troca, podemos ajudá-la a procurar
por seu irmão.”
Tessa ergueu a cabeça. “Vocês fariam isso?”
“Você tem a minha palavra.” Charlotte levantou-se. Nenhuma delas tinha tocado o
chá da bandeja. “Sophie, você poderia ajudar a Srta. Gray a se vestir, e depois trazê-la para
jantar?”
“Jantar?” Depois de ouvir tais coisas sobre Nefilins, e Submundo, e fadas e
vampiros e demônios, a possibilidade de jantar era quase chocante em sua normalidade.
“Certamente. São quase sete horas. Você já conheceu Will; pode conhecer todos os
outros. Talvez você veja que nós somos confiáveis.”
E com um rápido aceno de cabeça, Charlotte deixou o quarto. Quando a porta se
fechou atrás dela, Tessa balançou a cabeça silenciosamente. Tia Harriet tinha sido
autoritária, mas ela não se comparava a Charlotte Branwell.
“Ela tem uma conduta rigorosa, mas é realmente muito gentil,” Sophie disse,
colocando na cama o vestido que era para Tessa vestir. “Eu nunca conheci ninguém com
um coração melhor.”
Tessa tocou a manga do vestido com a ponta do dedo. Era de cetim vermelho
escuro, como Charlotte havia dito, com fita preta franzida enfeitando em volta da cintura e
na bainha. Ela nunca tinha vestido nada tão requintado.

“Você gostaria que eu a ajudasse a se vestir para o jantar, senhorita?” Sophie
perguntou. Tessa lembrou-se de uma coisa que Tia Harriet sempre havia dito—que você
poderia conhecer um homem não pelo que seus amigos diziam sobre ele, mas pelo modo
como ele tratava seus empregados. Se Sophie achava que Charlotte tinha um bom coração,
então talvez ela tivesse.
Ela levantou a cabeça. “Muito obrigado, Sophie. Eu adoraria.”

Tessa nunca tinha tido alguém para ajudá-la a se vestir antes, além de sua tia.
Embora Tessa fosse esguia, o vestido era claramente feito para uma garota menor, e
Sophie teve que laçar o espartilho de Tessa firmemente para fazê-lo caber. Ela cacarejou
baixinho enquanto Sophie apertava.
“Sra. Branwell não acredita em laço apertado,” explicou. “Ela diz que causa dores
de cabeça nervosas e fraqueza, e um Caçador das Sombras não pode se dar ao luxo de ser
fraco. Mas a Srta. Jessamine gosta da cintura de seus vestidos muito pequena, e ela
realmente insiste.”
“Bem,” disse Tessa, um pouco ofegante, "Eu não sou uma Caçadora das Sombras,
de qualquer maneira.”
“Realmente,” Sophie concordou, ajeitando a parte de trás do vestido com uma
engenhosa abotoadeira. “Pronto. O que você acha?”
Tessa olhou para si mesma no espelho, e foi surpreendida. O vestido estava muito
pequeno nela, e tinha claramente sido desenhado para se ajustar intimamente ao corpo
como era. Ele aderiu quase como um milagre na sua figura até os quadris, onde era
enfeitado com pregas nas costas, drapejadas sobre uma modesta anquinha22. As mangas
eram viradas, mostrando babados de rendas champanhe nos punhos. Ela parecia—mais
velha, pensou, não o espantalho trágico que parecia na Casa Sombria, mas tampouco
alguém inteiramente familiar para si mesma. E se uma das vezes em que eu me Transformei,
quando voltei a ser eu mesma, não fiz isso muito bem? E se esse nem mesmo for o meu verdadeiro
rosto? O pensamento enviou tal relâmpago de pânico através dela que sentiu como se fosse
desmaiar.
22 Almofada ou armação que as mulheres usavam sob a saia, para estufá-la.
“Você está um pouco pálida,” Sophie disse, examinando o reflexo de Tessa com um
olhar criterioso. Ela não pareceu particularmente chocada com o aperto do vestido, pelo
menos. “Você poderia tentar beliscar suas bochechas um pouco para trazer cor. É o que a
Srta. Jessamine faz.”
“Foi muito amável da parte dela—a Srta. Jessamine, eu quero dizer—emprestar-me
este vestido.”

Sophie deu um risinho baixo em sua garganta. “Srta. Jessamine nunca o usou. A
Sra. Branwell deu a ela como um presente, mas a Srta. Jessamine disse que a fazia parecer
pálida e jogou-o na parte de trás do seu guarda-roupa. Ingrata, se você me perguntar.
Agora, vá em frente e belisque suas bochechas um pouco. Você está pálida como leite.”
Tendo feito isso, e tendo agradecido Sophie, Tessa saiu do quarto para um longo
corredor de pedra. Charlotte estava lá, esperando. Ela andou imediatamente, com Tessa
atrás dela, mancando ligeiramente—os sapatos de seda pretos, que não cabiam bem, não
eram gentis com seus pés machucados.
Estar no Instituto era um pouco como estar dentro de um castelo—o teto
desaparecendo na escuridão, as tapeçarias penduradas nas paredes. Ou pelo menos era
como Tessa imaginava que o interior de um castelo podia parecer. As tapeçarias
sustentavam repetidos motivos de estrelas, espadas, e o mesmo tipo de desenhos que ela
tinha visto pintados em Will e Charlotte. Havia uma única imagem repetida também, de
um anjo saindo de um lago, carregando uma espada em uma mão e uma taça na outra.
“Este lugar costumava ser uma igreja,” Charlotte disse, respondendo a pergunta não feita
de Tessa. “A Igreja de Todos os Santos, a Menor. Ela queimou durante o Grande Incêndio
de Londres. Tomamos posse da terra depois disso e construímos o Instituto sobre as
ruínas da antiga igreja. É útil para os nossos propósitos permanecer em solo sagrado.”
“As pessoas não acham que é estranho, vocês construindo sobre o local de uma
antiga igreja como esta?” Tessa perguntou, apressando-se para acompanhá-la.
“Eles não sabem sobre isso. Mundanos—é como chamamos pessoas comuns—não
estão conscientes do que fazemos,” Charlotte explicou. “Para eles, pelo lado de fora o
lugar se parece com um espaço vazio de terra. Além disso, mundanos não estão realmente
muito interessados no que não os afeta diretamente.” Ela virou-se para conduzir Tessa
através de uma porta até uma grande sala de jantar bem iluminada. “Aqui estamos.”
Tessa ficou piscando na iluminação súbita. A sala era enorme, grande o suficiente
para uma mesa que poderia ter acomodado vinte pessoas. Um imenso lustre a gás pendia
do teto, enchendo a sala com um brilho amarelado. Sobre um aparador cheio de porcelana
chinesa de aparência cara, um espelho de moldura dourada corria o comprimento da sala.
Um vaso de vidro baixo com flores brancas decorava o centro da mesa. Tudo era muito
elegante, e muito simples. Não havia nada de incomum na sala, nada que pudesse sugerir
a natureza dos ocupantes da casa.
Embora toda a longa mesa de jantar estivesse coberta com toalha branca, apenas
uma extremidade estava posta, com lugares para cinco pessoas. Apenas duas pessoas já
estavam sentadas—Will e uma moça de cabelos louros de cerca da mesma idade de Tessa,
com um vestido brilhante decotado. Eles pareciam estar deliberadamente ignorando um
ao outro; Will olhou para cima com aparente alívio quando Charlotte e Tessa entraram.
“Will,” Charlotte disse. “Você se lembra da Srta. Gray?”

“Minha lembrança dela,” disse Will, “é a mais vívida, de fato.” Ele não estava mais
usando a estranha roupa preta que vestia no dia anterior, mas um par de calças comum e
um casaco cinza com gola de veludo preto. O cinza fez seus olhos parecerem mais azuis
do que nunca. Ele sorriu para Tessa, que se sentiu corar e olhou rapidamente para longe.
“E Jessamine—Jessie, erga os olhos. Jessie, esta é Srta. Theresa Gray; Srta. Gray, esta
é Srta. Jessamine Lovelace.”
“É um prazer conhecê-la,” Jessamine murmurou. Tessa não podia deixar de encará-
la. Ela era quase ridiculamente bonita, o que um dos romances de Tessa teria chamado
uma rosa inglesa—cabelo claro prateado, olhos castanhos macios, e aparência suave. Ela
usava um vestido azul muito brilhante, e anéis em quase todos os dedos. Se ela tinha as
mesmas marcas negras na pele que Will e Charlotte tinham, não eram visíveis.
Will lançou para Jessamine um olhar de pura aversão, e virou-se para Charlotte.
“Onde está seu marido sem educação, então?”
Charlotte, tomando um assento, fez um gesto para Tessa sentar-se à sua frente, na
cadeira ao lado de Will. “Henry está em sua oficina. Mandei Thomas buscá-lo. Ele estará
aqui em um momento.”
“E Jem?”
O olhar de Charlotte foi de aviso, mas “Jem não está se sentindo bem” foi tudo que
ela disse. “Ele está tendo um de seus dias.”
“Ele sempre está tendo um de seus dias.” Jessamine soou enojada.
Tessa estava prestes a perguntar a respeito de quem poderia ser Jem, quando
Sophie entrou, seguida por uma mulher gorda de meia-idade cujo cabelo cinzento
escapava de um coque na parte de trás da cabeça. As duas começaram a servir comida do
aparador. Havia carne de porco assada, batatas, sopa condimentada, e brioches macios
com manteiga amarela cremosa. Tessa sentiu-se tonta de repente; tinha se esquecido de
como estava com fome. Ela mordeu um brioche, apenas para reprimir-se quando viu
Jessamine a olhando.
“Você sabe,” Jessamine disse alegremente, “eu não acredito que já tenha visto um
feiticeiro comer antes. Eu suponho que você não precisa emagrecer nunca, precisa? Você
pode apenas usar magia para tornar-se esbelta.”
“Nós não sabemos com certeza se ela é uma feiticeira, Jessie,” disse Will.
Jessamine o ignorou. “É terrível, ser tão má? Você está preocupada se vai para o
Inferno?” Ela inclinou-se para Tessa. “Como você acha que o Diabo é?”
Tessa descansou seu garfo. “Você gostaria de conhecê-lo? Eu poderia convocá-lo em
um instante, se quiser. Sendo uma feiticeira, e tudo.”

Will deixou escapar um grito de riso. Os olhos de Jessamine se estreitaram. “Não há
nenhuma necessidade ser rude,” ela começou—depois interrompeu quando Charlotte se
sentou rigidamente com um grito espantado.
“Henry!”
Um homem estava em pé na porta em arco da sala de jantar—um homem alto de
aparência familiar, com cabelos ruivos arrepiados e olhos cor de mel. Ele vestia um casaco
Norfolk de tweed rasgado sobre um colete listrado chocantemente brilhante; suas calças
estavam cobertas com o que parecia estranhamente com pó de carvão. Mas nada disso foi
o que fez Charlotte gritar; foi o fato de que seu braço esquerdo parecia estar em chamas.
Pequenas chamas lambiam-lhe o braço de um ponto acima do cotovelo, soltando espirais
de fumaça preta.
“Charlotte, querida,” Henry disse para sua esposa, que estava encarando-o com a
boca escancarada de horror. Jessamine, ao lado dela, estava com os olhos arregalados.
“Desculpe o atraso. Você sabe, acho que quase consegui fazer o Sensor funcionar—”
Will interrompeu. “Henry,” disse ele, “você está pegando fogo. Você sabe disso,
não sabe?”
“Ah, sim,” disse Henry avidamente. As chamas estavam agora quase no seu ombro.
“Eu tenho trabalhado como um homem possuído durante todo o dia. Charlotte, você
ouviu o que eu disse sobre o Sensor?”
Charlotte deixou cair a mão da boca. “Henry!” Ela gritou. “Seu braço!”
Henry olhou para o braço, e sua boca abriu. “Que diabos!” foi tudo que ele teve
tempo de dizer antes de Will, demonstrando uma surpreendente presença de espírito,
levantar-se, agarrar o vaso de flores da mesa, e atirar o conteúdo sobre Henry. As chamas
se apagaram, com um chiado fraco de protesto, deixando Henry de pé encharcado na
porta, uma manga do paletó enegrecida e uma dúzia de flores brancas úmidas espalhadas
a seus pés.
Henry sorriu brilhantemente e deu um tapinha na manga queimada de seu paletó
com um olhar de satisfação. “Vocês sabem o que isso significa?”
Will abaixou o vaso. “Que você ateou fogo em si mesmo e nem percebeu?”
“Que a mistura retardadora de chamas que desenvolvi na semana passada
funciona!” Henry disse com orgulho. “Este material deve ter ficado queimando uns bons
dez minutos, e não está nem metade queimado!” Ele deu uma olhada para baixo em seu
braço. “Talvez eu devesse colocar fogo na outra manga e ver quanto tempo—”
“Henry,” disse Charlotte, que parecia ter se recuperado de seu choque, “se você
atear-se fogo deliberadamente, irei instaurar um processo de divórcio. Agora, sente-se e
coma seu jantar. E diga oi para a nossa convidada.”

Henry sentou, olhou através da mesa para Tessa—e piscou surpreso. “Eu conheço
você,” ele disse. “Você me mordeu!” Ele parecia satisfeito com isso, como se recordando
uma memória agradável que eles partilhavam.
Charlotte lançou um olhar desesperado para o marido.
“Você já perguntou à Srta. Gray sobre o Clube Pandemônio?” Will perguntou.
O Clube Pandemônio. “Eu conheço essas palavras. Elas estavam escritas na lateral da
carruagem da Sra. Dark,” disse Tessa.
“É uma organização,” Charlotte disse. “Uma organização muito antiga dos
mundanos que têm se interessado pelas artes mágicas. Nas suas reuniões eles fazem
feitiços e tentam conjurar demônios e espíritos.” Ela suspirou.
Jessamine bufou. “Eu não posso imaginar por que eles se preocupam,” ela disse.
“Criando confusão com magias e vestindo mantos encapuzados e iniciando pequenos
incêndios. É ridículo.”
“Oh, eles fazem mais do que isso,” disse Will. “Eles são mais poderosos no
Submundo do que você imagina. Muitas figuras ricas e importantes da sociedade
mundana são membros—”
“Isso só torna mais estúpido.” Jessamine ajeitou o cabelo. “Eles têm dinheiro e
poder. Por que eles estão brincando com magia?”
“Uma boa pergunta,” disse Charlotte. “Mundanos que se envolvem em coisas que
não conhecem estão suscetíveis a encontrar fins desagradáveis.”
Will encolheu os ombros. “Quando eu estava tentando rastrear a origem do símbolo
na faca que Jem e eu encontramos no beco, fui direcionado para o Clube Pandemônio. Os
membros dele por sua vez direcionaram-me para as Irmãs Sombrias. É o símbolo delas—
as duas serpentes. Elas supervisionavam um conjunto de antros de jogos de azar secretos
frequentados por Habitantes do Submundo. Elas existiam para atrair os mundanos para
dentro e induzi-los a perder todo seu dinheiro em jogos mágicos, então, quando os
mundanos caíam em dívida, as Irmãs Sombrias extorquiriam o dinheiro de volta com
taxas devastadoras.” Will olhou para Charlotte. “Elas administravam alguns outros
negócios também, a maioria desagradáveis. A casa em que eles mantiveram Tessa, ouvi
dizer, era um bordel do Submundo para mundanos com gostos incomuns.”
“Will, Eu não estou totalmente certa—” Charlotte começou duvidosa.
“Hmph,” Jessamine disse. “Não admira que você estivesse tão ansioso para ir lá,
William.”
Se ela esperava irritar Will, não funcionou; ela poderia muito bem não ter falado,
por toda a atenção que ele lhe deu. Ele estava olhando para Tessa do outro lado da mesa,

as sobrancelhas arqueadas ligeiramente. “Eu a ofendi, Srta. Gray? Eu imaginava que
depois de tudo que viu você não seria facilmente chocada.”
“Eu não estou ofendida, Sr. Herondale.” Apesar de suas palavras, Tessa sentiu as
bochechas arderem. Moças bem-educadas não sabiam o que era um bordel, e certamente
não diriam a palavra em companhia mista. Assassinato era uma coisa, mas isso… “Eu, ah,
não vejo como poderia ter sido um... lugar como esse,” ela disse tão firmemente quanto
pôde. “Ninguém nunca entrou ou saiu, e exceto a serva e o cocheiro, eu nunca vi qualquer
outra pessoa que vivesse lá.”
“Não, no momento em que eu cheguei lá, estava completamente deserto,” Will
concordou. “É evidente que eles tinham decidido suspender os negócios, talvez com
interesse de mantê-la isolada.” Ele olhou para Charlotte. “Você acha que o irmão da Srta.
Gray tem a mesma habilidade que ela? Será isso, talvez, por que as Irmãs Sombrias o
capturaram em primeiro lugar?”
Tessa exclamou, feliz com a mudança de assunto. “Meu irmão nunca mostrou
qualquer sinal de tal coisa—mas, por outro lado, nem eu até as Irmãs Sombrias me
encontrarem.”
“Qual é a sua habilidade?” Jessamine perguntou. “Charlotte não diz.”
“Jessamine!” Charlotte fez uma careta para ela.
“Eu não acredito que ela tenha uma,” Jessamine continuou. “Acho que ela é
simplesmente uma pequena dissimulada que sabe que se nós acreditarmos que ela é uma
Habitante do Submundo, teremos que tratá-la bem, por causa dos Acordos.”
Tessa apertou seu maxilar. Ela pensou em sua Tia Harriet dizendo Não perca a calma,
Tessa, e Não brigue com seu irmão simplesmente porque ele te provoca. Mas ela não se importou.
Eles estavam todos olhando para ela—Henry, com curiosos olhos cor de mel, Charlotte,
com um olhar tão afiado quanto vidro, Jessamine com mal velado desprezo, e Will com
calmo divertimento. E se todos eles pensassem o que Jessamine pensava? E se todos eles
pensassem que ela os estava enganando por caridade? Tia Harriet teria odiado aceitar
caridade ainda mais do que teria reprovado o temperamento de Tessa.
Foi Will que falou em seguida, inclinando-se para olhar atentamente para o rosto
dela. “Você pode manter isso em segredo,” ele disse suavemente. “Mas segredos têm o seu
próprio peso, e pode ser um muito pesado.”
Tessa levantou a cabeça. “Ele não precisa ser um segredo. Mas seria mais fácil
mostrar-lhes que lhes dizer.”
“Excelente!” Henry pareceu satisfeito. “Eu gosto que me mostrem coisas. Existe
alguma coisa que você precise, como uma lamparina, ou—”

“Não é uma sessão, Henry,” Charlotte disse de maneira cansada. Ela se virou para
Tessa. “Você não precisa fazer isso se não quiser, Srta. Gray.”
Tessa a ignorou. “Na verdade, eu preciso de algo.” Ela virou-se para Jessamine.
“Algo seu, por favor. Um anel, ou um lenço—”
Jessamine franziu o nariz. “Pobre de mim, me parece mais que o seu poder especial
é furtar!”
Will olhou exasperado. “Dê a ela um anel, Jessie. Você está usando o suficiente
deles.”
“Dê-lhe você alguma coisa, então.” Jessamine inclinou seu queixo.
“Não.” Tessa falou com firmeza. “Deve ser algo seu.” Por que de todos aqui, você está
mais próxima de mim em forma e tamanho. Se eu me transformar na pequena Charlotte, este vestido
vai simplesmente cair de cima de mim, Tessa pensou. Ela considerou tentar usar o próprio
vestido, mas uma vez que Jessamine nunca o tinha usado, Tessa não tinha certeza de que a
Transformação funcionaria e não queria correr nenhum risco.
“Oh, muito bem, então.” Petulantemente Jessamine tirou de seu dedo mindinho um
anel com uma pedra vermelha encravada nele, e passou-o pela mesa para Tessa. “É
melhor que valha a pena.”
Oh, valerá. Sem sorrir, Tessa colocou o anel na palma da sua mão esquerda e fechou
os dedos em torno dele. Então ela fechou os olhos.
Era sempre o mesmo: nada no começo, em seguida, a centelha de algo no fundo de
sua mente, como alguém acendendo uma vela em uma sala escura. Ela tateou seu caminho
em direção a ela, como as Irmãs Sombrias lhe ensinaram. Era difícil remover o medo e a
timidez, mas ela havia feito isso vezes suficientes agora para saber o que esperar—o
avanço para tocar a luz no centro da escuridão; o senso de luz e calor envolvente, como se
estivesse colocando um cobertor, algo grosso e pesado, em torno de si, cobrindo cada
camada de sua própria pele; e, em seguida, a luz resplandendo e a rodeando—e ela estava
dentro. Dentro da pele de outra pessoa. Dentro de sua mente.
A mente de Jessamine.
Ela estava apenas na margem, seus pensamentos deslizando na superfície dos de
Jessamine como dedos roçando a superfície da água. Ainda assim, a fez perder o fôlego.
Tessa teve uma repentina e intermitente visão de um pedaço brilhante de doce com
alguma coisa escura em seu centro, como uma minhoca no miolo de uma maçã. Ela sentiu
ressentimento, ódio amargo, raiva—um ardente e terrível anseio por algo—
Ela abriu os olhos. Ela ainda estava sentada à mesa, o anel de Jessamine apertado
em sua mão. Sua pele formigava com os alfinetes afiados e agulhas que sempre
acompanhavam suas transformações. Ela podia sentir a estranheza que era o peso

diferente de outro corpo, não o seu próprio; podia sentir o roçar dos cabelos claros de
Jessamine contra seus ombros. Grosso demais para ser detido pelos grampos que tinham
prendido o cabelo de Tessa, ele havia caído em volta de seu pescoço em uma cascata
pálida.
“Pelo Anjo,” sussurrou Charlotte. Tessa olhou em volta da mesa. Estavam todos
olhando para ela—Charlotte e Henry com a boca aberta; Will sem fala pela primeira vez,
um copo de água congelado a meio caminho dos lábios. E Jessamine—Jessamine estava
olhando para ela em horror abominável, como alguém que teve uma visão de seu próprio
fantasma. Por um momento, Tessa sentiu uma pontada de culpa.
Durou apenas um momento, porém. Lentamente Jessamine abaixou a mão de sua
boca, seu rosto ainda muito pálido. “Meu Deus, meu nariz é enorme,” exclamou. “Por que
ninguém me disse?”


4
Nós Somos Sombras


Pulvis et umbra sumus.23
23 Somos pó e sombra.
—Horácio, Odes


No momento em que Tessa transformou-se de volta à sua própria forma, teve que
sofrer uma enxurrada de perguntas. Para pessoas que viviam em um mundo de sombras
de magia, os Nefilins reunidos pareciam surpreendentemente surpresos com sua
habilidade, o que só serviu para reforçar o que Tessa já havia começado a suspeitar—seu
talento era excessivamente incomum. Mesmo Charlotte, que tinha sabido sobre ele antes
da demonstração de Tessa, parecia fascinada.
“Então você precisa estar segurando algo que pertence à pessoa em que você está se
transformando?” Charlotte perguntou pela segunda vez. Sophie e a mulher mais velha,
que Tessa suspeitava que fosse a cozinheira, já haviam recolhido os pratos do jantar e
servido bolo decorado e chá, mas nenhum dos presentes havia se servido ainda. “Você não
pode simplesmente olhar para alguém e—”
“Eu já expliquei isso.” A cabeça de Tessa estava começando a doer. “Eu preciso
estar segurando algo que pertence a eles, ou um pouco de cabelo ou um cílio. Algo que
seja deles. Caso contrário, nada acontece.”
“Você acha que um frasco de sangue serviria?” Will perguntou, em tom de interesse
acadêmico.
“Provavelmente—eu não sei. Eu nunca tentei.” Tessa tomou um gole de seu chá,
que havia esfriado.
“E você está dizendo que as Irmãs Sombrias sabiam que esse era o seu talento? Elas
sabiam que você tinha essa habilidade antes de você mesma saber?” Charlotte perguntou.
“Sim. É por isso que elas me queriam a princípio.”

Henry balançou a cabeça. “Mas como elas sabiam? Eu não entendi muito bem essa
parte.”
“Eu não sei,” disse Tessa, não pela primeira vez. “Elas nunca me explicaram. Tudo
que eu sei é o que lhes disse—que elas pareciam saber exatamente o que eu podia fazer, e
como me treinar para fazê-lo. Elas passaram horas comigo, todos os dias...” Tessa engoliu
em seco para aplacar a amargura em sua boca. Memórias de como tinha sido surgiram em
sua mente—as horas e horas no porão da Casa Sombria, o jeito que haviam gritado para
ela que Nate iria morrer se ela não conseguisse se Transformar como elas queriam, a
agonia quando ela finalmente aprendeu a fazê-lo. “Doeu, no começo,” ela sussurrou.
“Como se meus ossos estivessem quebrando, derretendo dentro do meu corpo. Elas me
forçaram a me Transformar duas, três, depois uma dúzia de vezes por dia, até eu
finalmente perder a consciência. E então, no dia seguinte, elas começavam novamente. Eu
estava trancada naquele quarto, então não poderia tentar fugir...” Ela tomou uma
respiração entrecortada. “Naquele último dia, elas me testaram pedindo que eu me
transformasse em uma menina que tinha morrido. Ela tinha memórias de ser atacada com
um punhal, ser esfaqueada. De alguma coisa perseguindo-a até um beco—”
“Talvez fosse a menina que Jem e eu encontramos.” Will endireitou-se, com os
olhos brilhando. “Jem e eu supusemos que ela deve ter escapado de um ataque e corrido
pela noite. Eu acredito que eles enviaram o demônio Shax atrás dela para trazê-la de volta,
mas eu o matei. Eles devem ter se perguntado o que aconteceu.”
“A menina em quem eu me transformei chamava-se Emma Bayliss,” Tessa disse,
em um meio-sussurro. “Ela tinha cabelos muito loiros—presos com lacinhos cor-de-rosa—
e era tão pequenina.”
Will balançou a cabeça como se a descrição lhe fosse familiar.
“Então elas realmente se perguntaram o que tinha acontecido com ela. É por isso
que fizeram eu me Transformar nela. Quando eu lhes disse que ela estava morta, elas
pareceram aliviadas.”
“Pobrezinha,” Charlotte murmurou. “Então você pode se Transformar nos mortos?
Não só os vivos?”
Tessa assentiu. “As vozes deles falam na minha cabeça quando eu me Transformo,
também. A diferença é que muitos deles podem se lembrar do momento em que
morreram.”
“Ugh.” Jessamine estremeceu. “Que mórbido.”
Tessa olhou para Will. Sr. Herondale, repreendeu-se silenciosamente, mas era difícil
pensar nele dessa forma. Ela sentia de alguma forma como se o conhecesse melhor do que
ela realmente conhecia. Mas isso era tolice. “Você me encontrou porque estava procurando
o assassino de Emma Bayliss,” disse ela. “Mas ela era apenas uma menina humana morta.

Uma—como vocês chamam?—mundana morta. Por que gastar tanto tempo e esforço para
descobrir o que aconteceu com ela?”
Por um momento os olhos de Will encontraram os dela, os seus de um azul muito
escuro. Então a expressão dele mudou—somente um ligeira alteração, mas ela percebeu,
embora não pudesse dizer o que a mudança significava. “Ah, eu não teria me
incomodado, mas Charlotte insistiu. Ela sentiu que havia algo maior em curso. E quando
eu e Jem nos infiltramos no Clube Pandemônio, e ouvimos rumores de outros
assassinatos, percebemos que havia mais acontecendo que a morte de uma menina. Quer
gostemos ou não dos mundanos particularmente, não podemos permitir que eles sejam
sistematicamente abatidos. É a razão da nossa existência.”
Charlotte se inclinou sobre a mesa. “As Irmãs Sombrias nunca mencionaram o uso
que pretendiam fazer de suas habilidades, mencionaram?”
“Você sabe sobre o Magister,” disse Tessa. “Elas disseram que estavam me
preparando para ele.”
“Para ele fazer o quê?” Will perguntou. “Comer você no jantar?”
Tessa balançou a cabeça. “Para—para casar com ele, segundo elas.”
“Casar com você?” Jessamine foi abertamente desdenhosa. “Isso é ridículo. Elas
provavelmente iriam lhe usar como sacrifício de sangue e não queriam que você entrasse
em pânico.”
“Eu não sei,” disse Will. “Eu olhei em várias salas antes de encontrar Tessa.
Lembro-me de que havia uma surpreendentemente arrumada com uma suíte matrimonial.
Dossel branco em uma cama enorme. Um vestido branco pendurado no guarda-roupas.
Parecia do seu tamanho.” Ele olhou Tessa pensativo.
“Casamento cerimonial pode ser uma coisa muito poderosa,” disse Charlotte.
“Realizado adequadamente, pode permitir o acesso de alguém à sua habilidade, Tessa, até
mesmo o poder de controlar você.” Ela tamborilou seus dedos pensativamente sobre a
mesa. “Quanto a ‘o Magister’, eu pesquisei o termo nos arquivos. É frequentemente
utilizado para designar o chefe de um círculo ou outro grupo de mágicos. O tipo de grupo
que o Clube Pandemônio imagina ser. Eu não consigo evitar de sentir que o Magister e o
Clube Pandemônio estão conectados.”
“Nós os investigamos antes e nunca conseguimos pegá-los fazendo algo suspeito,”
Henry apontou. “Não é contra a Lei ser um idiota.”
“Sorte sua,” disse Jessamine baixinho.
Henry pareceu magoado, mas não disse nada. Charlotte deu a Jessamine um olhar
frio.

“Henry está certo,” disse Will. “Não é como se Jem e eu não os tivéssemos pegado
fazendo as coisas ilegais ocasionais—bebendo absinto misturado com pós de demônio, e
assim por diante. Enquanto eles estivessem apenas prejudicando a si mesmos, não parecia
interessante nos envolvermos. Mas se eles passaram a prejudicar os outros...”
“Você sabe quem é algum deles?” Henry perguntou curiosamente.
“Os mundanos, não,” Will disse com desdém. “Nunca pareceu ahver motivos para
descobrir, e muitos deles iam mascarados ou disfarçados aos eventos do clube. Mas eu
reconheci vários dos Habitantes do Submundo. Magnus Bane, Lady Belcourt, Ragnor Fell,
de Quincey—”
“De Quincey? Espero que ele não estivesse quebrando nenhuma lei. Você sabe
quantos problemas nós tivemos para encontrar um líder vampiro com quem podemos
conversar olho a olho,” Charlotte disse, aflita.
Will sorriu em sua xícara. “Sempre que eu o vi, ele estava sendo um perfeito anjo.”
Depois de um duro olhar para ele, Charlotte voltou para Tessa. “A empregada que
você mencionou—Miranda—tinha a sua habilidade? Ou talvez Emma?”
“Acredito que não. Se Miranda tivesse, elas estariam treinando-a também, não é, e
Emma não tinha nenhuma memória do tipo.”
“E elas nunca mencionaram o Clube Pandemônio? Algum propósito maior para o
que estavam fazendo?”
Tessa revirou seu cérebro. Sobre o que as Irmãs Sombrias falavam quando achavam
que ela não estava ouvindo? “Eu não acho que elas jamais disseram o nome do clube, mas
elas falavam, às vezes, sobre reuniões a que planejavam comparecer, e como os outros
membros ficariam satisfeitos ao saber como elas estavam avançando comigo. Eles
disseram um nome uma vez...” Tessa enrugou o rosto, tentando lembrar. “Outra pessoa
que estava no clube. Eu não lembro, mas me lembro de pensar que o nome soava
estrangeiro...”
Charlotte se inclinou sobre a mesa. “Você pode tentar, Tessa? Tente se lembrar.”
Charlotte não quis ofender, Tessa sabia, e ainda assim sua voz reviveu outras vozes
na cabeça de Tessa—vozes insistindo para ela tentar, alcançar em si mesma, pegar o poder.
Vozes que podiam se tornar duras e frias à menor provocação. Vozes que persuadiam e
ameaçavam e mentiam.
Tessa se endireitou. “Em primeiro lugar, e quanto ao meu irmão?”
Charlotte piscou. “Seu irmão?”

“Você disse que se eu lhes desse informações sobre as Irmãs Sombrias, você me
ajudaria a encontrar meu irmão. Bem, eu lhe disse o que sabia. E eu ainda não tenho
nenhuma ideia de onde Nate está.”
“Ah.” Charlotte sentou-se, parecendo quase surpresa. “Claro. Começaremos a
investigar o seu paradeiro amanhã,” ela assegurou Tessa. “Nós iremos começar com o seu
local de trabalho—falar com seu empregador e descobrir se ele sabe alguma coisa. Temos
contatos em todos os tipos de lugares, Srta. Gray. No Submundo as fofocas correm tanto
quanto no mundo mundano. Eventualmente, encontraremos alguém que sabe algo sobre
seu irmão.”

A refeição terminou não muito depois disso, e Tessa pediu licença e se retirou da
mesa com uma sensação de alívio, recusando a oferta de Charlotte para guiá-la de volta
para seu quarto. Tudo o que ela queria era ficar sozinha com seus pensamentos.
Ela caminhou pelo corredor iluminado por tochas, lembrando o dia em que ela
pisou fora do barco em Southampton. Ela tinha vindo para a Inglaterra sem conhecer
ninguém além de seu irmão, e tinha deixado as Irmãs Sombrias forçarem-na a servi-las.
Agora ela tinha caído nas mãos dos Caçadores das Sombras, e que poderia dizer que eles
iriam tratá-la melhor? Como as Irmãs Sombrias, eles queriam usá-la—usá-la pelas
informações que sabia—e agora que todos eles estavam cientes de seu poder, quanto
tempo levaria antes que eles quisessem usá-la também?
Ainda perdida em pensamentos, Tessa quase andou diretamente para uma parede.
Ela parou por pouco—e olhou em volta, franzindo a testa. Ela tinha andado por muito
mais tempo do que levou para ela e Charlotte chegarem à sala de jantar, e ainda não tinha
encontrado o quarto de que se lembrava. Na verdade, ela não tinha nem certeza de que
havia encontrado o corredor de que se lembrava. Ela estava em um corredor agora,
iluminado por tochas e com tapeçarias penduradas, mas era o mesmo? Alguns dos
corredores eram muito brilhantes, alguns com a luz muito fraca, as tochas queimando com
tons variantes de brilho. Algumas vezes as tochas chamejavam e então apagavam quando
ela passava, como se estivessem respondendo a algum estímulo peculiar que ela não podia
ver. Neste corredor em particular a luz era bastante fraca. Ela escolheu seu caminho até o
fim dele cuidadosamente, onde ele se ramificou em mais dois, cada um idêntico a este.
“Perdida?” perguntou uma voz atrás dela. Uma voz lenta e arrogante,
imediatamente familiar.
Will.
Tessa virou-se e viu que ele estava encostado descuidadamente contra a parede
atrás dela, como se estivesse descansando em uma porta, seus pés em suas botas
arranhadas cruzados à sua frente. Ele segurava alguma coisa na mão: sua pedra brilhante.
Ele a embolsou quando Tessa olhou para ele, apagando sua luz.

“Você deveria me deixar mostrar-lhe o Instituto um pouco, Srta. Gray,” sugeriu.
“Você sabe, para que não se perca novamente.”
Tessa estreitou os olhos para ele.
“Claro, você pode simplesmente continuar perabulando por aí sozinha, se
realmente quiser isso,” acrescentou. “Eu devo avisá-la, porém, que há pelo menos três ou
quatro portas no Instituto que você realmente não deve abrir. Há uma que leva à sala onde
mantemos demônios presos, por exemplo. Eles podem ficar um pouco desagradáveis.
Depois, há a sala de armas. Algumas das armas têm uma mente própria, e elas são afiadas.
Depois, há os aposentos que se abrem para o ar. Elas têm o objetivo de confundir os
invasores, mas quando você está tão alto como no topo da igreja, você não quer
acidentalmente escorregar e—”
“Eu não acredito em você,” disse Tessa. “Você é um mentiroso terrível, Sr.
Herondale. Ainda assim—” Ela mordeu o lábio. “Eu não gosto de perambular. Você pode
me mostrar o lugar se prometer que será sem truques.”
Will prometeu. E, para surpresa de Tessa, ele foi fiel à sua palavra. Ele a guiou por
uma sucessão de corredores idênticos, falando enquanto eles andavam. Disse-lhe quantos
cômodos o Instituto possuia (mais do que você poderia contar), disse-lhe quantos
Caçadores das Sombras poderia viver nele ao mesmo tempo (centenas), e apresentou a ela
o vasto salão de Baile onde era realizada uma festa de Natal anual para o Enclave—que,
Will explicou, era o seu termo para o grupo de Caçadores das Sombras que viviam em
Londres. (Em Nova York, ele acrescentou, o termo era “Conclave”. Caçadores das
Sombras americanos, ao que parecia, tinham seu léxico próprio.)
Depois do salão veio a cozinha, onde a mulher de meia idade que Tessa tinha visto
na sala de jantar sala foi apresentada como Agatha, a cozinheira. Ela estava sentada
costurando na frente de uma ampla cozinha e, para a intensa mistificação de Tessa,
também fumava um cachimbo enorme. Ela sorriu com indulgência ao redor enquanto Will
pegava várias tortas de chocolate da forma onde haviam sido deixadas para esfriar sobre a
mesa. Will ofereceu um a Tessa.
Ela estremeceu. “Oh, não. Eu odeio chocolate.”
Will pareceu horrorizado. “Que tipo de monstro poderia odiar chocolate?”
“Ele come tudo,” Agatha disse a Tessa com um sorriso plácido. “Desde que tinha
doze anos, é. Suponho que é todo o treinamento que o impede de engordar.”
Tessa, divertindo-se com a ideia de um Will gordo, elogiou a fumarenta Agatha por
seu domínio da enorme cozinha. Parecia um lugar que você poderia cozinhar para
centenas, com fileira após fileiras de conservas e sopas, latas de temperos, e um enorme
pernil assando em um gancho sobre a lareira.

“Muito bem,” Will disse após terem deixado a cozinha. “Elogiar Agatha daquele
jeito. Agora ela irá gostar de você. Não é bom se Agatha não gosta de você. Ela colocará
pedras em seu mingau.”
“Oh, nossa,” disse Tessa, mas ela não podia esconder o fato de que estava entretida.
Eles foram da cozinha para a sala de música, onde havia harpas e um velho piano de
cauda, juntando poeira. No fim de um lance de escadas ficava a sala de estar, um lugar
agradável onde as paredes, em vez de pedra desoberta, eram forradas com um padrão
brilhante de folhas e lírios. Fogo estava aceso em uma grande grelha, e várias poltronas
confortáveis estavam colocadas perto dela. Havia uma grande mesa de madeira na sala
também, que Will explicou que era o lugar onde Charlotte fazia muito do trabalho de
funcionamento do Instituto. Tessa não pôde deixar de se perguntar o que era que Henry
Branwell fazia, e onde ele o fazia.
Depois disso, havia a sala de armas, melhor que qualquer coisa que Tessa imaginou
que se pudesse encontrar em um museu. Centenas de maças, machados, punhais, espadas,
facas, e até mesmo algumas pistolas estavam pendurados nas paredes, bem como uma
coleção de diferentes tipos de armadura, de grevas usadas para proteger as canelas a
conjuntos completos de malhas metálicas. Um homem jovem de aparência sólida com
cabelos castanhos escuros estava sentado em uma mesa alta, polindo um conjunto de
adagas curtas. Ele sorriu quando os dois entraram “’Noite, Mestre Will.”
“Boa noite, Thomas. Você conhece a Srta Gray.” Ele indicou Tessa.
“Você estava na Casa Sombria!” Tessa exclamou olhando mais de perto para
Thomas. “Você veio com o Sr. Branwell. Eu pensei—”
“Que eu era um Caçador das Sombras?” Thomas sorriu. Ele tinha um tipo de rosto
doce, agradável e sincero, e um monte de cabelo ondulado. Sua camisa estava aberta na
gola, mostrando um pescoço forte. Apesar de sua óbvia juventude, ele era extremamente
alto e musculoso, a largura de seus braços apertando contra as suas mangas. “Eu não sou,
senhorita—somente fui treinado como um.”
Will encostou-se à parede. “Aquela remessa de misericórdias já chegou, Thomas?
Tenho encontrado uma determinada quantidade de demônios Shax ultimamente, e preciso
de algo estreito, que possa furar carapaças blindadas.”
Thomas começou a dizer algo a Will sobre o envio ser adiado devido ao mau tempo
em Idris, mas a atenção de Tessa tinha sido desviada para outra coisa. Era uma caixa alta
de madeira dourada, polida a um alto brilho, com um padrão nqueimando na frente—
uma cobra, engolindo a própria cauda.
“Não é o símbolo das Irmãs Sombrias?” ela exigiu. “O que está fazendo aqui?”
“Não exatamente,” disse Will. "A caixa é um Pyxis. Demônios não têm almas; sua
consciência vem de um tipo de energia, que algumas vezes pode ser preso e armazenado.

O Pyxis os contém com segurança—Ah, e o desenho é um ouroboros— o ‘devorador de
cauda’. É um símbolo alquímico antigo designado para representar as diferentes
dimensões—o nosso mundo, dentro da serpente, e do resto da existência, no exterior.” Ele
deu de ombros. “O símbolo das Irmãs Sombrias é a primeira vez que vi alguém desenhar
um ouroboros com duas cobras—Oh, não, você não,” ele acrescentou enquanto Tessa se
aproximava da caixa. Ele habilmente pisou na frente dela. “O Pyxis não pode ser tocado
por qualquer pessoa que não seja Caçador das Sombras. Coisas ruins acontecem. Agora
vamos. Tomamos o suficiente do tempo de Thomas.”
“Eu não me importo,” Thomas protestou, mas Will já estava em seu caminho para
fora. Tessa olhou para Thomas da porta. Ele havia voltado a polir o armamento, mas havia
algo sobre o posicionamento de seus ombros que fez Tessa pensar que ele parecia um
pouco solitário.
“Eu não sabia que vocês deixavam mundanos lutarem com vocês,” ela disse a Will
depois que eles deixaram a sala de armas para trás. “Thomas é um servo, ou—”
“Thomas esteve no Instituto quase toda sua vida,” Will disse, guiando Tessa em
torno de uma curva acentuada no corredor. “Há famílias que têm a Visão em suas veias,
famílias que sempre serviram aos Caçadores das Sombras. Os pais de Thomas serviram os
pais de Charlotte no Instituto, e agora Thomas serve Charlotte e Henry. E seus filhos irão
servir os deles. Thomas faz tudo—dirige, cuida de Balios e Xanthos—esses são os nossos
cavalos—e ajuda com as armas. Sophie e Agatha gerem o resto, embora Thomas as auxilie
ocasionalmente. Eu suspeito que ele tem intenções românticas com Sophie e não gosta de
vê-la trabalhar muito.”
Tessa ficou feliz em ouvir isso. Ela sentia-se terrível por sua reação à cicatriz de
Sophie, e o pensamento de que ela tenha um admirador do sexo masculino—e um belo
como aquele—aliviou um pouco sua consciência. “Talvez ele seja apaixonado por
Agatha,” disse ela.
“Espero que não. Eu pretendo casar-me com Agatha. Ela pode ter mil anos, mas faz
uma geléia azeda incomparável. A beleza desaparece, mas cozinhar bem é eterno.” Ele
parou em frente a uma porta grande de carvalho, com dobradiças de latão espessas. “Aqui
estamos, agora,” ele disse, e a porta se abriu ao seu toque.
A sala em que eles entraram era maior até do que o salão de baile que ela tinha visto
antes. Era maior em comprimento do que em largura, com mesas de carvalho retangulares
colocadas no centro, desaparecendo até a parede mais distante, que era pintada com uma
imagem de um anjo. Cada mesa era iluminada por uma lâmpada de vidro que cintilava
branca. A metade superior das paredes era uma galeria interna com um corrimão de
madeira passando em torno que poderia ser alcançada por meio de escadas em espiral em
ambos os lados da sala. Fileiras e mais fileiras de estantes situavam-se em intervalos, como
sentinelas formando alcovas de ambos os lados da sala. Havia mais estantes em cima,
também; os livros eram escondidos atrás de telas de metal decorado, cada tela estampada

com um padrão de quatro Cs. Vitrais enormes curvando-se para fora, revestidos com
bancos de pedra gasta, foram fixados em intervalos entre as prateleiras.
Um vasto tomo tinha sido deixado fora em um suporte, suas páginas abertas e
convidativas; Tessa se aproximou, pensando que deveria ser um dicionário, apenas para
descobrir que suas páginas eram rabiscadas com escrita ilegível iluminada e gravadas com
mapas de aparência estranha.
“Esta é a Grande Biblioteca,” disse Will. “Cada Instituto tem uma biblioteca, mas
esta é a maior de todos eles—a maior do Ocidente, de qualquer modo.” Ele encostou-se à
porta, braços cruzados sobre o peito. “Eu disse que iria lhe dar mais livros, não é?”
Tessa ficou tão surpresa por ele se lembrar do que tinha dito, que levou vários
segundos para responder. “Mas os livros estão todos atrás das grades!” disse. “Como um
tipo de prisão literária!”
Will sorriu. “Alguns desses livros são perigosos,” disse ele. “É prudente ter
cuidado.”
“É preciso sempre ter cuidado com os livros,” disse Tessa, “e o que está dentro
deles, pois as palavras têm o poder de nos mudar.”
“Não estou certo de que um livro jamais tenha me mudado,” disse Will. “Bem, há
um volume que promete ensinar a transformar-se em um rebanho inteiro de ovelhas—”
“Somente os de mente muito fraca recusam-se a ser influenciados pela literatura e
poesia,” disse Tessa, determinada a não deixá-lo mudar descontroladamente de assunto.
“Claro, por que alguém iria querer ser um rebanho inteiro de ovelhas é outra
questão totalmente,” Will completou. “Existe algo que você queira ler aqui, Srta. Gray, ou
não? Nomeie-o, e irei tentar livrá-lo de sua prisão para você.”
“Você acha que a biblioteca tem o The Wide, Wide World24? Ou Mulherzinhas?”
24 Romance de 1850 por Susan Warner, publicado sob o pseudônimo de Elizabeth Wetherell. Muitas vezes, é
aclamado como o primeiro best-seller dos Estados Unidos.
“Nunca ouvi falar de nenhum deles,” disse Will. “Não temos muitos romances.”
“Bem, eu quero romances,” disse Tessa. “Ou poesia. Os livros são para ler, não para
transformar-se em animais de pecuária.”
Os olhos de Will brilharam. “Acho que podemos ter uma cópia de Alice no País das
Maravilhas em algum lugar.”
Tessa franziu o nariz. “Ah, este é para crianças pequenas, não é?” disse. “Eu nunca
gostei muito—parecia tanta besteira aleatória.”

Os olhos de Will eram muito azuis. “Há muito sentido no aleatório, às vezes, se
você desejar procurar por ele.”
Mas Tessa já havia espiado um volume familiar em uma prateleira e dirigiu-se para
saudá-lo como um velho amigo. “Oliver Twist,” ela gritou. “Vocês têm algum outro dos
romances do Sr. Dickens?” Ela juntou as mãos. “Oh! Você tem Um Conto de Duas
Cidades25?”
25 Oliver Twist e Um Conto de Duas Cidades: romances de Charles Dickens.
26 No original: Lady Audley’s Secret. Romance melodramático escrito por Mary Elizabeth Braddon em 1862.
“Aquela coisa boba? Homens andando por aí tendo suas cabeças decepadas por
amor? Ridículo.” Will impeliu-se da porta e fez o seu caminho em direção a Tessa onde ela
estava nas estantes. Ele fez um gesto expansivo para o vasto número de volumes em torno
dele. “Não, aqui você encontrará todos os tipos de conselhos sobre como cortar a cabeça
de alguém se precisar; muito mais útil.”
“Eu não!” Tessa protestou. “Preciso cortar a cabeça de ninguém, eu quero dizer. E
qual é a razão de um monte livros que ninguém quer realmente ler? Você não tem mesmo
quaisquer outros romances?”
“Não, a menos que o Segredo de Lady Audley26 seja que ela mata demônios em seu
tempo livre.” Will subiu em uma das escadas e puxou um livro da prateleira. “Encontrarei
outra coisa para você ler. Pegue.” Ele deixou o livro cair sem olhar, e Tessa teve que se
atirar para frente para agarrá-lo antes que atingisse o chão.
Era um grande volume meio quadrado encadernado em veludo azul escuro. Havia
um padrão cortado no veludo, um símbolo serpenteante que a lembrava das marcas que
decoravam a pele de Will. O título estava gravado na capa em prata: O Códice do Caçador
das Sombras. Tessa olhou para Will. “O que é isso?”
“Imaginei que você teria dúvidas sobre os Caçadores das Sombras, dado que você
está atualmente habitando o nosso sanctum sanctorum, por assim dizer. Esse livro deve
dizer qualquer coisa que você queira saber—sobre nós, sobre a nossa história, até mesmo
sobre Habitantes do Submundo como você.” O rosto de Will ficou sério. “Tenha cuidado
com ele, porém. Tem 600 anos de idade e é a única cópia de seu tipo. Perder ou danificá-la
é punido com morte nos termos da Lei.”
Tessa colocou o livro longe dela como se estivesse pegando fogo. “Você não pode
estar falando sério.”
“Você está certa. Eu não estou.” Will saltou da escada e caiu levemente na frente
dela. “Você realmente acredita em tudo que eu digo, não é? Eu lhe pareço
extraordinariamente confiável, ou você é apenas um tipo ingênuo?”

Em vez de responder, Tessa fez uma careta para ele e atravessou a sala em direção a
uma dos bancos de pedra dentro do nicho da janela. Atirando-se no assento, ela abriu o
Códice e começou a ler, estudiosamente ignorando Will mesmo quando ele se moveu para
sentar ao lado dela. Ela podia sentir o peso de seu olhar sobre ela enquanto ela lia.
A primeira página do livro Nefilim mostrava a mesma imagem que ela tinha se
acostumado a ver nas tapeçarias nos corredores: o anjo saindo do lago, segurando uma
espada numa mão e uma taça na outra. Embaixo da ilustração havia uma nota: O Anjo
Raziel e Os Instrumentos Mortais.
“É assim que tudo começou,” Will disse alegremente, como que alheio ao fato de
que ela o estava ignorando. “Uma magia de invocação aqui, um pouco de sangue de anjo
lá, e você tem uma receita para guerreiros humanos indestrutíveis. Você nunca irá nos
entender lendo um livro, veja bem, mas é um começo.”
“Dificilmente humanos—mais como anjos vingadores,” Tessa disse baixinho,
virando as páginas. Havia dezenas de imagens de anjos—caindo do céu, soltando penas
como uma estrela pode soltar faíscas ao cair. Havia mais imagens do Anjo Raziel,
segurando um livro aberto em cujas páginas runas queimavam como fogo, e havia
homens ajoelhados em volta dele, homens em cuja pele Marcas podiam ser vistas. Imagens
de homens como o que ela tinha visto em seu pesadelo, com os olhos faltando e lábios
costurados; imagens de Caçadores das Sombras brandindo espadas flamejantes, como
anjos guerreiros do Céu. Ela olhou para Will. “Você é, então, não é? Parte anjo?”
Will não respondeu. Ele estava olhando pela janela, através de um painel inferior
transparente. Tessa seguiu seu olhar; a janela dava para o que tinha de ser a frente do
Instituto, pois havia um pátio arredondado abaixo deles, cercado por muros. Através das
grades de um portão alto de ferro encimado por um arco curvado, ela podia avistar um
pouco da rua além, iluminado por luz amarela fraca de gás. Haviam letras de ferro
trabalhado no arco em cima do portão; quando olhados desta direção, eles estavam do
lado avesso, e Tessa franziu os olhos para decifrá-los.
“Pulvis et umbra sumus. É um verso de Horácio. ‘Nós somos pó e sombra’. Adequado,
não acha?” Will disse. “Não é uma vida longa, matar demônios; a pessoa tende a morrer
jovem, e depois eles queimam seu corpo—do pó ao pó, no sentido literal. E então
desaparecemos nas sombras da história, malmente uma marca na página de um livro
mundano para lembrar ao mundo que uma vez existimos.”
Tessa olhou para ele. Ele estava com aquele olhar que ela achava tão estranho e
convincente—aquela diversão que não parecia passar além da superfície de suas feições,
como se ele achasse tudo no mundo infinitamente engraçado e infinitamente trágico ao
mesmo tempo. Ela se perguntou o que o tinha feito ser assim, como ele tinha passado a
achar a escuridão divertida, pois era uma qualidade que ele não parecia partilhar com
qualquer um dos outros Caçadores das Sombras que ela havia encontrado, por mais que
brevemente. Talvez fosse algo que ele tenha aprendido com seus pais—mas que pais?

“Você não se preocupa?” Ela disse suavemente. “De que o que está lá fora—pode
entrar aqui?”
“Demônios e outras coisas desagradáveis, você quer dizer?” Will perguntou,
embora Tessa não tivesse certeza se era o que ela queria dizer, ou se ela estava falando dos
males do mundo em geral. Ele colocou uma mão contra a parede. “A argamassa que fez
estas pedras foi misturada com o sangue de Caçadores das Sombras. Cada pilar é
esculpido em madeira de tramazeira27. Cada prego usado para juntar as vigas é feito de
prata, ferro, ou electrum28. O local é construído em solo sagrado cercado por barreiras. A
porta da frente pode ser aberta apenas por quem possui sangue de Caçador das Sombras;
caso contrário ele permanece trancada para sempre. Este local é uma fortaleza. Então, não,
não estou preocupado.”
27 Árvore que distribui-se por toda a Europa; tem uma longa tradição no floclore e mitologia europeus, que dizem que
a árvore é mágica e uma proteção contra seres malévolos.
28 Liga natural de ouro e prata.
“Mas por que viver em uma fortaleza?” Ao ver seu olhar surpreso ela elaborou.
“Vocês claramente não são aparentados com Charlotte e Henry, eles mal têm idade
suficiente para ter adotado vocês, e nem todas as crianças Caçadores das Sombras devem
viver aqui ou haveria mais, além de você e Jessamine—”
“E Jem,” Will lembrou.
“Sim, mas—você vê o que eu quero dizer. Por que você não mora com sua família?”
“Nenhum de nós tem pais. Os de Jessamine morreram em um incêndio, os de Jem—
bem, Jem veio de uma boa distância para viver aqui, depois que seus pais foram
assassinados por demônios. Nos termos da Lei do Tratado, a Clave é responsável por
crianças Caçador das Sombras órfãs com idade inferior a dezoito anos.”
“Então vocês são a família uns dos outros.”
“Se você deve romantizar, suponho que somos—todos irmãos e irmãs sob o teto do
Instituto. Você também, Srta. Gray, ainda que temporariamente.”
“Nesse caso,” disse Tessa, sentindo sangue quente subir em seu rosto, “eu acho que
preferiria que me chamasse pelo meu nome cristão, como você faz com a Srta. Lovelace.”
Will olhou para ela, lenta e rigidamente, e depois sorriu. Seus olhos azuis
acenderam quando ele sorriu. “Então você deve fazer o mesmo por mim,” disse ele.
“Tessa.”
Ela nunca tinha pensado muito sobre seu nome antes, mas quando ele o disse, era
como se ela o estivesse ouvindo pela primeira vez—o T rígido, o carinho do S duplo, o
jeito que ele parecia terminar em uma respiração. Sua própria respiração era muito curta
quando ela disse, baixinho, “Will.”

“Sim?” Diversão brilhava em seus olhos.
Com uma espécie de horror Tessa percebeu que ela tinha simplesmente dito seu
nome por uma questão de dizê-lo; ela não tinha realmente uma pergunta.
Apressadamente ela disse, “Como vocês aprendem—a lutar como você faz? Desenhar
aqueles símbolos mágicos, e o resto?”
Will sorriu. “Nós tivemos um tutor que proveu a nossa educação e treinamento
físico—embora ele tenha ido para Idris, e Charlotte esteja procurando um substituto—
juntamente com Charlotte, que cuida de nos ensinar história e línguas antigas.”
“Então ela é sua governanta?”
Um olhar de divertimento escuro passou pelas feições de Will. “Você poderia dizer
isso. Mas eu não chamaria Charlotte de governanta se eu fosse você, não se deseja
preservar seus membros intactos. Você não pensaria ao olhar para ela, mas ela é bastante
habilidosa com uma variedade de armas, a nossa Charlotte.”
Tessa piscou, surpresa. “Você não quer dizer—Charlotte não luta, não é? Não do
jeito que você e Henry fazem.”
“Certamente que sim. Por que ela não iria?”
“Porque ela é uma mulher,” disse Tessa.
“Boadiceia29 também era.”
29 Boadiceia, ou Boudica, foi uma rainha celta que liderou seu povo em um levante contra as forças romanas que
ocupavam a Grã-Bretanha em 60 ou 61 d.C..
30 Trecho do poema Boadicea, de Alfred Lord Tennyson. Tradução livre.
“Quem?”
“‘Então a Rainha Boadiceia, de pé altivamente na carroça / Brandindo em sua mão um dardo
e lançando olhares leoninos30—’” Will parou ao olhar de incompreensão de Tessa, e sorriu.
“Nada? Se você fosse inglesa, conheceria. Lembre-me de encontrar um livro sobre ela para
você. De quaquer modo, ela foi uma rainha guerreira poderosa. Quando ela finalmente foi
derrotada, ela tomou veneno, em vez de deixar-se capturar pelos romanos. Ela foi mais
corajosa do que qualquer homem. Eu gosto de pensar que Charlotte é do mesmo molde,
embora um pouco menor.”
“Mas ela não pode ser boa nisto, pode? Quero dizer, as mulheres não têm esse tipo
de sentimentos.”
“Que tipo de sentimentos são esses?”
“Sede de sangue, suponho,” disse Tessa, após um momento. “Ferocidade.
Sentimentos de guerreiro.”

“Eu vi você brandir aquela serra para as Irmãs Sombrias,” Will ressaltou. “E, se me
lembro bem, o segredo de Lady Audley era, na verdade, que ela era uma assassina.”
“Então, você leu!” Tessa não conseguiu esconder sua alegria.
Ele parecia divertido. “Eu prefiro The Trail of The Serpent31. Mais aventura, menos
drama doméstico. Nenhum deles é tão bom quanto The Moonstone32, no entanto. Você já
leu Collins?”
31 Romance de 1860 de Mary Elizabeth Braddon. “O Rastro da Serpente”, em tradução livre.
32 Romance de 1868 de William Wilkie Collins. “A Pedra da Lua”, em tradução livre.
33 Romances de 1866 e 1860, respectivamente, de William Wilkin Collins.
“Eu adoro Wilkie Collins,” Tessa gritou. “Oh—Armadale! E The Woman in White33...
Você está rindo de mim?”
“Não de você,” disse Will, sorrindo, “mais por sua causa. Eu nunca vi ninguém ficar
tão animado sobre livros antes. Você acharia que eles eram diamantes.”
“Bem, eles são, não são? Não há nada que você ame assim? E não diga ‘brigas’ ou
‘tênis de quadra’ ou algo bobo.”
“Bom Senhor,” ele disse com falso horror, “é como se ela já me conhecesse.”
“Todos têm algo que não podem viver sem. Eu descobrirei o que é para você, não
tema.” Ela quis falar de ânimo leve, mas ao olhar no rosto dele, sua voz sumiu na
incerteza. Ele estava olhando para ela com uma constância ímpar; seus olhos eram do
mesmo azul escuro do veludo do livro que ela segurava. O olhar dele passou por seu
rosto, pela sua garganta, até a cintura, antes de subir de volta até seu rosto, onde
permaneceu em sua boca. O coração de Tessa estava batendo como se ela tivesse corrido
subindo escadas. Algo em seu peito doeu, como se ela estivesse com fome ou sede. Havia
algo que ela queria, mas ela não sabia o que—
“É tarde,” Will disse abruptamente, olhando para longe dela. “Eu deveria levar-lhe
de volta ao seu quarto.”
“Eu—” Tessa queria protestar, mas não havia nenhuma razão para fazê-lo. Ele
estava certo. Era tarde, o brilho pontual das estrelas visível através dos vidros limpos da
janela. Ela levantou-se, segurando o livro ao peito, e foi com Will para o corredor.
“Há alguns truques para aprender os caminhos dentro do Instituto que eu devo
ensiná-la,” disse ele, ainda não olhando para ela. Havia algo estranhamente desconfiado
em sua atitude agora, algo que não existia momentos atrás, como se Tessa tivesse feito
algo para ofendê-lo. Mas o que ela poderia ter feito? “Maneiras de identificar as diferentes
portas e virar—”

Ele parou, e Tessa viu que alguém estava vindo pelo corredor em direção a eles. Era
Sophie, um cesto de roupa debaixo um de seus braços. Vendo Will e Tessa, ela fez uma
pausa, a sua expressão tornando-se mais cautelosa.
“Sophie!” A desconfiança dele se tornou travessura. “Já conseguiu colocar meu
quarto em ordem?”
“Está feito.” Sophie não retornou o sorriso. “Ele estava um nojo. Espero que no
futuro você possa se abster de largar pedaços de demônio morto pela casa.”
A boca de Tessa caiu aberta. Como podia Sophie falar de tal forma com Will? Ela
era uma serva, e ele—mesmo que ele fosse mais jovem que ela—era um cavalheiro.
E ainda assim ele parecia tomar isso por normal. “Tudo parte do trabalho, jovem
Sophie.”
“O Sr. Branwell e o Sr. Carstairs parecem não ter nenhum problema em limpar suas
botas,” disse Sophie, olhando sombriamente de Will para Tessa. “Talvez você possa
aprender com seus exemplos.”
“Talvez,” disse Will. “Mas eu duvido.”
Sophie fez uma careta, e voltou a andar pelo corredor, com os ombros tensos com
indignação.
 Tessa olhou para Will com espanto. “O que foi isso?”
Will encolheu os ombros preguiçosamente. “Sophie gosta de fingir que ela não
gosta de mim.”
“Não gosta de você? Ela lhe odeia!” Em outras circunstâncias, ela poderia ter
perguntado se Will e Sophie haviam rompido relações, porém uma pessoa não rompe
relações com os empregados. Se eles não eram satisfatórios, você os demitia. “Aconteceu—
aconteceu alguma coisa entre vocês?”
“Tessa,” Will disse com paciência exagerada. “Chega. Existem coisas que você não
pode esperar entender.”
Se havia uma coisa Tessa odiava, era lhe dizerem que havia coisas que ela não
conseguiria entender. Porque ela era jovem, porque ela era uma garota—por qualquer
uma das mil razões que nunca pareciam fazer nenhum sentido realmente. Ela levantou o
queixo teimosamente. “Bem, não, se você não irá me dizer. Mas então eu teria dizer que
me parece bastante provável ela te odeie porque você fez algo terrível para ela.”
A expressão de Will escureceu. “Você pode pensar o que quiser. Não é como se
você soubesse alguma coisa sobre mim.”

“Eu sei que você não gosta de dar respostas diretas às perguntas. Eu sei que você
provavelmente está em torno de dezessete anos. Eu sei que você gosta de Tennyson—você
o citou na Casa Sombria, e novamente agora. Eu sei que você é um órfão, como eu—”
“Eu nunca disse que era um órfão.” Will falou com selvageria inesperada. “E eu
detesto poesia. Então, no fim das contas, você realmente não sabe nada sobre mim, não é?”
E com isso, ele girou sobre os calcanhares e se afastou.


5
O Códice do Caçador das
Sombras


Os sonhos são verdadeiros enquanto duram, e nós não vivemos em sonhos?
—Alfred, Lord Tennyson, O Panteísmo Superior


Levou uma era vagando mal-humorada de corredor a corredor idêntico antes de
Tessa, por pura sorte, reconhecer um rasgo em mais uma das infinitas tapeçarias e
percebeu que a porta do seu quarto devia ser uma das que se alinhavam naquela entrada
particular. Alguns minutos de tentativa e erro mais tarde, e ela estava gratamente
fechando a porta correta atrás dela e deslizando o ferrolho na fechadura.
O momento em que ela estava de volta em sua camisola e tinha deslizado sob as
cobertas, ela abriu o Códice do Caçador das Sombras e começou a ler. Você nunca irá nos
entender lendo um livro, Will tinha dito, mas esse não era realmente o ponto. Ele não sabia o
que livros significavam para ela, que livros eram símbolos de verdade e sentido, que este
reconhecia que ela existia e que havia outros como ela no mundo. Segurá-lo em suas mãos
fez Tessa sentir que tudo o que havia acontecido com ela nas últimas seis semanas, fora
real—mais real até mesmo do que ter vivido isso.
Tessa aprendeu do Códice que todos os Caçadores de Sombras descendiam de um
arcanjo chamado Raziel, que tinha dado ao primeiro deles um volume chamado Livro
Cinza, cheio com “a língua do Paraíso”—as Marcas rúnicas pretas que cobriam a pele dos
Caçadores das Sombras treinados como Charlotte e Will. As Marcas eram cortadas em
suas peles com uma ferramenta parecida com um estilete chamada stele—o objeto
estranho parecido com uma caneta que ela tinha visto Will usar para desenhar na porta na
Casa Sombria. As Marcas proviam aos Nefilins todo tipo de proteção: cura, força e
velocidade sobre-humana, visão noturna, e até mesmo os permitia se esconderem dos
olhos mundanos com runas chamadas glamours. Mas elas não eram um presente que
qualquer um poderia usar. Cortar Marcas na pele de um Habitante do Submundo ou
humano—ou mesmo de um Caçador das Sombras que fosse muito jovem ou

impropriamente treinado—seria torturantemente doloroso e resultaria em loucura ou
morte.
As Marcas não eram a única forma com que eles se protegiam—eles usavam
vestimentas de couro resistentes e encantadas chamadas equipamento quando eles iam
para uma batalha. Havia desenhos de homens no equipamento de diferentes países. Para a
surpresa de Tessa, havia também desenhos de mulheres em longas camisas e calças—não
calçolas, tais como o tipo que ela tinha visto ser ridicularizado nos jornais, mas calças de
homens de verdade. Virando a página, ela balançou a cabeça, imaginando se Charlotte e
Jessamine realmente usavam tais trajes estranhos.
As páginas seguintes eram dedicadas aos outros presentes que Raziel tinha dado
aos primeiros Caçadores das Sombras—poderosos objetos mágicos chamados
Instrumentos Mortais—e um país de origem: um pequeno pedaço de terra retirado do que
era então o Sacro Império Romano, rodeado com barreiras de modo que os mundanos não
pudessem entrar. Ele era chamado Idris.
A lâmpada piscou fracamente enquanto Tessa lia, suas pálpebras caindo mais e
mais. Habitantes do Submundo, ela leu, eram criaturas sobrenaturais, como fadas,
lobisomens, vampiros e feiticeiros. No caso dos vampiros e lobisomens, eles eram seres
humanos infectados com uma doença demoníaca. Fadas, por outro lado, eram meio-
demônios e meio-anjos e, portanto, possuíam uma grande beleza e uma natureza maligna.
Mas feiticeiros—feiticeiros eram os descendentes diretos de humanos e demônios. Não era
surpresa que Charlotte tinha perguntado se ambos os seus pais eram humanos. Mas eles
eram, ela pensou, então não é possível eu ser uma feiticeira, graças a Deus. Ela olhou fixamente
para uma ilustração que mostrava um homem alto com cabelo bagunçado, de pé no centro
de um pentagrama riscado em um chão de pedra. Ele parecia completamente normal,
exceto pelo fato de que ele tinha os olhos com pupilas estendidas como as de um gato.
Velas queimavam em cada uma das cinco pontas da estrela. As chamas pareciam deslizar
em conjunto, borrando enquanto a própria visão de Tessa borrava em exaustão. Ela fechou
seus olhos—e instantaneamente estava sonhando.
No sonho, ela dançava em meio a fumaça girando por um corredor forrado de espelhos, e
cada espelho que ela passava lhe mostrava um rosto diferente. Ela podia ouvir uma música
encantadora, perturbadora. Parecia vir de uma certa distância, e ainda assim estava por toda parte.
Havia um homem caminhando à sua frente—um rapaz, na verdade, esbelto e sem barba—mas
mesmo ela sentindo que o conhecia, ela não podia ver seu rosto ou reconhecê-lo. Ele poderia ter sido
seu irmão, ou Will, ou alguém completamente diferente. Ela seguiu, chamando-o, mas ele regrediu
pelo corredor, como se a fumaça o levasse com ela. A música ergueu-se e ergueu-se em um
crescendo34—
34 Indicação de aumento gradual da intensidade do som.

E Tessa acordou, respirando com dificuldade, o livro caindo de seu colo quando ela
sentou. O sonho havia ido, mas a música continuava, alta e assombradora e doce. Ela
caminhou até a porta e espiou o corredor.
A música estava mais alta no corredor. De fato, estava vindo do quarto do outro
lado do corredor. A porta estava suavemente entreaberta, e as notas pareciam fluir pela
abertura como água através do estreito gargalo de uma jarra.
Um roupão pendurado em um gancho ao lado da porta; Tessa o pegou e colocou-o
por cima de sua roupa de dormir, saindo para o corredor. Como num sonho, ela
atravessou o corredor e colocou a mão suavemente na porta; ela se abriu sob o seu toque.
Dentro, o quarto estava escuro, iluminado apenas pelo luar. Ela viu que não era diferente
de seu próprio quarto, do outro lado do corredor, a mesma cama de dossel grande, a
mesma mobília escura pesada. As cortinas tinham sido abertas em uma janela alta, e luz
prateada pálida fluía para o quarto como uma chuva de agulhas. No trecho quadrado de
luar na frente da janela, alguém estava de pé. Um garoto—ele parecia muito pequeno para
ser um homem adulto—com um violino encostado no ombro. Seu rosto descansava contra
o instrumento, e o arco movia-se para frente e para trás sobre as cordas, torcendo notas
delas, notas mais bonitas e perfeitas que qualquer coisa que Tessa tinha ouvido.
Seus olhos estavam fechados. “Will?” ele disse, sem abrir os olhos ou deixar de
tocar. “Will, é você?”
Tessa não disse nada. Ela não conseguia suportar falar, interromper a música—mas
em um momento o garoto parou por si mesmo, baixando o seu arco e abrindo os olhos
com uma careta.
“Will—,” ele começou e, em seguida, vendo Tessa, seus lábios se separaram em
surpresa. “Você não é Will.” Ele suava curioso, mas não incomodado, apesar do fato de
que Tessa tinha invadido seu quarto no meio da noite e o surpreendido tocando violino
em seus pijamas, ou o que Tessa assumiu serem seus pijamas. Ele usava um conjunto leve
e folgado de calças e uma camisa sem gola, com um roupão de seda preto amarrado
frouxamente sobre elas. Ela tinha razão. Ele era jovem, provavelmente a mesma idade de
Will, e a impressão de juventude era intensificada pela sua magreza. Ele era alto, mas
muito esguio, e desaparecendo abaixo do colarinho da camisa, ela podia ver as bordas
onduladas dos desenhos em preto que ela já havia visto na pele de Will, e de Charlotte.
Ela sabia como eram chamadas agora. Marcas. E ela sabia o que elas o faziam.
Nefilim. O descendente de homens e anjos. Não admirava que ao luar sua pele pálida
parecesse brilhar como a luz de bruxa de Will. Seus cabelos eram uma prata pálida,
também, assim como seus olhos angulares.
“Sinto muito,” disse ela, limpando a garganta. O barulho parecia terrivelmente
áspero para ela, e alto no silêncio da sala; ela queria se encolher. “Eu—eu não queria entrar
aqui dessa forma. É—meu quarto fica do outro lado do salão, e...”

“Está tudo bem.” Ele abaixou o violino de seu ombro. “Você é a Srta. Gray, não é? A
menina trocadora de forma. Will me contou um pouco sobre você.”
“Oh,” disse Tessa.
“Oh?” As sobrancelhas do menino levantaram-se. “Você não soa terrivelmente
contente que eu saiba quem você é.”
“É que eu acho que Will está bravo comigo,” explicou Tessa. “Então seja o que for o
que ele te disse—”
Ele riu. “Will está zangado com todos,” disse ele. “Eu não deixo isso interferir no
meu julgamento.”
Luar refletiu da superfície polida do violino do garoto quando ele se virou para
colocá-lo em cima do guarda-roupa, o arco ao lado dele. Quando ele se virou para ela, ele
estava sorrindo. “Eu deveria ter me apresentado antes,” disse ele. “Sou James Carstairs.
Por favor, me chame de Jem—todos chamam.”
“Oh, você é Jem. Você não estava no jantar,” Tessa relembrou. “Charlotte disse que
você estava doente. Você está se sentindo melhor?”
Ele encolheu os ombros. “Eu estava cansado, isso é tudo.”
“Bem, eu imagino que deve ser cansativo, fazer tudo que vocês fazem.” Tendo lido
o Códice, Tessa sentiu-se queimando com perguntas sobre os Caçadores das Sombras.
“Will disse que você veio de muito longe para viver aqui—você estava em Idris?”
Ele ergueu suas sobrancelhas. “Você sabe sobre Idris?”
“Ou você veio de outro Instituto? Eles são todos em grandes cidades, não são? E por
que para Londres—”
Ele a interrompeu, estupefato. “Você faz um monte de perguntas, não faz?”
“Meu irmão sempre diz que curiosidade é o pecado que me aflige.”
“Dos pecados que existem, esse não é o pior deles.” Ele sentou no baú ao pé da
cama, e fitou-a com uma curiosa gravidade. “Então vá em frente; pergunte-me tudo que
quiser. Eu não consigo dormir de qualquer forma, e distrações são bem-vindas.”
Imediatamente a voz de Will aumentou no fundo da cabeça de Tessa. Os pais de
Jem tinham sido mortos por demônios. Mas eu não posso perguntar a ele sobre isso, Tessa
pensou. Em vez disso, ela disse, “Will me disse que você veio de muito longe. Onde você
morava antes?”
“Xangai,” Jem disse. “Você sabe onde é?”
“China,” disse Tessa com alguma indignação. “Todo mundo não sabe disso?”

Jem sorriu. “Você ficaria surpresa.”
“O que você estava fazendo na China?” Tessa perguntou, com interesse sincero. Ela
não conseguia retratar muito bem o lugar de que Jem vinha. Quando pensava na China,
tudo o que vinha à mente era Marco Polo e chá. Ela tinha a sensação de que era muito,
muito longe, como se Jem tivesse vindo dos confins da terra—a leste do sol e oeste da lua,
Tia Harriet teria dito. “Eu pensei que ninguém ia lá, além de missionários e marinheiros.”
“Caçadores das Sombras vivem em todo o mundo. Minha mãe era chinesa; meu pai
era britânico. Eles se conheceram em Londres e mudaram-se para Xangai, quando foi
oferecido a ele o cargo de administração do Instituto de lá.”
Tessa ficou surpresa. Se a mãe de Jem tinha sido chinesa, então ele também era, não
era? Ela sabia que havia imigrantes chineses em Nova York—a maioria trabalhava em
lavanderias ou vendia charutos enrolados à mão em carrinhos na rua. Ela nunca tinha
visto um deles, que parecesse nem de perto como Jem, com seus estranhos cabelos e olhos
prateados. Talvez tivesse algo a ver com ele ser um Caçador das Sombras? Mas ela não
conseguia pensar em uma maneira de perguntar que não parecesse terrivelmente rude.
Felizmente, Jem não parecia estar esperando por ela para continuar a conversa.
“Peço desculpas pela pergunta, mas—seus pais estão mortos, não estão?”
“Will te disse isso?”
“Ele não precisou. Nós órfãos aprendemos a reconhecer um ao outro. Se eu puder
perguntar—você era muito jovem quando aconteceu?”
“Eu tinha três anos quando eles morreram em um acidente de carruagem. Eu mal
me lembro deles.” Apenas em pequenos flashes—o cheiro da fumaça do tabaco, ou o lilás pálido do
vestido da minha mãe. “Minha tia me criou. E meu irmão, Nathaniel. Minha tia, porém—”
Nisso, para sua surpresa, sua garganta começou a apertar. Uma imagem vívida de Tia
Harriet lhe veio à cabeça, deitada na estreita cama de latão em seu quarto, os olhos
brilhantes de febre. Não reconhecendo Tessa no final e chamando-a pelo nome de sua
mãe, Elizabeth. Tia Harriet foi a única mãe que Tessa realmente conheceu. Tessa tinha
segurado sua mão fina enquanto ela morria, lá no quarto com o sacerdote. Ela lembrou-se
de pensar que agora realmente estava sozinha. “Ela morreu recentemente. Ela pegou uma
febre inesperada. Ela nunca foi muito forte.”
“Eu sinto muito em ouvir isso,” Jem disse, e ele realmente parecia lamentar.
“Foi terrível, porque o meu irmão já tinha ido naquele momento. Ele havia partido
para a Inglaterra um mês antes. Ele até nos mandou de volta presentes—chá da Fortnum e
Mason, e chocolates. E então Titia ficou doente e morreu, e eu escrevi a ele vezes e mais
vezes, mas as minhas cartas voltavam. Eu estava desesperada. E então chegou a passagem.
Uma passagem para um navio a vapor para Southampton, e uma nota de Nate dizendo
que ele iria me encontrar no cais, que eu devia ir morar com ele em Londres agora que

Titia tinha partido. Exceto que agora eu acho que ele jamais escreveu aquela nota—” Tessa
parou, os olhos ardendo. “Sinto muito. Estou devaneando. Você não precisa ouvir tudo
isso.”
“Que tipo de homem é seu irmão? Como ele é?”
Tessa olhou para Jem com uma pequena surpresa. Os outros tinham perguntado a
ela o que ele poderia ter feito para se meter em sua situação atual, se ela sabia onde as
Irmãs Sombrias poderiam estar mantendo-o, se ele tinha o mesmo poder que ela tinha.
Mas ninguém havia perguntado como ele era.
“Titia costumava dizer que ele era um sonhador,” disse ela. “Ele sempre viveu em
sua cabeça. Ele nunca se importou com como as coisas eram, apenas como elas iriam ser,
algum dia, quando ele tivesse tudo o que queria. Quando nós tivéssemos tudo que
queríamos,” ela se corrigiu. “Ele costumava apostar, acho que porque ele não conseguia
imaginar perder—isso não fazia parte dos seus sonhos.”
“Os sonhos podem ser coisas perigosas.”
“Não—não.” Ela balançou a cabeça. “Eu não estou dizendo isso direito. Ele era um
irmão maravilhoso. Ele...” Charlotte estava certa; era mais fácil conter as lágrimas se ela
encontrasse alguma coisa, algum objeto, para fixar seu olhar. Ela olhou para as mãos de
Jem. Elas eram finas e longas, e tinha o mesmo desenho na parte de trás de sua mão que
Will tinha, o olho aberto. Ela apontou para ela. “O que isso faz?”
Jem pareceu não notar que ela tinha mudado de assunto. “É uma Marca. Você sabe
o que são elas?” Ele estendeu a mão para ela, com a palma para baixo. “Essa aqui é a
Vidência. Ele limpa a nossa Visão. Nos ajuda a ver o Submundo.” Ele virou a mão e puxou
a manga de sua camisa. Ao longo do interior pálido de seu punho e braço estavam mais
das Marcas, muito pretas contra sua pele branca. Elas pareciam se entremear com o
padrão de suas veias, como se o seu sangue corresse pelas Marcas, também. “Para rapidez,
visão noturna, poder angelical, curar rapidamente,” ele leu em voz alta. “Apesar de seus
nomes serem mais complexos do que isso, e não em inglês.”
“Elas doem?”
“Elas doeram quando eu as recebi. Não doem nada agora.” Ele puxou a manga da
camisa para baixo e sorriu para ela. “Agora, não me diga que essas são todas as perguntas
que você tem.”
Oh, eu tenho mais do que você pensa. “Por que você não consegue dormir?”
Ela viu que o tinha pegado desprevenido; um olhar de hesitação brilhou em seu
rosto antes que ele falasse. Mas por que hesitar? ela pensou. Ele sempre poderia mentir, ou,
simplesmente desviar, como Will teria feito. Mas Jem, ela sentiu instintivamente, não iria
mentir. “Eu tenho sonhos ruins.”

“Eu estava sonhando também,” disse ela. “Eu sonhei com a sua música.”
Ele sorriu. “Foi um pesadelo, então?”
“Não. Foi encantador. A coisa mais linda que eu ouvi desde que cheguei a esta
cidade horrível.”
“Londres não é horrível,” Jem disse bem-humorado. “Você simplesmente tem que
conhecê-la. Você precisa vir comigo para um passeio por Londres um dia. Eu posso
mostrar-lhe as partes que são lindas—que eu amo.”
“Cantando os louvores da nossa bela cidade?” uma voz leve perguntou. Tessa virou
e viu Will, encostado à moldura da porta. A luz do corredor atrás dele delineava seu
cabelo de aparência úmida com ouro. A bainha do seu casaco escuro e suas botas negras
estavam cercadas com lama, como se ele tivesse acabado de chegar de fora, e suas
bochechas estavam coradas. Ele estava sem chapéu, como sempre. “Nós tratamos você
bem aqui, não tratamos, James? Duvido que eu teria esse tipo de sorte em Xangai. Do que
vocês nos chamam lá, de novo?”
“Yang guizi,” disse Jem, quem aparentava não estar surpreso pela súbita aparição de
Will. “‘Diabos estrangeiros’.”
“Ouviu isso, Tessa? Eu sou um diabo. Você também é.” Will desatrelou-se da porta
e perambulou para o quarto. Ele atirou-se na borda da cama, desabotoando seu casaco. Ele
tinha uma capa de ombro ligada a ele, muito elegante, forrada de seda azul.
“Seu cabelo está molhado,” Jem disse. “Onde você estava?”
“Aqui, ali e em toda parte.” Will sorriu. Apesar de sua graça habitual, havia algo
sobre a maneira como ele se movia—o rubor em seu rosto e o brilho nos olhos dele—
“Cozido como uma coruja, não está?” Jem disse, não sem afeto.
Ah, Tessa pensou. Ele está bêbado. Ela tinha visto seu próprio irmão sob a influência
de álcool vezes suficientes para reconhecer os sintomas. De alguma forma, ela se sentiu
vagamente desapontada.
Jem sorriu. “Onde você esteve? O Dragão Azul? A Sereia?”
“A Taverna do Diabo, se você quer saber.” Will suspirou e encostou-se a um dos
postes da cama. “Eu tinha tantos planos para esta noite. A busca da embriaguez cega e
mulheres da vida eram meus objetivos. Mas, infelizmente, não era para ser. Mal eu tinha
consumido minha terceira bebida no Diabo quando fui abordado por uma pequena
criança encantadora vendendo flores, que me pediu dois centavos por uma margarida. O
preço parecia exorbitante, então eu recusei. Quando eu disse isso à garota, ela começou a
me assaltar.”
“Uma pequena menina roubou você?” Disse Tessa.

“Na verdade, ela não era uma pequena menina, no fim das contas, mas um anão em
um vestido com um pendor para a violência, que atende pelo nome de Nigel Seis Dedos.”
“Erro fácil de cometer,” Jem disse.
“Eu o peguei no ato de deslizar a mão no meu bolso," Will disse, gesticulando
animadamente com suas esbeltas mãos com cicatrizes. “Eu não podia deixar que isso
procedesse, naturalmente. A briga começou quase que imediatamente. Eu tinha a
vantagem até que Nigel pulou no bar e me atingiu por trás com um jarro de gim.”
“Ah,” disse Jem. “Isso explica porque seu cabelo está molhado.”
“Foi uma luta justa,” disse Will. “Mas o proprietário do Diabo não viu isso dessa
forma. Jogou-me para fora. Eu não posso voltar por uma quinzena.”
“A melhor coisa para você,” Jem disse sem compaixão. “Fico feliz em ouvir que isso
são negócios como de costume, então. Fiquei preocupado por um momento que você
tivesse voltado para casa mais cedo para ver se eu estava me sentindo melhor.”
“Você parece estar se virando perfeitamente bem sem mim. Na verdade, eu vejo
que você conheceu nossa misteriosa trocadora de forma residente,” Will disse, olhando
para Tessa. Foi a primeira vez que ele reconheceu a presença dela desde que apareceu na
porta. “Você normalmente aparece em quartos de cavalheiros no meio da noite? Se eu
soubesse disso, teria feito campanha mais árdua para ter certeza que Charlotte a deixasse
ficar.”
“Eu não vejo como isso é do seu interesse,” Tessa respondeu. “Especialmente já que
você me abandonou no corredor e deixou-me para encontrar meu próprio caminho de
volta para o meu quarto.”
“E você encontrou o seu caminho para o quarto de Jem ao invés disso?”
“Foi o violino,” Jem explicou. “Ela me ouviu praticando.”
“Ruído terrivelmente lamentoso, não é?” Will perguntou a Tessa. “Eu não sei como
todos os gatos da vizinhança não vêm correndo toda vez que ele toca.”
“Eu achei que foi bonito.”
“Isso porque era,” Jem concordou.
Will apontou um dedo acusador na direção deles. “Vocês estão se juntando contra
mim. É assim que será a partir de agora? Eu serei o estranho de fora? Querido Deus, terei
que me tornar amigo de Jessamine.”
“Jessamine não te suporta,” Jem apontou.
“Henry, então.”

“Henry irá te atear fogo.”
“Thomas,” Will sugeriu.
“Thomas,” Jem começou—e se dobrou, de repente atormentado com um ataque de
tosse explosivo tão violento que ele escorregou do baú para agachar-se sobre os joelhos.
Muito chocada para se mover, Tessa só pôde olhar enquanto Will—sua embriaguez
intensa parecendo desaparecer em uma fração de segundo—pulou da cama e ajoelhou-se
ao lado de Jem, colocando a mão em seu ombro.
“James,” disse ele suavemente. “Onde está?”
Jem levantou uma mão para repeli-lo. Suspiros torturantes sacudiam seu corpo
magro. “Eu não preciso—estou bem—”
Ele tossiu novamente, e um fino borrifo de vermelho se espalhou no chão na frente
dele. Sangue.
A mão de Will apertou sobre o ombro de seu amigo; Tessa viu as articulações
branquearem. “Onde está? Onde você colocou?”
Jem acenou debilmente para a cama. “Em cima—” ele suspirou. “Em cima da
cornija—na caixa—a prateada—”
“Eu vou buscá-la, então.” Foi tão gentil como Tessa nunca tinha ouvido Will falar
qualquer coisa. “Fique aqui.”
“Como se eu fosse a qualquer lugar,” Jem esfregou o dorso da mão na boca; ela veio
com listras vermelhas na Marca do olho aberto.
Levantando-se, Will virou—e viu Tessa. Por um momento ele pareceu puramente
surpreso, como se tivesse esquecido de que ela estava lá.
“Will,” ela sussurrou. “Existe alguma coisa—”
“Venha comigo.” Pegando-a pelo braço, Will a direcionou, gentilmente, em direção
à porta aberta. Ele empurrou-a para o corredor, movendo-se para bloquear sua visão do
quarto. “Boa noite, Tessa.”
“Mas ele está tossindo sangue,” protestou Tessa em voz baixa. “Talvez eu devesse
buscar Charlotte—”
“Não.” Will olhou por cima do ombro, então de volta para Tessa. Ele se inclinou em
direção a ela, com sua mão no ombro dela. Ela podia sentir cada um dos seus dedos
pressionando a carne. Eles estavam próximos o suficiente para que ela pudesse sentir o ar
noturno em sua pele, o cheiro de metal e fumaça e neblina. Algo sobre o jeito que ele
cheirava era estranho, mas ela não podia apontar exatamente o que era.

Will falou em voz baixa. “Ele tem remédio. Irei dá-lo a ele. Não há necessidade de
Charlotte saber sobre isso.”
“Mas se ele está doente—”
“Por favor, Tessa.” Havia uma urgência suplicante nos olhos azuis de Will. “Seria
melhor se você não dissesse nada sobre isso.”
De alguma forma, Tessa percebeu que não podia dizer não. “Eu—tudo bem.”
“Obrigado.” Will soltou o ombro dela, e ergueu a mão para tocar seu rosto—tão
levemente que ela pensou que poderia quase ter imaginado isso. Muito surpresa para
dizer qualquer coisa, ela permaneceu em silêncio enquanto ele fechava a porta entre eles.
Enquanto ouvia a tranca deslizar, ela percebeu por que havia pensado que algo estava
estranho quando Will tinha se inclinado em sua direção.
Apesar de Will ter dito que tinha estado fora a noite toda bebendo—apesar de ele
até mesmo alegar ter tido um jarro de gim arrebentado sobre a sua cabeça—não havia
nenhum cheiro de álcool nele.

Demorou um longo tempo antes de Tessa conseguir dormir de novo. Ela estava
deitada acordada, o Códice aberto ao seu lado, o anjo mecânico tiquetaqueando em seu
peito, e ela assistia a luz do lampião traçar padrões pelo teto.

Tessa estava de pé olhando para si mesma no espelho sobre a penteadeira enquanto
Sophie abotoava os botões na parte de trás do vestido. Na luz da manhã que corria pelas
janelas altas, ela parecia muito pálida, as sombras cinza sob seus olhos destacando-se em
manchas.
Ela nunca tinha sido alguém que olhasse fixamente os espelhos. Uma rápida olhada
para ver que seu cabelo estava bem e que não havia manchas nas roupas. Agora, ela não
conseguia parar de olhar para aquele rosto fino e pálido no espelho. Parecia ondular
enquanto ela olhava para ele, como um reflexo visto na água, como a vibração que a
tomava um pouco antes da Transformação. Agora que ela tinha usado outros rostos, visto
através de outros olhos, como ela poderia alguma vez dizer que qualquer rosto era
realmente seu, mesmo que fosse o rosto que ela tinha ganhado ao nascer? Quando ela se
Transformava de volta para si mesma, como ela poderia saber que não houve nenhuma
ligeira mudança em seu próprio ser, algo que a fazia não quem ela era mais? Ou será que
importava com o que ela se parecia no fim das contas? Seria o seu rosto nada além de uma
máscara de carne, irrelevante para o seu verdadeiro eu?
Ela podia ver Sophie refletida no espelho também; seu rosto estava virado de tal
forma que sua bochecha desfigurada estava para o espelho. Parecia ainda mais terrível na

luz do dia. Era como ver uma pintura encantadora cortada em tiras com uma faca. Tessa
se coçava para perguntar a ela que tinha acontecido, mas sabia que não devia. Em vez
disso ela disse, “Eu sou muito grata a você por me ajudar com o vestido.”
“Grata de estar ao serviço, senhorita.” O tom de Sophie era plano.
“Eu só queria perguntar,” Tessa começou. Sophie enrijeceu. Ela pensa que eu irei lhe
perguntar sobre seu rosto, pensou Tessa. Em voz alta ela disse, “O jeito que você falou com
Will no corredor na noite passada—”
Sophie riu. Foi uma risada curta, mas genuína. “Estou autorizada a falar com o Sr.
Herondale como eu preferir, sempre que preferir. É uma das condições do meu emprego.”
“Charlotte permite que você faça suas próprias condições?”
“Não é simplesmente qualquer pessoa que pode trabalhar no Instituto,” explicou
Sophie. “Você precisa ter um toque da Visão. Agatha tem, e também Thomas. A Sra.
Branwell quis-me logo quando soube que eu tinha, disse que estava procurando uma
criada para a Srta. Jessamine por simplesmente eras. Ela me avisou sobre o Sr. Herondale,
no entanto, disse que ele provavelmente seria rude comigo, e familiar. Ela disse que eu
poderia ser rude de volta, que ninguém se importaria.”
“Alguém deve ser rude com ele. Ele é rude o suficiente com todo mundo.”
“Eu certificaria que é o que a Sra. Branwell pensa.” Sophie compartilhou um sorriso
com Tessa no espelho; ela era absolutamente linda quando sorria, pensou Tessa, com
cicatriz ou sem cicatriz.
“Você gosta de Charlotte, não é?” ela disse. “Ela realmente parece muito amável.”
Sophie deu de ombros. “Na velha casa que eu estava em serviço, a Sra. Atkins—esta
era a governanta—ela iria manter o controle de cada vela que utilizávamos, cada pedaço
de sabão que pegávamos. Tínhamos que usar o sabão até a lasca antes que ela nos desse
um novo pedaço. Mas a Sra. Branwell me dá sabão novo sempre que eu quiser.” Ela disse
isso como se fosse um testemunho firme do caráter de Charlotte.
“Imagino que eles têm um monte de dinheiro aqui no Instituto.” Tessa pensou nas
lindas mobílias e na grandeza do lugar.
“Talvez. Mas eu reformei vestidos suficientes para a Sra. Branwell para saber que
ela não os compra novos.”
Tessa pensou no vestido azul que Jessamine usara para jantar na noite anterior. “E a
Srta. Lovelace?”
“Ela tem seu próprio dinheiro,” disse Sophie sombriamente. Ela afastou-se de
Tessa. “Pronto. Você está apta a ser vista agora.”

Tessa sorriu. “Obrigada, Sophie.”
* * *
Quando Tessa entrou na sala de jantar, os outros já estavam no meio do café da
manhã—Charlotte em um vestido cinza claro simples, espalhando geléia em um pedaço
de torrada; Henry meio escondido atrás de um jornal; e Jessamine pegando delicadamente
uma tigela de mingau. Will tinha um monte de ovos e bacon no seu prato e estava
escavando-os ativamente, que Tessa não pôde deixar de notar que era incomum para
alguém que dizia ter saído para beber a noite toda.
“Nós estávamos falando sobre você,” disse Jessamine assim que Tessa encontrou
um assento. Ela empurrou um porta-torrada de prata sobre a mesa para Tessa. “Torrada?”
Tessa, pegando seu garfo, olhou ao redor da mesa ansiosamente. “O quê sobre
mim?”
“O que fazer com você, é claro. Habitantes do Submundo não podem viver no
Instituto para sempre,” disse Will. “Eu digo para a vendermos aos Ciganos em Hampstead
Heath,” acrescentou ele, voltando-se para Charlotte. “Ouvi dizer que eles compram as
mulheres extras assim como cavalos.”
“Will, pare com isso.” Charlotte levantou os olhos do seu café da manhã. “Isso é
ridículo.”
Will se recostou na cadeira. “Você está certa. Eles nunca iriam comprá-la. Muito
magricela.”
“Já chega,” disse Charlotte. “A Srta. Gray permanecerá. Se não por qualquer outra
razão, que seja por estarmos no meio de uma investigação que requer a ajuda dela. Eu já
enviei uma mensagem à Clave dizendo-lhes que estamos mantendo ela aqui até que esta
questão do Clube Pandemônio seja esclarecida, e seu irmão encontrado. Não está certo,
Henry?”
“Muito,” disse Henry, abaixando o jornal. “O assunto do Pandemônio é uma
prioridade. Absolutamente.”
“É melhor você dizer a Benedict Lightwood, também,” disse Will. “Você sabe como
ele é.”
Charlotte empalideceu ligeiramente, e Tessa se perguntou quem Benedict
Lightwood poderia ser. “Will, hoje eu gostaria que você revistasse o lugar da casa das
Irmãs Sombrias; está abandonado agora, mas ainda vale a pena uma última procura. E eu
quero que você leve Jem com você—”
Com isso, a diversão deixou expressão de Will. “Ele está bem o suficiente?”

“Ele está absolutamente bem o suficiente.” A voz não era de Charlotte. Era de Jem.
Ele tinha entrado na sala em silêncio e estava junto ao aparador, com seus braços cruzados
sobre o peito. Ele estava muito menos pálido do que tinha estado na noite anterior, e o
colete vermelho que ele usava trazia um leve toque de cor ao seu rosto. “Na verdade, ele
está pronto quando você quiser.”
“Você deveria tomar algum café da manhã primeiro,” Charlotte incomodou,
empurrando o prato de bacon em sua direção. Jem sentou, e sorriu para Tessa do outro
lado da mesa. “Oh, Jem—esta é a Srta. Gray. Ela é—”
“Nós nos conhecemos,” Jem disse calmamente, e Tessa sentiu uma onda de calor
em seu rosto. Ela não podia deixar de olhar para ele quando ele pegou um pedaço de pão
e colocou manteiga sobre ele. Parecia difícil de imaginar que alguém de aparência tão
etérea pudesse comer torradas.
Charlotte pareceu intrigada. “Vocês se conheceram?”
“Eu encontrei Tessa no corredor na noite passada e me apresentei. Acho que devo
ter dado a ela um certo susto.” Seus olhos prata encontraram os de Tessa no outro lado da
mesa, cintilantes com divertimento.
Charlotte deu de ombros. “Muito bem, então. Eu gostaria que você fosse com Will.
Enquanto isso, hoje, Srta. Gray—”
“Chame-me de Tessa,” disse Tessa. “Eu preferiria que se todos chamassem.”
“Muito bem, Tessa,” disse Charlotte, com um pequeno sorriso. “Henry e eu
estaremos fazendo uma visita ao Sr. Axel Mortmain, o empregador de seu irmão, para ver
se ele, ou qualquer de seus empregados, podem ter qualquer informação sobre o paradeiro
de seu irmão.”
“Obrigada.” Tessa ficou surpresa. Eles disseram que iriam procurar seu irmão, e
estavam realmente fazendo isso. Ela não esperava que eles o fizessem.
“Já ouvi falar de Axel Mortmain,” disse o Jem. “Ele era um taipan, um dos chefes de
grandes empresas em Xangai. Sua empresa tinha escritórios no Bund.”
“Sim,” disse Charlotte, “os jornais dizem que ele fez sua fortuna com a importação
de seda e chá.”
“Bah.” Jem falou despreocupadamente, mas havia uma crista em sua voz. “Ele fez
sua fortuna com o ópio. Todos eles fizeram. Comprando ópio na Índia, navegando para
Cantão, negociando-o por posses.”
“Ele não estava violando a lei, James.” Charlotte empurrou o jornal sobre a mesa
em direção a Jessamine. “Enquanto isso, Jessie, talvez você e Tessa possam vasculhar o

jornal e anotar tudo o que possa dizer respeito ao inquérito, ou que valha a pena uma
segunda olhada—”
Jessamine recuou do papel como se fosse uma cobra. “Uma dama não lê o jornal. A
coluna social, talvez, ou as notícias do teatro. Não esta sujeira.”
“Mas você não é uma dama, Jessamine—” Charlotte começou.
“Meu Deus,” disse Will. “Tão duras verdades no início da manhã não podem ser
boas para a digestão.”
“O que eu quero dizer,” disse Charlotte, corrigindo-se, “é que você é uma Caçadora
das Sombras em primeiro lugar, e uma dama em segundo.”
“Fale por si mesma,” disse Jessamine, empurrando sua cadeira para trás. Suas
bochechas tinham virado um tom alarmante de vermelho. “Você sabe,” ela disse, “eu não
esperava que você percebesse, mas parece claro que a única coisa que Tessa tem para
colocar em suas costas é este horrível vestido vermelho velho meu, e ele não cabe nela.
Nem sequer me serve mais, e ela é mais alta do que eu sou.”
“Será que Sophie não pode...” Charlotte começou vagamente.
“Você pode diminuir um vestido. É outra coisa torná-lo duas vezes maior do que
ele era no início. Realmente, Charlotte.” Jessamine bufou em exasperação. “Eu acho que
você deveria me deixar levar a pobre Tessa à cidade para pegar algumas roupas novas.
Caso contrário, a primeira vez que ela respirar fundo, esse vestido irá cair dela.”
Will pareceu interessado. “Eu acho que ela deveria tentar isso agora e ver o que
acontece.”
“Oh,” disse Tessa, completamente confusa. Por que Jessamine estava sendo tão
gentil com ela de repente, quando ela tinha sido tão desagradável apenas um dia antes?
“Não, realmente não é necessário—”
“É sim,” Jessamine disse com firmeza.
Charlotte estava sacudindo a cabeça. “Jessamine, enquanto você viver no Instituto,
você é uma de nós, e tem que contribuir—
 “Você é quem insiste que temos de admitir os Habitantes do Submundo que estão
em apuros, e alimentá-los e protegê-los,” disse Jessamine. “Eu estou certa que isso inclui
vesti-los também. Você vê, eu estarei contribuindo—para a manutenção de Tessa.”
Henry se inclinou sobre a mesa em direção a sua esposa. “É melhor deixá-la fazer
isso,” aconselhou ele. “Lembra-se da última vez que tentou fazê-la arrumar as adagas na
sala de armas, e ela as usou para cortar todos os lençóis?”
“Nós precisávamos de novos lençóis,” disse Jessamine, ousada.

“Ah, tudo bem,” Charlotte estourou. “Honestamente, às vezes eu me desanimo com
o conjunto de vocês.”
“O que eu fiz?” Jem perguntou. “Eu acabei de chegar.”
Charlotte colocou seu rosto nas mãos. Enquanto Henry começou a bater em seus
ombros e fazer barulhos calmantes, Will inclinou-se na frente de Tessa até Jem, ignorando-
a completamente enquanto o fazia. “Devemos sair agora?”
“Eu preciso terminar meu chá primeiro,” Jem disse. “De qualquer forma, não vejo
por que você está tão excitado. Você disse que o local não tinha sido usado como um
bordel por eras?”
“Eu quero estar de volta antes do anoitecer,” Will disse. Ele estava inclinado quase
no colo de Tessa, e ela podia sentir o leve aroma de garoto de couro e metal que parecia
unir-se a seu cabelo e pele. “Eu tenho um encontro marcado no Soho35 esta noite, com um
certo alguém atraente.”
35 Área do West End de Londres conhecida por seus locais de entretenimento.
36 Rua de Londres.
37 Sabor de sorvete composto de baunilha com pedaços de caramelo.
38 Instrumento musical que toca uma música predefinida quando se gira uma manivela.
“Meu Deus,” disse Tessa para a nuca dele. “Se você continuar vendo Nigel Seis
Dedos desta forma, ele vai esperar que você declare as suas intenções.”
Jem se engasgou com o chá.

Passar o dia com Jessamine começou tão mal quanto Tessa temia. O trânsito estava
terrível. Não importa quão lotada Nova York pudesse ser, Tessa nunca tinha visto nada
parecido com a bagunça emaranhada da Strand36 ao meio-dia. Carruagens rodavam lado a
lado com carrinhos de fruteiros empilhados com frutas e legumes; mulheres com xales e
carregando cestos rasos cheios de flores mergulhavam loucamente para dentro e fora do
trânsito enquanto tentavam interessar os ocupantes dos vários veículos às suas
mercadorias; e táxis paravam no meio do trânsito para que os motoristas pudessem gritar
um com o outro pelas janelas. Esse ruído adicionado ao já impressionante barulho—
vendedores ambulantes de sorvete gritando “Hokey-Pokey37, um centavo a bola,” meninos
vendedores de jornal gritando a manchete mais recente do dia, e alguém em algum lugar
tocando um realejo38. Tessa se perguntou como todos que viviam e trabalhavam em
Londres não eram surdos.
Enquanto ela olhava pela janela, uma mulher velha carregando uma grande gaiola
de metal cheia de pássaros coloridos esvoaçantes saiu ao lado de sua carruagem. A velha
virou a cabeça, e Tessa viu que sua pele era verde como as penas de um papagaio, seus
olhos arregalados e completamente negros como os de um pássaro, o cabelo dela um

choque de penas multicoloridas. Tessa se retraiu, e Jessamine, seguindo o seu olhar,
franzindo o cenho. “Feche as cortinas,” disse ela. “Isto mantém a poeira fora.” E, esticando
a mão na frente de Tessa, Jessamine fez exatamente isso.
Tessa olhou para ela. A boca pequena de Jessamine estava definida em uma linha
fina. “Você viu—?” Tessa começou.
“Não,” disse Jessamine, atirando a Tessa o que ela tinha visto ser referido
frequentemente em romances como um olhar “de matar”. Tessa olhou rapidamente para
longe.
As coisas não melhoraram quando elas finalmente chegaram ao elegante West End.
Deixando Thomas pacientemente esperando com os cavalos, Jessamine arrastou Tessa
para dentro e fora de vários salões de costureiras, olhando para design após design,
assistindo enquanto a assistente mais bonita da loja era escolhida para modelar de
exemplo. (Nenhuma verdadeira dama iria deixar um vestido que poderia ter sido usado
por uma estranha tocar sua pele.) Em cada estabelecimento ela deu um nome falso
diferente e uma história diferente; em cada estabelecimento as proprietárias pareciam
encantadas com sua beleza e óbvia riqueza e não conseguiam ajudá-la com rapidez
suficiente. Tessa, ignorada na maior parte, se escondia nas laterais, meio-morta de tédio.
Em um salão, posando como uma jovem viúva, Jessamine até mesmo analisou o
design de um vestido preto de luto de crepe e renda. Tessa tinha que admitir que ele teria
realçado bem sua palidez loira.
“Você ficaria absolutamente linda neste, e não poderia deixar de fazer um novo
casamento vantajoso.” A costureira piscou de forma conspiratória. “Na verdade, você sabe
do que chamamos este desenho? ‘A Armadilha Recolocada’.”
Jessamine riu, a costureira sorriu claramente, e Tessa considerou correr para a rua e
acabar com tudo lançando-se em baixo de uma charrete. Como se consciente de seu
aborrecimento, Jessamine olhou para ela com um sorriso condescendente. “Eu também
estou procurando alguns vestidos para a minha prima da América,” disse ela. “As roupas
de lá são simplesmente horríveis. Ela é reta como um alfinete, o que não ajuda, mas eu
tenho certeza que você pode fazer algo com ela.”
A costureira piscou como se esta fosse a primeira vez que ela tinha notado Tessa, e
talvez fosse. “Você gostaria de escolher um desenho, minha senhora?”
O turbilhão de atividade seguinte foi uma espécie de revelação para Tessa. Em
Nova York suas roupas haviam sido compradas pela sua tia—peças prontas que tinham
que ser alteradas para servir, e sempre material barato em tons monótonos de cinza escuro
ou azul marinho. Ela nunca havia aprendido, como estava fazendo agora, que azul era
uma cor que combinava com ela e destacava-lhe os olhos azul-acinzentados, ou que ela
devia vestir rosa-pink para colocar cor em suas bochechas. Enquanto suas medidas eram
tomadas em meio a um borrão de discussão de vestidos princesa, corpetes couraça, e

alguém chamado Sr. Charles Worth, Tessa levantou-se e olhou para seu rosto no espelho,
meio-esperando suas feições para dar um passo em falso e mudarem, reformando-se. Mas
ela permaneceu ela mesma, e ao final de tudo isso ela tinha quatro vestidos novos para
serem entregues no final da semana—um rosa, um amarelo, um listrado azul e branco com
botões de chifres, e um de seda dourada e preta—bem como dois casacos da moda, um
com tule frisado adornando os punhos.
“Eu suspeito que você pode realmente parecer bonita nessa última roupa,” disse
Jessamine enquanto elas subiam de volta para dentro do carro. “É incrível o que a moda
pode fazer.”
Tessa contou silenciosamente até dez antes de responder. "Eu estou muito grata a
você por tudo, Jessamine. Vamos voltar para o Instituto agora?"
Com isso, o brilho saiu do rosto de Jessamine. Ela realmente odeia lá, Tessa pensou,
intrigada mais do que qualquer outra coisa. O que era tão terrível sobre o Instituto? É claro
que toda a sua razão de existir era peculiar o suficiente, certamente, mas Jessamine tinha
que estar acostumada a isso por agora. Ela era uma Caçadora das Sombras como o resto.
“Está um dia tão bonito,” Jessamine disse, “e você quase não viu nada de Londres.
Acho que um passeio no Hyde Park seria bom. E depois disso, nós poderíamos ir para a
Gunter e fazer Thomas pegar alguns sorvetes para nós!”
Tessa olhou para fora da janela. O céu estava nublado e cinzento, atravessado por
linhas de azul onde as nuvens se afastavam momentaneamente uma da outra. De
nenhuma forma aquele seria considerado um dia lindo em Nova York, mas Londres
parecia ter diferentes padrões de clima. Além disso, ela devia algo a Jessamine agora, e a
última coisa no mundo que a outra menina queria fazer, evidentemente, era ir para casa.
“Eu adoro parques,” disse Tessa.
Jessamine quase sorriu.
* * *
“Você não contou à Srta. Gray sobre as engrenagens,” disse Henry.
Charlotte retirou o olhar de suas anotações e suspirou. Sempre tinha sido um ponto
sensível para ela que, não importasse quantas vezes ela tinha solicitado uma segunda, a
Clave permitia ao Instituto somente uma carruagem. Era uma boa carruagem—um coche
de cidade—e Thomas era um excelente motorista. Mas significava que quando os
Caçadores das Sombras do Instituto seguiam caminhos separados, como eles estavam
fazendo hoje, Charlotte era forçada a pedir emprestada uma carruagem de Benedict
Lightwood, que estava longe de ser sua pessoa favorita. E a única carruagem que ele
estava disposto a lhe emprestar era pequena e desconfortável. Pobre Henry, que era tão
alto, que estava batendo a cabeça contra o teto baixo.

“Não,” disse ela. “A pobre moça, ela parecia tão atordoada já. Eu não poderia dizer-
lhe que os dispositivos mecânicos que encontramos no porão tinham sido fabricados pela
empresa que empregou o irmão dela. Ela está tão preocupada com ele. Pareceu-me mais
do que ela seria capaz de suportar.”
“Pode não significar nada, querida,” Henry lembrou. “Mortmain e Companhia
manufatura a maior parte das ferramentas de maquinário utilizadas na Inglaterra.
Mortmain é realmente algo como um gênio. Seu sistema patenteado para a produção de
rolamentos de esferas—”
“Sim, sim.” Charlotte tentou manter a impaciência fora de sua voz. “E talvez
devêssemos ter dito a ela. Mas achei melhor falarmos com o Sr. Mortmain primeiro e
recolher as impressões que pudermos. Você está correto. Ele pode não saber de nada, e
pode haver pouca conexão. Mas seria muita coincidência, Henry. E eu sou muito cautelosa
sobre coincidências.”
Ela olhou de volta para as notas que tinha feito sobre Axel Mortmain. Ele era filho
único (e provavelmente, apesar de as notas não especificarem, ilegítimo) do Dr.
Hollingworth Mortmain, quem em poucos anos havia subido de posição humilde de
cirurgião naval em um navio mercante com destino à China para um rico negociante
privado, comprando e vendendo especiarias e açúcar, seda e chá, e—isso não foi
declarado, mas Charlotte estava de acordo com Jem sobre a questão—provavelmente ópio.
Quando o Dr. Mortmain morreu, seu filho, Axel, de apenas 20 anos de idade, herdou sua
fortuna, que ele prontamente investiu na construção de uma frota de navios mais rápidos
e menores do que quaisquer outros que operam no mar. Dentro de uma década, o jovem
Mortmain dobrou, e então quadruplicou, as riquezas de seu pai.
Em anos mais recentes, ele tinha se retirado de Xangai para Londres, tinha vendido
seus navios comerciais, e usado o dinheiro para comprar uma grande empresa que
produzia os dispositivos mecânicos necessários para fazer relógios, tudo desde relógios de
bolso até relógios antigos. Ele era um homem muito rico.
A carruagem estacionou na frente de uma de uma fileira de casas brancas com
terraços, cada um com amplas janelas com vista para a praça. Henry se inclinou para fora
da carruagem e leu o número de uma placa de bronze afixada à coluna do portão da
frente. “Deve ser esta.” Ele alcançou a porta da carruagem.
“Henry,” disse Charlotte, colocando a mão em seu braço. “Henry, mantenha em
mente o que falamos esta manhã, tudo bem?”
Ele sorriu com tristeza. “Farei o meu melhor para não envergonhá-la ou atrapalhar
nas investigações. Sinceramente, às vezes me pergunto por que você me traz junto para
essas coisas. Você sabe que eu sou um trapalhão quando se trata de pessoas.”
“Você não é um trapalhão, Henry,” Charlotte disse gentilmente. Ela ansiava por
estender a mão e afagar seu rosto, empurrar seu cabelo para trás e tranquilizá-lo. Mas se

segurou. Ela sabia—tinha sido avisada vezes o suficiente—não forçar em Henry afeição
que ele provavelmente não queria.
Deixando o carro com o motorista dos Lightwoods, eles subiram as escadas e
tocaram a campainha; a porta foi aberta por um criado vestindo um uniforme azul escuro
e uma expressão severa. “Bom dia,” disse ele bruscamente. “Posso perguntar quanto aos
seus negócios aqui?”
Charlotte olhou de soslaio para Henry, que estava olhando para além do criado
com uma espécie de expressão sonhadora. Deus sabia em quê sua mente estava—
engrenagens, mecanismos e engenhocas, sem dúvida—mas certamente não estava na
situação atual deles. Com um suspiro interno ela disse, “Eu sou a Sra. Gray, e este é meu
marido, Sr. Henry Gray. Estamos em busca de um primo nosso—um jovem chamado
Nathaniel Gray. Nós não temos notícias dele há quase seis semanas. Ele é, ou era, um dos
empregados do Sr. Mortmain—”
Por um momento—que poderia ter sido sua imaginação—ela pensou ter visto algo,
uma centelha de inquietação, nos olhos do criado. “O Sr. Mortmain possui uma empresa
bastante grande. Você não pode esperar que ele saiba o paradeiro de todos os que
trabalham para ele. Isso seria impossível. Talvez você devesse perguntar à polícia.”
Charlotte estreitou os olhos. Antes que eles houvessem deixado o Instituto, ela
havia traçado o interior dos seus braços com as runas da persuasão. Era raro um mundano
que fosse totalmente insensível à sua influência. “Nós fomos, mas eles não parecem ter
progredido nada com o caso. É tão terrível, e nós estamos tão preocupados com Nate, você
vê. Se pudéssemos ver o Sr. Mortmain por um momento...”
Ela relaxou assim que o criado balançou a cabeça lentamente. “Informarei o Sr.
Mortmain de sua visita,” disse ele, recuando para permitir que eles entrassem. “Por favor,
aguardem no vestíbulo.” Ele parecia assustado, como se surpreendido com sua própria
aquiescência.
Ele abriu a porta, e Charlotte seguiu-o, Henry atrás dela. Embora o criado tenha
falhado em oferecer a Charlotte um assento—uma falha de polidez que ela atribuiu a
confusão provocada pelas runas da persuasão—ele havia pegado o casaco e chapéu de
Henry, e o xale de Charlotte, antes de deixar os dois a olhar com curiosidade em torno da
porta de entrada.
A sala tinha tetos altos, mas não ornamentados. Também estavam ausentes as
paisagens pastorais e retratos de família esperados. Em vez disso, penduradas no teto
estavam longas faixas de seda pintadas com os caracteres chineses para boa sorte, um
prato indiano de prata martelada apoiado em um canto, e esboços de papel e tinta de
marcos famosos revestiam as paredes. Charlotte reconheceu o Monte Kilimanjaro, as
pirâmides do Egito, o Taj Mahal, e uma seção da Grande Muralha da China. Mortmain era
claramente um homem que viajava muito e estava orgulhoso do fato.

Charlotte virou para olhar para Henry para ver se ele estava observando o que ela
estava, mas ele estava olhando vagamente em direção as escadas, perdido em sua própria
mente novamente; antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o criado se rematerializou,
um sorriso agradável no rosto. “Por favor, venham por aqui.”
Henry e Charlotte seguiram o criado para o final do corredor, onde ele abriu uma
porta de carvalho polido e conduziu-os à sua frente.
Eles se encontraram em um grande escritório, com amplas janelas com vista para a
praça. Cortinas verde-escuras estavam abertas para deixar entrar a luz, e pelas vidraças
Charlotte podia ver sua carruagem emprestada esperando por eles na calçada, o cavalo
com sua cabeça mergulhada em um saco de focinho, o motorista lendo um jornal em seu
assento. Os ramos verdes de árvores moviam-se no outro lado na rua, uma copa
esmeralda, mas era silencioso. As janelas bloqueavam todos os sons, e não havia nada
audível nesta sala, exceto o fraco tique-taque de um relógio de parede com Mortmain e
Companhia gravado na face em ouro.
A mobília era escura, uma madeira pesada de fibras escuras, e as paredes eram
forradas com cabeças de animais—um tigre, um antílope e um leopardo—e mais
paisagens estrangeiras. Havia uma grande escrivaninha de mogno no centro da sala,
organizada com pilhas de papel, cada pilha sobrecarregada com uma engrenagem de
cobre pesada. Um globo de bronze carregando a legenda GLOBO TERRESTRE WYLDE,
COM AS ÚLTIMAS DESCOBERTAS! ancorava um canto da mesa, as terras sob o domínio
do império britânico destacadas em um vermelho rosado. Charlotte sempre achou a
experiência de examinar os globos mundanos uma experiência estranha. O mundo deles
não era da mesma forma que o que ela conhecia.
Atrás da escrivaninha estava sentado um homem, que se pôs de pé quando eles
entraram. Era uma figura pequena de aparência enérgica, um homem de meia-idade com
cabelos tornando-se grisalho adequadamente nas costeletas. Sua pele parecia queimada
pelo vento, como se ele tivesse estado fora muitas vezes no mau tempo. Seus olhos eram
de um cinza muito, muito claro, sua expressão agradável; apesar de suas roupas elegante e
aparentemente caras, era fácil imaginá-lo no convés de um navio, olhando atentamente
para a distância. “Boa tarde,” disse ele. “Walker me deu a entender que vocês estão
procurando pelo Sr. Nathaniel Gray?”
“Sim,” disse Henry, para surpresa de Charlotte. Henry raramente, se alguma vez,
assumiu a liderança nas conversas com estranhos. Ela se perguntou se isso tinha alguma
coisa a ver com o diagrama aparentemente intrigante sobre a mesa. Henry estava olhando
para ele com um desejo tão ardente como se fosse comida. “Nós somos os primos dele,
sabe.”
“Nós apreciamos você tomar esse tempo para conversar conosco, Sr. Mortmain,”
Charlotte acrescentou apressadamente. “Sabemos que ele era apenas um empregado seu,
um de dezenas—”

“Centenas,” disse Mortmain. Ele tinha uma voz de barítono agradável, que no
momento pareceu muito divertida. “É verdade que não posso acompanhar a todos eles.
Mas eu me lembro do Sr. Gray. Embora eu deva dizer que, se ele alguma vez mencionou
que tinha primos que eram Caçadores das Sombras, eu não posso dizer que me lembro.”


6
Terra Estranha


Nós não devemos olhar para os goblins
Nós não devemos comprar as frutas deles:
Quem sabe sobre que solo se alimentaram
Suas sedentas raízes?
—Christina Rossetti, Mercado Goblin


“Sabe,” disse Jem, “isso aqui não é, de forma alguma, como eu achei que um bordel
seria.”
Os dois rapazes se encontravam na entrada do que Tessa chamava de Casa
Sombria, ao largo de Whitechapel High Street. Parecia mais suja e sombria do que Will se
lembrava, como se alguém tivesse atirado sobre ela uma nova camada de sujeira. “O que
você estava imaginando exatamente, James? Damas da noite acenando das sacadas?
Estátuas nuas adornando a entrada?’’
‘’Suponho,’’ Jem disse suavemente, ‘’que eu estava esperando algo que parecesse
um pouco menos monótono.”
Will havia pensado a mesma coisa na primeira vez que esteve lá. A esmagadora
sensação que se tinha dentro da Casa Sombria era de que aquele era um lugar em que
ninguém jamais havia pensado como um lar. As janelas fechadas pareciam oleosas, as
cortinas encardidas e sujas.
Will enrolou suas mangas. “Nós provavelmente teremos que derrubar a porta…”
“Ou,” disse Jem, estendendo a mão e girando a maçaneta, “não.”
A porta se abriu em um retângulo de escuridão.
“Agora, isso é simples preguiça,” disse Will. Tirando uma adaga de caça de seu
cinto, ele pisou cautelosamente dentro da casa, e Jem o seguiu, mantendo um forte aperto
em sua bengala com cabo de jade. Eles tendiam a ter turnos indo primeiro em situações

perigosas, porém Jem preferia ficar na retaguarda na maior parte do tempo—Will sempre
se esquecia de olhar para trás.
A porta se fechou atrás deles, aprisionando-os em uma meia-luz melancólica. A
entrada estava quase igual à primeira vez que Will havia estado lá—a mesma escada de
madeira conduzindo para cima, o mesmo piso rachado, mas ainda elegante de mármore, o
mesmo ar denso de poeira.
Jem ergueu sua mão e sua luz de bruxa iluminou-se em vida, assustando um grupo
de besouros negros. Eles correram precipitadamente pelo chão, fazendo com que Will
fizesse uma careta. “Lugar legal para viver, não? Esperemos que eles tenham deixado para
trás algo além de sujeira. Endereços de correspondência, alguns membros decepados, uma
prostituta ou duas...”
“Certamente. Talvez, se formos afortunados, ainda podemos pegar sífilis.”
“Ou varíola de demônio,” Will sugeriu alegremente, tentando abrir a porta sob a
escada. Esta se abriu, destrancada como a porta da frente havia estado. “Sempre há varíola
de demônio.”
 “Varíola de demônio não existe.”
“Oh, vós de pouca fé,” disse Will, desaparecendo na escuridão sob as escadas.
Juntos eles procuraram pelo porão e os quartos do térreo meticulosamente, achando
pouco além de entulho e pó. Tudo havia sido retirado do quarto onde Tessa e Will lutaram
contra as Irmãs Sombrias; após uma longa procura Will descobriu algo na parede que
parecia com uma mancha de sangue, mas parecia não haver nenhuma fonte para aquilo, e
Jem salientou que podia ser somente tinta.
Abandonando o porão, eles foram ao andar de cima, e acharam um longo corredor
alinhado com portas que era familiar a Will. Ele havia percorrido-o com Tessa às suas
costas. Ele entrou no primeiro quarto à direita, que havia sido o quarto onde ele a havia
encontrado. Nenhum sinal restava da garota de olhos selvagens que o havia atingido com
um jarro florido. O quarto estava vazio, a mobília tendo sido levada para pesquisa na
Cidade Silenciosa. Quatro recortes escuros no chão indicavam aonde uma cama havia uma
vez estado.
Os outros quartos eram basicamente o mesmo. Will estava tentando abrir a janela
de um quando ouviu Jem gritar que ele devia vir rápido; ele estava no último quarto à
esquerda. Will apressou-se e achou Jem no centro de um grande cômodo quadrado, sua
luz de bruxa brilhando em sua mão. Ele não estava só. Uma peça de mobília restava lá—
uma poltrona estofada, e sentada nela estava uma mulher.
Ela era jovem—provavelmente não mais velha que Jessamine—e usava um vestido
estampado barato, seu cabelo agrupado em sua nuca. Era um cabelo de um castanho

maçante, e suas mãos estavam nuas e vermelhas. Seus olhos estavam arregalados e com
um olhar fixo.
“Argh,” disse Will, muito surpreso para dizer qualquer outra coisa. “Ela está...?”
“Está morta,” disse Jem.
“Você tem certeza?” Will não conseguia tirar seus olhos do rosto da mulher. Ela
estava pálida, mas não a palidez de um cadáver, e as mãos jaziam entrelaçadas em seu
colo, os dedos suavemente dobrados, não esticados com o rigor da morte. Ele se
aproximou e colocou uma mão no braço dela. Estava rígido e frio sob os dedos dele. “Bem,
ela não está respondendo aos meus avanços,” ele observou mais vivamente do que se
sentia, “então deve estar morta.”
“Ou ela é uma mulher de bom gosto e juízo.” Jem ajoelhou-se e olhou para o rosto
da mulher. Os olhos dela eram de um azul pálido e protuberante; eles olhavam além dele,
parecendo tão mortos quanto olhos pintados. “Senhorita,” ele disse, e alcançou o pulso
dela, com a intenção de tirar a pulsação.
Ela se moveu, estremecendo sob a mão dele, e deixou escapar um gemido baixo e
inumano.
Jem se levantou apressadamente. “O que em—”
A mulher levantou a mão. Seus olhos ainda estavam inexpressivos, sem foco, mas
seus lábios se moveram com um rangido. “Cuidado!” ela exclamou. Sua voz ecoou pelo
quarto, e Will, com um grito, pulou para trás.
A voz da mulher soava como engrenagens movendo-se uma contra a outra.
“Cuidado, Nefilins. Como vocês destroem os outros, serão destruídos. Seu anjo não pode
protegê-los contra aquilo que nem Deus nem o diabo fez, um exército nascido nem do Céu
nem do Inferno. Cuidado com a mão do homem. Cuidado.” A voz dela cresceu para um
guincho alto, afiado, e ela se balançou para frente e para trás na cadeira, como uma
marionete sendo puxada por linhas invisíveis. “CUIDADO CUIDADO
CUIDADOCUIDADOCUIDADO...”
“Bom Deus,” murmurou Jem.
“CUIDADO!” a mulher guinchou uma última vez, e cambaleou para frente,
estatelando-se no chão, abruptamente silenciada. Will olhou, boquiaberto.
“Ela está...?” ele começou.
“Sim,” Jem disse. “Eu acho que ela está completamente morta dessa vez.”
Mas Will estava balançando sua cabeça. “Morta. Sabe, eu não acho.”
“O que você acha, então?”

Ao invés de responder, Will ajoelhou-se ao lado do corpo. Ele pôs dois dedos do
lado da bochecha da mulher e virou a cabeça dela gentilmente até que o encarasse. A boca
dela estava aberta, o olho direito encarando o teto. O esquerdo estava suspenso no meio
de sua bochecha, preso à sua cavidade por uma espiral de fio de cobre.
“Ela não está viva,” disse Will, “mas não está morta, também. Ela pode ser... como
um dos dispositivos de Henry, eu acho.” Ele tocou o rosto dela. “Quem poderia ter feito
isso?”
“Não tenho ideia. Mas ela nos chamou de Nefilins. Ela sabia o que nós somos.”
“Ou alguém sabia,” disse Will. “Eu não creio que ela saiba alguma coisa. Acho que
ela é uma máquina, como um relógio. E ela se quebrou.” Ele levantou-se. “De qualquer
forma, é melhor que a levemos ao Instituto. Henry irá querer dar uma olhada nela.”
Jem não respondeu; ele estava olhando para a mulher no chão. Os pés dela estavam
nus abaixo da bainha do vestido, e sujos. A boca estava aberta e ele podia ver o cintilar de
metal dentro da garganta. O olho dela balançava assustadoramente no fio de cobre
enquanto em algum lugar fora das janelas o relógio de uma igreja batia o meio-dia.

Uma vez dentro do parque, Tessa descobriu-se começando a relaxar. Ela não havia
estado em um lugar verde, quieto desde que havia chegado a Londres, e se descobriu
quase relutantemente encantada pela vista da grama e das árvores, apesar de achar o
parque nem de perto tão belo quando o Central Park em Nova York. O ar não era tão
enevoado ali quanto no resto da cidade, e o céu era de uma cor quase azul.
Thomas esperava com a carruagem enquanto as garotas faziam seu passeio.
Enquanto Tessa andava ao lado de Jessamine, a outra garota mantinha um constante fluxo
de tagarelice. Elas estavam caminhando por uma ampla via que, Jessamine informou, era
inexplicavelmente chamada de Rotten Row39. Apesar do nome nada favorável, aquele era
aparentemente o lugar para ver e ser visto. No centro da via estavam homens e mulheres,
montados em cavalos, belamente vestidos, as mulheres com seus véus voando, suas
risadas ecoando no ar do verão. Nos lados da avenida andavam outros pedestres.
Cadeiras e bancos ficavam abaixo das árvores, e mulheres sentavam-se girando guarda-
chuvas coloridos e bebericando água de hortelã. Junto delas homens barbudos fumavam,
preenchendo o ar com o cheiro de tabaco misturado com grama cortada e cavalos.
39 Ala Podre, em tradução literal.
Apesar de ninguém ter parado para falar com elas, Jessamine parecia saber quem
eram todos—quem estava se casando, quem estava procurando um marido, quem estava
tendo um caso com a esposa deste ou daquele e todos sabiam disso. Era um pouco
vertiginoso, e Tessa ficou agradecida quando elas saíram da via para um caminho estreito
levando ao parque.

Jessamine deslizou seu braço pelo de Tesssa e deu um aperto amigável em sua mão.
“Você não sabe que alívio é finalmente ter outra garota por perto,” ela disse alegremente.
“Eu quero dizer, Charlotte é simpática, mas ela é entediante e casada.”
“Tem a Sophie.”
Jessamine bufou. “Sophie é uma empregada.”
“Eu conheci garotas que eram bastante amigáveis com suas damas de companhia,”
Tessa protestou. Isso não era precisamente verdade. Ela havia lido sobre tais garotas,
apesar de nunca ter conhecido nenhuma. Ainda assim, de acordo com romances, a
principal função de uma dama de companhia era lhe ouvir enquanto você abria seu
coração sobre sua trágica vida amorosa, e ocasionalmente vestir suas roupas e fingir ser
você para que você pudesse evitar ser capturada por um vilão. Não que Tessa imaginasse
Sophie participando de nada disso em nome de Jessamine.
“Você viu como o rosto dela é. Ser medonha a tornou azeda. Uma dama de
companhia deve ser bela, e falar francês, e Sophie não pode fazer isso também. Eu disse
isso a Charlotte quando ela trouxe a garota pra casa. Charlotte não me escuta. Ela nunca
escuta.”
“Não posso imaginar por quê,” disse Tessa. Elas haviam entrado em um caminho
estreito que se dobrava entre as árvores. O brilho do rio era visível por elas, e os ramos
acima se amarravam juntos formando uma abóbada, bloqueando o brilho do sol.
“Eu sei! Eu também não!” Jessamine ergueu seu rosto, deixando a pouca luz do sol
que passava pela abóbada dançar por sua pele. “Charlotte nunca escuta ninguém. Ela está
sempre controlando o pobre Henry. Eu não faço ideia de porque ele se casou com ela.”
“Eu assumo que seja porque ele a amava?”
Jessamine bufou. “Ninguém acha isso. Henry queria acesso ao Instituto para que ele
pudesse trabalhar em seus pequenos experimentos no porão e não ter que brigar. E eu não
acho que ele se importava de se casar com Charlotte—eu não acho que havia alguma outra
pessoa com quem ele quisesse se casar—mas se outra pessoa estivesse no comando do
Instituto, ele teria se casado com ela ao invés.” Ela fungou. “E então tem os garotos—Will
e Jem. Jem é agradável o bastante, mas você sabe como os estrangeiros são. Não realmente
dignos de confiança e basicamente egoístas e preguiçosos. Ele está sempre no quarto dele,
fingindo estar doente, recusando-se a fazer qualquer coisa para ajudar,” Jessamine
continuou alegremente, aparentemente se esquecendo do fato de que Jem e Will estavam
fora numa busca pela Casa Sombria neste exato momento, enquanto ela passeava no
parque com Tessa. “E Will. Bonito o suficiente, mas se comporta como um lunático a
metade do tempo; é como se ele tivesse sido criado por selvagens. Ele não tem nenhum
respeito por nada e por ninguém, nenhum conceito da maneira que um cavalheiro deve se
comportar. Eu suponho que é porque ele é galês.”

Tessa estava desnorteada. “Galês?“ Essa é uma coisa ruim pra se ser? Ela estava a
ponto de acrescentar, mas Jessamine, pensando que Tessa estava duvidando das origens
de Will, continuou contentemente.
“Oh, sim. Com aquele cabelo preto dele, você pode absolutamente perceber. A mãe
dele era uma mulher galesa. O pai dele se apaixonou por ela, e foi isso. Ele deixou os
Nefilins. Talvez ela tenha lançado um feitiço nele.” Jessamine riu. “Eles tem todo tipo de
magia estranha em Gales, você sabe.”
Tessa não sabia. “Você sabe o que aconteceu com os pais de Will? Eles estão
mortos?”
“Eu suponho que devem estar, não devem, ou eles teriam vindo procurar por ele?”
Jessamine enrugou a sobrancelha. “Ugh. De qualquer forma. Eu não quero mais falar do
Instituto.” Ela se virou para encarar Tessa. “Você deve estar se perguntando por que eu
estou sendo tão simpática com você.”
“Er...” Tessa tinha estado se perguntando mesmo. Nos livros, as garotas como ela,
garotas cujas famílias um dia tiveram dinheiro, mas haviam caído em tempos difíceis,
eram frequentemente pegas por bons e ricos protetores e eram providas com novas roupas
e uma boa educação. (Não, Tessa pensou, que houvesse algo errado com a educação dela.
Tia Harriet havia sido tão versada como qualquer governanta.) É claro, Jessamine não
lembrava de forma alguma as santas velhas senhoras de tais contos, cujos atos de
generosidade eram totalmente altruístas. “Jessamine, você já leu The Lamplighter40?”
40 Romance de 1854, de Maria Susanna Cummins. Literalmente, traduz-se para O Acendedor de Lampiões.
“Certamente não. Garotas não devem ler romances,” disse Jessamine, no tom de
algué recitando algo que ela havia ouvido em algum outro lugar. “De qualquer forma,
Srta. Gray, eu tenho uma proposta para você.”
“Tessa,” Tessa corrigiu automaticamente.
“Claro, pois nós já somos melhores amigas,” Jessamine disse, “e devemos logo ser
ainda mais.”
Tessa observou a outra garota com confusão. “O que você quer dizer?”
“Como estou certa de que o horrível Will já lhe disse, meus pais, meus queridos
papai e mamãe, estão mortos. Mas eles me deixaram uma não inconsiderável quantia de
dinheiro. Foi colocado em uma poupança para mim até meu aniversário de dezoito anos,
que é em questão de meses. Você vê o problema, é claro.”
Tessa, que não via o problema, disse, “Vejo?”

“Eu não sou uma Caçadora das Sombras, Tessa. Desprezo tudo sobre os Nefilins.
Eu nunca quis ser uma, e meu maior desejo é deixar o Instituto e nunca mais falar com
uma alma que reside lá.”
“Mas eu pensei que seus pais fossem Caçadores das Sombras...”
“Uma pessoa não tem que ser um Caçador das Sombras se não quiser,” Jessamine
estourou. “Meus parentes não queriam. Eles deixaram a Clave quando eram novos.
Mamãe sempre foi perfeitamente enfática. Ela nunca quis os Caçadores das Sombras perto
de mim. Dizia que nunca ia desejar uma vida daquelas para uma garota. Ela queria outras
coisas pra mim. Que eu fizesse meu debut, conhecesse a Rainha, achasse um bom marido,
e tivesse encantadores bebezinhos. Uma vida normal.” Ela disse as palavras com um tipo
selvagem de fome. “Existem outras garotas nessa cidade exatamente agora, Tessa, outras
garotas da minha idade, que não são tão bonitas quanto eu, que estão dançando e
flertando e rindo e capturando maridos. Elas têm aulas de francês. Eu tenho aulas de
horrorosas línguas demoníacas. Não é justo.”
“Você ainda pode se casar.” Tessa estava confusa. “Qualquer homem iria—”
“Eu poderia me casar com um Caçador das Sombras.” Jessamine cuspiu a palavra. “E
viver como Charlotte, tendo que me vestir como um homem e lutar como um homem. É
repugnante. Mulheres não devem se comportar assim. Nós devemos dirigir graciosamente
lares amáveis. Decorá-los de uma maneira que seja agradável para nossos maridos.
Animá-los e confortá-los com nossa presença gentil e angélica.”
Jessamine não soava nem gentil nem angélica, mas Tessa absteve-se de mencionar
isso. “Eu não vejo como eu...”
Jessamine segurou o braço de Tessa ferozmente. “Você não vê? Eu posso deixar o
Instituto, Tessa, mas eu não posso viver sozinha. Não seria respeitável. Talvez se eu fosse
uma viúva, mas eu sou só uma garota. Isso só não é feito. Mas se eu tivesse uma
companhia—uma irmã—”
“Você quer que eu finja ser sua irmã?” Tessa guinchou.
“Por que não?” Jessamine disse, como se essa fosse a sugestão mais razoável do
mundo. “Ou poderia ser minha prima da América. Sim, isso iria funcionar. Você vê,” ela
adicionou, de um modo mais prático, “não é como se você tivesse outro lugar para ir, não
é? Eu tenho quase certeza de que capturaríamos maridos em pouquíssimo tempo.”
Tessa, cuja cabeça tinha começado a doer, desejou que Jessamine cessasse de falar
de ‘capturar’ maridos do jeito que alguém pega uma gripe, ou um gato que fugiu.
“Eu poderia lhe apresentar às melhores pessoas,” Jessamine continuou. “Haveria
bailes, e jantares—” Ela parou, olhando ao redor em repentina confusão. “Mas—onde
estamos?”

Tessa olhou em volta. O caminho havia estreitado. Agora era uma trilha escura que
passando por entre árvores altas. Tessa não podia mais ver o céu, nem ouvir o barulho de
vozes. Ao lado dela, Jessamine havia parado. Seu rosto se contraiu com medo súbito. “Nós
nos desviamos do caminho,” ela murmurou.
“Bem, nós podemos achar o caminho de volta, não podemos?” Tessa girou,
procurando por um espaço entre as árvores, um caminho de luz do sol. “Eu acho que nós
viemos de lá—”
Jessamine segurou o braço de Tesse de repente, seus dedos como garras. Algo—
não, alguém—havia aparecido diante delas no caminho.
A figura era pequena, tão pequena que por um momento Tessa pensou que
estivessem encarando uma criança. Mas quando a forma deu um passo à frente em direção
à luz, ela viu que era um homem—um homem arqueado, decaído, vestido como um
mercador, em roupas puídas, um chapéu gasto enfiado em sua cabeça. Seu rosto era
enrugado e branco, como uma maçã velha coberta de bolor, e seus olhos eram de um preto
brilhante entre pesadas dobras de pele.
Ele riu, mostrando dentes tão afiados quanto lâminas. “Garotas bonitas.”
Tessa olhou de relance para Jessamine; a outra garota estava rígida e encarando, sua
boca uma linha branca. “Nós devemos ir,” Tessa murmurou, e puxou o braço de
Jessamine. Vagarosamente, como se ela estivesse sonhando, Jessamine permitiu que Tessa
a virasse de forma que elas encarassem de novo o caminho pelo qual tinham vindo—
E o homem estava na frente delas novamente, bloqueando o caminho de volta ao
parque. Longe, longe na distância, Tessa pensou que podia ver o parque, um tipo de
clareira, cheia de luz. Parecia impossivelmente longe.
“Vocês saíram do caminho,” disse o estranho. A voz dele era monótona, rítmica.
“Garotas bonitas, vocês saíram do caminho. Vocês sabem o que acontece com garotas
como vocês.”
Ele deu um passo à frente.
Jessamine, ainda rígida, estava agarrando seu guarda-sol como se ele fosse uma
corda de salvamento. “Goblin,” ela disse, “duende, o que quer que você seja—nós não
temos nenhuma rixa com ninguém do Povo Justo. Mas se você nos tocar—”
 “Vocês saíram do caminho,” cantou o homenzinho, chegando mais perto, e
enquanto ele o fazia, Tessa viu que seus sapatos brilhantes não eram sapatos no fim das
contas, mas cascos resplandecentes. “Nefilim tola, vir a esse lugar sem estar Marcada. Essa
terra é mais antiga que qualquer Acordo. Aqui há terra estranha. Se seu sangue de anjo
cair sobre ela, videiras douradas irão crescer imediatamente no lugar, com diamantes em
suas extremidades. E eu reivindico isso. Eu reivindico seu sangue.”

Tessa puxou o braço de Jessamine. “Jessamine, nós deveríamos—”
“Tessa, fique quieta.” Liberando seu braço com uma sacudida, Jessamine apontou
seu guarda-sol para o goblin. “Você não quer fazer isso. Você não quer—”
A criatura saltou. Enquanto ele se jogava em direção a elas, a boca dele pareceu
descascar-se aberta, sua pele partindo-se, e Tessa viu a face por baixo—cheia de presas e
malícia. Ela gritou e tropeçou para trás, seu sapato tropeçando na raiz de uma árvore. Ela
caiu no chão enquanto Jessamine levantou seu guarda-sol, e com leve toque do pulso de
Jessamine, o guarda-sol se abriu como uma flor.
O goblin gritou. Ele gritou e caiu para trás e rolou no chão, ainda gritando. Sangue
escorreu de uma ferida em sua bochecha, manchando a áspera jaqueta cinza dele.
“Eu lhe disse,” Jessamine falou. Ela estava se esforçando para respirar, seu tórax
subindo e descendo como se ela tivesse corrido pelo parque. “Eu lhe disse pra nos deixar
em paz, sua criatura imunda—” Ela golpeou o goblin novamente, e agora Tessa podia ver
que as beiras do guarda-sol de Jessamine brilhavam em um estranho dourado
esbranquiçado, e eram tão afiadas quanto lâminas. Sangue havia respingado sobre o
material florido.
O goblin uivou, levantando seus braços para se proteger. Ele se parecia com um
velho homenzinho arqueado agora, e apesar de Tessa saber que era uma ilusão, ela não
podia evitar sentir uma certa pena. “Piedade, senhora, piedade—”
“Piedade?” Jessamine cuspiu. “Você queria fazer crescerem flores do meu sangue!
Goblin imundo! Criatura nojenta!” Ela o cortou novamente com o guarda-sol, e de novo, e
o goblin gritou e se debateu. Tessa se levantou, sacudindo a sujeira para fora de seu
cabelo, e se equilibrou sobre os próprios pés. Jessamine ainda estava gritando, o guarda-
sol voando, a criatura no chão tendo espasmos a cada pancada. “Eu odeio você!”
Jessamine gritou, sua voz fina e tremendo. “Eu odeio você e todos como você—Habitantes
do Submundo—nojentos, nojentos—”
“Jessamine!” Tessa correu até a outra garota e jogou seus braços ao redor dela,
imobilizando os braços de Jessamine contra seu corpo. Por um momento Jessamine lutou,
e Tessa notou que não havia maneira de segurá-la. Ela era forte, os músculos sob a pele
macia e feminina dela enrolados e mais tensos que um chicote. E, de repente, Jessamine
ficou mole, caindo contra o corpo de Tessa, sua respiração se normalizando enquanto o
guarda-sol caía em sua mão. “Não,” ela choramingou. “Não. Eu não queria. Eu não
pretendia. Não—”
Tessa olhou pra baixo. O corpo do goblin estava dobrado e imóvel aos pés delas.
Sangue se espalhava pelo chão do lugar onde ele estava deitado, correndo pela terra como
vinhas negras. Segurando Jessamine enquanto ela chorava, Tessa não conseguia deixar de
se perguntar o que cresceria ali agora.


Foi, sem surpresa, Charlotte quem se recuperou da surpresa primeiro. “Sr.
Mortmain, eu não estou certa do que o senhor quer dizer—”
“É claro que você está.” Ele estava sorrindo, seu rosto magro partindo-se de orelha
a orelha em um sorriso travesso. “Caçadores das Sombras. Os Nefilins. É assim que vocês
chamam a si mesmos, não é? Os filhos ilegítimos de homens e anjos. Estranho, já que os
Nefilins na Bíblia eram monstros repugnantes, não eram?”
“Sabe, isso não é necessariamente verdade,” Henry disse, incapaz de conter seu
pedante interior. “Existe um caso na tradução do original aramaico—”
“Henry,” Charlotte disse, em tom de aviso.
“Vocês realmente prendem as almas dos demônios que vocês matam em um cristal
gigante?” Mortmain continuou, de olhos amplamente abertos. “Que magnífico!”
“Você quer dizer o Pyxis?” Henry parecia perplexo. “Não é um cristal, é mais como
uma caixa de madeira. E não são exatamente almas—demônios não têm almas. Eles têm
energia—”
“Fique quieto, Henry,” Charlotte repreendeu.
“Sra. Branwell,” Mortmain disse. Ele soou extremamente animado. “Por favor, não
se preocupe. Eu já sei tudo sobre seu tipo, você vê. Você é Charlotte Branwell, não é? E
esse é seu marido, Henry Branwell. Você comanda o Instituto de Londres do local onde
um dia foi a Igreja de Todos os Santos, a Menor. Você honestamente pensou que eu não
saberia quem são vocês? Especialmente quando vocês tentaram usar glamour em meu
lacaio? Ele não tolera ser glamourizado, sabe. Faz com que ele tenha brotoejas.”
Charlotte estreitou seus olhos. “E como você conseguiu toda essa informação?”
Mortmain se inclinou para frente avidamente, juntando as mãos como se fosse orar.
“Eu sou um estudioso do oculto. Desde meu tempo na Índia quando jovem, quando eu
aprendi sobre eles, eu estive fascinado pelos reinos das sombras. Para um homem em
minha posição, com fundos suficientes e tempo mais que suficiente, muitas portas se
abrem. Existem livros que podem ser comprados, informação que pode ser paga. Seu
conhecimento não é tão secreto como você pode pensar.”
“Talvez,” disse Henry, parecendo profundamente infeliz, “mas—é perigoso, você
sabe. Matar demônios—não é como atirar em tigres. Eles podem caçá-lo assim como você
pode caçá-los.”
Mortmain riu. “Meu garoto, eu não tenho nenhuma intenção de correr para lutar
com demônios de mãos vazias. É claro que este tipo de informação é perigoso nas mãos
dos excêntricos e cabeças quentes, mas a minha é uma mente cuidadosa e consciente. Eu

busco apenas uma expansão do meu conhecimento do mundo, nada mais.” Ele olhou ao
redor do aposento. “Devo dizer, eu nunca tive a honra de falar com Nefilins antes. Claro,
menções a vocês são frequentes na literatura, mas ler sobre algo e verdadeiramente
experimentar são duas coisas muito diferentes, tenho certeza de que vocês vão concordar.
Há tanto que vocês poderiam me ensinar—”
“Isso,” Charlotte disse em um tom gelado, “já é o suficiente.”
Mortmain olhou para ele, confuso. “Perdão?”
“Já que você parece saber muito sobre os Nefilins, Sr. Mortmain, posso perguntá-lo
se você sabe qual é nossa função?”
Mortmain pareceu orgulhoso. “Destruir demônios. Proteger humanos—mundanos,
como eu entendo que vocês nos chamam.”
“Sim,” disse Charlotte, “e em grande parte do tempo nós protegemos os humanos
de suas próprias idiotices. Eu vejo que você não é uma exceção a essa regra.”
Com isso, Mortmain pareceu verdadeiramente estupefato. Seu olhar foi para Henry.
Charlotte conhecia aquele olhar. Era um olhar somente trocado entre homens, um olhar
que dizia, Você não pode controlar sua mulher, senhor? Um olhar, ela sabia, que era totalmente
desperdiçado em Henry, que parecia estar tentando ler os diagramas de cabeça para baixo
na mesa de Mortmain e prestava bem pouca atenção à conversa.
“Você pensa que o conhecimento oculto que adquiriu o faz muito esperto,” disse
Charlotte. “Mas eu já vi minha porção de mundanos mortos, Sr. Mortmain. Eu não posso
contar as vezes em que cuidamos dos restos de algum humano que se achava experts em
práticas mágicas. Eu lembro, quando era garota, de ser convocada ao lar de um advogado.
Ele pertencia a algum circulo bobo de homens que acreditavam que eram mágicos. Eles
passavam seu tempo cantando e vestindo túnicas e desenhando pentagramas no chão.
Uma noite ele determinou que suas habilidades eram suficientes para tentar invocar um
demônio.”
“E eram?”
“Eram,” Charlotte disse. “Ele invocou o demônio Marax41. O demônio o assassinou,
e a toda a família dele.” Seu tom era prosaico. “Nós achamos a maioria deles pendendo
sem cabeça, de pés para o alto na casa de carruagem. O mais novo de seus filhos estava
assando em um espeto sobre o fogo. Nós nunca achamos Marax.”
41 Na demonologia, Morax é o Grande Fidalgo e Presidente do Inferno, com trinta e seis (trinta e dois segundo outros
autores) legiões de demônios sob seu comando.
Mortmain estava palido, mas manteve sua compostura. “Existem sempre aqueles
que vão muito longe com suas habilidades,” ele disse. “Mas eu—”

“Mas você nunca seria tão tolo,” Charlotte disse. “Salvo que você está, neste exato
momento, sendo tão tolo. Você olha para Henry e para mim e não tem medo de nós. Você
está divertido! Um conto de fadas que ganhou vida!” Ela deu um tapa forte com a mão na
beira da mesa dele, fazendo-o pular. “O poder da Clave nos apoia,” ela disse, tão
friamente quanto pôde. “Nossa função é proteger humanos. Como Nathaniel Gray. Ele
desapareceu, e algo oculto está claramente por trás desse desaparecimento. E aqui nós
encontramos este antigo empregador, claramente envolvido nos assuntos do oculto. É
difícil acreditar que os fatos não estejam conectados.”
“Eu—Ele—Sr. Gray desapareceu?” Mortmain gaguejou.
“Sim. A irmã dele veio até nós, procurando por ele; ela foi informada por um par de
feiticeiras de que ele estava em grave perigo. Enquanto você, senhor, está se divertindo,
ele pode estar morrendo. E a Clave não olha bondosamente para aqueles que ficam no
caminho de sua tarefa.”
Mortmain passou a mão sobre sua face. Quando emergiu de trás dela, ele estava
cinza. “Eu devo, é claro,” ele disse, “dizer a vocês tudo que queiram saber.”
“Excelente.” O coração de Charlotte batia forte, mas sua voz não traía nenhuma
ansiedade.
“Eu conhecia o pai dele. O pai de Nathaniel. Eu o empreguei quase vinte anos atrás
quando a compania Mortmain era principalmente uma empresa de transporte marítimo.
Eu tinha escritórios em Hong Kong, Xangai, Tianjin—” Ele parou assim que Charlotte
tamborilou os dedos impacientemente sobre a mesa. “Richard Gray trabalhava para mim
aqui em Londres. Ele era meu secretário chefe, um homem bom e inteligente. Fiquei triste
de perdê-lo quando ele se mudou com sua família para a América. Quando Nathaniel me
escreveu e me disse quem era, eu ofereci um emprego a ele imediatamente.”
“Sr. Mortmain.” A voz de Charlotte era dura. “Isso não é relevante—”
“Oh, mas é,” o homenzinho insistiu. “Você vê, meu conhecimento do oculto sempre
me ajudou em assuntos de negócio. Alguns anos atrás, por exemplo, um conhecido banco
da Lombard Street entrou em colapso—destruiu dúzias de grandes companhias. Minha
relação com um feiticeiro me ajudou a evitar o desastre. Eu pude retirar meus fundos
antes do banco se dissolver, e isso salvou minha compania. Mas levantou as suspeitas de
Richard. Ele deve ter investigado, pois eventualmente ele me confrontou com seu
conhecimento do Clube Pandemônio.”
“Você é um membro, então,” Charlotte murmurou. “É claro.”
“Eu ofereci a Richard filiação ao clube—até mesmo o levei a uma reunião ou duas—
mas ele não estava interessado. Pouco depois ele se mudou com sua família para a
América.” Mortmain abriu suas mãos amplamente. “O Clube Pandemônio não é para
todos. Viajando tanto quanto eu viajei, ouvi histórias sobre organizações similares em

várias cidades, grupos de homens que sabem do Mundo das Sombras e desejam dividir
seus conhecimentos e vantagens, mas se paga o pesado peso do segredo pela filiação.”
“Se paga um preço mais pesado que esse.”
“Não é uma sociedade do mal,” Mortmain disse. Ele soava quase ferido.
“Houveram grandes avanços, várias grandes invenções. Eu vi um feiticeiro criar um anel
de prata que podia transportar quem o usava para outro local sempre que ele colocasse
um em seu dedo. Ou uma porta de entrada que podia levá-lo a qualquer lugar do mundo
que você quisesse ir. Eu já vi homens serem trazidos de volta da beira da morte—”
“Estou ciente da magia e do que ela pode fazer, Mr. Mortmain.” Charlotte olhou
para Henry, que estava examinando um diagrama para algum tipo de equipamento
mecânico, enquadrado em uma parede. “Há uma questão que me preocupa. As feiticeiras
que parecem ter raptado o Sr. Gray estão de alguma forma assossiadas ao clube. Eu
sempre ouvi falar que este era um clube para mundanos. Porque haveriam Habitantes do
Submundo nele?”
A testa de Mortmain enrugou-se. “Habitantes do Submundo? Você quer dizer povo
sobrenatural—feiticeiros e licantropos e esse tipo? Existem níveis e níveis de afiliação, Sra.
Branwell. Um mundano como eu pode se tornar um membro do clube. Mas os diretores—
aqueles que controlam o negócio—eles são Habitantes do Submundo. Feiticeiros,
licantropos e vampiros. O Povo Justo nos evita, no entanto. Chefes de industria—vias
férreas, fábricas, coisas assim—demais para eles. Eles odeiam tais coisas.” Ele balançou a
cabeça. “Amáveis criaturas, as fadas, mas eu realmente temo que o progresso vá ser a
morte para eles.”
Charlotte não tinha interesse nos pensamentos de Mortmain sobre fadas; a mente
dela girava. “Deixe-me adivinhar. Você apresentou Nathaniel Gray ao clube, exatamente
como havia apresentado o pai dele.”
Mortmain, que parecia estar começando a recuperar um pouco de sua velha
confiança, murchou novamente. “Nathaniel havia trabalhado em meu escritório em
Londres por somente alguns dias antes de me confrontar. Eu entendi que ele havia
descoberto sobre a experiência de seu pai no clube, e isso lhe deu um forte desejo de saber
mais. Eu não podia recusar. Eu o levei a uma reunião e pensei que seria o fim disso. Mas
não foi.” Ele balançou a cabeça. “Nathaniel agarrou-se ao clube como um pato à água.
Algumas semanas depois daquele primeiro encontro, ele havia desaparecido de seu
alojamento. Ele me mandou uma carta, demitindo-se de seu emprego e dizendo que iria
trabalhar para outro membro do Clube Pandemônio, alguém que aparentemente estava
disposta a lhe pagar o suficiente para sustentar seus hábitos de aposta.” Ele suspirou.
“Não há necessidade de dizer, ele não deixou nenhum endereço.”
“E isso é tudo?” A voz de Charlotte aumentou em descrença. “Você não tentou
procurar por ele? Descobrir aonde ele havia ido? Quem era seu novo empregador?”

“Um homem pode trabalhar onde ele desejar,” Mortmain disse, com raiva. “Não
havia nenhum motivo para pensar—”
“E você não o viu desde então?”
“Não. Eu lhe disse—”
Charlotte o interrompeu. “Você disse que ele agarrou-se ao Clube Pandemônio
como um pato à água, ainda assim você não o viu em uma reunião sequer desde que ele
deixou sua empresa?”
Um olhar de pânico tremulou nos olhos de Mortmain. “Eu... Eu não estive em uma
reunião desde então. Trabalho me manteve extremamente ocupado.”
Charlotte olhou duramente para Axel Mortmain através de sua sólida mesa. Ela era
uma boa juíza de caráter, ela sempre havia acreditado. Não era como se ela não tivesse
conhecido homens como Mortmain antes. Homens francos, geniais, confiantes, homens
que acreditavam que seu sucesso nos negócios ou outra ocupação mundana significava
que eles teriam o mesmo sucesso se decidissem perseguir as artes mágicas. Ela pensou no
advogado novamente, as paredes de sua casa em Knightsbridge pintadas de escarlate com
o sangue de sua família. Ela pensou em quão aterrorizado ele devia ter ficado, naqueles
momentos finais de sua vida. Ela podia ver o começo de um medo similar nos olhos de
Axel Mortmain.
“Sr. Mortmain,” ela disse, “eu não sou uma tola. Sei que há algo que o senhor está
escondendo do mim.” Ela tirou de sua retícula42 uma das rodas dentadas que Will havia
resgatado da casa das Irmãs Sombrias, e colocou-a sobre a mesa. “Isso parece com algo
que suas fábricas poderiam produzir.”
42 Pequena bolsa feminina da época.
Com um olhar distraído Mortmain olhou para baixo até o pequeno pedaço de metal
em sua mesa. “Sim—sim, esta é uma de minhas rodas dentadas. O que tem isso?”
“Duas feiticeiras chamando a si mesmas de Irmãs Sombrias—ambas membros do
Clube Pandemônio—elas têm matado humanos. Garotas jovens. Pouco mais que crianças.
E nós achamos isso no porão da casa delas.”
“Eu não tenho nada a ver com nenhum assassinato!” Mortmain exclamou. “Eu
nunca—Eu pensei—” Ele havia começado a suar.
“O que você pensou?” A voz de Charlotte era gentil.
Mortmain pegou a roda dentada em seus dedos estremecidos. “Você não pode
imaginar...” A voz dele esgotou-se. “Alguns meses atrás um dos membros do conselho
administrativo do clube—um Habitante do Submundo, e muito velho e poderoso—veio a
mim e me pediu para vender a ele alguns equipamentos mecânicos por um preço mais

barato. Rodas dentadas e roldanas e coisas do tipo. Eu não perguntei para quê—por que
iria? Não parecia haver nada extraordinário sobre o pedido.”
“Por acaso,” Charlotte disse, “esse foi o homem que empregou Nathaniel depois
que ele deixou sua empresa?”
Mortmain soltou a roda dentada. Enquanto ela rolava pela mesa, ele bateu sua mão
no topo dela, parando-a. Mesmo que ele nada tenha dito, Charlotte podia ver pelo brilho
de medo em seus olhos que seu palpite estava correto. Uma sensação de triunfo correu
pelos nervos dela.
“O nome dele,” ela disse. “Diga-me o nome dele.”
Mortmain encarava a mesa. “Custaria-me a minha vida lhe dizer.”
“E a vida de Nathaniel Gray?” disse Charlotte.
Sem encontrar os olhos dela, Mortmain balançou a cabeça. “Você não tem ideia do
quão poderoso este homem é. Quão perigoso.”
Charlotte ajeitou-se. “Henry,” ela disse. “Henry, me traga o Convocador.”
Henry virou-se da parede e piscou em confusão. “Mas, querida—”
“Traga-me o dispositivo!” Charlotte repreendeu. Ela odiava repreender Henry; era
como chutar um filhote. Mas às vezes precisava ser feito.
O olhar de confusão não deixou o rosto de Henry enquanto ele se juntava à sua
esposa em frente à mesa de Mortmain, e tirava algo do bolso de sua jaqueta. Era um
paralelogramo de metal escuro, com uma sequência de mostradores de relógio de
aparência peculiar sobre sua superfície. Charlotte pegou-o e o brandiu em direção à
Mortmain.
“Isso é um Convocador,” ela disse a ele. “Isso irá me permitir convocar a Clave.
Dentro de três minutos eles irão cercar sua casa. Nefilins irão arrastá-lo desta sala,
gritando e chutando. Eles irão empregar em você as torturas mais intensas até que você
seja forçado a falar. Você sabe o que acontece com um homem quando sangue de demônio
é pingado em seus olhos?”
Mortmain deu a ela um olhar pavoroso, mas não disse nada.
“Por favor, não me teste, Sr. Mortmain.” O dispositivo na mão de Charlotte estava
escorregadio de suor, mas sua voz estava calma. “Eu odiaria vê-lo morrer.”
“Bom Senhor, homem, diga a ela!” Henry explodiu. “Sinceramente, não há
necessidade disso, Sr. Mortmain. Você só está fazendo isso mais difícil para si mesmo.”

Mortmain cobriu seu rosto com as mãos. Ele sempre quis conhecer Caçadores das
Sombras reais, Charlotte pensou, olhando pra ele. E agora ele tinha.
“De Quincey,” ele disse. “Eu não sei o primeiro nome dele. Só de Quincey.”
Pelo Anjo. Charlotte exalou vagarosamente, abaixando o dispositivo para seu lado.
“De Quincey? Não pode ser…”
“Você sabe quem é ele?” A voz de Mortmain estava entorpecida. “Bem, suponho
que você iria.”
“Ele é o chefe de um poderoso clã vampiro de Londres,” Charlotte disse quase
relutantemente, “um Habitante do Submundo muito influente, e um aliado da Clave. Eu
não posso imaginar que ele iria—”
“Ele é o cabeça do clube,” disse Mortmain. Ele parecia exausto, e um pouco cinza.
“Todos os outros respondem a ele.”
“O cabeça do clube. Ele tem um título?”
Mortmain pareceu fracamente surpreso por ser perguntado. “O Magister.”
Com uma mão que tremia apenas levemente, Charlotte escorregou o dispositivo
que ela estava segurando para dentro da manga. “Obrigada, Sr. Mortmain. Você foi de
muita utilidade.”
Mortmain olhou para ela com uma espécie de ressentimento exaurido. “De Quincey
irá descobrir que eu lhe contei. Ele irá me matar.”
“A Clave irá tomar providências para que ele não o faça. E manteremos seu nome
fora disso. Ele nunca saberá que você falou conosco.”
“Você faria isso?” Mortmain disse suavemente. “Por um, como era—um mundano
tolo?”
“Eu tenho esperanças para você, Sr. Mortmain. Você parece ter notado sua própria
estupidez. A Clave estará lhe observando—não somente para sua proteção, mas para ter
certeza de que você permaneça longe do Clube Pandemônio e organizações como esta.
Para seu próprio bem, eu espero que você vá considerar nosso encontro como um aviso.”
Mortmain assentiu. Charlotte moveu-se para a porta, Henry atrás dela; ela já havia
aberto a porta e estava na soleira quando Mortmain falou novamente. “Elas eram somente
rodas dentadas,” ele disse suavemente. “Somente mecanismos. Inofensivos.”
Foi Henry, para a surpresa de Charlotte, quem respondeu, sem se virar, “Objetos
inanimados são realmente inofensivos, Sr. Mortmain. Mas não se pode sempre dizer o
mesmo dos homens que o usam.”

Mortmain estava silencioso enquanto os dois Caçadores das Sombras deixavam o
cômodo. Alguns momentos depois eles estavam fora na praça, respirando ar fresco—tão
fresco quanto o ar de Londres sempre era. Pode ser pesado de fumaça de carvão e poeira,
Charlotte pensou, mas ao menos era livre do medo e desespero que pendiam como
neblina no escritório de Mortmain.
Tirando o dispositivo de sua manga, Charlotte ofereceu-o a seu marido. “Eu
suponho que deva lhe perguntar,” ela disse enquanto ele o recebia com uma expressão
grave, “o que é este objeto, Henry?”
“Algo em que eu venho trabalhando.” Henry olhou para ele carinhosamente. “Um
dispositivo que pode detectar energias demoníacas. Eu ia chamá-lo de Sensor. Eu ainda
não consegui que funcionasse, mas quando eu conseguir!”
“Tenho certeza de que será esplêndido.”
Henry transferiu sua expressão amorosa do dispositivo para sua esposa, uma
ocorrência rara. “Que puro gênio, Charlotte. Fingir que você podia convocar a Clave
imediatamente, apenas para apavorar aquele homem! Mas como você sabia que eu tinha
um dispositivo que você poderia usar?”
“Bem, você tinha, querido,” disse Charlotte. “Não tinha?”
Henry parecia encabulado. “Você é tão aterradora quanto maravilhosa, minha
querida.”
“Obrigada, Henry.”

O caminho de volta ao Instituto foi silencioso; Jessamine olhava para fora da janela
do cabriolé para o raivoso trânsito londrino e recusava-se a dizer uma palavra. Ela
segurava seu guarda-sol sobre o colo, aparentemente indiferente ao fato de que o sangue
em suas bordas estava manchando sua jaqueta de tafetá. Quando eles alcançaram o adro43,
ela deixou que Thomas a ajudasse a descer da carruagem antes de segurar a mão de Tessa.
43 Área externa que cerca uma igreja.
Surpresa pelo contato, Tessa só podia encarar. Os dedos de Jessamine estavam
gelados. “Venha comigo,” Jessamine estourou impacientemente, e puxou sua companheira
em direção às portas do Instituto, deixando Thomas encarando suas costas.
Tessa deixou que a outra garota a levasse para cima pelas escadas, para a
propriedade do Instituto, e por um longo corredor, este quase idêntico àquele em que se
encontrava o quarto de Tessa. Jessamine localizou uma porta, empurrou Tessa por ela, e
seguiu-a, fechando as portas atrás delas. “Eu quero lhe mostrar uma coisa,” ela disse.

Tessa olhou em volta. Era outro dos grandes quartos dos quais o Instituto parecia
ter um número infinito. O de Jessamine, porém, havia sido decorado nos gostos dela.
Acima dos painéis de madeira as paredes eram cobertas de papel de parede de seda rosa, e
a colcha da cama era estampada com flores. Havia uma penteadeira branca também, sua
superfície coberta com um conjunto de arrumar de aparência cara: um sustentador de
anéis, uma garrafa de água de flor, e uma escova de cabelo e espelho de prata.
“Seu quarto é amável,” Tessa disse, mais na esperança de acalmar a histeria
evidente de Jessamine do que porque ela realmente achasse isso.
“É muito pequeno,” Jessamine disse. “Mas venha—bem aqui.” E atirando o guarda-
sol ensanguentado em sua cama, ela marchou pelo quarto até o canto próximo á janela.
Tessa seguiu-a com alguma perplexidade. Não havia nada no canto além de uma mesa
alta, e na mesa havia uma casa de bonecas. Não o tipo de Casinha de Brincar da Dolly de
dois quartos de papelão que Tessa tinha quando criança. Essa era uma bela reprodução em
miniatura de uma casa real em Londres, e quando Jessamine a tocou, Tessa viu que a
frente dela se abria em pequenas dobradiças.
Tessa prendeu a respiração. Haviam belos pequenos quartos perfeitamente
decorados com mobília em miniatura, tudo construído em escala, das pequenas cadeiras
de madeira com almofadas bordadas até o fogão de aço fundido na cozinha. Haviam
pequenos bonecos, também, com cabeças de porcelana, e pinturas a óleo reais nas paredes.
“Essa era minha casa.” Jessamine se ajoelhou, ficando com os olhos na direção dos
cômodos da casa, e gesticulou para que Tessa fizesse o mesmo.
Sem jeito, Tessa o fez, tentando não ajoelhar-se nas saias de Jessamine. “Você quer
dizer que essa era a casa de bonecas que você tinha quando pequena?”
“Não.” Jessamine soou irritada. “Essa era minha casa. Meu pai mandou fazer esta
casinha para mim quando eu tinha seis anos. É modelada exatamente como a casa em que
vivíamos, na Curzon Street. Esse era o papel de parede que tínhamos no salão de jantar”
—ela apontou—“e esses são exatamente as cadeiras no escritório de meu pai. Você vê?”
Ela olhou para Tessa intensamente, tão intensamente que Tessa teve certeza de que
ela deveria estar vendo algo ali, algo que estava além de um brinquedo extremamente caro
que Jessamine deveria ter abandonado há muito tempo. Ela simplesmente não sabia o que
poderia ser. “É bastante bonita,” ela disse finalmente.
“Veja, aqui no salão de visitar está Mamãe,” disse Jessamine, tocando uma das
pequenas bonecas com seu dedo. A boneca vacilou em sua poltrona de veludo. “E aqui no
escritório, lendo um livro, está Papai.” A mão dela deslizou sobre a pequena figura de
porcelana. “E no andar de cima, no berçário, está a Bebê Jessie.” Dentro do pequeno berço
realmente havia outra boneca, apenas sua cabeça visível acima dos pequenos cobertores.
“Mais tarde eles jantarão aqui, na sala de jantar. E então Mamãe e Papai se sentarão na sala
de estar em frente à lareira. Em algumas noites eles irão ao teatro, ou a um baile, ou um

jantar.” A voz dela havia se acalmado, como se ela estivesse recitado uma bem decorada
oração. “E então Mamãe irá dar um beijo de boa noite em Papai, e eles irão para seus
quartos, e irão dormir durante toda a noite. Não haverá ligações da Clave para fazê-los sair
no meio da noite para caçar demônios no escuro. Não haverá traços de sangue pela casa.
Ninguém irá perder um braço ou um olho para um lobisomem, ou ter que se afogar em
água benta porque um vampiro os atacou.”
Meu Deus, Tessa pensou.
Como se Jessamine pudesse ler os pensamentos de Tessa, seu rosto se virou.
“Quando nossa casa queimou, eu não tinha mais nenhum lugar pra ir. Não era como se
houvessem parentes que pudessem me acolher; todos os parentes de Mamãe e Papai eram
Caçadores das Sombras e não haviam falado com eles desde que eles haviam rompido
com a Clave. Henry foi quem me fez o guarda-sol. Você sabia disso? Eu achei bastante
bonito até que ele me disse que o tecido é margeado com electrum, afiado como uma
lâmina. Sempre foi feito para ser uma arma.”
“Você nos salvou,” Tessa disse. “No parque hoje. Eu não posso lutar. Se você não
tivesse feito o que você fez…”
“Eu não deveria ter feito aquilo.” Jessamine olhou para a casa de bonecas com os
olhos vazios. “Eu não terei essa vida, Tessa. Eu não terei. Eu não me importo com o que
tenha que fazer. Eu não viverei assim. Eu preferiria morrer.”
Alarmada, Tessa estava pronta a dizer a ela para não falar assim, quando a porta se
abriu atrás delas. Era Sophie, em seu gorro branco e arrumado vestido preto. Os olhos
dela, quando descansaram em Jessamine, eram cautelosos. Ela disse, “Srta. Tessa, Sr.
Branwell gostaria muito de vê-la em seu escritório. Ele diz que é importante.”
Tessa virou-se para perguntar à Jessamine se ela ficaria bem, mas a expressão de
Jessamine havia se fechado como uma porta. A vulnerabilidade e raiva haviam ido; a
máscara fria estava de volta. “Vá, então, se Henry a quer,” ela disse. “Eu já estou bastante
cansada de você, e acho que estou tendo uma dor de cabeça. Sophie, quando você
retornar, precisarei que você massageie minhas têmporas com eau de cologne44.”
44 Água de Colônia.
Os olhos de Sophie encontraram os de Tessa através do quarto com algo como
divertimento. “Como você quiser, Srta. Jessamine.”


7
A Garota Mecânica


Porém Peças indefesas do Jogo Ele joga.
Sobre esse tabuleiro de xadrez de Noites e Dias,
Move para lá e para cá, e dá xeques e destrói.
—Os Rubaiyat de Omar Khayyam
traduzido por Edward Fitzgerald, 1859


Havia escurecido do lado de fora do Instituto, e a lanterna de Sophie produzia
estranhas sombras bruxuleantes nas paredes enquanto ela conduzia Tessa por uma escada
após a outra. Os degraus eram antigos, côncavos no centro, aonde gerações de pés haviam
desgastado-os. As paredes eram de pedra de textura áspera, as janelas minúsculas
colocadas nelas em intervalos eventualmente cedendo ao vazio que parecia indicar que
elas haviam chegado a subsolo.
“Sophie,” Tessa disse por fim, seus nervos em carne viva pela escuridão e o silêncio,
“estamos indo para a cripta da igreja, por algum acaso?”
Sophie riu, e as luzes da lanterna tremeluziram nas paredes. “Costumava ser a
cripta, antes do Sr. Branwell transformá-la em seu laboratório particular. Ele sempre está
lá embaixo, mexendo com seus brinquedos e experimentos. Quase não enlouquece a Sra.
Branwell.”
“O que ele está fazendo?” Tessa quase tropeçou em um degrau e teve de agarrar-se
à parede para recompor-se. Sophie não pareceu notar.
“Todos os tipos de coisas,” Sophie disse, sua voz ecoando de forma estranha pelas
paredes. “Inventando novas armas, equipamentos de proteção para os Caçadores das
Sombras. Ele adora engrenagens, mecanismos, e esse tipo de coisa. Sra. Branwell às vezes
diz que acha que ele a amaria mais se ela tique-taqueasse como um relógio.” Ela riu.
“Soa,” Tessa disse, “como se você gostasse deles. Sr. e Sra. Branwell, eu digo.”

Sophie nada disse, porém a postura já orgulhosa de sua coluna pareceu tensionar
ligeiramente.
“Gosta mais deles do que de Will, ao menos,” Tessa disse, esperando melhorar o
ânimo da outra garota com humor.
“Ele.” O nojo era evidente na voz de Sophie. “Ele é—Bem, ele é um tipo ruim, não
é? Lembra-me do filho de meu último empregador. Ele era arrogante, assim como o Sr.
Herondale. E o que ele quisesse, ele conseguia, desde o dia em que nasceu. E se ele não
conseguisse, bem…” Ela levantou a mão então, quase inconscientemente, e tocou a lateral
de seu rosto, onde sua cicatriz corria da boca à têmpora.
“Então o quê?”
Porém as maneiras bruscas de Sophie já haviam retornado. “Então ele
provavelmente teria um ataque, é isso.” Passando sua lanterna de uma mão para a outra,
ela espreitou pela escuridão das sombras. “Tome cuidado aqui, senhorita. As escadas
ficam perigosamente úmidas e escorregadias no final.”
Tessa se aproximou da parede. A pedra era gelada contra sua mão nua. “Você acha
que é simplesmente porque Will é um Caçador das Sombras?” ela inquiriu. “E eles—Bem,
eles acreditam-se superiores, não é mesmo? Jessamine também—”
“Mas o Sr. Carstairs não é assim. Ele não é de forma alguma como os outros. Nem o
Sr. e a Sra. Branwell.”
 Antes que Tessa pudesse dizer qualquer outra coisa, elas pararam abruptamente ao
fim das escadas. Havia uma pesada porta de carvalho com uma grade na frente; Tessa não
conseguia enxergar nada atrás das grades além de sombras. Sophie pegou a larga barra de
metal postada na porta e a empurrou com força para baixo.
 A porta se abriu para um espaço enorme e bem iluminado. Tessa entrou no
cômodo de olhos arregalados; claramente era a cripta da igreja que originalmente havia
ficado neste ponto. Pilares atarracados sustentavam um teto que desaparecia na escuridão.
O chão era feito de grandes lajes de pedra escurecidas pelo tempo; algumas eram
entalhadas com palavras, e Tessa supôs que estivesse de pé sobre os túmulos—e os
ossos—daqueles que foram enterrados na cripta. Não havia janelas, mas a brilhante
iluminação branca que Tessa havia descoberto chamar-se luz de bruxa brilhava em
luminárias de latão fixadas nos pilares.
No centro da sala encontravam-se diversas mesas de madeira, suas superfícies
cobertas com todos os tipos de objetos mecânicos—engrenagens e rodas dentadas feitas de
bronze e aço devidamente polidos; compridos fios de cobre; provetas de vidro cheias de
líquidos de diferentes cores, alguns deles soltando pequenos feixes de fumaça ou odores
amargos. O ar tinha um cheiro metálico e penetrante, como o ar antes de uma tempestade.
Uma mesa estava completamente coberta por várias armas espalhadas, suas lâminas

brilhando sob a luz da luz de bruxa. Havia um traje não terminado do que parecia uma
armadura de finas escamas de metal, pendurado em uma armação de arame ao lado de
uma grande mesa de pedra cuja superfície estava oculta por um amontado de grossos
cobertores de lã.
 Atrás da mesa estava Henry, e a seu lado, Charlotte. Henry estava mostrando à sua
esposa algo que tinha em sua mão—uma roda de cobre, talvez uma roda dentada—e
falava com ela em voz baixa. Ele vestia uma folgada camisa de lona por sobre suas roupas,
como uma bata de pescador, e aquilo estava sujo de poeira e um líquido escuro. Ainda
assim, o que mais impressionou Tessa sobre ele foi a certeza com que falava com
Charlotte. Não se via nem vestígios de seu usual acanhamento. Ele soava confiante e
direto, e seus olhos cor de mel, quando ele os levantou para olhar Tessa, eram claros e
firmes.
“Srta. Gray! Então Sophie lhe mostrou o caminho até aqui, não foi? Muito bom da
parte dela.”
“Bem, sim, ela—” Tessa começou a dizer olhando para trás, porém Sophie não
estava lá. Ela deve ter virado na porta e subido silenciosamente as escadas. Tessa se sentiu
boba por não ter notado. “Ela me trouxe,” ela completou. “Ela disse que você queria me
ver?”
“De fato,” Henry disse. “Nós poderíamos usar sua ajuda com algo. Pode vir aqui
um instante?”
 Ele gesticulou para que ela se unisse a ele e Charlotte ao lado da mesa. Quando
Tessa se aproximou, notou que o rosto de Charlotte estava pálido e tenso, seus olhos
castanhos assombrados. Ela olhou para Tessa, mordeu seu lábio, e olhou em direção à
mesa, onde a pilha de tecido—se moveu.
Tessa piscou. Ela tinha imaginado aquilo? Mas não, havia tido um relance de
movimento—e agora que estava mais perto, ela viu que o que estava em cima da mesa não
era uma pilha de tecidos e sim tecido cobrindo algo—algo aproximadamente do tamanho e
forma de um corpo humano. Ela parou, enquanto Henry estendia a mão, pegava uma
beirada do tecido, e o puxava, revelando o que estava por baixo.
Tessa, sentindo-se repentinamente tonta, agarrou-se à beira da mesa. “Miranda.”
 A garota morta jazia deitada sobre a mesa, seus braços tombados para os lados do
corpo, seu cabelo castanho apagado disperso por sobre seus ombros. Os olhos que tanto
haviam enervado Tessa não estavam mais lá. Agora havia órbitas negras vazias em seu
rosto pálido. Seu vestido barato tinha sido cortado na frente, deixando seu peito à mostra.
Tessa estremeceu, olhou para o outro lado—e olhou de volta rapidamente de novo, em
descrença. Pois não havia carne exposta, nem sangue, apesar do fato de que o peito de
Miranda ter sido cortado extensamente, sua pele retraída para os lados como a casca de
uma laranja. Por baixo da grotesca mutilação via-se o brilho de—metal?

Tessa se aproximou até postar-se em frente a Henry do lado oposto da mesa aonde
se encontrava Miranda. Onde deveria haver sangue, carne dilacerada, e mutilação, havia
apenas as duas camadas de pele branca afastadas, e sob elas uma carapaça de metal.
Folhas de cobre, intrincadamente ajustadas juntas, faziam seu peito, fluindo suavemente
para uma jaula articulada de cobre e latão flexível que era a cintura de Miranda. Um
quadrado de cobre, do tamanho da palma da mão de Tessa, estava faltando no centro do
peito da garota morta, revelando um espaço vazio.
“Tessa.” A voz de Charlotte era suave, mas insistente. “Will e Jem encontraram
este—este corpo na casa em que você estava sendo mantida. A casa estava completamente
vazia exceto por ela; ela foi largada em um quarto, sozinha.”
Tessa, ainda encarando em assombro, acenou com a cabeça. “Miranda. A criada das
Irmãs.”
“Você sabe alguma coisa sobre ela? Quem ela poderia ser? Sua história?”
“Não. Não. Eu pensei… quero dizer, ela quase não falava, e mesmo então só repetia
o que as Irmãs diziam.”
Henry enganchou um dedo no lábio inferior de Miranda e abriu sua boca. “Ela tem
uma língua rudimentar de metal, mas sua boca não foi realmente construída para a fala,
ou para consumir comida. Ela não tem esôfago, e, creio eu, nem estômago. Sua boca
termina em uma película de metal atrás de seus dentes.” Ele virou a cabeça dela para os
dois lados, estreitando os olhos.
“Mas o que é ela?” Tessa perguntou. “Algum tipo de Habitante do Submundo, ou
demônio?”
“Não.” Henry soltou a mandíbula de Miranda. “Ela não é exatamente um ser vivo
sob nenhuma circunstância. Ela é um autômato. Uma criatura mecânica, feita para
aparentar e se mover como um ser humano aparenta e se move. Leonardo da Vinci
projetou um. Você pode encontrar em seus rascunhos—uma criatura mecânica que podia
se sentar, andar e virar a cabeça. Ele foi o primeiro a insinuar que seres humanos são
apenas máquinas complexas, que nossas entranhas são como engrenagens, pistões e
câmaras feitos de músculos e carne. Então por que eles não poderiam ser substituídos por
cobre e ferro? Por que não se poderia construir uma pessoa? Mas isto. Jaquet Droz e
Maillardet45 nunca poderiam ter sonhado com isso. Um verdadeiro autômato biomecânico,
automóvel, autodirecionado, recoberto por carne humana.” Seus olhos brilhavam. “É
lindo.”
45 Famosos estudiosos da robótica antiga.
“Henry.” A voz de Charlotte estava tensa. “Esta carne que você está admirando. Ela
veio de algum lugar.”

Henry passou as costas das mãos na testa, a luz se apagando de seus olhos. “Sim—
aqueles corpos no porão.”
“Os Irmãos Silenciosos os examinaram. A maioria está sem alguns órgãos—
corações, fígados. Alguns estão sem ossos e cartilagem, até mesmo cabelo. Só podemos
concluir que as Irmãs Sombrias estavam coletando estes corpos por peças para construir
suas criaturas mecânicas. Criaturas como Miranda.”
“E o cocheiro,” Tessa disse. “Acredito que ele também seja um. Mas por que alguém
faria tal coisa?”
“Tem mais,” Charlotte disse. “As ferramentas mecânicas no porão das Irmãs
Sombrias foram manufaturadas pela Mortmain e Companhia. A empresa em que seu
irmão trabalhava.”
“Mortmain!” Tessa arrancou o olhar da garota na mesa. “Vocês foram vê-lo, não
foram? O que ele disse sobre Nate?”
Por um momento Charlotte hesitou, olhando para Henry. Tessa conhecia aquele
olhar. Era o tipo de olhar que as pessoas davam umas às outras quando estavam se
preparando para iniciar uma mentira conjunta. O tipo de olhar que ela e Nathaniel deram
um ao outro, uma vez, quando estavam escondendo algo de Tia Harriet.
“Vocês estão escondendo algo de mim,” ela disse. “Onde está meu irmão? O que
Mortmain sabe?”
 Charlotte suspirou. “Mortmain está profundamente envolvido no submundo
oculto. Ele é um membro do Clube Pandemônio, que parece ser gerenciado por Habitantes
do Submundo.”
“Mas o que isso tem a ver com o meu irmão?”
“Seu irmão descobriu sobre o clube e ficou fascinado por ele. Ele foi trabalhar para
um vampiro chamado de Quincey. Um Habitante do Submundo muito influente. De
Quincey é na verdade o chefe do Clube Pandemônio.” Charlotte soou amargamente
enojada. “Há um título associado ao cargo, pelo que parece.”
Sentindo-se repentinamente tonta, Tessa apoiou sua mão na beira da mesa. “O
Magister?”
 Charlotte olhou para Henry, que estava com a mão dentro do painel do peito da
criatura. Ele afundou a mão e tirou algo—um coração humano, vermelho e de carne, mas
duro e brilhante como se tivesse sido envernizado. Tinha sido costurado com fios de cobre
e prata. A cada poucos momentos ele pulsava apaticamente. De alguma forma ainda batia.
“Gostaria de segurar?” ele perguntou a Tessa. “Você tem que ser cuidadosa. Estes tubos
de cobre passam pelo corpo da criatura, carregando óleo e outros líquidos inflamáveis.
Ainda não identifiquei todos.”

 Tessa balançou a cabeça.
“Muito bem.” Henry parecia desapontado. “Tem algo que eu desejava lhe mostrar.
Se você simplesmente olhar aqui—” Ele virou o coração cuidadosamente em seus longos
dedos, revelando um painel de metal plano do outro lado. O painel havia sido gravado
com um selo—um Q maiúsculo com um D minúsculo dentro.
“É a marca de de Quincey,” Charlotte disse. Ela parecia desolada. “Eu já o vi antes,
em correspondências dele. Ele sempre foi um aliado da Clave, ou assim eu pensava. Ele
estava presente quando os Acordos foram assinados. Ele é um homem poderoso. Controla
todos os Filhos da Noite na parte oeste da cidade. Mortmain disse que de Quincey
comprou peças mecânicas dele, e isto parece confirmar. Parece que você não era a única
coisa na casa das Irmãs Sombrias que estava sendo preparada para uso do Magister. Estas
criaturas mecânicas também.”
“Se este vampiro é o Magister,” Tessa disse lentamente, “então foi ele quem
mandou as Irmãs Sombrias me raptarem, e foi ele quem forçou Nate a escrever aquela
carta. Ele deve saber onde está meu irmão.”
 Charlotte quase sorriu. “Você é determinada, não é?”
A voz de Tessa era dura. “Não imagine que não desejo descobrir o que o Magister
quer comigo. Por que ele mandou me capturarem e me treinarem. Como ele sabia que eu
tinha minha—minha habilidade. E não pense que eu não iria querer vingança se pudesse
tê-la.” Ela respirou estremecidamente. “Mas meu irmão é tudo que eu tenho. Eu preciso
encontrá-lo.”
“Nós o encontraremos, Tessa,” Charlotte disse. “De alguma forma tudo—as Irmãs
Sombrias, seu irmão, sua habilidade, e o envolvimento de de Quincey—se encaixam como
um quebra-cabeça. Nós simplesmente ainda não encontramos todas as peças perdidas
ainda.”
“Devo acrescentar, espero que as encontremos rápido,” Henry disse, lançando um
olhar triste em direção ao corpo na mesa. “O que um vampiro iria querer com um bando
de pessoas meio-mecânicas? Nada disso faz sentido algum.”
“Ainda não,” Charlotte disse, e franziu seu pequeno queixo. “Mas fará.”

 Henry permaneceu em seu laboratório mesmo depois que Charlotte anunciou que
já havia passado da hora deles retornarem ao andar de cima para a ceia. Insistindo que iria
em cinco minutos, ele distraidamente balançou a mão para que saíssem enquanto
Charlotte balançava a cabeça.
“O laboratório de Henry—eu nunca vi algo parecido,” Tessa disse a Charlotte
quando elas estavam a meio caminho nas escadas. Ela já estava sem fôlego, porém

Charlotte se movimentava com uma marcha firme e determinada, como se ela jamais fosse
cansar.
“Sim,” Charlotte respondeu, um pouco triste. “Henry passaria o dia e a noite
inteiros lá se eu permitisse.”
Se eu permitisse. As palavras surpreenderam Tessa. Era o marido quem determinava
o que era ou não permitido, e como sua casa deveria funcionar, não era? A obrigação da
esposa era simplesmente cumprir seus desejos, e prover-lhe um refúgio calmo e estável do
caos do mundo lá fora. Um lugar em que ele pudesse refugiar-se. Mas o Instituto
dificilmente seria isso. Era parte casa, parte colégio interno e parte estação de batalha. E
quem quer que estivesse em cargo da gerência, certamente não era Henry.
Com uma exclamação de surpresa, Charlotte parou no degrau acima de Tessa.
“Jessamine! O que raios aconteceu?”
Tessa olhou para cima. Jessamine estava no topo da escada, enquadrada pela soleira
aberta. Ainda vestia suas roupas de dia, apesar de seus cabelos, agora em elaborados
cachos, terem sido claramente arrumados para a noite, sem dúvidas pela sempre paciente
Sophie. Havia uma imensa carranca em seu rosto.
“É Will,” ela disse. “Ele está sendo absolutamente ridículo na sala de jantar.”
Charlotte pareceu confusa. “E como isso seria diferente de ser totalmente ridículo
na biblioteca, ou na sala de armas, ou em qualquer outro lugar em que ele normalmente é
ridículo?”
“Porque,” Jessamine disse, como se fosse óbvio, “nós temos que comer na sala de
jantar.” Ela se virou e saiu andando ostensivamente, olhando para trás para certificar-se de
que Tessa e Charlotte a estavam seguindo.
Tessa não conseguiu evitar um sorriso. “É mais ou menos como se eles fossem seus
filhos, não é?”
 Charlotte suspirou. “Sim,” ela disse. “Exceto pela parte em que eles têm que me
amar, eu suponho.”
 Tessa não conseguiu pensar em nada para responder a isso.
* * *
Como Charlotte insistiu que tinha algo que de fazer na sala antes da ceia, Tessa
caminhou para a sala de jantar sozinha. Quando ela tinha chegado ali—muito orgulhosa
de si por não ter se perdido no caminho—ela descobriu que Will estava de pé sobre um
dos aparadores, consertando algo preso ao teto.
Jem estava sentado em uma cadeira, olhando para Will com uma expressão de
dúvida. “Serve-lhe bem se você quebrá-lo,” ele disse, e inclinou a cabeça quando avistou

Tessa. “Boa noite, Tessa.” Seguindo seu olhar, ele sorriu. “Eu estava pendurando o lustre a
gás torto, e Will está se esforçando para endireitá-lo.”
Tessa não podia ver nada de errado com o lustre, mas antes que ela pudesse dizer
isso, Jessamine adentrou a sala e disparou um olhar para Will. “Realmente! Você não pode
pedir a Thomas para fazer isso? Um cavalheiro não precisa—”
“Isso é sangue em sua manga, Jessie?” Will perguntou, olhando para baixo.
 O rosto de Jessamine se contraiu. Sem outra palavra, ela girou nos calcanhares e
caminhou até o final da mesa, onde ela se pôs numa cadeira e ficou olhando impassível
para frente.
“Aconteceu alguma coisa enquanto você e Jessamine estavam fora?” Era Jem,
parecendo verdadeiramente preocupado. Quando ele virou a cabeça para olhar Tessa, ela
viu algo verde brilhar na base de sua garganta.
Jessamine olhou para Tessa, um olhar de quase pânico no rosto. “Não,” Tessa
começou. “Não foi nada—”
“Eu consegui!” Henry entrou na sala triunfantemente, brandindo algo em sua mão.
Parecia um tubo de cobre com um botão preto de um lado. “Eu aposto que vocês
pensaram que eu não poderia, não é?”
 Will abandonou seus esforços com o lustre para encarar Henry. “Nenhum de nós
tem a menor idéia o que você está falando, você sabe disso, não é?”
“Eu finalmente fizi meu Fósforo funcionar.” Henry brandia orgulhosamente o
objeto. “Funciona com o mesmo princípio da luz de bruxa, mas é cinco vezes mais potente.
Simplesmente aperte o botão, e você irá ver uma luz como você nunca imaginou.”
Houve um silêncio. “Então,” disse Will, finalmente, “é um luz de bruxa muito,
muito brilhante?”
“Exatamente,” disse Henry.
“Isso é útil, precisamente?” Jem perguntou. “Afinal, luz de bruxa é apenas para a
iluminação. Não é como se fosse perigosa...”
“Espere até você ver isso!” Henry respondeu. Ele pegou o objeto. “Olhem.”
Will se moveu para objetar, mas era tarde demais; Henry já havia pressionado o
botão. Houve um clarão de luz cegante e um som soprante, e a sala foi mergulhada na
escuridão. Tessa deu um grito de surpresa, e Jem riu suavemente.
“Eu fiquei cego?” A voz de Will flutuou pela escuridão, fortemente contrariada. “Eu
não ficarei nada satisfeito se você me cegou, Henry.”

“Não.” Henry parecia preocupado. “Não, o Fósforo parece—bem, parece ter
apagado todas as luzes da sala.”
“Não é para ele fazer isso?” Jem parecia leve, como sempre.
“Er,” disse Henry, “não.”
Will murmurou algo em voz baixa. Tessa não conseguiu ouvi-lo direito, mas tinha
quase certeza de que tinha ouvido as palavras “Henry” e “retardado”. Um momento mais
tarde, houve uma queda enorme.
“Will!” alguém gritou em alarme. Luz brilhante encheu a sala, fazendo Tessa piscar
várias vezes. Charlotte estava em pé na soleira, segurando uma lâmpada de luz de bruxa
no alto em uma das mãos, e Will estava caído no chão a seus pés em uma profusão de
cacos do aparador. “O que raios…”
“Eu estava tentando endireitar o lustre,” Will disse irritado, sentando-se e
espanando pedaços de louça de sua camisa.
“Thomas poderia ter feito isso. E agora você foi e destruiu metade dos pratos.”
“E muito obrigado a seu marido idiota por isso.” Will olhou para si mesmo. “Eu
acho que quebrei alguma coisa. A dor está bastante angustiante.”
“Você parece bem intacto para mim.” Charlotte foi implacável. “Levante-se. Eu
suponho que nós iremos comer à luz de luz de bruxa esta noite.”
Jessamine, na ponta da mesa, inalou. Foi o primeiro barulho que ela fez desde que
Will tinha perguntado-lhe sobre o sangue em sua manga. “Eu odeio luz de bruxa. Faz
minha pele parecer absolutamente verde.”

Apesar da “verdura” de Jessamine, Tessa descobriu que gostava bastante da luz de
bruxa. Ela projetava um brilho branco difuso sobre tudo e fez até mesmo as ervilhas e
cebolas parecerem românticas e misteriosas. Enquanto passava manteiga em um pãozinho
com uma pesada faca de prata, ela não conseguia evitar pensar no pequeno apartamento
em Manhattan onde ela, seu irmão e sua tia haviam comido suas parcas ceias em torno de
uma mesa simples à luz de algumas velas. Tia Harriet sempre teve o cuidado de manter
tudo tão escrupulosamente limpo, desde as cortinas de renda branca nas janelas da frente
até a chaleira de cobre brilhando no fogão. Ela sempre disse que, quanto menos você tem,
mais cuidado você deve ter com tudo o que tiver. Tessa se perguntou se os Caçadores das
Sombras tinham cuidado com tudo o que tinham.
Charlotte e Henry estavam recontando o que haviam aprendido de Mortmain; Jem
e Will escutavam atentamente enquanto Jessamine olhava pela janela, entediada. Jem
parecia especialmente interessado na descrição da casa de Mortmain, com seus artefatos

de todo o mundo. “Eu disse a você,” disse ele. “Taipan. Todos eles pensam em si mesmos
como homens muito importantes. Acima da lei.”
“Sim,” disse Charlotte. “Ele tinha aquele jeito, como se estivesse acostumado a ser
ouvido. Homens assim muitas vezes são alvos fáceis para aqueles que querem trazê-los
para o Mundo das Sombras. Eles são acostumados a ter poder e esperam serem capazes de
obter mais poder de forma fácil e com pouco custo para si. Eles não têm ideia de quão alto
o preço do poder no Submundo é.” Ela se virou, franzindo a testa, para Will e Jessamine,
que pareciam estar discutindo sobre algo em tons mordazes. “Qual é o problema com
vocês dois?”
Tessa aproveitou a oportunidade para virar-se para Jem, que estava sentado ao seu
lado direito. “Xangai,” disse ela em uma voz baixa. “Parece tão fascinante. Eu gostaria de
poder viajar para lá. Eu sempre quis viajar.”
Quando Jem sorriu para ela, ela viu aquele brilho novamente em sua garganta. Era
um pingente esculpido em pedra verde bruta. “E agora você viajou. Você está aqui, não
está?”
“Eu só havia viajado nos livros antes. Sei que parece bobagem, mas—”
Jessamine os interrompeu batendo o garfo na mesa. “Charlotte,” ela exigiu,
estridente, “faça Will me deixar em paz.”
Will estava recostado na cadeira, seus olhos azuis cintilando. “Se ela dissesse por
que ela tem sangue em suas roupas, eu iria deixá-la em paz. Deixe-me adivinhar, Jessie.
Você encontrou uma pobre mulher no parque que teve a infelicidade de usar um vestido
melhor que o seu, então você cortou a garganta dela com aquela sombrinha esperta. Eu
entendi direito?”
Jessamine arreganhou os dentes para ele. “Você está sendo ridículo.”
“Está mesmo, sabe,” Charlotte disse a ele.
“Quer dizer, eu estou vestindo azul. Azul combina com tudo,” Jessamine continuou.
“O que, realmente, você deveria saber. Você é vaidoso o suficiente sobre as suas próprias
roupas.”
“O azul não combina com tudo,” Will disse. “Não combina com o vermelho, por
exemplo.”
“Eu tenho um colete listrado vermelho e azul,” exclamou Henry, alcançando as
ervilhas.
“E se isso não é prova de que essas duas cores nunca devem ser vistas juntos
debaixo do céu, eu não sabe o que é.”
“Will,” Charlotte disse bruscamente. “Não fale com Henry assim. Henry—”

Henry levantou a cabeça. “Sim?”
Charlotte suspirou. “Este prato em que você está colocando ervilhas é o de
Jessamine, não o seu. Preste atenção, querido.”
Enquanto Henry olhava para baixo em surpresa, a porta da sala de jantar abriu e
Sophie entrou. Sua cabeça estava abaixada, seu cabelo escuro brilhante. Quando ela se
curvou para falar baixo com Charlotte, a luz de bruxa lançou seu brilho em seu rosto,
fazendo sua cicatriz brilhar como prata contra sua pele.
Um olhar de alívio percorreu o rosto de Charlotte. Um momento depois, ela havia
se levantado e se apressado para fora da sala, parando apenas para tocar Henry levemente
no ombro enquanto se retirava.
Os olhos castanhos de Jessamine se arregalaram. “Onde ela está indo?”
Will olhou para Sophie, seu olhar deslizando sobre ela daquele jeito que Tessa sabia
ser como dedos acariciando a sua pele. “De fato, Sophie, minha querida. Aonde ela foi?”
Sophie lançou-lhe um olhar venenoso. “Se a Sra. Branwell quisesse que você
soubesse, eu tenho certeza que ela teria lhe dito,” ela estourou, e se apressou para fora da
sala atrás de sua senhora.
Henry, tendo abaixado as ervilhas, tentou um sorriso afável. “Bem, então,” disse
ele. “O que era que nós estavámos discutindo?”
“Nada disso,” Will disse. “Queremos saber para onde Charlotte foi. Aconteceu
alguma coisa?”
“Não,” disse Henry. “Quer dizer, eu penso que não—” Ele olhou ao redor da sala,
viu quatro pares de olhos fixos nele, e suspirou. “Charlotte nem sempre me diz o que ela
está fazendo. Vocês sabem disso.” Ele sorriuum pouco dolorosamente. “Não posso culpá-
la, realmente. Não se pode contar comigo para ser sensato.”
Tessa desejava que ela pudesse dizer algo para confortar Henry. Algo sobre ele a
fez pensar em Nate quando era mais jovem, tímido e desajeitado e facilmente ferido.
Reflexivamente ela elevou a mão para tocar o anjo em sua garganta, buscando segurança
em seu constante tique-taque.
Henry olhou para ela. “Esse objeto mecânico que você usa ao redor do pescoço—eu
poderia vê-lo por um momento?”
Tessa hesitou, depois assentiu. Era apenas Henry, afinal de contas. Ela desprendeu
o fecho do cordão, retirou o colar e entregou a ele.
“Este é um pequeno objeto interessante,” disse ele, virando-o em suas mãos. “Onde
você o conseguiu?”

“Foi de minha mãe.”
“Como uma espécie de talismã.” Ele olhou para cima. “Você se importaria se eu o
examinasse no laboratório?”
“Oh.” Tessa não conseguiu esconder sua ansiedade. “Apenas se você tomar muito
cuidado com ele. É tudo que eu tenho da minha mãe. Se fosse quebrado...”
“Henry não irá quebrá-lo ou danificá-lo,” Jem a tranquilizou. “Ele é realmente
muito bom com esse tipo de coisa.”
“É verdade,” disse Henry, tão modesto e prosaico, que não parecia haver nada
vaidoso sobre a declaração. “Eu irei devolvê-lo em bom estado.”
“Bom...” Tessa hesitou.
“Eu não entendo para que tanto barulho,” disse Jessamine, que parecia entediada
durante toda esta conversa. “Não é como ele tivesse diamantes.”
“Algumas pessoas valorizam mais o sentimento do que os diamantes, Jessamine.”
Era Charlotte, em pé na porta. Ela parecia perturbada. “Há alguém aqui que quer falar
com você, Tessa.”
“Comigo?” Tessa inquiriu, o anjo mecânico esquecido por agora.
“Bem, quem é?” Will disse. “Você tem de nos manter em suspense?”
Charlotte suspirou. “É Lady Belcourt. Ela está lá embaixo. Na Sala Santuário.”
“Agora?” Will franziu o cenho. “Aconteceu alguma coisa?”
“Eu entrei em contato com ela,” disse Charlotte. “Acerca de de Quincey. Pouco
antes do jantar. Eu esperava que ela tivesse alguma informação, e ela tem, mas insiste em
ver Tessa primeiro. Parece que, apesar de todas as nossas precauções, boatos sobre Tessa
vazaram para o Submundo, e Lady Belcourt está... interessada.”
Tessa bateu o garfo com um estrondo. “Interessada em quê?” Ela olhou ao redor da
mesa, percebendo que quatro pares de olhos estavam agora fixos nela. “Quem é Lady
Belcourt?” Quando ninguém respondeu, ela voltou-se para Jem, sendo ele o mais provável
a dar-lhe uma resposta. “Ela é uma Caçadora das Sombras?”
“Ela é uma vampira,” Jem disse. “Uma informante vampira, na verdade. Ela dá
informações para Charlotte e nos mantém informados sobre o que está acontecendo na
comunidade da Noite.”
“Você não precisa falar com ela se não quiser, Tessa,” disse Charlotte. “Eu posso
mandá-la embora.”

“Não.” Tessa empurrou seu prato para longe. “Se ela está bem informada sobre de
Quincey, talvez ela saiba algo sobre Nate também. Não posso arriscar mandá-la embora,
se ela pode ter informações. Eu irei.”
“Você não quer mesmo saber o que ela quer de você?” Will perguntou.
Tessa olhou para ele deliberadamente. A luz de bruxa deixava sua pele mais pálida,
seus olhos mais intensamente azuis. Eles eram da cor da água do Atlântico Norte, onde o
gelo deslizava em sua superfície preta azulada como neve agarrada à vidraça escura de
uma janela. “Além das Irmãs Sombrias, eu nunca realmente conheci outro Habitante do
Submundo,” disse ela. “Eu acho—que gostaria.”
“Tessa,” Jem começou, mas ela já estava em pé. Sem olhar para ninguém na mesa,
ela saiu correndo da sala atrás de Charlotte.


8
Camille


Frutas caem e o amor morre e o tempo passa;
Tu és alimentada com fôlego eterno,
E viva após infinitas mudanças,
E revigorada pelos beijos da morte;
De exaustão reacendeu e reviveu,
De prazeres estéreis e impuros,
Coisas monstruosas e infrutíferas, uma pálida
E venenosa rainha.
—Algernon Charles Swinburne, Dolores


Tessa estava apenas na metade do corredor quando eles a alcançaram—Will e Jem,
andando de ambos os lados dela. "Você não pensou realmente que nós não viríamos juntos,
não é?” Will perguntou, levantando a mão e deixando a luz de bruxa incendiar-se entre
seus dedos, iluminando o corredor com a luminosidade do dia. Charlotte, apressada à
frente deles, se virou e franziu a testa, mas não disse nada.
“Eu sei que você não pode deixar nada bem o suficiente em paz,” Tessa respondeu,
olhando para frente. “Mas eu pensei melhor de Jem.”
“Aonde Will vai, eu vou,” Jem, disse bem-humorado. “E, além disso, estou tão
curioso quanto ele.”
“Isso dificilmente parece ser um assunto para vangloriar-se. Para onde estamos
indo?” Tessa acrescentou, surpresa, quando chegaram ao final do corredor e viraram à
esquerda. O próximo corredor estendia-se por trás deles em uma escuridão pouco
atraente. “Nós viramos para o lado errado?”
“Paciência é uma virtude, Srta. Gray,” disse Will. Eles haviam alcançado um longo
corredor que inclinava abruptamente para baixo. As paredes eram destituídas de
tapeçarias ou tochas, e a escuridão fez Tessa perceber por que Will tinha levado sua pedra
de luz de bruxa.

“Esse corredor leva ao nosso Santuário,” disse Charlotte. “É a única parte do
Instituto que não está em solo sagrado. É onde nos reunimos com todos aqueles que, por
qualquer motivo, não podem entrar no solo sagrado: aqueles que são amaldiçoados,
vampiros e afins. É também muitas vezes um lugar que escolhemos para abrigar
Habitantes do Submundo que estão em perigo por demônios ou outros habitantes do
Mundo das Sombras. Por essa razão, existem muitas proteções colocadas nas portas, e é
difícil de entrar ou sair da sala sem possuir um stele ou a chave.”
“É uma maldição? Ser um vampiro?” Tessa perguntou.
Charlotte balançou a cabeça. “Não. Achamos que é uma espécie de doença de
demônio. A maioria das doenças que afetam os demônios não é transmissível aos seres
humanos, mas em alguns casos, geralmente através de uma mordida ou um arranhão, a
doença pode ser passada adiante. Vampirismo. Licantropia—”
"Varíola de demônio,” disse Will.
“Will, não existe tal coisa como varíola de demônio, e você sabe disso,” disse
Charlotte. “Agora, onde eu estava?”
“Ser um vampiro não é uma maldição. É uma doença,” Tessa completou. “Mas eles
ainda não podem entrar solo sagrado, então? Isso significa que eles estão condenados?”
“Isso depende de em quê você acredita,” disse Jem. “E se você acredita mesmo em
danação afinal.”
“Mas vocês caçam demônios. Vocês devem acreditar em danação!”
“Eu acredito no bem e no mal,” disse Jem. “E acredito que a alma é eterna. Mas eu
não acredito no poço de fogo, os tridentes, ou tormento eterno. Eu não acredito que você
pode ameaçar as pessoas até a bondade.”
Tessa olhou para Will. “E você? No que você acredita?”
“Pulvis et umbra sumus,” Will disse, não olhando para ela enquanto falava. “Eu
acredito que somos pó e sombras. O que mais está lá?”
“No que quer que você acredite, por favor, não sugira a Lady Belcourt que acha que
ela está condenada,” disse Charlotte. Ela havia parado onde o corredor terminava em um
conjunto de portas altas de ferro, cada uma esculpida com um símbolo curioso que se
parecia com dois pares de Cs de costas um para o outro. Ela se virou e olhou para seus três
companheiros. “Ela, muito gentilmente, se ofereceu para nos ajudar, e não há propósito
em oferecer-lhe tais insultos. Isso se aplica especialmente a você, Will. Se você não pode
ser educado, eu irei lhe mandar pra fora do Santuário. Jem, eu confio em você para ser o
encanto em pessoa. Tessa...” Charlotte virou seus olhos sérios e gentis para Tessa. “Tente
não se assustar.”

Ela tirou uma chave de ferro de um bolso de seu vestido, e a deslizou na fechadura
da porta. A cabeça da chave tinha a forma de um anjo com as asas abertas; as asas
brilharam uma vez, brevemente, quando Charlotte girou a chave, e a porta se abriu.
A sala do outro lado era como o cofre de uma casa do tesouro. Não havia janelas, e
nenhuma porta a não ser aquela pela qual eles tinham entrado. Enormes pilares de pedra
sustentavam um teto sombreado, iluminado pela luz de uma fileira de candelabros acesos.
Os pilares eram esculpidos em toda sua extensão com elos e espirais de runas, formando
padrões complexos que intrigavam o olho. Grandes tapeçarias pendiam das paredes, cada
uma talhada com a figura de uma única runa. Havia um grande espelho de moldura
dourada, também, fazendo o lugar parecer duas vezes maior. Uma fonte de pedra maciça
ficava no meio da sala. Ela tinha uma base circular, e no centro estava a estátua de um anjo
com as asas dobradas. Rios de lágrimas derramavam de seus olhos e se acumulavam na
fonte abaixo.
Ao lado da fonte, entre dois dos massivos pilares, estava um grupo de cadeiras
forradas em veludo negro. A mulher que se sentava na mais alta das cadeiras era esguia e
imponente. Um chapéu estava inclinado para frente em sua cabeça, equilibrando um
penacho negro maciço em seu topo. Seu vestido era de opulento veludo vermelho, sua
pele branca brilhante inchando suavemente sobre o corpete ajustado, embora o seu peito
nunca subisse ou descesse com uma respiração. Um cordão de rubis feria sua garganta
como uma cicatriz. Seu cabelo era espesso e loiro pálido, agrupado em delicados cachos
brilhantes em torno de sua nuca; seus olhos eram de um verde luminoso que brilhavam
como os de um gato.
Tessa prendeu a respiração. Então Habitantes do Submundo podiam ser bonitos.
“Apague sua luz de bruxa, Will,” Charlotte disse baixinho, antes de apressar-se
para cumprimentar sua convidada. “Tão gentil de sua parte esperar por nós, Baronesa.
Espero que tenha achado o Santuário confortável o suficiente para o seu gosto?”
“Como sempre, Charlotte.” Lady Belcourt parecia entediada; ela tinha um leve
sotaque que Tessa não podia identificar.
“Lady Belcourt. Por favor, deixe-me apresentar-lhe a Srta. Theresa Gray.” Charlotte
indicou Tessa, que, não sabendo o que mais fazer, inclinou a cabeça educadamente. Ela
estava tentando se lembrar de como alguém se dirigia a baronesas. Ela pensava um tanto
que tinha algo a ver com se fossem casadas com barões ou não, mas não conseguia
lembrar exatamente. “Ao lado dela está o Sr. James Carstairs, um dos nossos jovens
Caçadores das Sombras, e com ele está—”
Mas os olhos verdes de Lady Belcourt já estavam pousados em Will “William
Herondale,” ela disse, e sorriu. Tessa ficou tensa, mas os dentes da vampira pareciam
absolutamente normais; sem sinal dos incisivos afiados. “Aprecio você vir me
cumprimentar.”

“Vocês se conhecem?” Charlotte parecia estupefata.
“William ganhou vinte libras46 de mim no faraó,” disse Lady Belcourt, seus olhos
verdes prolongando-se em Will de uma maneira que fez o pescoço de Tessa formigar.
“Algumas semanas atrás, em uma casa de jogo do Submundo gerida pelo Clube
Pandemônio.”
46 Moeda oficial do Reino Unido.
 “Ele ganhou?” Charlotte olhou para Will, que encolheu os ombros.
“Era parte da investigação. Eu estava disfarçado como um tolo mundano que tinha
chegado ao local para participar do vício,” explicou Will. “Teria despertado suspeita se eu
tivesse me recusado a jogar.”
Charlotte apoiou o queixo. “De qualquer forma, Will, aquele dinheiro que você
ganhou era uma evidência. Você devia tê-lo dado para a Clave.”
“Eu o gastei com gim.”
“Will.”
Will deu de ombros. “Os prejuízos do vício são uma responsabilidade pesada.”
“Ainda assim, uma que você parece estranhamente capaz de suportar,” observou
Jem, com um brilho divertido em seus olhos prateados.
Charlotte jogou as mãos para o alto. “Eu irei lidar com você mais tarde, William.
Lady Belcourt, eu devo entender que você também é membro do Clube Pandemônio?”
Lady Belcourt fez uma cara horrível. “Certamente que não. Eu estava na casa de
jogos naquela noite porque um feiticeiro amigo meu estava esperando ganhar um pouco
de dinheiro fácil no jogo de cartas. Os eventos do clube são abertos para a maior parte dos
Habitantes do Submundo. Os membros gostam que nós apareçamos por lá; isso
impressiona os mundanos e abre suas carteiras. Eu sei que há Habitantes do Submundo no
funcionamento da empresa, mas eu nunca seria um deles. O negócio todo parece tão
desclassificado.”
“De Quincey é um membro,” disse Charlotte, e atrás de seus grandes olhos
castanhos, Tessa podia ver a luz da sua inteligência feroz. “Disseram-me que ele é o chefe
da organização, na verdade. Você sabia disso?”
Lady Belcourt balançou a cabeça, nitidamente desinteressada neste pedaço da
informação. “De Quincey e eu éramos próximo ano atrás, mas não mais, e eu fui direta
com ele sobre a minha falta de interesse no clube. Suponho que ele poderia ser o chefe do
clube; é uma organização ridícula, se você me perguntar, mas sem dúvida muito
lucrativa.” Ela se inclinou para frente, dobrando suas finas mãos enluvadas no colo. Havia

algo estranhamente fascinante sobre seus movimentos, mesmo os menores. Eles tinham
uma estranha graça animal. Era como ver um gato enquanto ele esgueirava-se por entre as
sombras. “A primeira coisa que você deve compreender sobre de Quincey,” ela disse, “é
que ele é o vampiro mais perigoso em Londres. Ele fez seu caminho até o topo do clã mais
poderoso da cidade. Qualquer vampiro vivendo dentro de Londres está sujeito aos seus
caprichos.” Seus lábios escarlates afinaram. “A segunda coisa que você deve entender é
que de Quincey é velho—velho mesmo para um dos Filhos da Noite. Ele viveu a maior
parte de sua vida antes dos Acordos, e ele os odeia, e odeia os que vivem sob o jugo da
Lei. E acima de tudo, ele odeia os Nefilins.”
Tessa viu Jem se inclinar e sussurrar algo para Will, cuja boca curvou-se no canto
em um sorriso. “Cetamente,” Will disse. “Como alguém poderia nos desprezar, quando
somos tão encantadores?”
“Tenho certeza que vocês sabem que não são amados pela maioria dos Habitantes
do Submundo.”
“Mas nós pensamos de Quincey fosse um aliado.” Charlotte descansou suas finas
mãos nervosas na parte de trás de uma das cadeiras de veludo. “Ele sempre cooperou com
a Clave.”
“Fingimento. É do interesse dele colaborar com você, então ele o faz. Mas ele ficaria
feliz em ver todos vocês afundando braças abaixo do mar.”
Charlotte empalidecera, mas se refez. “E você não sabe nada de seu envolvimento
com duas mulheres chamadas Irmãs Sombrias? Nada de seu interesse em autômatos—
criaturas mecânicas?”
“Ugh, as Irmãs Sombrias.” Lady Belcourt estremeceu. “Criaturas tão repulsivas,
desagradáveis. Feiticeiras, eu acredito. Eu as evitava. Eram conhecidas por fornecer para
os membros do clube que poderiam ter interesses menos... agradáveis. Drogas de
demônio, prostitutas do Submundo, esse tipo de coisa.”
 “E os autômatos?”
Lady Belcourt agitou suas delicadas mãos de uma maneira entediada. “Se de
Quincey tem algum fascínio com peças de relógio, não sei nada sobre isso. Na verdade,
quando você entrou em contato comigo sobre de Quincey, Charlotte, eu não tinha intenção
de vir à tona com qualquer informação de modo algum. Uma coisa é partilhar alguns
segredos do Submundo com a Clave, outra coisa é trair o vampiro mais poderoso em
Londres. Isto é, até eu ouvir sobre sua pequena metamorfa.” Seus olhos verdes pousaram
sobre Tessa. Os lábios vermelhos sorriram. “Eu posso ver a semelhança familiar.”
Tessa fitou os olhos. “A semelhança com quem?”
“Com quem, com Nathaniel, é claro. Com seu irmão.”

Tessa sentiu como se água gelada tivesse sido despejada em sua nuca,
surpreendendo-a em total alerta. “Você viu meu irmão?”
Lady Belcourt sorriu, o sorriso de uma mulher que sabe que tem as pessoas na
palma da mão. “Eu o vi algumas vezes em diferentes ocasiões do Clube Pandemônio,” ela
disse. “Ele tinha aquele olhar infeliz sobre ele, pobre criatura, de um mundano sob um
feitiço. Provavelmente apostou tudo o que tinha. Eles sempre apostam. Charlotte me disse
que as Irmãs Sombrias o levaram; isso não me surpreende. Elas adoram puxar um
mundano para baixo com dívida e então recolher da maneira mais chocante...”
“Mas ele está vivo?” Tessa perguntou. “Você o viu vivo?”
“Foi há algum tempo, mas sim.” Lady Belcourt deu um aceno de mão. Suas luvas
eram escarlates, e suas mãos pareciam como se tivessem sido mergulhadas em sangue.
“Voltando ao assunto em questão,” ela disse. “Estávamos falando de de Quincey. Diga-
me, Charlotte, você sabia que ele promove festas em sua casa na cidade na Carleton
Square?”
Charlotte tirou as mãos do encosto da cadeira. “Eu já ouvi sobre isso.”
“Infelizmente,” disse Will, “Parece que ele se esqueceu de nos convidar. Talvez
nossos convites se extraviaram no correio.”
“Nestas festas,” Lady Belcourt continuou, “humanos são torturados e mortos.
Acredito que seus corpos sejam despejados no Tâmisa para os mudlarks47 escolherem.
Agora, você sabia disso?”
47 Um Mudlark é alguém que revira a lama do rio em busca dos itens de valor, especialmente em Londres, durante a
Revolução Industrial. Mudlarks iriam arrebanhar no rio Tamisa durante a maré baixa, em busca de algo de valor.
Até mesmo Will pareceu pego de surpresa. Charlotte disse, “Mas o assassinato de
seres humanos pelos Filhos da Noite é proibido nos termos da Lei—”
“E de Quincey despreza a Lei. Ele faz isso tanto para zombar dos Nefilins quanto
porque gosta da matança. Embora ele goste disso, não se enganem a respeito.”
Os lábios de Charlotte estavam lívidos. “Há quanto tempo isso vem acontecendo,
Camille?”
Então esse era o seu nome, Tessa pensou. Camille. Era um nome que soava francês;
talvez isso explicasse seu sotaque.
“Pelo menos um ano. Talvez mais.” O tom da vampira era frio, indiferente.
“E você só está me dizendo isso agora por que…” Charlotte pareceu magoada.
“O preço por revelar os segredos do Senhor de Londres é a morte,” Camille disse,
seus olhos verdes escurecendo. “E não teria feito nenhum bem a você, mesmo se eu tivesse

lhe dito. De Quincey é um de seus aliados. Você não tem nenhuma razão e nenhuma
desculpa para irromper em sua casa como se ele fosse um criminoso comum. Não sem
nenhuma evidência de infração da parte dele. Meu entendimento é de que, sob esses
novos Acordos, um vampiro deve efetivamente ser visto ferindo um humano antes dos
Nefilins poderem agir?”
“Sim,” disse Charlotte relutantemente, “mas se tivéssemos sido capazes de ir para
uma destas festas—”
Camille soltou uma breve risada. “De Quincey nunca deixaria que isso acontecesse!
Ao primeiro sinal de um Caçador das Sombras, ele teria trancado o local hermeticamente.
Você nunca teria sido autorizada a entrar.”
“Mas você poderia,” Charlotte disse. “Você poderia ter trazido um de nós com
você—”
A pluma no chapéu de Camille tremeu quando ela jogou a cabeça. “E arriscar
minha própria vida?”
“Bem, você não está exatamente viva, está?” disse Will.
“Prezo minha existência tanto quanto você, Caçador das Sombras,” disse Lady
Belcourt, estreitando os olhos. “Uma lição que você faria bem em aprender. Dificilmente
poderia ferir os Nefilins deixar de pensar que todos aqueles que não vivem exatamente
como eles vivem não devem, portanto, verdadeiramente viver afinal.”
Foi Jem que falou então, pelo que parecia ser a primeira vez desde que tinham
entrado na sala. “Lady Belcourt—se perdoa minha pergunta—o que é exatamente que
você quer de Tessa?”
Camille olhou diretamente para Tessa então, seus olhos verdes brilhantes como
joias. “Você pode se disfarçar como qualquer pessoa, está correto? Um disfarce perfeito—
aparência, voz e jeito? Foi isso o que ouvi.” Seus lábios ondularam. “Eu tenho minhas
fontes.”
“Sim,” Tessa disse hesitante. “Quer dizer, me disseram que o disfarce é idêntico.”
Camille a olhou estreitamente. “Teria que ser perfeito. Se você fosse se disfarçar
como eu—”
“Como você?” Charlotte disse. “Lady Belcourt, eu não entendo—”
“Eu entendo,” Will disse imediatamente. “Se Tessa estivesse disfarçada de Lady
Belcourt, ela poderia entrar em uma das festas de de Quincey. Ela poderia assisti-lo
quebrar a Lei. Então a Clave poderia atacar, sem quebrar os Acordos.”
“Um bom estrategista, você é.” Camille sorriu, mostrando seus dentes brancos
novamente.

“E seria também uma oportunidade perfeita para investigar a residência de de
Quincey,” disse Jem. “Ver o que podemos descobrir sobre seu interesse por esses
autômatos. Se ele realmente tem assassinado mundanos, não há razão para pensar que não
tenha sido por mais propósitos que mero esporte.” Ela deu um significativo olhar para
Charlotte, e Tessa sabia que ela estava pensando, como ela, nos corpos no porão da Casa
Sombria.
“Teríamos que descobrir uma forma de avisar a Clave de dentro da casa de de
Quincey,” Will pensou, seus olhos azuis já iluminados. “Talvez Henry pudesse planejar
algo. Seria de grande valor ter a planta da casa—”
“Will,” Tessa protestou. “Eu não—”
“E é claro que você não iria sozinha,” Will disse impacientemente “Eu iria com
você. Eu não deixaria nada acontecer a você.”
“Will, não,” Charlotte disse. “Você e Tessa sozinhos, em uma casa cheia de
vampiros? Eu proíbo.”
“Então, quem você enviaria com ela, se não eu?” Will reclamou. “Você sabe que eu
posso protegê-la, e você sabe que eu sou a escolha certa—”
“Eu poderia ir. Ou Henry—”
Camille, que estava observando tudo isso com um olhar misto de tédio e diversão,
disse, “Temo concordar com William. Os únicos indivíduos admitidos nessas festas são os
amigos íntimos de de Quincey, vampiros, e os humanos subjugados por vampiros. De
Quincey já viu Will antes, se passando por um mundano fascinado pelo oculto; ele não
ficará surpreso ao descobrir que ele se qualificou para servidão a um vampiro.”
Humanos subjugados. Tessa havia lido sobre eles no Códice: Subjugados, ou
aprendizes sombrios, eram mundanos, que haviam jurado servir um vampiro. Para o
vampiro, eles forneciam companhia e comida, e em troca recebiam pequenas transfusões
de sangue de vampiro em intervalos. Este sangue os mantinha ligados ao seu mestre
vampiro, e também assegurava de que quando morressem, se tornariam vampiros
também.
“Mas Will tem apenas dezessete anos,” Charlotte protestou.
“A maioria dos subjugados humanos são jovens,” disse Will. “Vampiros gostam de
adquirir seus subjugados quando são jovens—mais bonitos de se olhar, e menos chance de
sangue doente. E eles viverão um pouco mais, embora não muito.” Ele parecia satisfeito
consigo mesmo. “A maior parte do resto do Enclave não seria capaz de passar de forma
convincente como um humano subjugado jovem e bonito—”
“Porque o resto de nós é horrível, não somos?” Jem perguntou, parecendo
divertido. “É por isso que não posso fazê-lo?”

“Não,” Will disse. “Você sabe por que não pode ser você.” Ele disse isso sem
qualquer inflexão, e Jem, após olhá-lo por um momento, deu de ombros e desviou o olhar.
“Eu realmente não tenho certeza sobre isso,” Charlotte disse. “Quando o próximo
desses eventos está programado para acontecer, Camille?”
“Sábado à noite.”
Charlotte respirou fundo. “Terei que falar com o Enclave, antes que eu possa
concordar. E Tessa teria que concordar, também.”
Todos olharam para Tessa.
Ela lambeu os lábios secos novamente. “Você acredita,” disse para Lady Belcourt,
“que existe uma chance de que meu irmão possa estar lá?”
“Não posso prometer que ele estará lá. Ele pode. Mas alguém lá provavelmente
saberá o que aconteceu com ele. A Irmãs Sombrias eram assíduas nas festas de de
Quincey; sem dúvida, elas ou seus companheiros, se capturados e interrogados, irão
apresentar-lhe algumas respostas.”
O estômago de Tessa se agitou. “Eu farei,” ela disse. “Mas quero que me prometam
que, se Nate estiver lá, nós iremos tirá-lo, e se ele não estiver, iremos descobrir onde ele
está. Eu quero ter certeza de não é tudo sobre a captura de de Quincey. Deve ser sobre
resgatar Nate, também.”
“Certamente,” Charlotte disse. “Mas eu não sei, Tessa. Será muito perigoso—”
“Você já se Transformou em um Habitante do Submundo?” Will questionou. “Você
pelo menos sabe se é algo que seria possível?”
Tessa sacudiu a cabeça. “Eu nunca fiz nada parecido. Mas… eu poderia tentar.” Ela
virou-se para Lady Belcourt. “Eu poderia ter algo seu? Um anel, ou um lenço, talvez.”
Camille colocou as mãos atrás da cabeça, afastando os grossos cachos de cabelo
loiro-prateado que estavam contra seu pescoço, e abriu seu colar. Deixando-o pendurado
em seus dedos finos, ela o estendeu para Tessa. “Aqui. Tome isto.”
Com uma carranca Jem se adiantou para pegar o colar, e então o estendeu para
Tessa. Ela sentiu o peso do objeto quando o tomou dele. Era pesado, e o pingente
quadrado de rubi do tamanho do ovo de uma ave era frio ao toque, frio como se tivesse
estado na neve. Fechar a mão em torno dele era como fechar os dedos ao redor de um
pedaço de gelo. Ela respirou fundo, e fechou os olhos.
Foi estranho, diferente desta vez quando a transformação começou. A escuridão
chegou rapidamente, envolvendo-se em torno dela, e a luz que ela viu ao longe era um frio
brilho prateado. O frio que fluía da luz era escaldante. Tessa atraiu a luz em sua direção,

envolvendo-se com a sua luz gelada ardente, impulsionando-se até o centro dela. A luz
cresceu em paredes brancas cintilantes ao seu redor—
Ela sentiu uma dor aguda em seguida, no centro do peito, e por um momento sua
visão ficou vermelha—escarlate intenso, cor de sangue. Tudo era cor de sangue, e ela
começou a entrar em pânico, lutando para se libertar, suas pálpebras abrindo—
E lá estava ela novamente, na Sala Santuário, com todos os outros olhando para ela.
Camille estava sorrindo ligeiramente; os outros pareciam assustados, se não tão
atordoados quanto tinham ficado quando ela havia se transformado em Jessamine.
Mas algo estava terrivelmente errado. Havia um grande vazio dentro dela—não
dor, mas uma sensação profunda de que faltava algo. Tessa sufocou, e um choque
lancinante a atravessou. Ela afundou-se numa poltrona, com as mãos apertadas contra o
peito. Ela estava tremendo toda.
“Tessa?” Jem se ajoelhou ao lado da cadeira, tomando uma de suas mãos. Ela podia
se ver no espelho que estava pendurado na parede oposta—ou mais exatamente, ela podia
ver a imagem de Camille. O brilhante cabelo pálido de Camille, solto, caía sobre seus
ombros, e sua pele branca subia e derramava sobre o corpete do vestido agora
demasiadamente apertado de Tessa de uma forma que a teria feito ruborizar—se ela
pudesse ruborizar. Mas ruborizar precisaria de sangue realmente correndo em suas veias,
e ela se lembrou, com um terror crescente, que vampiros não respiravam, não ficavam
quentes ou frios, e não tinham corações batendo em seus peitos.
Então isso era o vazio, a estranheza que ela sentia Seu coração estava imóvel, em seu
peito como uma coisa morta. Ela tomou outro fôlego soluçante. Doeu, e ela percebeu que,
embora pudesse respirar, seu novo corpo não queria ou precisava disso.
“Oh, Deus,” ela disse em um suave sussurro para Jem. “Eu—meu coração não está
batendo. Eu sinto como se tivesse morrido. Jem—”
Ele acariciou-lhe a mão, cuidadosamente, suavemente, e a olhou com seus olhos
prateados. A expressão neles não havia mudado com a transformação dela; ele a olhava
como antes, como se ainda fosse Tessa Gray. “Você está viva,” disse ele, numa voz tão
suave que só ela podia ouvi-lo. “Você está usando uma pele diferente, mas você é Tessa, e
você está viva. Você sabe como eu sei disso?”
Ela sacudiu a cabeça.
“Porque você disse a palavra “Deus” agora para mim. Nenhum vampiro poderia
dizer isso.” Ele apertou a mão dela. “Sua alma ainda é a mesma.”
Ela fechou os olhos e permaneceu sentada por um momento, concentrando-se na
pressão da mão dele sobre a sua, sua pele quente contra a dela que estava muito gelada.

Lentamente, o tremor que sacudia seu corpo começou a desvanecer; ela abriu seus olhos, e
deu a Jem um sorriso fraco, instável.
“Tessa,” disse Charlotte. “Você está—está tudo bem?”
Tessa afastou seus olhos do rosto de Jem e olhou para Charlotte, que estava
olhando para ela com um olhar ansioso. Will, ao lado de Charlotte, tinha uma expressão
ilegível.
“Você terá que praticar um pouco, movendo-se e se portando, se você quiser
convencer de Quincey que você é eu,” Lady Belcourt disse. “Eu nunca cairia em uma
cadeira assim.” Ela inclinou a cabeça para o lado. “Ainda assim, no geral, uma exibição
impressionante. Alguém treinou você bem.”
Tessa pensou nas Irmãs Sombrias. Teriam elas a treinado bem? Teriam elas feito-lhe
um favor, desbloqueando esse poder adormecido dentro dela, apesar do quanto ela odiava
elas e isso? Ou teria sido melhor se ela nunca tivesse sabido que era diferente?
Lentamente ela deixou ir, deixou a pele de Camille escapar dela. Era como se ela
estivesse emergindo da água gelada. Sua mão apertou a de Jem quando um calafrio correu
através dela, da cabeça aos pés, uma cascata congelante. Algo saltou dentro de seu peito
então. Como um pássaro que havia ficado atordoado e imóvel depois de voar em uma
janela, apenas para reunir suas forças e pular do chão para voar no ar, seu coração
começou subitamente a bater de novo. Ar preencheu seus pulmões, e ela soltou Jem, suas
mãos voando para seu peito, seus dedos pressionados contra sua pele para sentir o ritmo
suave sob eles.
Ela olhou no espelho do outro lado da sala. Ela era ela mesma novamente: Tessa
Gray, não uma vampira miraculosamente bonita. Ela sentiu um enorme alívio.
“Meu colar?” Lady Belcourt disse friamente, e estendeu a mão delgada. Jem pegou
o pingente de rubi de Tessa para levá-lo para a vampira; quando ele o levantou, Tessa viu
que havia palavras gravadas na moldura de prata do pingente: AMOR VERUS
NUMQUAM MORITUR48.
48 O amor verdadeiro nunca morre.
Ela olhou para o outro lado da sala para Will, ela não estava certa do porquê,
apenas para descobrir que ele estava olhando para ela. Ambos olharam rapidamente para
longe. “Lady Belcourt,” Will disse, “como nenhum de nós jamais esteve na casa de de
Quincey, você acha que seria possível você nos fornecer uma planta, ou até mesmo um
esboço do terreno e dos aposentos?”
“Eu lhes darei algo melhor.” Lady Belcourt levantou os braços para fechar o colar
em volta do pescoço. “Magnus Bane.”

“O feiticeiro?” Charlotte levantou as sobrancelhas.
“Sem dúvida,” disse Lady Belcourt. “Ele conhece a casa da cidade tão bem quanto
eu e frequentemente é convidado para os eventos sociais de de Quincey. Embora, como
eu, ele tenha a princípio evitado as festas em que assassinatos são cometidos.”
“Nobre da parte dele,” murmurou Will.
“Ele irá enconcontrá-los lá, e guiá-los pela casa. Ninguém lá irá se surpreender ao
nos ver juntos. Magnus Bane é meu amante, você sabe.”
A boca de Tessa abriu ligeiramente. Este não era o tipo de coisa que damas diriam
em companhia educada, ou em qualquer outra companhia. Mas talvez fosse diferente para
vampiros? Todos os outros pareciam tão surpresos quanto ela, exceto Will, que como
sempre parecia como se estivesse tentando não rir.
“Que bom,” Charlotte disse finalmente, depois de uma pausa.
“De fato é,” Camille disse, e levantou-se. “E agora, se alguém me acompanhar até lá
fora. Está ficando tarde, e eu ainda não me alimentei.”
Charlotte, que estava observando Tessa com preocupação, disse, “Will, Jem, se
vocês puderem ir?”
Tessa observou enquanto os dois rapazes ladearam Camille como soldados—o que,
ela supôs, era o que eles eram—e a seguiram pela sala. Antes de atravessar a porta, a
vampira parou e olhou para trás por cima do ombro. Seus pálidos cachos loiros tocaram
de leve em suas bochechas enquanto ela sorria; ela era tão bonita que Tessa sentiu uma
espécie de angústia, olhando para ela, repelindo seu instintivo sentimento de aversão.
“Se você fizer isso,” disse Camille, “e tiver sucesso—encontrando ou não seu
irmão—eu posso lhe prometer, pequena trocadora de forma, que você não irá se
arrepender.”
Tessa franziu a testa, mas Camille já tinha ido. Ela se moveu tão rápido que era
como se ela tivesse desaparecido entre uma respiração e a próxima. Tessa voltou-se para
Charlotte. “O que você acha que ela quis dizer com isso? Que eu não irei me arrepender?”
Charlotte sacudiu a cabeça. “Eu não sei.” Ela suspirou. “Eu gostaria de pensar que
ela queria dizer que o conhecimento de uma boa ação realizada deveria consolá-la, mas é
Camille, então…”
“Todos os vampiros são assim?” Tessa perguntou. “Frios assim?”
“Muitos deles estão vivos por muito tempo,” Charlotte disse diplomaticamente.
“Eles não veem as coisas do modo que vemos.”
Tessa colocou seus dedos em suas têmporas doendo. “De fato, eles não veem.”


De todas as coisas que incomodavam Will sobre vampiros—a forma como eles se
moviam silenciosamente, o timbre baixo e desumano de suas vozes—era a maneira como
eles cheiravam que mais o incomodava. Ou melhor, a maneira como eles não cheiravam.
Todos os seres humanos cheiravam a algo—suor, sabonete, perfume—mas vampiros não
tinham nenhum cheiro, como bonecos de cera.
À frente dele, Jem estava segurando a última porta que levava do Santuário ao
saguão externo do Instituto. Toda essa extensão havia sido desconsagrada de modo que
vampiros e outros da sua classe pudessem usá-la, mas Camille nunca poderia ir mais
distante dentro do Instituto do que aquilo. Escoltá-la para fora era mais que um serviço de
cortesia. Eles estavam se certificando de que ela não vagaria acidentalmente em solo
consagrado, o que seria perigoso para todos os envolvidos.
Camille passou por Jem, mal olhando para ele, e Will a seguiu, parando apenas o
tempo suficiente para murmurar “Ela não cheira a nada” baixinho para Jem.
Jem pareceu alarmado. “Você tem cheirado ela?”
Camille, que estava esperando ao lado da próxima porta por eles, virou a cabeça e
sorriu. “Eu posso ouvir tudo o que vocês dizem, sabem,” ela disse. “É verdade, vampiros
não têm nenhum cheiro. Faz-nos predadores melhores.”
“Isso, e excelente audição,” Jem disse, e deixou a porta fechar atrás de Will. Eles
estavam de pé na pequena entrada quadrada com Camille agora, a mão dela na maçaneta
da porta da frente como se ela quisesse se apressar, mas não havia nenhuma pressa em sua
expressão quando ela olhou para eles.
“Olhe para vocês dois,” ela disse, “tudo preto e prata. Você poderia ser um
vampiro,” ela disse para Jem, “com a sua palidez, e sua aparência. E você,” ela disse para
Will, “bem, eu não acho que ninguém na casa de de Quincey terá dúvidas de que você
poderia ser meu humano subjugado.”
Jem estava olhando para Camille, com aquele olhar que Will sempre pensou que
poderia cortar vidro. Ele disse:
“Por que você está fazendo isso, Lady Belcourt? Este seu plano, de Quincey, tudo
isso—por quê?”
Camille sorriu. Ela era bonita, Will tinha que admitir—mas por outro lado, um
monte de vampiros eram belos. Suas belezas sempre lhe pareceram como a beleza de
flores prensadas—lindas, mas mortas. “Porque o conhecimento do que ele estava fazendo
pesou na minha consciência.”

 Jem balançou a cabeça. “Talvez você seja do tipo que se sacrificaria no altar dos
princípios, mas eu duvido. A maioria de nós faz as coisas por razões que são mais
puramente pessoais. Por amor, ou por ódio.”
“Ou por vingança,” Will disse. “Afunal, você sabia sobre o que estava acontecendo
há um ano, e só agora veio a nós.”
“Isso por causa da Srta. Gray.”
“Sim, mas isso não é tudo, é?” Jem disse. “Tessa é sua oportunidade, mas sua razão,
seu motivo, é outra coisa.” Ele inclinou a cabeça para o lado. “Por que você odeia tanto de
Quincey?”
“Eu não vejo em que isso é da sua conta, pequeno Caçador das Sombras prateado,”
Camille disse, e seus lábios foram puxados de seus dentes, deixando suas presas visíveis,
como pedaços de marfim contra o vermelho de seus lábios. Will sabia que os vampiros
podiam mostrar suas presas à vontade, mas ainda era enervante. “Por que importam quais
são meus motivos?”
Will completou a resposta para Jem, já sabendo o que o outro rapaz havia pensado.
“Porque de outra forma não podemos confiar em você. Talvez você nos esteja enviando
para uma armadilha. Charlotte não iria querer acreditar, mas isso não faz com que não seja
possível.”
“Levá-los para uma armadilha?” O tom de Camille era de zombaria. “E incorrer na
atemorizante ira da Clave? Pouco provável!”
“Lady Belcourt,” disse Jem, “o que quer que Charlotte possa ter prometido a você,
se quiser nossa ajuda, você vai responder a pergunta.”
“Muito bem,” ela disse. “Posso ver que vocês não ficarão satisfeitos a menos que eu
lhe dê uma explicação. Você,” disse ela, acenando com a cabeça para Will, “está certo. E
você parece saber um montante curioso sobre amor e vingança para alguém tão jovem;
devemos discuti-las um dia, juntos.” Ela sorriu novamente, mas o sorriso não alcançou
seus olhos. “Eu tinha um amante, vocês sabem,” ela disse. “Ele era um metamorfo, um
licantropo. É proibido aos Filhos da Noite amar ou se deitar com os Filhos da Lua. Nós
éramos cuidadosos, mas de Quincey nos descobriu. Descobriu-nos e o assassinou,
praticamente da mesma maneira como ele irá assassinar algum pobre prisioneiro
mundano em sua próxima festa.” Seus olhos brilhavam como lâmpadas verdes quando ela
olhou para os dois. “Eu o amava, e de Quincey o assassinou, e outros da minha espécie o
ajudaram e incentivaram. Eu não irei perdoá-los por isso. Mate-os todos.”

Os Acordos, agora com dez anos de idade, marcaram um momento histórico para
ambos, Nefilins e Habitantes do Submundo. Não mais os dois grupos se esforçariam para

destruir uns aos outros. Eles estariam unidos contra um inimigo comum, o demônio. Havia
cinquenta homens no momento da assinatura dos Acordos em Idris: dez dos Filhos da Noite;
dez dos Filhos de Lilith, conhecidos como feiticeiros; dez do Povo Justo; dez dos Filhos da
Lua; e dez do Sangue de Raziel—
Tessa acordou pulando com o som de uma batida em sua porta; ela estava meio
adormecida no travesseiro, seu dedo ainda mantendo um lugar no Códice do Caçador das
Sombras. Depois de abaixar o livro, ela mal teve tempo de sentar e tirar as cobertas de cima
dela antes que a porta se abrisse.
Para dentro veio a luz de lampião, e Charlotte com ela. Tessa sentiu uma pontada
estranha, quase desapontamento—mas quem mais ela estava esperando? Apesar de ser
tarde, Charlotte estava vestida como se planejasse sair. Seu rosto estava muito sério, e
havia linhas de cansaço debaixo dos seus olhos escuros. “Você está acordada?”
Tessa assentiu, e levantou o livro que ela estava lendo. “Lendo.”
Charlotte não disse nada, mas atravessou o quarto e sentou-se aos pés da cama de
Tessa. Ela estendeu sua mão. Algo brilhava na palma; era o pingente de anjo de Tessa.
“Você deixou isso com Henry.”
Tessa abaixou o livro e pegou o pingente. Ela escorregou a corrente pela cabeça, e
sentiu-se reconfortada quando o peso familiar repousou contra o vazio em sua garganta.
“Ele descobriu alguma coisa dele?”
“Eu não tenho certeza. Ele disse que estava entupido por dentro com anos de
ferrugem, que era um milagre que ainda estivesse funcionando. Ele limpou o mecanismo,
mas não parece ter resultado em uma grande mudança. Talvez ele tiquetaqueie mais
regularmente agora?”
“Talvez.” Tessa não se importava; ela estava apenas feliz por ter o anjo, o símbolo
de sua mãe e sua vida em Nova York, de volta em sua posse.
Charlotte cruzou as mãos no colo. “Tessa, há algo que eu não lhe contei.”
O coração de Tessa começou a bater mais rápido. “O quê?”
“Mortmain...” Charlotte hesitou. “Quando eu disse que Mortmain apresentou seu
irmão ao Clube Pandemônio, isso era verdade, mas não toda a verdade. Seu irmão já sabia
sobre o Mundo das Sombras, antes que Mortmain lhe dissesse. Parece que ele aprendeu
sobre o assunto com seu pai.”
Atordoada, Tessa ficou em silêncio.
“Quantos anos você tinha quando seus pais morreram?” Charlotte perguntou.
“Foi um acidente,” disse Tessa, um pouco aturdida. “Eu tinha três anos. Nate tinha
seis.”

Charlote franziu a testa. “Tão jovem para o seu pai confidenciar a seu irmão, mas...
Suponho que é possível.”
“Não,” disse Tessa. "Não, você não entende. Eu tive a educação mais comum, mais
humana, que se possa imaginar. Tia Harriet, ela era a mulher mais prática do mundo. E ela
teria sabido, não teria? Ela era irmã mais nova de mamãe; eles a trouxeram com eles de
Londres, quando vieram para a América.”
“As pessoas guardam segredos, Tessa, às vezes até mesmo daqueles que amam.”
Charlotte deslizou os dedos sobre a capa do Códice, com o seu selo em alto relevo. “E você
tem que admitir que faz sentido.”
“Sentido? Não faz qualquer tipo de sentido!”
“Tessa...” Charlotte suspirou. “Não sabemos por que você tem a habilidade que
tem. Mas se um de seus pais estivesse ligado de alguma forma ao mundo mágico, não faz
sentido que essa ligação possa ter algo a ver com isso? Se o seu pai era um membro do
Clube Pandemônio, não é como de Quincey poderia ter sabido sobre você?”
“Eu suponho.” Tessa falou de má vontade. “É só... eu acreditava tão fortemente
quando cheguei a Londres, que tudo o que estava acontecendo comigo era um sonho. Que
a minha vida antes tinha sido real e esta era um terrível pesadelo. Eu pensei que, se eu
apenas pudesse encontrar Nate, nós poderíamos voltar à vida que tínhamos antes.” Ela
levantou os olhos para Charlotte. “Mas agora eu não posso evitar me perguntar se talvez a
vida que eu tinha antes era o sonho e tudo isso era a verdade. Se meus pais sabiam do
Clube Pandemônio—se faziam parte do Mundo das Sombras também—então não existe
um mundo para o qual eu possa voltar que esteja limpo de tudo isso.”
Charlotte, suas mãos ainda cruzadas sobre o colo, olhou para Tessa com firmeza.
“Alguma vez você já se perguntou por que o rosto de Sophie é marcado?”
Apanhada desprevenida, Tessa só conseguiu balbuciar. “E—eu tive curiosidade,
mas eu—não quis perguntar.”
“Nem deveria,” disse Charlotte. Sua voz era firme e fria. “Quando vi Sophie pela
primeira vez, ela estava agachada em uma porta, imunda, com um trapo sangrento
agarrado ao seu rosto. Ela me viu enquanto eu passei, embora eu estivesse encantada com
glamour naquela hora. Isso foi o que chamou minha atenção para ela. Ela tem um toque da
Visão, assim como Thomas e Agatha. Ofereci-lhe dinheiro, mas ela não quis aceitar. Eu a
convenci a me acompanhar até uma loja de chá, e ela me contou o que tinha acontecido
com ela. Ela havia sido uma criada de salão, em uma bela casa em St. John's Wood49.
Criadas de salão, é claro, são escolhidas pela sua aparência, e Sophie era linda—que
acabou por ser ao mesmo tempo uma vantagem e uma desvantagem muito grande para
ela. Como você pode imaginar, o filho da casa teve um interesse em seduzi-la. Ela o
49 Distrito do noroeste de Londres.

recusou diversas vezes. Num acesso de raiva, ele pegou uma faca e rasgou o rosto dela,
dizendo que se ele não podia tê-la, ele iria se certificar de que ninguém nunca a quisesse
novamente.”
“Que horrível,” sussurrou Tessa.
“Ela foi até sua senhora, a mãe do menino, mas ele alegou que ela havia tentado
seduzi-lo, e ele tomou a faca para lutar contra ela e proteger a sua virtude. Claro, eles a
despejaram na rua. Quando eu a encontrei, seu rosto estava muito infectado. Eu a trouxe
aqui e os Irmãos Silenciosos cuidaram dela, mas embora eles tenha curado a infecção, eles
não puderam sarar a cicatriz.”
Tessa colocou a mão no próprio rosto em um gesto inconsciente de simpatia. “Pobre
Sophie.”
Charlotte inclinou a cabeça para o lado e olhou para Tessa com seus olhos
castanhos. Ela tinha uma presença tão forte, Tessa pensou, que era difícil lembrar algumas
vezes quão fisicamente pequena ela era, quão delicada e minúscula. “Sophie tem um
dom,” ela disse. “Ela tem a Visão. Ela pode ver o que os outros não podem. Em sua vida
antiga, ela muitas vezes se perguntou se estava louca. Agora ela sabe que não é louca, e
sim especial. Lá, ela era apenas uma criada de salão, que provavelmente iria perder sua
posição quando sua aparência se deteriorasse. Agora ela é um membro valioso de nossa
residência, uma garota dotada com muito a contribuir.” Charlotte se inclinou para frente.
“Você olha para trás para a vida que tinha, Tessa, e ela parece segura para você em
comparação com esta. Mas você e sua tia eram muito pobres, se não me engano. Se você
não tivesse vindo para Londres, para onde teria ido quando ela morreu? O que você teria
feito? Você teria se encontrado chorando em um beco como a nossa Sophie?” Charlotte
balançou a cabeça. “Você tem um poder de valor incalculável. Você não precisa pedir nada
a ninguém. Você não precisa depender de ninguém. Você é livre, e essa liberdade é um
dom.”
“É difícil pensar em algo como um dom quando você foi atormentado e aprisionado
por isso.”
Charlotte balançou a cabeça. “Sophie me disse uma vez que ela estava feliz por ter
uma cicatriz. Ela disse que quem a amasse agora, amaria seu eu verdadeiro, e não seu
rosto bonito. Este é o seu verdadeiro eu, Tessa. Este poder é quem você é. Quem a amar
agora—e você também deve amar a si mesma—irá amar a verdadeira você.”
Tessa apanhou o Códice e abraçou-o contra o peito. “Então você está dizendo que
estou certa. Isto é o que é real, e a vida que eu tinha antes era o sonho.”
“Está certa.” Gentilmente Charlotte deu tapinhas no ombro de Tessa; Tessa quase
pulou com o contato. Tinha se passado um longo tempo, pensou ela, desde que alguém a
havia tocado de uma forma tão maternal; ela pensou em Tia Harriet, e sua garganta doeu.
“E agora é hora de acordar.”

9
O Enclave


Pode fazer de meu coração uma pedra de moinho, usar meu rosto como um sílex50,
50 Rocha muito dura composta de calcedônia e opala, de cor ruiva, parda ou negra.
Enganar e ser enganado, e morrer: quem sabe? Nós somos cinzas e pó.
—Alfred, Lorde Tennyson, Maud


“Tente novamente,” Will sugeriu. “Apenas ande de uma extremidade do quarto
para a outra. Nós lhe diremos se você parece convincente."
Tessa suspirou. Sua cabeça latejava, assim como o fundo de seus olhos. Era
cansativo aprender a fingir ser um vampiro.
Fazia dois dias desde a visita de Lady Belcourt, e Tessa tinha gasto quase todos os
momentos desde então tentando transformar-se de forma convincente na mulher vampira,
sem enomes sucessos. Ela ainda se sentia como se estivesse deslizando ao redor da
superfície da mente de Camille, incapaz de penetrar através disso e agarrar pensamentos
ou personalidade. Isso tornava difícil saber como andar, como falar, e que tipo de
expressões ela deveria estar usando quando encontrasse os vampiros na festa de de
Quincey—que, sem dúvida, Camille conhecia muito bem, e que seria esperado que Tessa
conhecesse também.
Ela estava na biblioteca agora, e havia passado as últimas horas desde o almoço
praticando caminhar com o estranho caminhar deslizante de Camille, e falando com sua
voz arrastada cuidadosa. Fixado em seu ombro estava um broche de jóias que um dos
humanos subjugados de Camille, uma pequena criatura enrugada chamada Archer, tinha
trazido em um baú. Havia um vestido, também, para Tessa vestir para de Quincey, mas
era muito pesado e elaborado para o período diurno. Tessa fazia isso com seu próprio
vestido novo azul e branco, que era incomodamente muito apertado no peito e muito
frouxo na cintura sempre que ela mudava para Camille.
Jem e Will haviam montado acampamento em uma das longas mesas nos fundos da
biblioteca, ostensivamente para ajudá-la e aconselhá-la, mas mais provavelmente, ao que

parecia, para zombar e se divertir com sua consternação. “Você aponta muito seus pés
para fora quando anda,” Will continuou. Ele estava ocupado polindo uma maçã no peito
de sua camisa, e parecia não notar Tessa olhando raivosamente para ele. “Camille anda
delicadamente. Como um fauno na floresta. Não como um pato.”
“Eu não ando como um pato.”
“Eu gosto de patos,” Jem observou diplomaticamente. "Principalmente aqueles no
Hyde Park." Ele olhou de soslaio para Will; os dois rapazes estavam sentados na borda da
mesa alta, com as pernas balançando do lado. “Lembra quando você tentou me convencer
a alimentar com uma torta de frango aos marrecos no parque para ver se você poderia
criar uma raça de patos canibais?”
“Eles comeram também,” Will relembrou. “Pequenas bestas sanguinárias. Nunca
confie em um pato.”
“Vocês se importam?” Tessa exigiu. “Se vocês não irão me ajudar, podem muito
bem sair daqui os dois. Eu não deixei vocês ficarem aqui para que pudesse ouvi-los falar
besteiras sobre patos.”
“Sua impaciência,” disse Will, “é muito imprópria para uma dama.” Ele sorriu para
ela em torno da maçã. “Talvez a natureza vampírica de Camille esteja se afirmando?”
Seu tom era brincalhão. Era tão estranho, pensou Tessa. Apenas alguns dias atrás,
ele havia rosnado para ela sobre seus pais, e depois havia implorado a ela para ajudá-lo a
esconder a tosse com sangue de Jem, seu rosto queimando com uma intensidade enquanto
ele o fazia. E agora ele estava brincando com ela como se ela fosse a irmãzinha de um
amigo, alguém que ele conhecia casualmente, talvez pensasse com carinho, mas por quem
ele não tinha sentimentos complexos.
Tessa mordeu seu lábio—e estremeceu com a dor aguda e inesperada. Os dentes de
vampiro de Camille—seus dentes—eram governados por um instinto que ela não
conseguia entender. Eles pareciam deslizar para frente sem aviso ou momento, alertando-a
para a sua presença apenas por explosões repentinas de dor quando eles perfuravam a
pele frágil de seu lábio. Ela sentiu o gosto de sangue em sua boca—seu próprio sangue,
salgado e quente. Ela pressionou os dedos à boca; quando tirou a mão, seus dedos
estavam manchados de vermelho.
“Deixe isso quieto,” disse Will, baixando sua maçã e ficando de pé. “Você irá
descobrir que se cura rapidamente.”
Tessa cutucou seu incisivo esquerdo com a língua. Ele estava plano de novo, um
dente normal. “Eu não entendo o que os faz sair desse jeito!”
“Fome,” disse Jem. “Você estava pensando sobre sangue?”
“Não.”

“Você estava pensando em me comer?” Will perguntou.
“Não!”
“Ninguém iria culpá-la,” disse Jem. “Ele é muito chato.”
Tessa suspirou. “Camille é tão difícil. Eu não entendo nada sobre ela, muito menos
ser ela.”
Jem olhou para ela de perto. “Você é capaz de tocar os pensamentos dela? Da forma
como você disse que podia tocar os pensamentos daqueles em quem se transformava?”
“Ainda não. Eu tenho tentado, mas tudo que consigo são flashes ocasionais,
imagens. Seus pensamentos parecem muito bem protegidos.”
“Bem, espero que você possa quebrar essa proteção antes de amanhã à noite,” disse
Will. “Ou eu não diria muito sobre as nossas chances.”
“Will,” Jem censurou. “Não diga isso.”
“Você está certo,” disse Will. “Eu não deveria subestimar minhas próprias
habilidades. Se Tessa fizer uma confusão das coisas, eu tenho certeza que serei capaz de
lutar nosso caminho através das massas de vampiros escravocratas para a liberdade.”
Jem—como era seu hábito, Tessa estava começando a perceber—simplesmente
ignorou isso. “Talvez,” ele disse, “você só possa tocar os pensamentos dos mortos, Tessa?
Talvez a maioria dos objetos dados a você pelas Irmãs Sombrias foi tirada de pessoas que
foram assassinadas.”
“Não. Eu toquei os pensamentos de Jessamine quando me Transformei nela. Então
não pode ser isso, felizmente. Que talento mórbido seria.”
Jem estava olhando para ela com olhos prateados pensativos; algo sobre a
intensidade de seu olhar a fazia se sentir quase desconfortável. “Quão claramente você
pode ver os pensamentos dos mortos? Por exemplo, se eu lhe der um item que tinha
pertencido a meu pai, você saberia o que ele estava pensando quando morreu?”
Foi a vez de Will parecer alarmado. “James, eu não acho—,” ele começou, mas
parou quando a porta da biblioteca se abriu e Charlotte entrou na sala. Ela não estava
sozinha. Havia pelo menos uma dúzia de homens seguindo-a, estranhos que Tessa nunca
tinha visto antes.
“O Enclave,” sussurrou Will, e gesticulou para Jem e Tessa para se esconderem
atrás de uma das estantes de três metros. Eles observaram de seu esconderijo enquanto a
sala se enchia de Caçadores das Sombras—a maioria deles homens. Mas Tessa viu,
enquanto entravam na sala, que entre eles estavam duas mulheres.

Ela não podia deixar de olhar para elas, lembrando o que Will tinha dito sobre
Boadiceia, que as mulheres poderiam ser guerreiras também. A mais alta das mulheres—e
ela devia ter quase um metro e oitenta e cinco de altura—tinha cabelos brancos
polvilhados presos em uma coroa na parte de trás da cabeça dela. Ela parecia como se
estivesse bem em seus sessenta anos, e sua presença era real. A segunda das mulheres era
mais jovem, com cabelos escuros, olhos felinos, e um comportamento reservado.
Os homens eram um grupo mais misto. O mais velho era um homem alto, vestido
todo em cinza. Seus cabelos e pele eram cinzentos também, seu rosto ossudo e aquilino,
com um nariz fino e forte, e queixo pontudo. Havia linhas duras nos cantos dos olhos e
depressões escuras embaixo das maçãs do rosto. Seus olhos eram rodeados de vermelho.
Ao lado dele estava o mais novo do grupo, um garoto provavelmente não mais do que um
ano mais velho que Jem ou Will. Ele era bonito em uma espécie de forma angular, com
características definidas, mas comuns, cabelos castanhos desgrenhados, e uma expressão
alerta.
Jem fez um barulho de surpresa e desagrado. “Gabriel Lightwood,” ele murmurou
para Will baixinho. “O que ele está fazendo aqui? Eu pensei que ele estava na escola em
Idris.”
Will não se moveu. Ele estava encarando o menino de cabelos castanhos com as
sobrancelhas levantadas, um sorriso brincando nos lábios.
“Só não entre em uma briga com ele, Will,” Jem acrescentou apressadamente. “Não
aqui. Isso é tudo que peço.”
“Um pouco demais para se pedir, você não acha?” Will disse sem olhar para Jem.
Will tinha se inclinado para fora da estante, e estava assistindo Charlotte enquanto ela
conduzia todos para a mesa grande na frente da sala. Ela parecia estar pedindo a todos
que se instalassem nas cadeiras ao redor da mesa.
“Frederick Ashdown e George Penhallow, aqui, se vocês fezerem o favor,” disse
Charlotte. “Lilian Highsmith, se você sentar ali perto do mapa—”
“E onde está Henry?” perguntou o homem grisalho com um ar de brusca educação.
“O seu marido? Como um dos chefes do Instituto, ele realmente deveria estar aqui.”
Charlotte hesitou por uma fração de segundo antes de fixar um sorriso em seu
rosto. “Ele está a caminho, Sr. Lightwood,” disse ela, e Tessa percebeu duas coisas—uma,
que o homem de cabelos grisalhos era provavelmente o pai de Gabriel Lightwood, e dois,
que Charlotte estava mentindo.
“É melhor que ele esteja,” Sr. Lightwood murmurou. “Uma reunião do Enclave sem
o chefe do Instituto presente—coisa mais irregular.” Ele se virou então, e embora Will
tivesse se movido para trás da estante alta, já era tarde demais. Os olhos do homem
diminuiram. “E quem está ali atrás, então? Saia e mostre-se!”

Will olhou para Jem, que encolheu os ombros com eloquência. “Não há por que se
esconder até que eles nos arrastem para fora, não é?”
“Fale por si mesmo,” Tessa sibilou. “Eu não preciso de Charlotte com raiva de mim
se não era para nós estarmos aqui.”
“Não fique nervosa com isso. Não há nenhuma razão para que você tivesse alguma
ideia sobre a reunião do Enclave, e Charlotte está perfeitamente consciente disso,” Will
disse. “Ela sempre sabe exatamente quem culpar.” Ele sorriu. “Eu viraria você de volta em
você mesma, se você me entende. Não há necessidade de dar um choque tão grande às
velhas constituições grisalhas deles.”
“Oh!” Por um momento, Tessa tinha quase esquecido que ela ainda estava
disfarçada de Camille. Rapidamente ela começou a trabalhar em despojar a transformação,
e pelo tempo que os três saíram de trás da estante, ela era ela mesma novamente.
“Will.” Charlotte suspirou ao vê-lo, e balançou a cabeça em direção a Tessa e Jem.
“Eu disse que o Enclave teria uma reunião aqui às quatro horas.”
“Você disse?” Will disse. “Eu devo ter esquecido isso. Que horror.” Seus olhos
deslizaram de lado, e ele sorriu. “E aí, Gabriel.”
O garoto de cabelos castanhos retornou o olhar de Will com um olhar furioso. Ele
tinha olhos verdes muito brilhantes, e sua boca, enquanto olhava para Will, estava dura
com nojo. “William,” disse ele, finalmente, e com algum esforço. Ele virou seu olhar sobre
Jem. “E James. Vocês não são um pouco jovens para estar à espreita em reuniões do
Enclave?”
“Você não é?” Jem disse.
“Eu fiz dezoito anos em junho,” disse Gabriel, inclinando-se tanto para trás em sua
cadeira que as pernas da frente saíram do chão. “Eu tenho todo o direito de participar das
atividades do Enclave agora.”
“Que fascinante para você,” disse a mulher de cabelos brancos que Tessa tinha
pensado parecer régia. “Então esta é ela, Lottie? A garota feiticeira sobre a qual você
estava nos falando?” A pergunta era dirigida a Charlotte, mas o olhar da mulher
repousava sobre Tessa. “Ela não parece grande coisa.”
“Nem Magnus Bane na primeira vez que o vi,” disse o Sr. Lightwood, dobrando um
olhar curioso sobre Tessa. “Vamos ver então. Mostre-nos o que você pode fazer.”
“Eu não sou uma feiticeira,” Tessa protestou furiosamente.
“Bem, você é certamente algo, minha menina,” disse a mulher mais velha. “Se não
uma feiticeira, então o quê?”

“Já basta.” Charlotte levantou-se. “A Srta. Gray já demonstrou sua boa fé para mim
e para o Sr. Branwell. Isso terá de ser bom o suficiente por agora—pelo menos até o
Enclave tomar a decisão que desejam utilizar seus talentos.”
“Claro que desejam,” disse Will. “Nós não temos esperança de sucesso neste plano
sem ela—”
Gabriel trouxe a sua cadeira para frente com tal força que as pernas da frente
bateram no chão de pedra com um barulho estranho. “Sra. Branwell,” disse ele
furiosamente, “é William, ou não, muito jovem para estar participando de uma reunião do
Enclave?”
O olhar de Charlotte foi do rosto corado de Gabriel para a face sem expressão de
Will. Ela suspirou. “Sim, ele é. Will, Jem, se vocês, por favor, aguardassem fora no
corredor com Tessa.”
A expressão de Will apertou, mas Jem lançou um olhar de advertência sobre ele, e
ele permaneceu em silêncio. Gabriel Lightwood pareceu triunfante. “Eu mostrarei a vocês
a saída,” ele anunciou, saltando de pé. Ele conduziu os três para fora da biblioteca, em
seguida, virou para o corredor depois deles. “Você,” ele cuspiu para Will, mantendo sua
voz baixa, para que aqueles que estavam na biblioteca não pudessem ouvi-lo. “Você
desonra o nome de Caçadores das Sombras por toda parte.”
Will inclinou-se contra a parede do corredor e fitou Gabriel com gelados olhos
azuis. “Eu não sabia que havia muito do nome restando para a desgraça, depois que seu
pai—”
“Agradecerei se não falar da minha família,” rosnou Gabriel, alcançando atrás de si
para fechar a porta da biblioteca.
“Que pena que a perspectiva de sua gratidão não é tentadora,” disse Will.
Gabriel olhou para ele, seus cabelos em um desalinho, os olhos verdes brilhantes de
raiva. Ele lembrou Tessa de alguém naquele momento, embora ela não pudesse ter dito
quem. “O quê?” Gabriel rosnou.
“Ele quer dizer,” Jem esclareceu, “que não se importa com seus agradecimentos.”
As bochechas de Gabriel escureceram para um escarlate maçante. “Se você não
fosse menor de idade, Herondale, seria monomachia51 para nós. Só você e eu, até a morte.
Eu retalharia você a trapos sangrentos de tapete—”
51 Significa duelo em grego, dois homens lutando até a morte.
“Pare, Gabriel,” Jem interrompeu, antes que Will pudesse responder. “Incitar Will
para um combate sozinho—isso é como punir um cão depois de você o ter atormentado
até ele morder você. Você sabe como ele é.”

“Muito obrigado, James,” Will disse, sem tirar os olhos de Gabriel. “Eu aprecio o
testemunho por meu caráter.”
Jem deu de ombros. “É a verdade.”
Gabriel atirou a Jem um olhar sombrio. “Fique fora disso, Carstairs. Isso não lhe diz
respeito.”
Jem aproximou-se da porta e, de Will, que estava perfeitamente imóvel, encarando
o olhar frio de Gabriel com um de seus próprios. Os cabelos da nuca de Tessa começaram
a formigar. “Se se trata de Will, se trata de mim,” Jem disse.
Gabriel sacudiu a cabeça. “Você é um Caçador das Sombras decente, James,” disse
ele, “e um cavalheiro. Você tem a sua—deficiência, mas ninguém lhe culpa por isso. Mas
este—” Ele curvou o lábio, apontando o dedo na direção de Will. “Este lixo só arrasta você
para baixo. Encontre outra pessa para ser seu parabatai. Ninguém espera que Will
Herondale viva além de dezenove anos, e ninguém irá sentir de vê-lo partir, também—”
Aquilo era demais para Tessa. Sem pensar nisso, ela explodiu, indignada: “Que
coisa a dizer!”
Gabriel, interrompido no meio de seu discurso, parecia tão chocado como se uma
das tapeçarias de repente começasse a falar. “Perdão?”
“Você me ouviu. Dizer para alguém que você não ficaria triste se ele morresse! É
imperdoável!” Ela tomou Will pela manga. “Venha, Will. Esta—esta pessoa—obviamente
não vale a pena desperdiçar o seu tempo com ele.”
Will pareceu imensamente entretido. “É verdade.”
“Você—você—” Gabriel, gaguejando um pouco, olhou para Tessa de uma maneira
alarmada. “Você não tem a menor ideia das coisas que ele fez—”
“E eu não me importo, também. Vocês todos são Nefilins, não são? Bem, não são?
Vocês deveriam estar do mesmo lado.” Tessa franziu o cenho para Gabriel. “Eu acho que
você deve a Will um pedido de desculpas.”
“Eu,” disse Gabriel, “preferiria ter minhas entranhas arrancadas e amarradas em
um nó na frente dos meus próprios olhos do que me desculpar para tal um verme.”
“Gracioso,” disse Jem suavemente. “Você não quis dizer isso. Não a parte de Will
ser um verme, é claro. A parte sobre as entranhas. Isso soa terrível.”
“Eu falo sério,” disse Gabriel, começando a se empolgar com o assunto. “Eu
preferiria ser jogado em um tonel de veneno Malphas e deixado para dissolver
lentamente, até que apenas os meus ossos restassem.”

“Sério,” disse Will. “Porque eu conheço um cara que poderia nos vender um barril
de—”
A porta da biblioteca abriu. Sr. Lightwood estava na soleira. “Gabriel,” disse ele em
um tom congelante. “Você pretende participar da reunião—sua primeira reunião no
Enclave, se eu devo lembrá-lo—ou você preferiria brincar aqui fora no corredor com o
resto das crianças?”
Ninguém pareceu particularmente contente por esse comentário, especialmente
Gabriel, que engoliu em seco, assentiu, atirou um último olhar cortante para Will, e seguiu
o seu pai de volta para a biblioteca, fechando a porta atrás delescom uma batida.
“Bem,” disse Jem após a porta se fechar atrás de Gabriel. “Isso foi quase tão mau
quanto eu esperava que fosse. Esta é a primeira vez que você o vê desde a festa de Natal
do ano passado?” ele perguntou, dirigindo a questão a Will.
“Sim,” disse Will. “Você acha que eu deveria ter dito a ele que senti a falta dele?”
“Não,” disse Jem.
“Ele é sempre assim?” Tessa perguntou. “Tão horrível?”
“Você deveria ver seu irmão mais velho,” disse o Jem. “Faz Gabriel parecer mais
doce que bolo de gengibre. Odeia Will ainda mais do que Gabriel, também, se isso é
possível.”
Will sorriu com isso, então se virou e começou a andar pelo corredor, assobiando
enquanto ia. Após um momento de hesitação, Jem foi atrás ele, gesticulando para Tessa
seguir.
“Por que Gabriel Lightwood lhe odeia, Will?” Tessa perguntou enquanto eles iam.
“O que você fez a ele?”
“Não foi nada que eu fiz para ele,” Will disse, andando a um ritmo acelerado. “Foi
algo que eu fiz à sua irmã.”
Tessa olhou de soslaio para Jem, que deu de ombros. “Onde há nosso Will, há meia
dúzia de meninas irritadas dizendo que ele comprometeu a virtude delas.”
“Você o fez?” Tessa perguntou, se apressando para acompanhar os meninos. Havia
uma velocidade máxima à qual você podia andar em pesadas saias que se enrolavam em
torno de seus tornozelos enquanto você andava. A entrega dos vestidos de Bond Street
tinha sido no dia anterior, e ela estava apenas começando a se acostumar a usar o material
tão caro. Ela se lembrou dos vestidos leves que vestia quando era uma garotinha, quando
ela tinha sido capaz de correr até seu irmão, chutá-lo no tornozelo, e ir embora sem que ele
fosse capaz de alcançá-la. Perguntou-se brevemente o que aconteceria se ela tentasse fazer

isso com Will. Ela duvidava que fosse funcionar para sua vantagem, apesar de o
pensamento ter um certo apelo. “Comprometeu a virtude dela, eu quero dizer.”
“Você tem um monte de perguntas,” disse Will, virando bruscamente para a
esquerda e subindo um conjunto de escadas estreitas. “Não é?”
“Eu tenho,” disse Tessa, os saltos de suas botas estalando ruidosamente sobre os
degraus de pedra, enquanto seguia Will para cima. “O que é parabatai? E o que você quis
dizer sobre o pai de Gabriel ser uma vergonha para os Caçadores das Sombras?”
“Parabatai em grego é apenas um termo para um soldado pareado com um
motorista de biga,” disse Jem, “mas quando os Nefilins dizem isso, queremos dizer uma
equipe combinada de guerreiros—dois homens que juram proteger um ao outro e guardar
as costas uns dos outros.”
“Homens?” disse Tessa. “Não poderia haver uma equipe de mulheres, ou uma
mulher e um homem?”
“Eu pensei que você tinha dito que as mulheres não têm sede de sangue,” Will disse
sem se virar. “E quanto ao pai de Gabriel, digamos que ele tem uma certa reputação de
gostar de demônios e Habitantes do Submundo mais do que deveria. Eu ficaria surpreso
se algumas das visitas noturnas do velho Lightwood a certas casas em Shadwell não o
tivessem deixado com um sórdido caso de varíola de demônio.”
“Varíola de demônio?” Tessa ficou horrorizada e fascinada ao mesmo tempo.
“Ele inventou isso,” Jem apressadamente tranquilizou-a. “Realmente, Will. Quantas
vezes nós temos que lhe dizer que não existe tal coisa de varíola de demônio?”
Will havia parado na frente de uma porta estreita em uma curva da escada. “Eu
acho que é essa,” disse ele, meio para si mesmo, e sacudiu a maçaneta. Quando nada
aconteceu, ele tirou seu stele de sua jaqueta e rabiscou uma Marca negra na porta. Ela
abriu, com uma nuvem de poeira. “Este deve ser um depósito.”
Jem o seguiu para dentro, e, depois de um momento, Tessa também. Ela se
encontrou em uma pequena sala cuja única iluminação vinha de uma janela arqueada
disposta bem alto na parede. Luz aquosa derramava através dela, mostrando um espaço
quadrado preenchido com baús e caixas. Poderia ter sido qualquer espaço de
armazenamento em qualquer lugar, se não fosse o que parecia ser pilhas de armas velhas
empilhadas nos cantos—coisas pesadas de ferro que parecia enferrujado com lâminas
largas e correntes ligadas a pedaços de metal cravados.
Will pegou um dos baús e moveu-o para o lado para criar um quadrado de espaço
aberto no chão. Mais poeira subiu. Jem tossiu e lhe lançou um olhar reprovador. “Alguém
poderia pensar que você nos trouxe aqui para nos matar,” disse ele, “se não fosse que a
sua motivação para fazer isso parece confusa na melhor das hipóteses.”

“Sem assassinato,” disse Will. “Espere um pouco. Eu preciso mover mais um baú.”
Enquanto ele empurrava a coisa pesada para a parede, Tessa lançou um olhar de
soslaio para Jem. “O que Gabriel quis dizer,” perguntou, deixando a sua voz baixa demais
para Will ouvir, “‘a sua deficiência’?”
Os olhos prateados de Jem se arregalaram fracionadamente, antes de ele dizer,
“Meus problemas de saúde. Isso é tudo.”
Ele estava mentindo, Tessa sabia. Ele tinha o mesmo tipo de olhar que Nate tinha
quando mentia—um olhar um pouco limpo demais para ser verdadeiro. Mas antes que ela
pudesse dizer qualquer coisa, Will se levantou e anunciou, “Aqui estamos. Venham
sentar-se.”
Ele então procedeu para sentar-se no sujo chão empoeirado; Jem foi se sentar ao
lado dele, mas Tessa recuou por um momento, hesitante. Will, que estava com seu stele
fora, olhou para ela com um sorriso torto. “Não vem se juntar a nós, Tessa? Eu suponho
que você não queira estragar o vestido bonito que Jessamine comprou pra você.”
Era a verdade, na verdade. Tessa não tinha nenhuma vontade de destruir a mais
bonita peça de roupa que ela já teve. Mas o tom zombeteiro de Will foi mais irritante do
que a ideia de destruir o vestido. Endurecendo seu queixo, ela foi e sentou-se em frente
aos garotos, de modo que eles formaram um triângulo entre eles.
Will colocou a ponta do stele contra o chão sujo, e começou a movê-la. Amplas
linhas escuras fluíram a partir da ponta, e Tessa observou fascinada. Havia algo de
especial e bonito sobre a forma como o stele rabiscava—não como tinta fluindo de uma
pena, mas como se as linhas sempre tivessem estado lá, e Will as estivesse descobrindo.
Ele estava na metade quando Jem fez um barulho de realização, claramente
reconhecendo a Marca que seu amigo estava desenhando. “O que você—” começou ele,
mas Will ergueu a mão com que ele não estava desenhando, balançando a cabeça.
“Não,” Will disse. “Se eu fizer uma bagunça nisso, nós poderíamos muito bem cair
através do chão.”
Jem revirou os olhos, mas não pareceu importar: Will já tinha acabado, e estava
levantando o stele para longe do desenho que ele tinha feito. Tessa deu um pequeno grito
quando as tábuas de assoalho deformadas entre eles pareceram brilhar—e então se
tornaram tão transparentes quanto uma janela. Lançando-se para frente, esquecendo-se
completamente de seu vestido, ela encontrou-se encarando através delas como se através
de um painel de vidro.
Ela estava olhando para o que ela percebeu ser a biblioteca. Ela podia ver a grande
mesa redonda e o Enclave sentado a ela, Charlotte entre Benedict Lightwood e a mulher
elegante de cabelos brancos. Charlotte era facilmente reconhecível, mesmo de cima, pelo

elegante atar do seu cabelo castanho e os movimentos rápidos das mãos pequenas,
enquanto ela falava.
“Por que aqui?” Jem perguntou a Will em voz baixa. “Por que não a sala de armas?
É ao lado da biblioteca.”
“O som irradia,” disse Will. “É mais fácil escutar daqui de cima. Além do mais,
quem pode dizer que um deles não decidiria fazer uma visita à sala de armas no meio da
reunião para ver o que temos em estoque? Já aconteceu antes.”
Tessa, olhando para baixo, fascinada, percebeu que realmente ela podia ouvir o
murmúrio de vozes. “Eles podem nos ouvir?”
Will balançou a cabeça. “O encantamento é estritamente de mão única.” Ele franziu
a testa, inclinando para frente. “Do que eles estão falando?”
Os três ficaram em silêncio, e, na quietude, o som da voz de Benedict Lightwood
levantou-se claramente aos seus ouvidos. “Eu não sei sobre isso, Charlotte,” disse ele.
“Este plano inteiro parece muito arriscado.”
“Mas não podemos simplesmente deixar de Quincey continuar assim,” argumentou
Charlotte. “Ele é o vampiro chefe dos clãs de Londres. O resto dos Filhos da Noite vai a ele
para obter orientação. Se nós permitimos que ele arrogantemente infrinja a Lei, que
mensagem isso envia para o Submundo? Que os Nefilins têm ficado frouxos em sua
guarda?”
“Só para ver se eu entendi,” Lightwood disse, “você está disposta a aceitar a
palavra de Lady Belcourt que de Quincey, um aliado de longa data da Clave, está
realmente matando mundanos em sua própria casa?”
“Eu não sei por que você está surpreso, Benedict.” Havia um fio afiado na voz de
Charlotte. “É a sua sugestão que nós ignoremos o relato dela, apesar do fato de que ela não
nos deu nada além de informações confiáveis no passado? E apesar do fato de que, se ela
está mais uma vez nos dizendo a verdade, o sangue de todos que de Quincey assassinar
deste ponto em diante estará em nossas mãos?”
“E apesar do fato de que somos obrigados pela Lei a investigar qualquer relato do
Tratado sendo quebrado,” disse um homem esbelto de cabelo escuro na extremidade da
mesa. “Você sabe disso tanto quanto o resto de nós, Benedict; você está simplesmente
sendo teimoso.”
Charlotte exalou enquanto a face de Lightwood escurecia. “Obrigada, George. Eu
aprecio isso,” disse ela.
A mulher alta que mais cedo havia chamado Charlotte de Lottie deu uma risada
baixa e estrondosa. “Não seja tão dramática, Charlotte,” disse ela. “Você tem que admitir,
todo o negócio é bizarro. Uma menina trocadora de formas que pode ou não ser uma

feiticeira, bordéis cheios de corpos mortos, e um informante que jura que ele vendeu para
de Quincey algumas ferramentas de máquinas—um fato que você parece considerar como
uma parte da prova mais consumada, apesar de recusar-se a dizer-nos o nome do seu
informante.”
“Eu jurei que não iria envolvê-lo,” Charlotte protestou. “Ele teme de Quincey.”
“Ele é um Caçador das Sombras?” Lightwood perguntou. “Porque se não, ele não é
confiável.”
“Realmente, Benedict, as suas opiniões são as mais antiquadas,” disse a mulher com
os olhos de gato. “Alguém poderia acreditar, falando com você, que os Acordos nunca
aconteceram.”
“Lilian está correta; você está sendo ridículo, Benedict,” disse George Penhallow.
“Procurar um informante totalmente confiável é como procurar uma amante casta. Se elas
fossem virtuosas, seriam pouco úteis para você em primeiro lugar. Um informante só
fornece informações; é nosso trabalho verificar essas informações, que é o que Charlotte
está sugerindo que façamos.”
“Eu simplesmente odiaria ver os poderes do Enclave usados de modo errado neste
caso,” Lightwood disse em um tom sedoso. Era muito estranho, pensou Tessa, ouvir este
grupo de adultos elegantes abordar um ao outro sem títulos honoríficos, simplesmente
por seus primeiros nomes. Mas esse parecia ser o costume dos Caçadores das Sombras.
“Se, por exemplo, houvesse uma vampira que tivesse um ressentimento contra o chefe de
seu clã, e, talvez quisesse vê-lo removido do poder, que melhor maneira do que deixar a
Clave fazer o trabalho sujo por ela?”
“Inferno,” Will murmurou, trocando um olhar com Jem. “Como ele sabe sobre
isso?”
Jem sacudiu a cabeça, como se dissesse eu não sei.
“Saber sobre o quê?” Tessa sussurrou, mas sua voz foi abafada por Charlotte e a
mulher de cabelos brancos, ambas falando ao mesmo tempo.
“Camille nunca faria isso!” Charlotte protestou. “Ela não é uma tola, primeiro. Ela
sabe qual seria a punição por mentir para nós!”
“Benedict tem um ponto,” disse a mulher mais velha. “Seria melhor se um Caçador
das Sombras tivesse visto de Quincey quebrar a Lei—”
“Mas esse é o ponto desta iniciativa inteira,” disse Charlotte. Havia um tom em sua
voz—de nervosismo, um desejo esforçado de se provar. Tessa sentiu uma ponta de
simpatia por ela. “Para observar de Quincey quebrar a Lei, tia Callida.”
Tessa fez um barulho surpreso.

Jem levantou o olhar. “Sim, ela é tia de Charlotte,” ele disse. “Era seu irmão—o pai
de Charlotte—quem dirigia o Instituto. Ela gosta de dizer às pessoas o que fazer. Embora,
é claro, ela sempre faça o que ela quer.”
“Ela faz,” Will concordou. “Você sabia que ela me fez propostas sexuais uma vez?”
Jem não parecia como se acreditasse nisso mesmo um pouco. “Ela não fez isso.”
“Ela fez,” Will insistiu. “Foi tudo muito escandaloso. Eu poderia ter aderido às suas
exigências, também, se ela não me assustasse tanto.”
Jem simplesmente balançou a cabeça e voltou sua atenção para a cena que se
desemrolava na biblioteca. “Há também a questão do selo de de Quincey,” Charlotte
estava dizendo, “que encontramos no interior do corpo da garota mecânica. Há
simplesmente muita evidência ligando-o a estes eventos, evidências demais para não
investigar.”
“Eu concordo,” disse Lilian. “Eu pelo menos estou preocupada com esta questão
das criaturas mecânicas. Fazer garotas mecânicas é uma coisa, mas e se ele estiver fazendo
um exército mecânico?”
“Isso é pura especulação, Lilian,” disse Frederick Ashdown.
Lilian descartou isso com um aceno de sua mão. “Um autômato não é nem Serafim
nem demônio em sua aliança; não é um dos filhos de Deus ou do Diabo. Seria vulnerável
às nossas armas?”
“Eu acho que você está imaginando um problema que não existe,” disse Benedict
Lightwood. “Tem havido autômatos há anos; mundanos são fascinados com as criaturas.
Nenhum representou uma ameaça para nós.”
“Nenhum foi feito usando magia antes,” disse Charlotte.
“Que você saiba.” Lightwood parecia impaciente.
Charlotte endireitou suas costas; apenas Tessa e os outros, olhando acima dela,
podiam ver que suas mãos estavam atadas firmemente juntas em seu colo. “Sua
preocupação, Benedict, parece ser que nós puniremos injustamente de Quincey por um
crime que ele não cometeu, e, assim, comprometeremos o relacionamento entre os Filhos
da Noite e os Nefilins. Estou correta?”
Benedict Lightwood assentiu.
“Mas tudo que o plano de Will precisa é que nós observemos de Quincey. Se não o
virmos quebrar a Lei, não agiremos contra ele, e o relacionamento não será ameaçado. Se o
virmos quebrando a Lei, então o relacionamento é uma mentira. Não podemos permitir o
abuso da Lei do Tratado, não importa o quanto nos seja... conveniente ignorar.”

“Eu concordo com Charlotte,” disse Gabriel Lightwood, falando pela primeira vez,
e para surpresa de Tessa. “Acho que o plano dela é sólido. Exceto em uma parte—enviar a
menina trocadora de forma para lá com Will Herondale. Ele nem sequer é velho o
suficiente para estar nesta reunião. Como podemos confiar a ele uma missão desta
gravidade?”
“Bajuladorzinho pretensioso,” Will rosnou, inclinando-se mais para frente, como se
desejasse alcançar através do portal mágico e estrangular Gabriel. “Quando eu pegá-lo
sozinho...”
“Eu deveria ir com ela ao invés,” Gabriel continuou. “Eu posso protegê-la um
pouco mais. Em vez de simplesmente proteger a mim mesmo.”
“Enforcamento é bom demais para ele,” concordou Jem, que parecia como se
estivesse tentando não rir.
“Tessa conhece Will,” protestou Charlotte. “Ela confia em Will.”
“Eu não iria tão longe,” murmurou Tessa.
“Além disso,” Charlotte disse, “foi Will quem concebeu este plano, Will quem de
Quincey reconhecerá do Clube Pandemônio. É Will quem sabe o que procurar na casa da
cidade de de Quincey para ligá-lo às criaturas mecânicas e os mundanos assassinados.
Will é um excelente investigador, Gabriel, e um bom Caçador das Sombras. Você tem que
admitir isso.”
Gabriel se recostou na cadeira, cruzando os braços sobre o peito. “Eu não tenho que
admitir qualquer coisa sobre ele.”
“Então, Will e sua garota feiticeira entram na casa, toleram a festa de de Quincey,
até observar alguma violação da Lei, e então sinalizam para o resto de nós—como?”
perguntou Lilian.
“Com a invenção de Henry,” disse Charlotte. Houve um ligeiro—muito ligeiro—
tremor na voz dela quando ela disse aquilo. “O Fósforo. Ele enviará um fulgor de luz de
bruxa extremamente brilhante, iluminando todas as janelas da casa de de Quincey, apenas
por um momento. Esse será o sinal.”
“Oh, bom Deus, não uma das invenções de Henry de novo,” disse George.
“Houve algumas complicações com o Fósforo no início, mas Henry o demonstrou
para mim na noite passada,” Charlotte protestou. “Ele funciona perfeitamente.”
Frederick bufou. “Lembre-se da última vez que Henry ofereceu-nos o uso de uma
de suas invenções? Estivemos todos limpando tripas de peixe de nossos equipamentos por
dias.”

“Mas aquilo não devia ser usado perto de água—” Charlotte começou, ainda na
mesma voz trêmula, mas os outros já tinham começado a falar acima dela, conversando
animadamente sobre as invenções falhas de Henry e as terríveis consequências delas,
enquanto Charlotte caía no silêncio. Pobre Charlotte, Tessa pensou. Charlotte, cujo senso de
sua própria autoridade era tão importante, e tão caramente comprado.
“Bastardos, falando por cima dela assim,” resmungou Will. Tessa olhou para ele
com espanto. Ele estava olhando fixamente abaixo para a cena frente a ele, seus punhos
apertados ao seu lado. Então ele era afeiçoado a Charlotte, ela pensou, e ficou
surpreendida com quão contente ela ficou ao perceber isso. Talvez isso significasse que
Will realmente tinha sentimentos, afinal.
Não que isso tivesse algo a ver com ela, se ele gostava ou não, é claro. Ela olhou
rapidamente para longe de Will, para Jem, que parecia igualmente fora de compostura. Ele
estava mordendo o lábio. “Onde está Henry? Ele já não deveria ter chegado?”
Como se em resposta, a porta do depósito se abriu com um estrondo, e os três se
viraram para ver Henry em pé com olhos arregalados e cabelos selvagens na porta. Ele
estava segurando algo na mão—o tubo de cobre com o botão preto do lado que tinha
quase levado Will a quebrar seu braço caindo sobre o guarda-louça na sala de jantar.
Will olhou para aquilo com medo. “Leve esse maldito objeto para longe de mim.”
Henry, que estava com o rosto vermelho e suando, olhou para todos eles em horror.
“Inferno,” disse ele. “Eu estava procurando pela biblioteca. O Enclave—”
“Está em reunião,” disse Jem. “Sim, nós sabemos. É um lance de escada abaixo
daqui, Henry. Terceira porta à direita. E é melhor você ir. Charlotte está esperando por
você.”
“Eu sei,” Henry lamentou. “Maldição, maldição, maldição. Eu estava apenas
tentando conseguir consertar direito o Fósforo, é tudo.”
“Henry,” Jem disse “Charlotte precisa de você.”
“Certo.” Henry virou como se fosse se atirar para fora da sala, depois virou e olhou
para eles, um olhar de confusão passando sobre o rosto sardento, como se apenas agora
ele tivesse tido razão para se perguntar por que Will, Tessa, e Jem poderiam estar
agachados juntos em uma sala de armazenamento quase fora de uso. “O que vocês três
estão fazendo aqui, afinal?”
Will inclinou sua cabeça para o lado e sorriu para Henry. “Charadas,” disse ele.
“Jogo massivo52.”
52 São jogos que tem mais de um jogador.

“Ah. Certo, então,” disse Henry, e correu pela porta, deixando-a girar até fechar
atrás dele.
“Charadas.” Jem bufou de desgosto, depois se inclinou para frente novamente, com
os cotovelos sobre os joelhos, enquanto a voz de Callida derivou de baixo. “Honestamente,
Charlotte,” ela estava dizendo, “quando você irá admitir que Henry não tem nada a ver
com o funcionamento deste lugar, e que você está fazendo tudo sozinha? Talvez com a
ajuda de James Carstairs e Will Herondale, mas nenhum deles é mais velho do que
dezessete anos. De quanta ajuda eles podem ser?”
Charlotte fez um barulho murmurado de depreciação.
“É demais para uma pessoa, especialmente alguém da sua idade,” disse Benedict.
“Você só tem vinte e três anos de idade. Se você quiser se demitir—”
Apenas vinte e três anos! Tessa estava atônita. Ela havia pensado que Charlotte
fosse muito mais velha, provavelmente porque ela exalava um ar de competência.
“Cônsul Wayland atribuiu o funcionamento do Instituto a mim e meu marido há
cinco anos,” Charlotte respondeu bruscamente, aparentemente tendo encontrado sua voz
novamente. “Se você tem algum problema com a escolha dele, você deve conversar com
ele. Enquanto isso, irei dirigir o Instituto como eu achar melhor.”
“Espero que isso signifique que planos como o que você está sugerindo ainda
passem por votação?” disse Benedict Lightwood. “Ou você está regendo por decreto
agora?”
“Não seja ridículo, Lightwood, é claro que é posto em votação,” disse Lilian
zangada, sem dar a Charlotte uma chance de responder. “Todos a favor de ir a de
Quincey, digam sim.”
Para surpresa de Tessa, houve um coro de sims, e nem um único não. A discussão
havia sido controversa o suficiente que ela tinha estado certa que, pelo menos, um dos
Caçadores das Sombras iria tentar pular fora. Jem pegou o seu olhar surpreso e sorriu.
“Eles são sempre assim,” ele murmurou. “Eles gostam de manobrar pelo poder, mas
nenhum deles votaria não em uma questão como esta. Seriam marcados como covardes
por isso.”
“Muito bem,” disse Benedict. “Amanhã à noite acontece, então. Está todo mundo
suficientemente preparado? Existem—”
A porta da biblioteca bateu aberta, e Henry entrou—parecendo, se possível, ainda
mais de olhos arregalados e de cabelos selvagens do que antes. “Eu estou aqui!” anunciou
ele. “Não estou muito atrasado, estou?”
Charlotte cobriu o rosto com as mãos.

“Henry,” disse Benedict Lightwood secamente. “Que bom te ver. Sua esposa estava
acabando de nos informar sobre sua mais nova invenção. O Fósforo, não é?”
“Sim!” Henry segurou o Fósforo com orgulho. “É isso. E posso prometer que
funciona como anunciado. Vê?”
“Agora, não há necessidade de uma demonstração,” Benedict começou às pressas,
mas já era tarde demais. Henry já havia pressionado o botão. Houve um clarão, e as luzes
se apagaram na biblioteca de repente, deixando Tessa olhando para um quadrado preto
apagado no chão. Suspiros subiram até eles. Houve um grito, e algo caiu ao chão e
quebrou. Erguendo-se acima de tudo estava o som de Benedict Lightwood, xingando
fluentemente.
Will ergueu o olhar e sorriu. “Um pouco embaraçoso para Henry, é claro,” ele
comentou alegremente, “e ainda assim, de algum modo bastante satisfatório, vocês não
acham?”
Tessa não podia deixar de concordar com ambas as afirmações.


10
Reis Pálidos e Príncipes


Eu vi reis pálidos e príncipes também,
Guerreiros pálidos, pálidos de morte eram eles todos
—John Keats, La Belle Dame Sans Merci


Enquanto a carruagem passava pela Strand, Will levantou uma mão enluvada em
preto e afastou uma das cortinas de veludo da janela, deixando um feixe de luz a gás
amarela encontrar seu caminho para dentro do interior escuro da carruagem. “Parece um
tanto,” ele disse, “como se fôssemos ter chuva hoje à noite.”
Tessa seguiu seu olhar; fora da janela o céu estava um nublado cinza metálico—o
normal para Londres, ela pensou. Homens em chapéus e longos casacos escuros
apressavam-se pelas calçadas dos dois lados da rua, seus ombros encurvados contra o
vento forte que carregava poeira de carvão, esterco de cavalo, e todos os tipos de lixo em
seu rastro. Mais uma vez Tessa pensou que podia cheirar o rio.
“Aquilo é uma igreja diretamente no meio da rua?” ela se perguntou em voz alta.
“É a Santa Maria le Strand,” disse Will, “e há uma longa historia sobre ela, mas eu
não a contarei para você agora. Você estava ouvindo algo do que eu falei?”
“Eu estava,” Tessa diz. “até você ter começado a falar sobre chuva. Quem se
importa com a chuva? Nos estamos a caminho de algum tipo de—evento da sociedade
vampírica, e eu não tenho ideia de como devo agir, e até agora você não ajudou muito.”
 O canto da boca de Will se contraiu para cima. “Apenas seja cuidadosa. Quando
chegarmos a casa, você não pode olhar para mim para ajuda ou instruções. Lembre, eu sou
seu humano subjugado. Você me mantém por perto pelo sangue—sangue sempre que
você quiser—e nada mais.”
“Então você não irá falar esta noite,” Tessa disse. “Nada.”
“Não, a não ser que você me instrua a fazê-lo,” disse Will.

“Esta noite parece que será melhor do que eu pensava.”
Will pareceu não tê-la escutado. Com sua mão direita ele estava apertando uma das
algemas de metal porta-adagas em seu pulso esquerdo. Ele olhava fixamente pela janela,
como se vendo algo que não era visível para ela. “Você pode estar pensando em vampiros
como monstros ferozes, mas estes vampiros não são exatamente assim. Eles são tão cultos
quanto cruéis. Facas afiadas para a lâmina cega da humanidade.” A linha de seu maxilar
ficou rígida na luz fraca. “Você terá que tentar acompanhar. E pelo amor de Deus, se você
não conseguir, não diga absolutamente nada. Eles têm um tortuoso e opaco senso de
etiqueta. Uma séria gafe social pode significar morte instantânea.”
As mãos de Tessa se apertaram em seu colo. Elas estavam frias. Ela podia sentir o
frio da pele de Camille, mesmo através das luvas. “Você está brincando? Do jeito que você
estava na biblioteca, sobre deixar cair aquele livro?”
“Não.” Sua voz estava distante.
“Will, você esta me assustando.” As palavras saíram da boca de Tessa antes que ela
pudesse detê-las; ela ficou tensa, esperando zombaria.
Will tirou seu olhar da janela e olhou para ela como se alguma compreensão tivesse
despontado nele. “Tess,” ele disse, e Tessa sentiu um solavanco momentâneo; ninguém
nunca a tinha chamado de Tess. Algumas vezes seu irmão a chamava Tessie, mas isto era
tudo. “Você sabe que não precisa fazer isto, se não quiser.”
Ela inspirou, algo que não precisava. “E então o quê? Nós iríamos dar meia-volta na
carruagem e ir para casa?”
Ele estendeu suas mãos, e pegou as dela. As mãos de Camille eram tão pequenas
que as capazes mãos enluvadas em preto de Will pareciam engoli-las. “Um por todos, e
todos por um,” ele disse.
Ela sorriu ante aquilo, debilmente. “Os Três Mosqueteiros?”
Seu olhar firme segurou o dela. Seus olhos azuis eram muito escuros, únicos. Ela já
tinha conhecido antes pessoas com olhos azuis, mas eles sempre eram azuis-claros. Os de
Will eram da cor do céu bem na chegada da noite. Seus longos cílios os velaram enquanto
ele dizia, “Algumas vezes, quando eu tenho de fazer algo que não quero fazer, eu finjo que
sou um personagem de um livro. É mais fácil saber o que eles iriam fazer.”
“Sério? Quem você finge ser? D’artagnan?” Tessa perguntou, nomeando o único
dos Três Mosqueteiros que ela se podia se lembrar.

“Esta é, com certeza, a melhor coisa que eu faço, que eu já fiz,” Will citou. “este será, com
certeza, o melhor descanso que terei e que jamais tive.53”
53 Frase final do livro “Um Conto de Duas Cidades.”
“Sydney Carton? Mas você disse que odiava Um Conto de Duas Cidades!”
“Não realmente.” Will parecia imperturbável pela sua mentira.
“E Sydney Carlton era um alcoólatra prolixo.”
“Exatamente. Aí está um homem que era inútil, e sabia que era inútil, e ainda sim
não importa o quanto ele tentasse afogar sua alma, sempre havia uma parte dele capaz de
uma grande ação.” Will abaixou sua voz. “O que é que ele fala para Lucie Manette? Que
embora ele seja fraco, ele ainda consegue queimar?”
Tessa, que já tinha lido Um Conto de Duas Cidades mais vezes que ele pudesse contar,
sussurrou, “E ainda sim eu tive a fraqueza, e ainda tenho a fraqueza, de desejar que você saiba com
quão maestria repentina você me acendeu, pilha de cinzas que sou, em fogo.” Ela hesitou. “Mas
isto era porque ele a amava.”
“Sim,” disse Will. “Ele a amava o bastante para saber que ela estava melhor sem
ele.” As mãos dele ainda estavam sobre as dela, o calor delas queimando pelas luvas dela.
O vento estava forte lá fora, e tinha desarrumado seus cabelos negros quando eles
cruzaram o pátio do Instituto até a carruagem. Isto o fazia parecer mais jovem, e mais
vulnerável—e seus olhos, também, estavam vulneráveis, abertos como uma porta. O jeito
que ele estava olhando para ela, ela nunca teria pensado que Will pudesse, ou iria, olhar
para alguém daquele jeito. Se ela pudesse ficar corada, ela pensou, como ela estaria corada
agora.
E então ela desejou não ter pensado naquilo. Por aquele pensamento levava,
inevitavel e desagradavelmente, a outro: Estava ele olhando para ela agora, ou para
Camille, que era, de fato, primorosamente bela? Era esta a razão para a mudança em sua
expressão? Ele podia ver Tessa pelo disfarce, ou apenas a concha dela?
Ela se afastou, tirando suas mãos das dele, embora suas mãos estivessem fechadas
com força em volta das dela. Ela levou um momento para tirá-las.
“Tessa—” ele começou, mas antes que pudesse dizer mais, a carruagem fez uma
parada abrupta que fez com que as cortinas balançassem. Thomas disse, “Nós estamos
aqui!” do assento do condutor. Will, depois de tomar um longo fôlego, abriu a porta e
desceu até a calçada, levantando sua mão para ajudá-la a descer depois dele.
Tessa inclinou sua cabeça enquanto saía da carruagem para evitar esmagar alguma
das rosas no chapéu de Camille. Embora Will usasse luvas, como ela, ela podia quase
imaginar que sentia o sangue pulsando sob sua pele, mesmo pela camada dupla de tecido

que os separava. Ele estava corado, a cor alta em suas bochechas, e ela se perguntou se era
o frio chicoteando sangue em sua face, ou outra coisa.
Eles estavam parados em frente a uma casa branca alta com uma entrada de colunas
brancas. Ela era cercada de casas similares nos dois lados, como fileiras de dominó claro.
Em cima de um lance de escadas brancas estava um par de portas duplas pintadas de
preto. Elas estavam entreabertas, e Tessa podia ver o brilho da luz de velas vindo de
dentro, tremulando como uma cortina.
Tessa se virou para olhar Will. Atrás dele, Thomas estava sentado na frente da
carruagem, seu chapéu inclinado para baixo para esconder seu rosto. A pistola com cabo
de prata guardada no bolso de seu colete estava totalmente escondida de vista.
Em algum lugar em sua cabeça, ela sentiu Camille rindo, e ela sabia, sem saber
como sabia, que ela estava sentindo o divertimento da mulher vampira com sua
admiração de Will. Aí esta você, Tessa pensou, aliviada apesar de seu aborrecimento. Ela
estava começando a temer que a voz interior de Camille nunca viesse até ela.
Ela se afastou de Will, levantandoo queixo. A pose arrogante não era natural para
ela—mas era para Camille. “Você irá se dirigir a mim não como Tessa, mas como um
servente iria,” ela disse, seus lábios crispando. “Agora venha.” Ela moveu sua cabeça
imperiosamente em direção as escadas, e começou a andar sem olhar para trás para ver se
ele a estava seguindo.
Um lacaio vestido elegantemente a esperava no topo das escadas. “Vossa Senhoria,”
ele murmurou, e enquanto ele se curvou, Tessa viu duas perfurações de presas em seu
pescoço, logo acima do colarinho. Ela virou sua cabeça para ver Will atrás dela, e estava
prestes a apresentá-lo ao lacaio quando a voz de Camille sussurrou em sua cabeça. Nós não
apresentamos nossos bichos de estimação humanos uns para os outros. Eles são nossa propriedade
sem nome, a menos que decidamos dar nomes a eles.
 Ugh, Tessa pensou. Em sua repugnância, ela mal notou enquanto o lacaio a guiava
por um corredor e para dentro de uma grande sala com piso de mármore. Ele se curvou de
novo e partiu; Will se moveu para ficar ao lado dela, e por um momento os dois ficaram
parados olhando.
O espaço era iluminado apenas por velas. Dezenas de candelabros dourados
pontilhavam a sala, grossas velas brancas queimando no suporte. Mãos esculpidas em
mármore se estendiam das paredes, cada uma delas segurando uma vela escarlate, gotas
de cera vermelhas florecendo como rosas pelos lados do mármore esculpido.
E entre os candelabros se moviam vampiros, seus rostos tão brancos quanto as
nuvens, seus movimentos graciosos e fluidos e estranhos. Tessa podia ver as similaridades
deles com Camille, as características que eles tinham em comum—a pele sem poros, os
olhos da cor de joias, as bochechas pálidas pintadas com carmim artificial. Alguns
pareciam mais humanos que outros; muitos estavam vestidos com a moda de eras

passadas—calções e peitilhos, saias tão grandes quantos as de Maria Antonieta ou juntas
em montes atrás, punhos de renda e roupas de babados. O olhar de Tessa esquadrinhou a
sala freneticamente, procurando uma figura loira conhecida, mas Nathaniel não estava em
lugar nenhum. Em vez disso ela se encontrou tentando não olhar para uma mulher alta e
esquelética, vestida à moda de pesadas perucas e muito pó de uma centena de anos atrás.
Seu rosto era forte e medonho, mais branco que o talco em seu cabelo. Seu nome era Lady
Delilah, a voz de Camille sussurrou na mente de Tessa. Lady Delilah segurava uma figura
delicada pela mão, e a mente de Tessa recuou—uma criança, neste lugar?—mas quando a
figura se virou, ela viu que também era um vampiro, olhos negros fundos como poços no
rosto infantil arredondado. Ele sorriu para Tessa, mostrando as pressas descobertas.
“Precisamos procurar por Magnus Bane,” Will disse sob sua respiração. “Ele deve
nos guiar por esta bagunça. Eu devo mostrá-lo se o vir.”
Ela estava prestes a dizer a Will que Camille iria reconhecer Magnus para ela,
quando avistou um homem esguio com cabelos loiros, vestindo um fraque preto. Tessa
sentiu seu coração saltar—e então cair em amargo desapontamento. Não era Nathaniel.
Este homem era um vampiro, com um rosto angular e pálido. Seu cabelo não era amarelo
como o de Nate, mas quase incolor sob a luz das velas. Ele deu uma piscada de olhos para
Tessa e começou a se mover em direção a ela, passando pela multidão. Não havia apenas
vampiros entre eles, Tessa viu, mas humanos subjugados também. Eles carregavam
travessas brilhantes, e nas travessas estavam conjuntos de copos vazios. Ao lado dos copos
ficava uma serie de utensílios de prata, todos pontiagudos. Facas, é claro, e finas
ferramentas como as que os sapateiros usam para perfurar buracos no couro.
Enquanto Tessa olhava confusa, um dos subjugados foi parado pela mulher com a
peruca empoada de branco. Ela estalou seus dedos imperiosamente, e o sombrio—um
garoto pálido com uma jaqueta cinza e calças compridas—virou sua cabeça para o lado
obedientemente. Depois de pegar um pequeno furador da travessa com seus dedos
magrelos, a vampira arrastou a ponta afiada através da pele do pescoço do garoto, logo
abaixo de seu maxilar. Os copos chacoalharam na travessa enquanto sua mão tremia, mas
ele não deixou cair a travessa, nem mesmo quando a mulher levantou um copo e o
pressionou contra sua garganta para que o sangue caísse dentro dele em um filete.
O estômago de Tessa se apertou com uma mistura repentina de repulsão—e fome;
ela não podia negar a fome, mesmo que pertencesse a Camille e não a ela. Mais forte que a
sede, porém, era seu horror. Ela observou enquanto a vampira levantava o copo ate seus
lábios, o garoto humano do lado dela parado com o rosto pálido e tremendo enquanto ela
bebia.
Ela queria pegar a mão de Will, mas uma baronesa vampira nunca iria segurar a
mão de seu humano subjugado. Ela endireitou sua coluna, e acenou para Will ficar a seu
lado com um rápido estalar de dedos. Ele olhou para cima com surpresa, então se moveu
para se juntar a ela, claramente lutando para esconder sua contrariedade. Mas escondê-lo

ele precisava. “Agora, não vá ficar perambulando por aí, William,” ela disse com um olhar
significativo. “Eu não quero te perder na multidão.”
O maxilar de Will se firmou. “Eu estou tendo a estranha sensação que você está
gostando disso,” ele disse em voz baixa.
“Nada de estranho sobre isto.” Sentindo inacreditavelmente corajosa, Tessa deu um
leve toque embaixo do queixo dele com a ponta de seu leque. “Simplesmente se
comporte.”
“Eles são tão difíceis de treinar, não são?” O homem com o cabelo incolor emergiu
da multidão, inclinando sua cabeça em direção a Tessa; “Humanos subjugados, isto é,” ele
adicionou, confundindo sua expressão assustada por confusão. “E quando você os tem
treinados propriamente, eles morrem de uma coisa ou outra. Criaturas delicadas,
humanos. Toda a longevidade de borboletas.”
Ele sorriu. O sorriso mostrou dentes. Sua pele tinha a palidez azul de gelo
endurecido. Seu cabelo era quase branco e caía reto até seus ombros, pincelando a gola de
seu elegante casaco negro. Seu colete era de seda cinza, ilustrado com um padrão de
símbolos prateados curvados. Ele parecia um príncipe Russo saído de um livro. “É bom
lhe ver, Lady Belcourt,” ele disse, e também havia um sotaque em sua voz, não francês—
mais eslavo. “Eu tive um vislumbre de uma carruagem nova pela janela?”
Este é de Quincey, a voz de Camille sussurrou na mente de Tessa. Imagens
apareceram de repente em seu cérebro, como uma fonte sendo ligada, despejando visões
ao invés de água. Ela se viu dançando com de Quincey, suas mãos nos ombros dele; ela às
margens de um riacho negro sob o céu branco da noite do norte, observando enquanto ele
se alimentava de algo pálido espalhado na grama; ela sentada imóvel em uma longa mesa
com outros vampiros, de Quincey à cabeceira, enquanto ele gritava e berrava com ela e
jogava seu punho para baixo com tanta força que o tampo de mármore da mesa
estremeceu criando rachaduras. Ele estava gritando com ela, algo sobre um lobisomem e
uma relação que ela iria viver para se arrepender. Então ela estava sentada sozinha em
uma sala, no escuro, e chorando, e de Quincey entrou e se ajoelhou em frente sua cadeira e
pegou sua mão, esperando confortá-la, embora tenha sido ele quem lhe causara dor.
Vampiros podem chorar? Tessa pensou primeiro, e então, Eles já se conhecem há um longo
tempo, Alexei de Quincey e Camille Belcourt. Eles foram amigos uma vez, e ele acha que ainda são
amigos.
“De fato, Alexei,” ela disse, e enquanto ela dizia isto, ela soube que este era o nome
que ela estava tentando lembrar à mesa de jantar na outra noite—o nome estrangeiro que
as Irmãs Sombrias tinham falado. Alexei. “Eu queria algo um pouco... mais espaçoso.” Ela
estendeu sua mão, e ficou parada enquanto ele a beijava, seus lábios frios na sua pele.
Os olhos de de Quincey passaram de Tessa para Will, e ele lambeu seus lábios. “E
um novo subjugado também, eu vejo. Este é bem atraente.” Ele estendeu uma fina mão

pálida, e arrastou seu dedo indicador pela bochecha de Will até sua mandíbula. “Uma
coloração pouco usual,” ele meditou. “E estes olhos.”
“Obrigada,” disse Tessa, da mesma maneira de alguém sendo elogiado por uma
escolha particularmente de bom gosto de papel de parede. Ela observou nervosamente
enquanto de Quincey se movia ainda mais para perto de Will, que parecia pálido e tenso.
Ela se perguntou se ele estava tendo problemas em se conter quando certamente cada um
dos seus nervos estava gritando Inimigo! Inimigo!
De Quincey arrastou seu dedo da mandíbula de Will para sua garganta, ao ponto
de sua clavícula onde sua pulsação batia. “Aqui,” ele disse, e desta vez, quando ele sorriu,
suas pressas brancas estavam visíveis. Elas eram afiadas e finas nas pontas, como agulhas.
Suas pálpebras se abaixaram, langorosas e pesadas, e sua voz estava grossa quando ele
falou. “Você não iria se importar, Camille, iria, se eu desse apenas uma mordidinha...”
A visão de Tessa ficou branca. Ela viu de Quincey de novo, a frente de sua camisa
escarlate com sangue—e ela viu um corpo balançando de cabeça para baixo em uma
árvore na beira do riacho escuro, dedos pálidos balançando nas águas negras...
Sua mão se levantou, mais rápido do que ela jamais imaginou que podia se mover,
e pegou o punho de de Quincey. “Não, meu querido,” ela disse, um tom lisonjeiro em sua
voz. “Eu gostaria tanto de mantê-lo para mim mesma só por um pouco. Você sabe como o
seu apetite lhe carrega de vez em quando.” Ela abaixou suas pálpebras.
De Quincey riu. “Por você, Camille, eu irei exercitar minha restrição.” Ele tirou seu
punho, e por um momento, debaixo da atitude de flerte, Tessa pensou ter visto um
instante de raiva nos seus olhos, rapidamente mascarado. “Em honra do nosso longo
entendimento.”
“Obrigada, Alexei.”
“Você pensou um pouco mais, minha cara,” ele disse, “sobre minha oferta de
adesão ao Clube Pandemônio? Eu sei que os mundanos te entediam, mas eles são uma
fonte de fundos, nada mais. Aqueles como nós no conselho estão no limite de algumas
muito... excitantes descobertas. Poder alem dos seus sonhos mais loucos, Camille.”
Tessa esperou, mas a voz interna de Camille estava calada. Por quê? Ela lutou
contra o pânico e forçou um sorriso para de Quincey. “Meus sonhos,” ela disse, e
esperando que ele pensasse que a rouquidão em sua voz fosse de divertimento e não
medo, “podem já ser mais selvagens do que você imagina.”
Ao lado dela, ela podia dizer que Will tinha lhe lançado um olhar surpreso; ele
rapidamente controlou sua expressão para suavidade, e olhou para outro lado. De
Quincey, seus olhos reluzindo, apenas sorriu.

“Eu apenas peço que você considere minha oferta, Camille. E agora eu devo cuidar
de meus outros convidados. Confio que irei lhe ver na cerimônia?”
Confusa, ela simplesmente assentiu. “É claro.”
De Quincey se curvou, virou, e desapareceu na multidão. Tessa soltou seu ar. Ela
não tinha notado que ela o estava segurando.
“Não,” disse Will suavemente do seu lado. “Vampiros não precisam respirar,
lembre-se.”
“Meu Deus, Will.” Tessa percebeu que estava tremendo. “Ele teria te mordido.”
Os olhos de Will estavam negros de raiva. “Eu o teria matado primeiro.”
Uma voz falou ao lado do cotovelo de Tessa. “E então vocês dois estariam mortos.”
Ela se virou e viu que um homem alto havia surgido atrás dela, tão silencioso como
se ele tivesse flutuado para lá como fumaça. Ele usava um elaborado paletó de brocado,
como algo saído do século passado, com renda branca desordenada em sua gola e punho.
Abaixo do longo casaco Tessa viu calções e sapatos de cano alto. Seu cabelo era como seda
crua preta, tão escuro que parecia ter um brilho azulado; sua pele era morena, o aspecto de
suas feições como as de Jem. Ela se perguntou se talvez, como Jem, ele fosse de origem
estrangeira. Em uma das suas orelhas ele ostentava uma argola de prata na qual balançava
um pingente de diamante do tamanho de um dedo, que cintilava brilhantemente sob as
luzes, e haviam diamantes engastados no topo de sua bengala de prata. Ele parecia brilhar
por todo lado, como luz de bruxa. Tessa olhou; ela nunca tinha visto ninguém vestido de
uma maneira tão maluca.
“Este é Magnus,” disse Will tranquilamente, soando aliviado. “Magnus Bane.”
“Minha querida Camille,” Magnus disse, se curvando para beijar sua mão
enluvada. “Nós estivemos separados por muito tempo.”
No momento em que ele a tocou, as memórias de Camille vieram correndo em uma
inundação—memórias de Magnus segurando-a, beijando-a, tocando-a de uma maneira
distintamente íntima e pessoal. Tessa moveu sua mão para trás com um guincho. E agora
você reaparece, ela pensou ressentida na direção de Camille.
“Eu entendo,” ele murmurou, se endireitando. Seus olhos, quando ele os levantou
para Tessa, quase a fizeram perder a compostura: eles eram verde ouro com as pupilas
verticais, os olhos de um gato colocados em um rosto distintamente humano. Eles estavam
cheios de divertimento brilhante. Diferente dos olhos de Will, cujos olhos continham um
traço de tristeza mesmo quando ele estava divertido, os olhos de Magnus estavam cheios
de um prazer surpreendente. Eles andaram de lado, e ele moveu seu queixo em direção ao
outro lado da sala, indicando que Tessa devia segui-lo. “Venha comigo, então. Há uma
sala privada onde nós podemos conversar.”

Em espanto Tessa o seguiu, Will a seu lado. Ela estava imaginando isto, ou os rostos
pálidos dos vampiros se viravam para segui-la enquanto ela passava? Uma vampira ruiva
em um elaborado vestido azul a olhou fixamente enquanto ela andava; a voz de Camille
sussurrou que a mulher tinha ciúmes do afeto de de Quincey por ela. Tessa estava grata
quando Magnus finalmente alcançou uma porta—tão habilmente colocada em um painel
na parede que ela não percebeu que aquilo era uma porta até que o feiticeiro tivesse
produzido uma chave. Ele abriu a porta com um clique macio. Will e Tessa os seguiram
para dentro.
A sala era uma biblioteca, obviamente raramente usada; embora livros se
alinhassem nas paredes, eles estavam sujos de poeira, assim como as cortinas de veludo
que estavam penduradas nas janela. Quando a porta se fechou atrás deles, a luz na sala
diminuiu; antes que Tessa pudesse dizer algo, Magnus estalou seus dedos e fogos gêmeos
apareceram nas lareiras em ambos os lados da sala. As flamas do fogo eram azuis, e o fogo
em si tinha um aroma forte, como incenso queimando.
“Oh!” Tessa não pôde evitar uma pequena exclamação de surpresa de passar por
seus lábios.
Com um sorriso, Magnus se jogou na grande mesa de mármore no centro da sala, e
se deitou de lado, a cabeça suportada por sua mão. “Você nunca tinha visto um feiticeiro
fazer magia antes?”
Will deu um suspiro exagerado. “Por favor, abstenha-se de provocá-la, Magnus. Eu
espero que Camille tenha lhe dito que ela conhece muito pouco do Mundo das Sombras.”
“De fato,” Magnus disse sem remorso, “mas e difícil de acreditar, considerando o
que ela pode fazer.” Seus olhos estavam sobre Tessa. “Eu vi o seu rosto quando beijei sua
mão. Você soube quem eu era imediatamente, não soube? Você sabe o que Camille sabe.
Existem alguns feiticeiros e demônios que podem mudar—tomar qualquer forma. Mas eu
nunca ouvi falar de um que pudesse fazer o que você faz.”
“Não se pode dizer com certeza que eu sou uma feiticeira,” Tessa disse. “Charlotte
diz que eu não sou marcada como uma feiticeira seria.”
“Oh, você é uma feiticeira. Confie nisso. Só porque você não tem orelhas de
morcego...” Magnus viu Tessa franzir a testa, e levantou suas sobrancelhas. “Oh, você não
quer ser uma feiticeira, quer? Você despreza a ideia.”
“Eu apenas nunca pensei...” Tessa disse em um sussurro. “Que fosse qualquer coisa
além de humana.”
O tom de voz de Magnus não era insensível. “Pobre coitada. Agora que você sabe a
verdade, já não pode voltar atrás.”

“Deixe-a em paz, Magnus.” O tom de Will era afiado. “Eu devo procurar pela sala.
Se você não irá ajudar, pelo menos não atormente Tessa enquanto eu o faço.” Ele se moveu
em direção à grande mesa de carvalho no canto da sala e começou a remexer os papeis em
cima dela.
Magnus olhou em direção a Tessa e piscou. “Eu acho que ele está com ciúmes,” ele
disse em um sussurro conspiratório.
Tessa balançou sua cabeça e se moveu em direção à estante mais próxima. Havia
um livro aberto no meio da estante como se para exibi-lo. As páginas estavam cobertas
com imagens intricadas, vivas, algumas partes das ilustrações brilhando como se tivessem
sido pintadas no pergaminho com ouro. Tessa exclamou em surpresa. “É uma Bíblia.”
“Isto te impressiona?” Magnus perguntou.
“Eu achava que vampiros não podiam tocar em coisas sagradas.”
“Isto depende do vampiro—quanto tempo ele tem estado vivo, que tipo de fé ele
tem. De Quincey na verdade coleciona velhas Bíblias. Ele diz que dificilmente existe outro
livro com tanto sangue em suas páginas.”
Tessa olhou para a porta fechada. O barulho débil das vozes do outro lado era
audível. “Nós não iremos provocar algum tipo de comentário, nos escondendo aqui desta
maneira? Os outros—os vampiros—eu tenho certeza que eles estavam olhando para nós
enquanto entrávamos.”
“Eles estavam olhando para Will.” De algumas maneiras o sorriso de Magnus era
enervante como o de um vampiro, mesmo que ele não tivesse presas. “Will parece
errado.”
Tessa olhou de relance para Will, que estava remexendo pelas gavetas da mesa com
mãos enluvadas. “Eu acho isso difícil de acreditar, vindo de alguém vestido como você,”
Will disse.
Magnus ignorou isto. “Will não se comporta como os outros humanos subjugados.
Ele não olha para sua mestra com adoração cega, por exemplo.”
“É este chapéu monstruoso dela,” disse Will. “Me desconcerta.”
“Humanos subjugados nunca ficam ‘desconcertados’,” disse Magnus. “Eles adoram
seus mestres vampiros, seja o que eles estiverem usando. É claro, os convidados também
estavam olhando porque eles sabem do meu relacionamento com Camille, e estão se
perguntando o que nós poderíamos estar fazendo aqui na biblioteca... sozinhos.” Ele
mexeu suas sobrancelhas para Tessa.

Tessa pensou em suas visões de antes. “De Quincey... ele disse algo para Camille
sobre ela se arrepender do seu relacionamento com um lobisomem. Ele fez aquilo soar
como se fosse um crime que ela tivesse cometido.”
Magnus, que agora estava deitado de costas e girando seu bastão sobre sua cabeça,
deu de ombros. “Para ele isto seria. Vampiros e lobisomens desprezam uns ao outros. Eles
clamam que isto tem algo a ver com o fato de que as duas raças de demônios que os
geraramestavam envolvidas em um feudo de sangue54, mas se você me perguntar, é
simplesmente porque ambos são predadores, e predadores sempre ressentem incursões
dentro de seus territórios. Não que os vampiros gostem tanto assim das fadas, ou minha
espécie também, mas de Quincey gosta um tanto de mim. Ele acha que nós somos amigos.
Na verdade, eu suspeito que ele gostaria de ser mais que amigos.” Magnus sorriu, para a
confusão de Tessa. “Mas eu o desprezo, embora ele não saiba disto.”
54 Disputa entre famílias ou raças.
“Então por que gastar tempo com ele?” perguntou Will, que tinha se movido para
uma alta escrivaninha entre duas das janelas e estava examinando seus conteúdos. “Por
que vir para esta casa?”
“Política,” disse Magnus dando de ombros novamente. “Ele é o chefe do clã;
Camille não vir para suas festas quando convidada seria interpretado como um insulto. E
eu permitir que ela viesse sozinha seria... negligente. De Quincey é perigoso, e não menos
para aqueles de sua própria espécie. Especialmente aqueles que o desagradaram no
passado.”
“Então você deveria—” Will começou, e parou, sua voz alterando. “Eu encontrei
algo.” Ele fez uma pausa. “Talvez você devesse dar uma olhada nisto, Magnus.” Will veio
até a mesa e colocou em cima dela o que parecia uma longa folha de papel enrolado. Ele
gesticulou para Tessa se juntar a ele, e desenrolou o papel pela superfície da mesa. “Havia
pouca coisa de interesse naquela mesa,” ele disse, “mas eu encontrei isto, escondido em
uma gaveta falsa no armário. Magnus, o que você acha?”
Tessa, que tinha se movido para ficar ao lado de Will na mesa, olhou abaixo para o
papel. Estava coberto com um diagrama grosseiro de um esqueleto humano feito de
pistões, rodas dentadas, e placas de metal martelado. O crânio tinha uma mandíbula
articulada, órbitas abertas para olhos, e uma boca que acabava logo atrás dos dentes.
Existia um painel no peito também, igual ao de Miranda. Por todo o lado esquerdo da
pagina estavam rabiscadas o que pareciam notas, em uma linguagem que Tessa não
conseguiu decifrar. As letras eram completamente não familiares.
“Diagrama para um autômato,” disse Magnus, inclinando sua cabeça para o lado.
“Um ser humano artificial. Humanos sempre foram fascinados pelas criaturas—eu
suponho que seja porque eles são humanóides, mas não podem morrer ou se ferir. Você já
leu O Livro de Conhecimento de Engenhosos Dispositivos Mecânicos?”

 “Eu nunca nem mesmo ouvi falar nele,” disse Will. “Há algum pântano deserto
nele, envolto em uma misteriosa névoa? Noivas fantasmagóricas andando pelos
corredores de castelos em ruínas? Um bonito rapaz correndo para resgatar uma bela, mas
pobre donzela?”
“Não,” disse Magnus. “Há um pedaço bastante picante sobre rodas dentadas lá pela
metade, mas realmente a maior parte dele é seca.”
“Então Tessa não deve ter lido, também,” disse Will.
Tessa lhe lançou um olhar cortante, mas não disse nada; ela não tinha lido, e ela não
estava no humor de deixar Will atingi-la.
“Bem, então,” disse Magnus. “Ele foi escrito por um estudioso árabe, dois séculos
antes de Leonardo da Vinci, e descreve como maquinas poderiam ser construídas para
imitar as ações de um ser humano. Agora, não há nada de alarmante nisto por si só. Mas é
isto”—o dedo longo de Magnus passou gentilmente pela escrita do lado esquerdo da
pagina—“que me preocupa.”
Will se inclinou para mais perto. Sua manga roçou o braço de Tessa. “Sim, é sobre
isto que eu queria te perguntar. Isto é um feitiço?”
Magnus assentiu. “Um feitiço de ligação. Feito para infundir energia demoníaca
dentro de um objeto inanimado, deste modo dando a este objeto um tipo de vida. Eu já vi
o feitiço sendo usado. Antes dos Acordos, vampiros gostavam de se entreter criando
pequenos mecanismos demoníacos como caixas de música que tocariam apenas à noite,
cavalos mecânicos que podiam cavalgar apenas depois do pôr do sol, este tipo de tolices.”
Ele bateu com o dedo no topo de sua bengala, pensativo. “Um dos grandes problemas de
criar autômatos convincentes, é claro, sempre foi sua aparência. Nenhum outro material
dá realmente o semblante de carne humana.”
“Mas e se alguém usasse—carne humana, eu digo?” Tessa perguntou.
Magnus pausou delicadamente. “O problema aqui, para inventores humanos, é, ah,
óbvio. Preservar a carne destrói sua aparência. Alguém teria de usar magia, e então usar
magia de novo, para vincular a energia demoníaca ao corpo mecânico.”
“E o que isto iria conseguir?” Will perguntou, um gume em sua voz.
“Autômatos foram construídos que podem escrever poemas, desenhar paisagens—
mas apenas aquelas que eles são direcionados a criar. Eles não têm criatividade individual
ou imaginação. Animados por energia demoníaca, entretanto, um autômato teria uma
medida de pensamento e vontade. Mas qualquer espírito ligado está escravizado. Ele seria
inevitavelmente totalmente obediente a quem quer que tivesse feito o vínculo.”
“Um exército mecânico,” Will disse, e havia um tipo de humor amargo em sua voz.
“Nascido nem do Inferno nem do Céu.”

“Eu não iria tão longe,” Magnus disse. “Energias demoníacas são dificilmente um
item fácil de conseguir. Alguém deve invocar demônios, então os vincular, e você sabe
quão difícil este processo é. Obter energias demoníacas suficientes para criar um exército
seria quase impossível e de um risco extraordinário. Mesmo para um bastardo mal
intencionado como de Quincey.”
“Entendo.” E com isto, Will enrolou o papel e colocou dentro de sua jaqueta.
“Muito obrigado pela ajuda, Magnus.”
Magnus pareceu fracamente intrigado, mas sua resposta foi cordial. “É claro.”
“Eu acredito que você não sentiria muito em ver de Quincey sumir e outro vampiro
em seu lugar,” disse Will. “Você já o observou verdadeiramente quebrando a Lei?”
“Uma vez. Eu fui convidado aqui para testemunhar uma de suas ‘cerimônias’.
Como aconteceu—” Magnus pareceu estranhamente sombrio. “Bem, deixe-me mostrar a
vocês.”
Ele se virou e se moveu em direção à estante que Tessa esteve examinando mais
cedo, fazendo um gesto para eles se juntarem a ele. Will o seguiu, Tessa a seu lado.
Magnus estalou seus dedos de novo, e enquanto faíscaa azuis voaram, a Bíblia ilustrada
deslizou para o lado, revelando um pequeno buraco que tinha sido cortado na madeira no
fundo da prateleira. Quando Tessa se inclinou para frente em surpresa, ela viu que ele
oferecia uma vista para uma sala elegante de música. Pelo menos, foi o que ela pensou no
início, vendo as cadeiras arrumadas em fileiras de frente para o fundo da sala; isso fazia
um tipo de teatro. Fileiras de candelabros estavam montadas para iluminação, cortinas de
cetim vermelho até o chão bloqueavam as paredes do fundo, e o chão era levemente
elevado, criando um tipo de palco improvisado. Não havia nada nele a não ser uma única
cadeira com costas de madeira alta.
Algemas de metal estavam anexadas aos braços da cadeira, brilhando como
carapaças de inseto à luz de vela A madeira na cadeira estava manchada, aqui e ali, com
manchas vermelho-escuro. As pernas da cadeira, Tessa viu, estavam pregadas no chão.
“É aqui que eles têm suas pequenas... performances,” disse Magnus, um tom suave
de repugnância em sua voz. “Eles trazem o humano e o prendem—ou a prendem—na
cadeira. Então eles revezam drenando a vitima lentamente, enquanto a multidão assiste e
aplaude.”
“E eles apreciam isso?” Will disse. A aversão em sua voz era mais do que um tom
suave. “A dor do mundano? Seu medo?”
“Nem todos os Filhos da Noite são assim,” Magnus disse suavemente. “Estes são os
piores deles.”
“E as vítimas,” disse Will, “onde eles os acham?”

“Criminosos, a maioria,” disse Magnus. “Bêbados, viciados, prostitutas. Os
esquecidos e perdidos. Aqueles de quem ninguém sentirá falta.” Ele olhou para Will
firmemente. “Você gostaria de elaborar seu plano?”
“Nós começamos quando virmos a Lei ser quebrada,” disse Will. “No momento que
um vampiro se mover para ferir um humano, eu farei um sinal para o Enclave. Eles irão
atacar.”
“Sério,” Magnus disse. “Como eles irão entrar?”
“Não se preocupe com isto.” Will estava imperturbável. “Seu trabalho é levar Tessa
neste ponto e tirá-la em segurança daqui. Thomas está esperando lá fora com a carruagem.
Joguem-se dentro dela e ele irá leva-los de volta para o Instituto.”
“Parece um desperdício dos meus talentos, me atribuir para tomar conta de uma
garota de tamanho moderado,” Magnus observou. “Certamente você poderia me usar—”
“Isto é um assunto de Caçadores das Sombras,” disse Will. “Nós fizemos a Lei, e
nós mantemos a Lei. A assistência que você nos deu até agora até agora tem sido
inestimável, mas nós não exigimos nada mais de você.”
Magnus encontrou os olhos de Tessa sobre os ombros de Will; seu olhar estava
sardônico. “O isolamento orgulhoso dos Nefilins. Eles têm uso para você quando eles têm
uso para você, mas eles não podem se levar a dividir uma vitória com Habitantes do
Submundo.”
Tessa se virou para Will. “Você também esta me mandando embora, antes da luta
começar?”
“Eu devo,” disse Will. “Será melhor para Camille não ser vista cooperando com
Caçadores das Sombras.”
 “Isto é absurdo,” disse Tessa. “De Quincey saberá que eu—ela—trouxe você aqui.
Ele saberá que ela mentiu sobre onde ela te encontrou. Será que ela pensa que, depois
disto, o resto do clã não saberá que ela é uma traidora?”
Em algum lugar no fundo de sua cabeça, a risada suave de Camille ronronou. Ela
não soava com medo.
Will e Magnus trocaram um olhar. “Ela não espera,” disse Magnus, “que um único
vampiro que está aqui esta noite sobreviva para acusá-la.”
“Os mortos não podem contar historias,” disse Will suavemente. A luz oscilante na
sala pintava seu rosto em sombras alternantes de negro e ouro; a linha de seu queixo
estava rígida. Ele olhou em direção ao olho mágico, seus olhos estreitando. “Olhe.”
Os três se aglomeraram para chegar mais perto do olho mágico, pelo qual eles
viram as portas em um canto da sala de musica se abrirem. Através delas estava a grande

sala de estar iluminada a velas; vampiros começaram a passar pela porta, tomando seus
lugares nos assentos em frente ao “palco.”
“Está na hora,” Magnus disse calmamente, e deslizou o olho mágico, o fechando.
***
A sala de música estava quase cheia. Tessa, de braço dado com Magnus, observou
enquanto Will fazia seu caminho através da multidão, procurando por três assentos
juntos. Ele estava mantendo a cabeça baixa, olhos no chão, mas mesmo assim—
“Eles ainda estão olhando para ele,” ela disse para Magnus baixinho. “Will, quero
dizer.”
“Claro que eles estão,” disse Magnus. Seus olhos refletiam a luz como os de um
gato enquanto eles examinavam a sala. “Olhe para ele. O rosto de um anjo mau e olhos
como o céu à noite no Inferno. Ele é muito bonito, e os vampiros gostam disso. Não posso
dizer que me incomoda também.” Magnus sorriu. “Cabelo preto e olhos azuis são a minha
combinação favorita.”
Tessa levantou a mão para dar um tapinha nos pálidos cachos loiros de Camille.
Magnus deu de ombros. “Ninguém é perfeito.”
Tessa foi poupada de responder; Will tinha encontrado um conjunto de cadeiras
juntas, e estava chamando-os com uma mão enluvada. Ela tentou não prestar atenção à
forma como os vampiros estavam olhando para ele enquanto deixava Magnus levá-la para
os assentos. Era verdade que ele era bonito, mas por que eles se importavam? Will era
apenas alimento para eles, não era?
Ela sentou-se com Magnus de um lado e Will do outro, suas saias de tafetá de seda
sussurrando como folhas em um vento forte. A sala estava fria, não como uma sala lotada
de seres humanos, que estariam exalando calor corporal. A mão de Will deslizou de seu
braço quando ele levantou a mão para tocar o bolso do colete, e ela viu que seu braço
estava salpicado de arrepios. Ela se perguntou se os companheiros humanos dos vampiros
estavam sempre com frio.
Um ruído de sussurros atravessou a sala, e Tessa arrancou seu olhar de Will. A luz
dos candelabros não atingia os recessos distantes da sala; porções do “palco”—o fundo da
sala—estavam manchadas com sombras, e até mesmo os olhos vampirescos de Tessa não
podiam discernir o que estava se movendo dentro da escuridão até que de Quincey
apareceu de repente das sombras.
A plateia ficou em silêncio. Então de Quincey sorriu. Era um sorriso maníaco,
mostrando presas, e transformou o seu rosto. Ele parecia descontrolado e selvagem agora,
como um lobo. Um murmúrio de apreciação abafada atravessou a sala, da maneira como
um público pode mostrar apreço por um ator com uma presença de palco particularmente

boa.
“Boa noite,” disse de Quincey. “Bem-vindos, amigos. Aqueles de vocês que se
juntaram a mim aqui ”—e ele sorriu diretamente para Tessa, que estava muito nervosa
para fazer qualquer coisa além de olhar fixamente de volta—“são filhos e filhas orgulhos
dos Filhos da Noite. Nós não dobramos o pescoço sob o jugo opressivo chamado de
Lei. Nós não respondemos a Nefilins. Nem iremos abandonar nossos costumes antigos a
seu bel prazer.”
Era impossível não notar o efeito que o discurso de de Quincey, estava tendo sobre
Will. Ele estava tenso como um arco, mãos fechadas em seu colo, as veias se destacando
em seu pescoço.
“Nós temos um prisioneiro,” de Quincey continuou. “Seu crime é trair os Filhos da
Noite.” Ele varreu o seu olhar por toda a audiência de vampiros à espera. “E qual é a
punição para tal traição?”
“É a morte,” gritou uma voz, a vampira Delilah. Ela estava inclinada para frente
em seu assento, uma ânsia terrível no rosto.
Os outros vampiros assumiram o seu coro. “Morte! Morte!”
Mais formas sombrias escorregaram por entre as cortinas que formavam o palco
improvisado. Dois vampiros do sexo masculino, segurando entre elas a forma um homem
humano debatendo-se. Um capuz preto escondia as feições do homem. Tudo que Tessa
podia ver era que ele era esguio, provavelmente jovem—e imundo, suas roupas finas
rasgadas e esfarrapadas. Seus pés descalços deixaram manchas de sangue nas tábuas
enquanto os homens o arrastavam para frente e o atiravam na cadeira. Um débil suspiro
de simpatia escapou da garganta de Tessa; ela sentiu Will tensionar ao lado dela.
O homem continuou a se debater debilmente, como um inseto na ponta de um
alfinete, enquanto os vampiros amarravam seus pulsos e tornozelos à cadeira, e depois
recuavam. De Quincey sorriu; suas presas estavam fora. Elas brilhavam como alfinetes de
marfim enquanto ele inspecionava a multidão. Tessa podia sentir a inquietação dos
vampiros—e mais do que sua inquietação, sua fome. Não mais eles se assemelhavam a um
público educado de espectadores humanos. Eles estavam tão ávidos quanto leões
farejando a presa, saltando para frente em suas cadeiras, seus olhos largos e brilhantes,
suas bocas abertas.
“Quando você pode chamar o Enclave?” Tessa disse a Will em um sussurro
urgente.
A voz de Will estava apertada. “Quando ele tirar sangue. Temos de vê-lo fazer isso.”
“Will—”
“Tessa.” Ele sussurrou seu nome verdadeiro, os dedos segurando os dela. “Fique

quieta.”
Relutantemente, Tessa voltou sua atenção para o palco, onde de Quincey estava se
aproximando do prisioneiro algemado. Ele parou junto à cadeira—estendeu o braço—e
seus dedos finos e pálidos roçaram o ombro do homem, tão leve como o toque de uma
aranha. O prisioneiro convulsionou, sacudindo em terror desesperado enquanto a mão do
vampiro deslizava do ombro até o pescoço. De Quincey colocou dois dedos brancos no
pulso do homem, como se ele fosse um médico verificando a pulsação de um paciente.
De Quincey usava um anel de prata em um dedo, Tessa viu, um lado do qual era
apontado como uma agulha que se projetou quando ele apertou a mão em um punho.
Houve um clarão de prata, e o prisioneiro gritou—o primeiro som que ele tinha
feito. Havia algo de familiar no som.
Uma fina linha de vermelho apareceu na garganta do prisioneiro, como um laço de
fio vermelho. Sangue brotou e derramou-se no vão de sua clavícula. O prisioneiro se
debateu e lutou enquanto de Quincey, seu rosto agora uma máscara ritual de fome,
estendia uma mão para tocar com dois dedos o líquido vermelho. Ele ergueu os dedos
manchados até sua boca. A multidão estava sibilando e gemendo, mal conseguindo ficar
em seus lugares. Tessa olhou para a mulher com o chapéu de plumas brancas. Sua boca
estava aberta, o queixo molhado de baba.
“Will,” murmurou Tessa. “Will, por favor.”
Will olhou além dela, para Magnus. “Magnus. Leve-a daqui.”
Algo em Tessa se rebelou contra a ideia de ser mandada embora. "Will, não, eu
estou bem aqui—”
A voz de Will era calma, mas seus olhos queimavam. “Já falamos sobre isso. Vá, ou
não convocarei o Enclave. Vá, ou o homem irá morrer.”
“Venha.” Era Magnus, a mão em seu cotovelo, orientando-a a ficar em pé.
Relutantemente ela permitiu que o feiticeiro a colocasse de pé, e depois a levasse em
direção às portas. Tessa olhou em volta ansiosamente para ver se alguém notou a sua
saída, mas ninguém estava olhando para eles. Toda a atenção estava focada em de
Quincey e no prisioneiro, e muitos vampiros já estavam de pé, sibilando e aplaudindo e
fazendo sons famintos desumanos.
Entre a multidão fervilhando, Will ainda estava sentado, inclinando-se para frente
como um cão de caça ansiando para ser liberado da coleira. Sua mão esquerda deslizou no
bolso do colete, e surgiu com algo de cobre escondido entre os dedos.
O Fósforo.
Magnus abriu a porta atrás deles. “Depressa.”

Tessa hesitou, olhando de volta para o palco. De Quincey estava em pé atrás
do prisioneiro agora. Sua boca sorridente estava manchada com sangue. Ele estendeu a
mão e segurou o capuz do prisioneiro.
Will se levantou, o Fósforo seguro no alto. Magnus xingou e puxou o braço de
Tessa. Ela meio que virou como se quisesse ir com ele, então congelou quando de Quincey
arrancou o capuz negro para revelar o preso embaixo.
Seu rosto estava inchado e machucado com espancamentos. Um de seus olhos
estava roxo e fechado. Seu cabelo loiro estava colado ao seu crânio com sangue e suor. Mas
nada disso importava; Tessa o teria reconhecido de qualquer maneira, em qualquer
lugar. Ela sabia agora por que o seu grito de dor tinha soado tão familiar para ela.
Era Nathaniel.


11
Poucos São Anjos


Nós somos todos homens,
Em nossa própria natureza frágeis, e capazes
De nossas carnes; poucos são anjos
—Shakespeare, Rei Henrique VIII


Tessa gritou.
Não um grito humano, mas o de um vampiro. Ela mal reconheceu o som que saiu
de sua própria garganta—soou como vidro quebrando. Apenas depois ela até mesmo
percebeu que estava gritando palavras. Ela teria pensado que gritaria o nome de seu
irmão, mas não gritou.
“Will!” ela gritou. “Will, agora! Faça isso agora!”
Um sobressalto percorreu a sala. Dúzias de rostos brancos viraram em direção a
Tessa. Seu grito havia atravessado o desejo de sangue deles. De Quincey estava imóvel no
palco; mesmo Nathaniel estava olhando para ela, atordoado e encarando, como se
perguntando se os gritos dela eram um sonho nascido de sua agonia.
Will, seu dedo no botão do Fósforo, hesitou. Seus olhos encontraram os de Tessa do
outro lado da sala. Foi apenas por uma fração de segundo, mas de Quincey viu o olhar
deles. Como se pudesse lê-lo, a expressão em seu rosto mudou, e ele ergueu sua mão para
apontar diretamente para Will.
“O garoto,” ele cuspiu. “Pare-o!”
Will tirou os olhos de Tessa. Os vampiros já estavam ficando de pé, vindo em
direção a ele, seus olhos brilhando com raiva e fome. Will olhou atrás deles, para de
Quincey, que estava encarando Will furioso. Não havia medo no rosto de Will quando
olhou nos olhos do vampiro—nem hesitação, nem surpresa.
“Eu não sou um garoto,” ele disse. “Eu sou Nefilim.”

E apertou o botão.
Tessa se preparou para um clarão de luz de bruxa branca. Ao invés disso, houve
um grande fhoosh quando as chamas dos candelabros dispararam em direção ao teto.
Faíscas voaram, espalhando brasas ardentes pelo chão, pegando as cortinas e a barra dos
vestidos das mulheres. De repente a sala estava cheia de fumaça preta e gritos— agudos e
horríveis.
Tessa não podia mais ver Will. Ela tentou lançar-se para frente, mas Magnus—ela
quase esquecera que ele estava lá—a segurou firme pelo pulso. “Srta. Gray, não,” ele disse,
e quando ela respondeu puxando mais forte, ele acrescentou, “Srta. Gray! Você é uma
vampira agora! Se você pegar fogo, queimará como gravetos de madeira—”
Como se para ilustrar seu argumento, naquele momento uma faísca perdida
aterrissou em cima da peruca branca de Lady Delilah. A peruca explodiu em chamas. Com
um grito ela tentou tirá-lo da cabeça, mas quando suas mãos entraram em contato com as
chamas, elas também pegaram fogo, como se fossem feitas de papel em vez de pele. Em
menos de um segundo ambos os braços ardiam como tochas. Uivando, ela correu para a
porta, mas o fogo foi mais rápido do que ela. Em poucos segundos uma fogueira apareceu
onde ela estava. Tessa podia ver o contorno de uma criatura enegrecida se contorcendo e
gritando dentro dela.
“Você vê o que eu quero dizer?” Magnus gritou no ouvido de Tessa, esforçando-se
para se fazer ouvir sobre os uivos dos vampiros, que estavam mergulhando desta forma e
daquela, tentando evitar as chamas.
“Deixe-me ir!” Tessa gritou. De Quincey havia saltado para a luta; Nathaniel estava
caído sozinho no palco, aparentemente inconsciente, apenas suas algemas segurando-o na
cadeira. “Aquele é o meu irmão lá em cima. Meu irmão!”
Magnus olhou para ela. Aproveitando-se de sua confusão, Tessa soltou seu braço e
começou a correr em direção ao palco. A sala estava um caos: vampiros correndo para lá e
para cá, muitos deles fugindo com medo em direção à porta. Os vampiros que chegaram à
porta estavam empurrando para passar primeiro, outros tinham mudado a direção e
corriam para as portas francesas55 que davam para o jardim.
55 Porta com painéis de vidro.
Tessa desviou de uma cadeira caída, e quase deu de encontro com a vampira ruiva
de vestido azul que a tinha encarado mais cedo. Ela parecia aterrorizada agora. Ela
mergulhou em direção a Tessa—então pareceu tropeçar. Sua boca se abriu em um grito, e
sangue jorrou como uma fonte. Seu rosto amarrotou, dobrando sobre si mesmo, a pele
virando pó e caindo como chuva dos ossos de seu crânio. Seu cabelo vermelho murchou e
virou cinza, a pele dos braços derreteu e transformou-se em pó, e com um último grito
desesperado a vampira caiu em uma pilha pegajosa de ossos e poeira em cima de um

vestido de cetim vazio.
Tessa sufocou, arrancou seus olhos dos restos, e viu Will. Ele estava diretamente na
frente dela, segurando uma longa faca de prata; a lâmina estava manchada de sangue
escarlate. Seu rosto estava ensanguentado também, seus olhos selvagens. “Que diabos você
ainda está fazendo aqui?” ele gritou para Tessa. “Sua inacreditavelmente estúpida—”
Tessa ouviu o barulho antes de Will, um som agudo e fino, como uma peça de
máquina quebrada. O garoto loiro ds jaqueta cinza—o servo humano de quem Lady
Delilah tinha bebido mais cedo—estava correndo para Will, um som estridente de choro
vindo de sua garganta, o rosto manchado com sangue e lágrimas. Ele estava carregando
uma perna de cadeira quebrada numa das mãos; a ponta era áspera e afiada.
“Will, cuidado!” Tessa gritou, e Will virou. Ele se moveu rápido, Tessa viu, como um
borrão escuro, e a faca em sua mão era um brilho de prata na escuridão enfumaçada.
Quando ele parou de se mover, o menino estava deitado no chão, a lâmina saindo de seu
peito. Sangue jorrava em torno dela, mais grosso e mais escuro do que sangue de vampiro.
Will, olhando para baixo, estava pálido. “Eu pensei...”
“Ele o teria matado se pudesse,” disse Tessa.
“Você não sabe nada disso,” disse Will. Ele balançou a cabeça, uma vez, como se a
limpando da voz dela, ou da visão do menino no chão. O subjugado parecia muito jovem,
seu rosto torcido mais suave na morte. “Eu disse para você ir—”
“Aquele é o meu irmão,” disse Tessa, apontando em direção ao fundo da sala.
Nathaniel ainda estava inconsciente, sem forças em suas algemas. Se não fosse pelo sangue
que continuava a fluir da ferida no pescoço, ela teria pensado que ele estava morto.
“Nathaniel. Na cadeira.”
Os olhos de Will se arregalaram de espanto. “Mas como—?” ele começou. Ele não
teve a chance de terminar a sua pergunta. Naquele momento, o som de vidro quebrando
encheu a sala. As portas francesas explodiram para dentro, e a sala estava subitamente
inundado com Caçadores das Sombras em seus equipamentos de combate escuros. Eles
estavam trazendo em frente a eles um grupo escandaloso e esfarrapado de vampiros que
tinham fugido para o jardim. Enquanto Tessa olhava, mais Caçadores das Sombras
começaram a entrar vindos das outras portas, trazendo mais vampiros à frente deles,
como cães reunindo ovelhas no redil. De Quincey cambaleou antes de outros vampiros,
seu rosto pálido manchado com cinza negra, os dentes arreganhados.
Tessa viu Henry entre os Nefilins, facilmente reconhecível por seu cabelo ruivo.
Charlotte estava lá também, vestida como um homem toda em equipamento de luta
escuro, como as mulheres retratadas no livro de Caçadores das Sombras de Tessa. Ela
parecia pequena e determinada, e surpreendentemente feroz. E então havia Jem. Seu
equipamento o fazia parecer ainda mais espantosamente pálido, e as Marcas escuras em

sua pele se destacavam como tinta no papel. Na multidão ela reconheceu Gabriel
Lightwood; seu pai, Benedict; a magra e de cabelos pretos Sra. Highsmith; e atrás deles
todos caminhava Magnus, faíscas azuis voando de suas mãos enquanto gesticulava.
Will expirou, um pouco de cor regressando ao seu rosto. “Eu não tinha certeza de
que eles viriam,” ele murmurou, “não com o mau funcionamento do Fósforo.” Ele tirou os
olhos de seus amigos e olhou para Tessa. “Vá cuidar de seu irmão,” ele disse. “Isso irá
tirar você do pior disso tudo. Eu espero.”
Ele se virou e afastou-se dela sem olhar para trás. Os Nefilins tinham agrupado os
vampiros restantes, aqueles que não tinham sido mortos pelo fogo—ou por Will—para o
centro de um círculo improvisado de Caçadores das Sombras. De Quincey ergueu-se entre
o grupo, seu rosto pálido retorcido de raiva; sua camisa estava manchada de sangue—seu
ou de outra pessoa, ela não poderia dizer. Os outros vampiros se escondiam detrás dele
como crianças atrás de um pai, parecendo ferozes e miseráveis ao mesmo tempo.
“A Lei,” de Quincey rosnou, quando Benedict Lightwood avançou sobre ele, uma
lâmina brilhante em sua mão direita, sua superfície marcada com runas negras. “A Lei nos
protege. Nós nos rendemos a você. A Lei—”
“Você quebrou a lei,” rosnou Benedict. “Portanto, a proteção não se estende a você.
A sentença é a morte.”
“Um mundano,” disse de Quincey, lançando um olhar para Nathaniel. “Um
mundano que também quebrou a Lei do Tratado—”
“A Lei não se estende aos mundanos. Não podemos esperar que eles sigam as leis
de um mundo sobre o qual não sabem nada.”
“Ele é inútil,” de Quincey disse. “Você não sabe quão inútil. Você realmente deseja
quebrar a nossa aliança por um inútil mundano?”
“É mais do que apenas um mundano!” Charlotte gritou, e de seu casaco ela tirou o
papel que Will havia pegado da biblioteca. Tessa não tinha visto Will passá-lo para
Charlotte, mas ele deve ter passado. “E essas magias? Você achou que não
descobriríamos? Esta—esta magia negra é absolutamente proibida pelo Tratado!”
O rosto imóvel de de Quincey traiu apenas uma sugestão de sua surpresa. “Onde
você encontrou isso?”
A boca de Charlotte era uma dura linha fina. “Isso não importa.”
“Seja o que for que você pensa que sabe—” de Quincey começou.
“Nós sabemos o suficiente!” A voz de Charlotte estava cheia de paixão. “Nós
sabemos que você nos odeia e nos despreza! Sabemos que a sua aliança conosco foi uma
farsa!”

“E você decretou contra a Lei do Tratado agora não gostar dos Caçadores das
Sombras?” de Quincey disse, mas o desdém tinha ido embora de sua voz. Ele soou áspero.
“Não jogue seus jogos conosco,” cuspiu Benedict. “Depois de tudo o que fizemos
por vocês, depois que aprovamos os Acordos em Lei—Por quê? Tentamos fazê-los igual a
nós mesmos—”
O rosto de de Quincey se contorceu. “Iguais? Vocês não sabem o que essa palavra
significa. Vocês não podem deixar a sua própria convicção, abandonar sua crença em sua
inerente superioridade, por tempo suficiente para sequer considerar o que isso significaria.
Onde estão os nossos lugares no Conselho? Onde está a nossa embaixada em Idris?”
“Mas isso—isso é ridículo,” disse Charlotte, embora tivesse empalidecido.
Benedict lançou um olhar impaciente em Charlotte. “E irrelevante. Nada disto
desculpa seu comportamento, de Quincey. Enquanto você sentava em reunião conosco,
fingindo que estava interessado em paz, pelas nossas costas você quebrava a Lei e
zombava do nosso poder. Renda-se, diga-nos o que queremos saber, e podemos deixar
que o seu clã sobreviva. Caso contrário, não haverá misericórdia.”
Outro vampiro falou. Era um dos homens que tinham amarrado Nathaniel à sua
cadeira, um grande homem de cabelos vermelhos com uma cara brava. “Se precisávamos
de mais alguma prova de que os Nefilins nunca foram sinceros em suas promessas de paz,
aqui está. Atrevam-se a nos atacar, Caçadores das Sombras, e vocês terão uma guerra em
suas mãos!”
Benedict apenas sorriu. “Então que a guerra comece aqui,” disse ele, e atirou a
lâmina em de Quincey. Ela cortou o ar—e mergulhou até o cabo no tórax do vampiro
ruivo, que havia se atirado na frente do líder de seu clã. Ele explodiu em um banho de
sangue enquanto os outros vampiros gritavam. Com um uivo, de Quincey se lançou
contra Benedict. Os outros vampiros pareceram despertar de seu torpor de pânico, e
rapidamente seguiram o exemplo. Em poucos segundos a sala estava um tumulto de
gritos e caos.
O caos súbito descongelou Tessa também. Suspendendo as saias, ela correu para o
palco, e caiu de joelhos ao lado da cadeira de Nathaniel. A cabeça dele pendeu para o lado,
de olhos fechados. O sangue do ferimento em seu pescoço havia escorrido num
gotejamento lento. Tessa pegou-o pela manga. “Nate,” ela sussurrou. “Nate, sou eu.”
Ele gemeu, mas não deu nenhuma outra resposta. Mordendo o lábio, Tessa foi
trabalhar nas algemas que prendiam os pulsos na cadeira. Elas eram de ferro duro, presas
aos braços robustos da cadeira com fileiras de pregos—claramente concebidas para resistir
até mesmo à força dos vampiros. Ela as puxou até seus dedos sangrarem, mas elas não se
moveram. Quem dera ela tivesse uma das facas de Will.
Ela olhou ao longo da sala. Ainda estava escura com a fumaça. Dentre os

redemoinhos de escuridão, ela podia ver os relances resplandecentes de armas, os
Caçadores das Sombras brandindo as brilhantes adagas brancas que Tessa agora sabia que
eram chamadas lâminas de serafim, cada uma trazida à vida tremulante pelo nome de um
anjo. Sangue de vampiro voava das bordas das lâminas, tão vivo quanto uma dispersão de
rubis. Ela percebeu—com um choque de surpresa, porque os vampiros no começo a
amedrontaram—que os vampiros estavam claramente vencidos aqui. Embora os Filhos da
Noite fossem cruéis e rápidos, os Caçadores das Sombras eram quase tão rápidos, e
tinham armas e treinamento do seu lado. Vampiro após vampiro caiu sob o ataque das
lâminas de serafim. O sangue correu em lençóis pelo chão, molhando as bordas dos
tapetes persas.
A fumaça se dissipou em um ponto, e Tessa viu Charlotte despachar um vampiro
robusto em um fraque cinza. Ela cortou sua garganta com a lâmina da faca, e sangue
salpicou a parede atrás deles. Ele afundou, rosnando, de joelhos, e Charlotte acabou com
ele com um golpe de sua lâmina no peito.
Um borrão de movimento explodiu atrás de Charlotte; era Will, seguido por um
vampiro de olhos arregalados empunhando uma pistola prateada. Ele apontou para Will,
mirou, e disparou. Will mergulhou para fora do caminho e derrapou ao longo do chão
ensanguentado. Ele rolou para ficar de pé, e subiu em uma cadeira com assento de veludo.
Esquivando-se de outro tiro, ele pulou de novo, e Tessa observou com espanto enquanto
ele corria levemente ao longo das costas de uma fileira de cadeiras, saltando da última
delas. Ele virou-se para enfrentar o vampiro, agora a uma distância dele do outro lado da
sala. De alguma forma, uma faca de lâmina curta brilhava em sua mão, embora Tessa não
o tivesse visto pegá-la. Ele a jogou. O vampiro abaixou-se de lado, mas não foi
suficientemente rápido; a faca afundou em seu ombro. Ele urrou de dor e estava
alcançando a faca quando uma sombra pequena e escura se ergueu do nada. Houve um
clarão de prata, e o vampiro explodiu em uma chuva de sangue e poeira. Quando a
confusão clareou, Tessa viu Jem, uma lâmina longa ainda em seu punho. Ele estava
sorrindo, mas não para ela; ele chutou a pistola prateada—agora jogada abandonada entre
os restos do vampiro—e ela deslizou no chão, parando nos pés de Will. Will assentiu com
a cabeça em direção a Jem com um retorno de seu sorriso, tirou a pistola do chão, e
empurrou-a em seu cinto.
“Will!” Tessa o chamou, embora ela não tivesse certeza de que ele podia ouvi-la por
causa do barulho. “Will—”
Algo a agarrou pela parte de trás do vestido e puxou-a para cima e para trás. Era
como ser pega pelas garras de uma enorme ave. Tessa gritou uma vez, e viu-se atirada
para frente, derrapando no chão. Ela bateu na pilha de cadeiras. Eles caíram no chão em
uma massa ensurdecedora, e Tessa, esparramada entre a confusão, olhou para cima com
um grito de dor.
De Quincey estava de pé acima dela. Seus olhos negros estavam selvagens,
margeados de vermelho; seus cabelos brancos estendiam-se sobre o seu rosto em tufos

emaranhados, e sua camisa estava cortada na frente, as bordas do rasgo encharcadas de
sangue. Ele deve ter sido cortado, mas não profundamente o suficiente para matá-lo, e
tinha curado. A pele sob a camisa rasgada parecia não marcada agora. “Vagabunda,” ele
rosnou para Tessa. “Vagabunda mentirosa e traidora. Você trouxe aquele menino aqui,
Camille. Aquele Nefilim.”
Tessa se arrastou para trás; suas costas bateram no muro de cadeiras caídas.
“Eu te acolhi de volta ao clã, mesmo depois de seu repugnante pequeno—
interlúdio—com o licantropo. Eu tolero aquele seu ridículo feiticeiro. E é assim que você
me paga. Nos paga.” Ele estendeu as mãos para ela; elas estavam manchadas de cinzas
pretas. “Veja isso,” disse ele. “O pó do nosso povo morto. Vampiros mortos. E você os traiu
por Nefilins.” Ele cuspiu a palavra como se fosse veneno.
Algo borbulhou na garganta de Tessa. Risos. Não o riso dela; o de Camille.
“‘Repugnante interlúdio’?” As palavras saíram da boca de Tessa antes que ela pudesse detê-
las. Era como se ela não tivesse controle sobre o que estava dizendo. “Eu o amava—como
você nunca me amou—como você nunca amou nada. E você o matou apenas para mostrar
ao clã que podia. Eu quero que você saiba o que é perder tudo o que importa para você. Eu
quero que você saiba, enquanto sua casa queima e seu clã é transformado em cinzas e a
sua própria vida miserável termina, que sou eu quem está fazendo isso com você.”
E a voz de Camille foi embora tão rapidamente quanto chegou, deixando Tessa
sentindo-se drenada e chocada. Isso não a impediu, porém, de usar as mãos, por trás dela,
para remexer as cadeiras quebradas. Certamente tinha que haver alguma coisa, algum
pedaço quebrado que ela poderia usar como arma. De Quincey a estava encarando em
choque, sua boca aberta. Tessa imaginou que ninguém nunca havia falado com ele
daquele jeito. Certamente não outro vampiro.
“Talvez,” disse ele. “Talvez eu tenha subestimado você. Talvez você vá me
destruir.” Ele avançou sobre ela, com as mãos para fora, alcançando. “Mas eu a levarei
comigo—”
Os dedos de Tessa se fecharam ao redor da perna de uma cadeira; sem sequer
pensar nisso, ela girou a cadeira para cima e a derrubou nas costas de de Quincey. Ela
sentiu-se exaltada quando ele gritou e cambaleou para trás. Ela arrastou-se para ficar de pé
enquanto o vampiro se endireitava, e bateu a cadeira nele novamente. Desta vez, um
pedaço irregular de um braço de cadeira quebrado o atingiu no rosto, abrindo um longo
corte vermelho. Os lábios dele se curvaram para trás de seus dentes em um rosnado
silencioso, e ele saltou—não havia outra palavra para isso. Foi como o salto silencioso de
um gato. Ele derrubou Tessa no chão, aterrissando em cima dela e arrancando a cadeira de
sua mão. Ele pulou na garganta dela, dentes arreganhados, e ela lançou sua mão com
garras no rosto dele. Seu sangue, onde pingava sobre ela, parecia queimar, como ácido. Ela
gritou e o arranhou com mais força, mas ele apenas riu; suas pupilas tinham desaparecido
no preto dos olhos dele, e ele parecia totalmente desumano, como uma espécie de serpente

predatória monstruosa.
Ele pegou os pulsos dela em suas mãos e forçou-os para baixo em cada lado dela,
com força contra o chão. “Camille,” disse ele, inclinando-se sobre ela, sua voz grossa.
“Fique quieta, pequena Camille. Isso terá terminado em instantes—”
Ele jogou a cabeça para trás como uma cobra dando o bote. Apavorada, Tessa lutou
para libertar as pernas presas, querendo chutá-lo, chutá-lo com tanta força quanto podia—
Ele gritou. Gritou e contorceu-se, e Tessa viu que havia uma mão agarrada em seus
cabelos, puxando sua cabeça para cima e para trás, arrastando-o para ficar de pé. Uma
mão toda pintada com Marcas pretas giratórias.
A mão de Will.
De Quincey foi arrastado gritando até ficar de pé, as mãos presas à cabeça. Tessa
lutou para ficar de pé, olhando, enquanto Will arremessava o vampiro uivante
desdenhosamente para longe dele. Will não estava mais sorrindo, mas seus olhos
brilhavam, e Tessa podia ver por que Magnus havia descrito a cor deles como o céu no
inferno.
“Nefilim.” De Quincey vacilou, endireitou-se, e cuspiu aos pés de Will.
Will puxou a pistola da cintura e apontou-a para de Quincey. “Uma das
abominações do próprio Diabo, você, não é? Você nem sequer merece viver neste mundo
com o resto de nós, e ainda assim, quando o deixamos viver por pena, você joga o nosso
presente de volta na nossa cara.”
“Como se precisássemos de sua pena,” respondeu de Quincey. “Como se nós
pudéssemos ser inferiores a vocês. Vocês Nefilins, pensando que são—” Ele parou
abruptamente. Ele estava tão manchado com sujeira que era difícil dizer, mas parecia que
o corte em seu rosto já estava curado.
“São o quê?” Will engatilhou a pistola; o clique foi alto, mesmo sobre o barulho da
batalha. “Diga.”
Os olhos do vampiro queimaram. “Dizer o quê?”
“‘Deus’,” disse Will. “Você ia me dizer que nós Nefilins brincamos de Deus, não ia?
Só que você não pode nem dizer a palavra. Zombe a Bíblia o quanto quiser com sua
pequena coleção, mesmo assim você não pode dizer.” Seu dedo estava branco no gatilho
da arma. “Diga. Diga, e eu o deixarei viver.”
O vampiro trancou os dentes. “Você não pode me matar com esse—esse estúpido
brinquedo humano.”
“Se a bala atravessar o seu coração,” Will disse, sua mira inabalável, “você morrerá.
E eu sou um atirador muito bom.”

Tessa estava de pé, congelada, olhando para o quadro diante dela. Ela queria dar
um passo para trás, ir até Nathaniel, mas tinha medo de se mover.
De Quincey levantou a cabeça. Ele abriu a boca. Um leve chocalhar saiu quando ele
tentou falar, tentou formar uma palavra que sua alma não o deixaria dizer. Ele engasgou
novamente, sufocou, e colocou uma mão à garganta. Will começou a rir—
E o vampiro pulou. Seu rosto torcido em uma máscara de raiva e de dor, ele lançou-
se em Will com um uivo. Houve um borrão de movimento. Então, a arma disparou e
houve um salpico de sangue. Will bateu no chão, a pistola escorregando de sua mão, o
vampiro em cima dele. Tessa lutou para recuperar a pistola, pegou-a e se virou para ver
que de Quincey tinha agarrado Will pelas costas, seu braço preso na garganta de Will.
Ela levantou a pistola, com a mão tremendo—mas ela nunca tinha usado uma
pistola antes, nunca tinha atirado em nada, e como atirar no vampiro sem ferir Will? Will
estava claramente sufocando, com o rosto banhado de sangue. De Quincey resmungou
alguma coisa e apertou ainda mais—
E Will, abaixando a cabeça, afundou seus dentes no braço do vampiro. De Quincey
gritou e puxou o braço para longe; Will se jogou para o lado, vomitando, e rolou até ficar
de joelhos para cuspir sangue no palco, Quando ele olhou para cima, sangue vermelho
brilhante estava espalhado pela metade inferior do seu rosto. Os dentes dele brilhavam
vermelhos também quando ele—Tessa não podia acreditar—sorriu, realmente sorriu, e
olhando para de Quincey, disse “Como você gosta disso, vampiro? Você ia morder aquele
mundano mais cedo. Agora você sabe como é, não sabe?”
De Quincey, de joelhos, encarou de Will até o feio buraco vermelho em seu próprio
braço, que já estava começando a fechar, embora sangue escuro ainda gotejasse levemente
dele. “Por isso,” ele disse, “você morrerá, Nefilim.”
Will abriu os braços largamente. De joelhos, sorrindo como um demônio, sangue
gotejando de sua boca, ele próprio mal parecia humano. “Venha e me pegue.”
De Quincey se preparou para saltar—e Tessa puxou o gatilho. A arma deu um
coice, pesado, em sua mão, e o vampiro caiu de lado, sangue jorrando de seu ombro. Ela
havia errado o coração. Maldição.
Uivando, De Quincey começou a se pôr de pé. Tessa levantou o braço, puxando o
gatilho da pistola novamente—nada. Um clique suave a deixou saber que a arma estava
vazia.
De Quincey riu. Ele ainda estava apertando seu ombro, embora o fluxo de sangue já
houvesse diminuído para um pequeno fio. “Camille,” ele cuspiu para Tessa. “Eu voltarei
por você. Eu farei você se arrepender de ter um dia renascido.”
Tessa sentiu um arrepio no fundo de seu estômago—não apenas seu medo. O de

Camille. De Quincey arreganhou os dentes uma última vez e rodopiou com incrível
velocidade. Ele correu pela sala e se jogou em uma janela de vidro alta. Ela se quebrou
para fora em uma explosão de vidro, carregando-o para frente como se o corpo dele
estivesse sendo carregado em uma onda, desaparecendo na noite.
Will soltou um xingamento. “Nós não podemos perdê-lo—” ele começou, e
começou a ir para frente. Então ele virou quando Tessa gritou. Um vampiro de aspecto
esfarrapado havia levantado atrás dela como um fantasma aparecendo do ar, e a havia
agarrado pelos ombros. Ela tentou se libertar, mas o aperto dele ela forte demais. Ela podia
ouvi-lo murmurando em seu ouvido, palavras horríveis sobre como ela era uma traidora
para os Filhos da Noite, e como ele a iria despedaçar com os dentes.
“Tessa,” Will gritou, e ela não tinha certeza de se ele soava com raiva, ou alguma
outra coisa. Ele levou a mão às armas reluzentes em seu cinto. A mão dele se fechou ao
redor do cabo de uma lâmina de serafim, logo quando o vampiro girava Tessa. Ela avistou
seu vesgo rosto branco, as presas com pontas ensanguentadas expostas, prontas para
rasgar. O vampiro deu um bote para frente—
E explodiu em uma chuva de poeira e sangue. Ele dissolveu, a carne derretendo
para fora do seu rosto e mãos, e Tessa avistou for um momento o esqueleto enegrecido por
baixo antes que ele, também, se desfizesse, deixando uma pilha vazia de roupas para trás.
Roupas, e uma lâmina prateada reluzente.
Ela olhou para cima. Jem estava de pé alguns metros adiante, parecendo muito
pálido. Ele segurava a lâmina em sua mão esquerda; sua mão direita estava vazia. Havia
um longo corte ao longo de uma de suas bochechas, mas ele parecia de outro modo ileso.
“Eu acho,” ele disse, “que aquele era o último deles.”
Surpresa, Tessa olhou em volta da sala. O caos havia diminuído. Caçadores das
Sombras se moviam aqui e ali nos destroços—alguns estavam sentados em cadeiras, sendo
atendidos por curadores usando steles—mas ela não podia ver um único vampiro. A
fumaça do incêncio havia retrocedido também, embora cinzas brancas das cortinas
incineradas ainda flutuassem pela sala como neve inesperada.
Will, sangue ainda pingando de seu queixo, olhou para Jem com as sobrancelhas
erguidas. “Belo arremesso,” ele disse.
Jem balançou a cabeça. “Você mordeu de Quincey,” ele disse. “Seu tolo. Ele é um
vampiro. Você sabe o que significa morder um vampiro.”
“Eu não tinha escolha,” disse Will. “Ele estava me estrangulando.”
“Eu sei,” Jem disse. “Mas realmente, Will. De novo?”

Foi Henry, no fim, que libertou Nathaniel da cadeira de tortura pelo simples

recurso de quebrá-la completamente com o lado plano de uma espada até que as algemas
se soltassem. Nathaniel escorregou para o chão, onde ele ficou gemendo, Tessa o
embalando. Charlotte fez um pequeno rebuliço, trazendo panos molhados para o rosto de
Nate, e um pedaço rasgado de cortina para jogar em cima dele, antes de correr para fora
para engatar Benedict Lightwood em uma conversa enérgica—durante a qual ela alternou
entre apontar de volta para Tessa e Nathaniel e agitar as mãos de uma maneira dramática.
Tessa, completamente atordoada e exausta, se perguntou o que diabos Charlotte poderia
estar fazendo.
Aquilo mal importava, realmente. Tudo parecia estar acontecendo em um sonho.
Ela sentou no chão com Nathaniel enquanto os Caçadores das Sombras se moviam ao
redor dela, desenhando uns nos outros com seus steles. Era incrível ver seus machucados
desaparecendo à medida que as Marcas de cura iam para suas peles. Eles todos pareciam
igualmente capazes de desenhar as Marcas. Ela assistiu enquanto Jem, fazendo uma careta
de dor, desabotoava sua camisa para mostrar um longo corte ao longo de um ombro; ele
olhou para o outro lado, sua boca apertada, enquanto Will desenhava uma Marca
cuidadosa embaixo da ferida.
Não foi até que Will, tendo terminado com Jem, viesse passeando até ela que ela
percebeu por que estava tão cansada.
“De volta a si mesma, eu vejo,” ele disse. Ele tinha uma toalha úmida em uma mão,
mas ainda não tinha se incomodado em limpar o sangue de seu rosto e pescoço.
Tessa baixou o olhar para si. Era verdade. Em algum ponto ela havia perdido
Camille e se tornado ela mesma de novo. Ela deve ter estado realmente atordoada, ela
pensou, para não ter notado o retorno das batidas do seu próprio coração. Ele pulsava
dentro dela como um tambor.
“Eu não sabia que você sabia como usar uma pistola,” Will adicionou.
“Eu não sei,” Tessa disse. “Eu acho que Camille deve ter sabido. Foi—instintivo.”
Ela mordeu o lábio. “Não que isso importe, já que não funcionou.”
“Nós raramente as usamos. Gravar runas no metal de uma arma ou bala previne
que a pólvora acenda; ninguém sabe o por quê. Henry tentou resolver o problema, é claro,
mas não com algum sucesso. Como você não pode matar um demônio sem uma arma com
runas ou uma lâmina de serafim, armas de fogo não são de muito uso para nós. Vampiros
morrem se você atirar neles através do coração, reconhecidamente, e lobisomens podem
ser feridos se você tem uma bala de prata, mas se você errar os pontos vitais, eles só irão
atrás de você com mais raiva do que nunca. Lâminas com runas simplesmente servem
melhor aos nossos propósitos. Pegue um vampiro com uma lâmina com runas e é muito
mais difícil para eles se recuperarem e se curarem.”
Tessa olhou para ele, seu olhar firme. “Não é difícil?”

Will jogou o pano molhado de lado. Estava escarlate de sangue. “O quê não é
difícil?”
“Matar vampiros,” ela disse. “Eles podem não ser pessoas, mas eles se parecem com
pessoas. Eles sentem como as pessoas. Eles gritam e sangram. Não é difícil abatê-los?”
A mandíbula de Will endureceu. “Não,” ele disse. “E se você realmente soubesse
algo sobre eles—”
“Camille sente,” ela disse. “Ela ama e odeia.”
“E ela ainda está viva. Todos têm escolhas, Tessa. Aqueles vampiros não estariam
aqui esta noite se eles não tivessem feito a deles.” Ele baixou o olhar para Nathaniel,
flácido no colo de Tessa. “Nem, eu imagino, seu irmão estaria.”
“Eu não sei por que de Quincey o queria morto,” Tessa disse suavemente. “Eu não
sei o que ele poderia ter feito para chamar sobre si a cólera dos vampiros.”
“Tessa!” Era Charlotte, dardejando até Tessa e Will como um beija-flor. Ela ainda
parecia tão pequena, e tão inofensiva, Tessa pensou—apesar do equipamento de batalha
que ela usava e as Marcas negras que ornamentavam sua pele como cobras enroladas.
“Foi-nos dada permissão para trazer seu irmão de volta para o Instituto conosco,” ela
anunciou, gesticulando para Nathaniel com uma pequena mão. “Os vampiros podem bem
tê-lo drogado. Ele certamente foi mordido, e quem sabe mais o quê? Ele poderia se tornar
um sombrio—ou pior, se não prevenirmos. Em qualquer caso, eu duvido que eles serão
capazes de ajudá-lo em um hospital mundano. Conosco, pelo menos os Irmãos Silenciosos
podem cuidar dele, coitadinho.”
“Coitadinho?” ecoou Will muito rudemente. “Ele um tanto quanto se meteu nisso,
não é? Ninguém falou a ele para correr e se envolver com um bando de Habitantes do
Submundo.”
“Realmente, Will.” Charlotte o olhou friamente. “Você não pode ter um pouco de
empatia?”
“Deus querido,” disse Will, olhando de Charlotte para Nate e de volta. “Há algo
que deixe as mulheres mais tolas do que a visão de um jovem homem ferido?”
Tessa estreitou os olhos para ele. “Você pode querer limpar o resto do sangue do
seu rosto antes de continuar argumentando nesse rumo.”
Will jogou seus braços no ar e saiu andando. Charlotte olhou para Tessa, um meio-
sorriso curvando o lado de sua boca. “Eu preciso dizer, eu um tanto quanto gosto da
maneira como você manobra Will.”
Tessa sacudiu a cabeça. “Ninguém manobra Will.”


Foi rapidamente decidido que Tessa e Nathaniel iriam com Henry e Charlotte na
carruagem da cidade; Will e Jem iriam para casa em uma carruagem menor emprestada da
tia de Charlotte, com Thomas como seu cocheiro. Os Lightwoods e o resto do Enclave
iriam ficar para trás para fazer uma busca na casa de de Quincey, sem deixar nenhuma
evidência de sua batalha para os mundanos acharem de manhã. Will tinha querido ficar e
fazer parte da busca, mas Charlotte tinha sido firme. Ele havia ingerido sangue de
vampiro e precisava retornar ao Instituto o mais rápido possível para começar a cura.
Thomas, porém, não iria permitir que Will entrasse na carruagem coberto de sangue
como estava. Após anunciar que ele voltaria “em meio segundo”, Thomas havia saído
para encontrar um pedaço de pano úmido. Will se inclinou contra o lado da carruagem,
observando enquanto o Enclave entrava e saía rapidamente da casa de de Quincey como
formigas, salvando papéis e móveis dos restos do fogo.
Voltando com um trapo ensaboado, Thomas o entregou para Will, e encostou seu
grande corpo contra o lado da carruagem. Ela balançou sob o seu peso. Charlotte sempre
encorajou Thomas a se juntar a Jem e Will nas partes físicas do treinamento deles, e à
medida que os anos foram passando, Thomas havia crescido de uma criança franzina para
um homem tão largo e musculoso que costureiros se desesperavam com suas medidas.
Will pode ter sido o melhor lutador—o seu sangue o fez assim—mas a presença física
dominante de Thomas não era fácil de ignorar.
Algumas vezes Will não podia evitar lembrar-se de Thomas como ele tinha chegado
pela primeira vez no Instituto. Ele pertencia a uma família que havia servido os Nefilins
por anos, mas tinha nascido tão frágil que pensaram que ele não fosse viver. Quando
alcançou doze anos de idade, ele tinha sido mandado para o Instituto; naquele tempo ele
ainda era tão pequeno que mal parecia ter nove anos. Will havia feito troça de Charlotte
por querer empregá-lo, mas havia secretamente esperado que ele ficasse para que
houvesse outro garoto de sua idade na casa. E eles tinham sido amigos de algum tipo, o
Caçador das Sombras e o menino criado—até que Jem tinha vindo e Will tinha esquecido
Thomas quase completamente. Thomas nunca pareceu tê-lo ressentido por isso, tratando
Will sempre com a mesma cordialidade com que ele tratava a todos.
“Sempre ‘stranho ver ess’ tipo de coisa acontecendo, e nenhum dos vizinhos sair
nem mesmo pra dar uma espiadela,” Thomas dizia agora, olhando para cima e para baixo
da rua. Charlotte sempre havia exigido que os criados do Instituto falassem inglês
“correto” dentro de seus muros, e o sotaque East End de Thomas tendia a ir e vir
dependendo de se ele lembrava ou não.
“Há glamours pesados em ação aqui.” Will esfregou seu rosto e pescoço. “E eu
imaginaria que há muitos nessa rua que não são mundanos, que sabem cuidar de seus
próprios assuntos quando Caçadores das Sombras estão envolvidos.”
“Bem, vocês são um quinhão assustador, é verdade,” Thomas disse, tão
uniformemente que Will suspeitou que estava sendo motivo de piada. Thomas apontou

para a face de Will. “Você terá um olho roxo encantador amanhã, se não colocar um iratze
aí.”
“Talvez eu queira um olho roxo,” Will disse irritadamente. “Você pensou nisso?”
Thomas apenas sorriu e se ergueu para o lugar do cocheiro no frente da carruagem.
Will voltou a esfregar sangue de vampiro seco de suas mãos e braços. A tarefa era
absorvente o suficiente que ele foi capaz de ignorar quase completamente Gabriel
Lightwood quando o outro garoto apareceu das sombras e passeou até Will, um sorriso
superior afixado em seu rosto.
“Bom trabalho lá dentro, Herondale, ateando fogo ao lugar,” Gabriel observou.
“Boa coisa que nós estávamos lá para limpar as coisas, ou o plano inteiro teria caído em
chamas, junto com os farrapos da sua reputação.”
“Você está insinuando que farrapos da minha reputação continuam inteiros?” Will
perguntou com horror fingido. “Claramente eu tenho estado fazendo algo de errado. Ou
não estado fazendo algo de errado, como parece ser o caso.” Ele bateu no lado da
carruagem. “Thomas! Nós precisamos ir imediatamente até o bordel mais próximo! Eu
busco escândalo e companhia de baixo nível.”
Thomas riu e murmurou algo que soava como “tolice”, o que Will ignorou.
O rosto de Gabriel se escureceu. “Existe alguma coisa que não seja uma piada para
você?”
“Nada que me venha à cabeça.”
“Você sabe,” Gabriel disse, “houve um tempo em que eu pensei que poderíamos ser
amigos, Will.”
“Houve um tempo em que eu pensei que era um furão,” Will disse, “mas isso veio a
ser a névoa do ópio. Você sabia que ele tinha esse efeito? Porque eu não.”
“Eu penso,” Gabriel disse, “que talvez você deva considerar se piadas sobre ópio
são engraçadas ou de bom gosto, dada a... situação de seu amigo Carstairs.”
Will congelou. Ainda no mesmo tom de voz, ele disse, “Você quer dizer a
deficiência dele?”
Gabriel piscou. “O quê?”
“É como você chamou. Lá no Instituto. A ‘deficiência’ dele.” Will jogou o pano
ensanguentado de lado. “E você se pergunta por que não somos amigos.”
“Eu só me perguntei,” Gabriel disse, em uma voz mais subjugada, “se talvez você
algum dia já cansou.”

“Cansou de quê?”
“Cansou de se comportar como você se comporta.”
Will cruzou os braços no peito. Seus olhos brilhavam perigosamente. “Oh, eu nunca
posso cansarr,” ele disse. “O que, incidentalmente, é o que sua irmã me disse quando—”
A porta da carruagem se abriu voando. Uma mão surgiu, agarrou Will pelas costas
da camisa, e o arrastou para dentro. A porta se fechou com um barulho depois dele, e
Thomas, sentando muito ereto, agarrou as rédeas dos cavalos. Um momento depois a
carruagem havia se lançado para frente na noite, deixando Gabriel encarando,
furiosamente, ela se afastar.

“O que você estava pensando?” Jem, tendo depositado Will no assento da
carruagem oposto a ele, balançou a cabeça, seus olhos prateados brilhando na
obscuridade. Ele segurava sua bengala entre os joelhos, sua mão descansando levemente
sobre a cabeça de dragão entalhada. A bengala havia pertencido ao pai de Jem, Will sabia,
e havia sido desenhada para ele por um fabricante de armas Caçador das Sombras em
Pequim. “Atormentar Gabriel Lightwood daquele jeito—por que você faz isso? Qual é o
objetivo?”
“Você ouviu o que ele disse sobre você—”
“Eu não me importo com o que ele fala sobre mim. É o que todos pensam. Ele só
tem coragem de dizer.” Jem se inclinou para frente, descansando o queixo em sua mão.
“Você sabe, eu não posso funcionar como o seu senso de autopreservação desaparecido
para sempre. Eventualmente você terá que aprender a manejar sem mim.”
Will, como sempre fazia, ignorou isso. “Gabriel Lightwood dificilmente é uma
grande ameaça.”
“Então esqueça Gabriel. Há alguma razão em particular para você continuar
mordendo vampiros?”
Will tocou o sangue seco em seus pulsos, e sorriu. “Ele não esperam por isso.”
“É claro que não. Eles sabem o que acontece quando um de nós consome sangue
vampírico. Eles provavelmente esperam que você tenha mais juízo.”
“Essa expectativa nunca parece servi-los muito bem, parece?”
“Ela dificilmente serve a você, também.” Jem olhou para Will pensativamente. Ele
era o único que nunca perdia a paciência com Will. O que quer que Will fizesse, a reação
mais extrema que ele parecia ser capaz de provocar em Jem era uma leve exasperação. “O
que aconteceu lá dentro? Nós estávamos esperando pelo sinal—”

“O maldito Fósforo de Henry não funcionou. Ao invés de mandar uma labareda de
luz, ele incendiou as cortinas.”
Jem fez um barulho estrangulado.
Will o encarou. “Não é engraçado. Eu não sabia se o resto de vocês iria aparecer ou
não.”
“Você realmente pensou que nós não viríamos atrás de você quando o lugar inteiro
virou uma tocha?” Jem perguntou sensatamente. “Eles poderiam estar assando você em
um espeto, pelo que nós sabíamos.”
“E Tessa, a criatura tola, deveria ter ido embora com Magnus, mas ela não queria
sair—”
“O irmão dela estava algemado a uma cadeira na sala,” Jem apontou. “Eu não tenho
certeza de que eu iria embora, também.”
“Eu vejo que você está determinado a não ver o meu ponto.”
“Se seu ponto é que havia uma garota bonita na sala e isso estava distraindo você,
então eu acho que entendi seu ponto imediatamente.”
“Você a acha bonita?” Will estava surpreso; Jem raramente opinava nesse tipo de
coisa.
“Sim, e você também acha.”
“Eu não notei, realmente.”
“Sim, você notou, e eu notei você notando.” Jem estava sorrindo. Apesar do estresse
da batalha, ele parecia saudável esta noite. Havia cor em suas bochechas, e seus olhos
eram um escuro e estável prata. Havia vezes, quando a doença estava em seu pior, que
toda a cor sumia até mesmo de seus olhos, deixando-os horrivelmente pálidos, quase
brancos, com aquela partícula preta de pupila no centro como um grão de cinza negra na
neve. Era em vezes como essa que ele também ficava delirante. Will havia segurado Jem
enquanto ele se debatia e gritava em outra língua e seus olhos rolavam para trás em sua
cabeça, e cada vez que isso acontecia, Will pensava que era isso, e Jem realmente iria
morrer dessa vez. Ele algumas vezes então pensava no que iria fazer depois, mas não
conseguia imaginar isso, não mais do que ele conseguia olhar para trás e se lembrar de sua
vida antes de chegar ao Instituto. Nenhum deles ele suportava pensar por muito tempo.
Mas então havia outras vezes, como essa, quando ele olhava pra Jem e não via
marca de doença nele, e se perguntava como seria um mundo em que Jem não estivesse
morrendo. E nisso também não suportava pensar. Era um terrível lugar negro dentro dele
de onde o medo vinha, uma voz escura que ele só podia silenciar com raiva, risco, e dor.
“Will.” A voz de Jem cortou o devaneio desagradável de Will. “Você ouviu uma

única palavra do que eu disse nos últimos cinco minutos?”
“Não realmente.”
“Nós não precisamos falar sobre Tessa se você não quiser, sabe.”
“Não é Tessa.” Isso era verdade. Will não havia estado pensando em Tessa. Ele
estava ficando bom em não pensar nela, na verdade; tudo o que precisava era
determinação e prática. “Um dos vampiros tinha um servo humano que me atacou. Eu o
matei,” disse Will. “Sem nem mesmo pensar sobre isso. Ele era apenas um estúpido garoto
humano, e eu o matei.”
“Ele era um sombrio,” disse Jem. “Ele estava se Transformando. Seria uma questão
de tempo.”
“Ele era apenas um garoto,” Will disse de novo. Ele virou seu rosto para a janela,
embora o brilho da luz de bruxa na carruagem significasse que tudo que ele podia ver era
seu próprio rosto, refletido de volta para ele. “Eu irei me embebedar quando chegarmos
em casa,” ele adicionou. “Eu acho que terei de fazer isso.”
“Não, você não irá,” disse Jem. “Você sabe exatamente o que irá acontecer quando
chegarmos em casa.”
Porque ele estava certo, Will fez uma careta.

À frente de Will e Jem, na primeira carruagem, Tessa sentava no banco de veludo
do outro lado de Henry e Charlotte; eles estavam falando em murmúrios sobre a noite e
como ela tinha ido. Tessa deixou as palavras passarem por ela, mal se importando. Apenas
dois Caçadores das Sombras haviam sido mortos, mas a fuga de de Quincey era um
desastre, e Charlotte estava preocupada que o Enclave ficasse com raiva dela. Henry fazia
sons tranquilizadores, mas Charlotte parecia inconsolável. Tessa teria se sentido mal por
ela, se tivesse a energia para sentir qualquer coisa.
Nathaniel estava deitado ao lado de Tessa, sua cabeça no colo dela. Ela se inclinou
sobre ele, acariciando seu sujo cabelo emaranhado com suas mãos enluvadas. “Nate,” ela
disse, tão suavemente que ela esperava que Charlotte não a ouvisse. “Está tudo bem agora.
Tudo está bem.”
Os cílios de Nathaniel tremeram e seus olhos se abriram. A mão dele subiu—as
unhas quebradas, suas juntas inchadas e torcidas—e ele agarrou fortemente a mão dela,
enlaçando seus dedos nos dela. “Não vá,” ele disse com a voz grossa. Os olhos dele se
fecharam de novo; ele estava claramente flutuando para dentro e para fora da consciência,
se ele estava realmente consciente de qualquer modo. “Tessie—fique.”
Ninguém mais jamais a chamava assim; ela fechou os olhos, desejando que as

lágrimas voltassem. Ela não queria que Charlotte—ou qualquer Caçador das Sombras—a
visse chorar.


12
Sangue e Água


Não me atrevo a tocá-la sempre, para que o beijo
Não deixe meus lábios carbonizados. Sim, Senhor, um pouco de alegria,
Breve alegria amarga, que um tem por um grande pecado;
No entanto tu sabes quão doce é a coisa.
—Algernon Charles Swinburne, “Laus Veneris”


Quando chegaram ao Instituto, Sophie e Agatha estavam esperando nas portas
abertas com lanternas. Tessa tropeçava de cansaço enquanto saía da carruagem, e ficou
surpresa—e grata—quando Sophie veio para ajudá-la a subir os degraus. Charlotte e
Henry meio que carregaram Nathaniel. Atrás deles, a carruagem com Will e Jem dentro
entrou com barulho pelos portões, a voz de Thomas sendo carregada no ar fresco da noite
quando ele gritou um cumprimento.
Jessamine, não para a surpresa de Tessa, estava longe de ser vista.
Eles instalaram Nathaniel em um quarto bem como o de Tessa—a mesma mobília
de pesada madeira escura, a mesma cama grande e guarda-roupa. Enquanto Charlotte e
Agatha ajeitavam Nathaniel na cama, Tessa afundou na cadeira ao lado dele, meio-febril
com preocupação e exaustão. Vozes—suaves vozes de enfermaria—giravam em volta
dela. Ela ouviu Charlotte dizer algo sobre os Irmãos Silenciosos, e Henry respondeu em
uma voz suavizada. Em algum ponto Sophie apareceu ao seu lado e a estimulou a beber
algo quente e agridoce que trouxe energia lentamente enchendo de volta suas veias. Logo
ela foi capaz de sentar e olhar ao seu redor um pouco, e ela percebeu, para sua surpresa,
que à exceção dela e de seu irmão, o quarto estava vazio. Todos tinham ido embora.
Ela olhou para Nathaniel. Ele estava deitado imóvel como um cadáver, seu rosto
lividamente machucado, seu cabelo sujo emaranhado contra os travesseiros. Tessa não
podia evitar lembrar com uma pontada o irmão maravilhosamente vestido de suas
memórias, seu cabelo louro sempre tão cuidadosamente escovado e arrumado, sapatos e
punhos impecáveis. Este Nathaniel não se parecia com alguém que tinha girado sua irmã

ao redor da sala em uma dança, cantarolando para si mesmo em voz baixa pela simples
alegria de estar vivo.
Ela se inclinou para frente, pensando em olhar mais atentamente para seu rosto, e
viu um lampejo de movimento fora do canto do olho. Virando a cabeça, ela viu que era
apenas ela mesma, refletida no espelho da parede oposta. No vestido de Camille, ela
pareceu a seus próprios olhos uma criança brincando de vestir-se. Ela era muito pequena
para o estilo sofisticado dele. Ela parecia uma criança boba. Não admira que Will tenha—
“Tessie?” A voz de Nathaniel, fraca e frágil, quebrou-a instantaneamente para fora
de seus devaneios sobre Will. “Tessie, não me deixe. Eu acho que estou doente.”
“Nate.” Ela pegou sua mão, agarrou-o entre as palmas das mãos enluvadas. “Está
tudo bem com você. Tudo dará certo. Eles chamaram os médicos...”
“Quem são ‘eles’?” Sua voz era um grito fino. “Onde estamos? Eu não conheço este
lugar.”
“Este é o Instituto. Você estará seguro aqui.”
Nathaniel piscou. Havia anéis escuros, quase negros, em torno de cada um de seus
olhos, e seus lábios estavam incrustados com o que parecia ser sangue seco. Seus olhos
vagavam de um lado para o outro, não se fixando em nada. “Caçadores das Sombras.” Ele
suspirou a palavra em uma exalação de respiração. “Eu não achava que eles realmente
existissem... O Magister,” Nathaniel sussurrou de repente, e os nervos de Tessa deram um
salto. “Ele disse que eles eram a Lei. Ele disse que eles deviam ser temidos. Mas não há lei
neste mundo. Não há nenhuma punição—apenas matar ou ser morto.” Sua voz levantou.
“Tessie, eu sinto muito—sobre tudo—”
“O Magister. Você quer dizer de Quincey?” Tessa exigiu, mas Nate fez um som
sufocante então, e olhou para trás dela com um olhar de medo terrível. Soltando sua mão,
Tessa virou-se para ver o que ele estava olhando.
Charlotte havia entrado no quarto sem fazer ruído algum. Ela ainda estava usando
sua roupa masculina, embora tivesse jogado um manto à moda antiga longo por cima,
com um duplo fecho na garganta. Ela parecia muito pequena, em parte porque o Irmão
Enoch estava ao seu lado, lançando uma sombra vasta através do chão. Ele usava o mesmo
manto de pergaminho que havia usado antes, embora agora o seu cajado fosse preto, a
cabeça esculpida em forma de asas escuras. O seu capuz estava levantado, lançando seu
rosto na sombra.
“Tessa,” disse Charlotte. “Você se lembra do Irmão Enoch. Ele está aqui para ajudar
Nathaniel.”
Com um uivo de terror animal, Nate pegou o pulso de Tessa. Ela olhou para ele
perplexa. “Nathaniel? O que há de errado?”

“De Quincey me falou sobre eles,” Nathaniel ofegou. “Os Gregori—os Irmãos
Silenciosos. Eles podem matar um homem com um pensamento.” Ele estremeceu. “Tessa.”
Sua voz era um sussurro. “Olhe para o rosto dele.”
Tessa olhou. Enquanto ela estava conversando com seu irmão, Irmão Enoch havia
silenciosamente tirado seu capuz. As covas lisas dos seus olhos refletiram a luz de bruxa, o
brilho irreconciliável na costura vermelha escoriada em volta da sua boca.
Charlotte deu um passo adiante. “Se o Irmão Enoch puder examinar o Sr. Gray—”
“Não!” Tessa gritou. Arrancando seu braço das mãos de Nate, ela se colocou entre
seu irmão e os dois outros ocupantes da sala. “Não toquem nele.”
Charlotte fez uma pausa, perecendo incomodada. “Os Irmãos Silenciosos são os
nossos melhores curadores. Sem Irmão Enoch, Nathaniel...” A voz dela sumiu. “Bem, não
há muito que podemos fazer para ele.”
Srta. Gray.
Ela demorou um instante para perceber que a palavra, o nome dela, não tinha sido
falada em voz alta. Em vez disso, como um pedaço de uma canção semiesquecida, havia
ecoado dentro de sua própria cabeça—mas não na voz de seus próprios pensamentos. Esse
pensamento era estranho, hostil—outro. A voz do Irmão Enoch. Era a maneira que ele
tinha falado com ela quando ele havia deixado o quarto em seu primeiro dia no Instituto.
É interessante, Srta. Gray, Irmão Enoch continuou, que você é uma Habitante do
Submundo, e ainda assim, seu irmão não. Como uma coisa dessas aconteceu?
Tessa ficou imóvel. “Você—você pode dizer isso só de olhar para ele?”
“Tessie!” Nathaniel empurrou-se até sentar contra os travesseiros, o rosto pálido
corado. “O que você está fazendo, conversando com o Gregori? Ele é perigoso!”
“Está tudo bem, Nate,” disse Tessa, não tirando os olhos do irmão Enoch. Ela sabia
que deveria ter medo, mas o que ela realmente sentiu foi uma pontada de decepção. “Você
quer dizer que não há nada de incomum sobre Nate?” ela perguntou, em voz baixa. “Nada
de sobrenatural?”
Nada, disse o Irmão Silencioso.
Tessa não tinha percebido o quanto ela estava meio que esperando que seu irmão
fosse como ela até este momento. Decepção afiou sua voz. “Eu suponho, já que você sabe
tanto, que você sabe o que eu sou? Eu sou uma feiticeira?”
Eu não posso te dizer. Há aquilo em você que a marca como uma dos Filhos de Lilith. Ainda
assim, não há nenhum sinal de demônio em você.

“Eu percebi isso,” disse Charlotte, e Tessa percebeu que ela podia ouvir a voz do
Irmão Enoch também. “Eu pensei que talvez ela não fosse uma feiticeira. Alguns seres
humanos nascem com algum poder leve, como a Visão. Ou ela poderia ter o sangue das
fadas—”
Ela não é humana. Ela é outra coisa. Estudarei sobre isso. Talvez haja alguma coisa nos
arquivos para me guiar. Sem olhos como ele era, o Irmão Enoch parecia estar procurando da
face de Tessa com seu olhar. Há um poder que eu sinto que você tem. Um poder que nenhum
outro feiticeiro tem.
“A Transformação, você quer dizer,” disse Tessa.
Não. Eu não quero dizer isso.
“Então o quê?” Tessa estava atônita. “O que eu poderia—?” Ela parou com um
ruído de Nathaniel. Virando, ela viu que ele tinha lutado para fora de seus cobertores e
estava deitado meio-fora da cama, como se tivesse tentado se levantar; seu rosto estava
suado e mortalmente branco. Culpa esfaqueou-a. Ela havia se distraído pelo que o Irmão
Enoch tinha dito e se esquecido de seu irmão.
Ela se lançou para a cama, e com a assistência de Charlotte, lutou para levar Nate de
volta para os travesseiros, puxando o cobertor em torno dele. Ele parecia muito pior do
que tinha estado momentos antes. Quando Tessa ajeitou o cobertor em torno dele, ele
agarrou seu pulso novamente, seus olhos selvagens. “Será que ele sabe?” perguntou ele.
“Ele sabe onde eu estou?”
“De quem você esta falando? De Quincey?”
“Tessie.” Ele apertou o pulso dela com força, puxando-a para sibilar um sussurro
em seu ouvido. “Você tem que me perdoar. Ele me disse que você seria a rainha de todos
eles. Ele disse que eles iam me matar. Eu não quero morrer, Tessie. Eu não quero morrer.”
“Claro que não,” ela o acalmou, mas ele parecia não ouvi-la. Seus olhos, fixos no
rosto dela, repentinamente se arregalaram, e ele gritou.
“Mantenha isso longe de mim! Mantenha isso longe de mim!” ele gritou. Ele
empurrou-a, espancando a sua cabeça para trás e para frente sobre os travesseiros.
“Querido Deus, não deixe que isso me toque!”
Assustada, Tessa puxou a mão para trás, voltando-se para Charlotte, mas Charlotte
tinha se afastado da cama, e o Irmão Enoch estava em seu lugar, seu rosto sem olhos
imóvel. Você precisa me deixar ajudar seu irmão. Ou ele provavelmente irá morrer, disse ele.
“Sobre o que ele está delirando?” Tessa exigiu miseravelmente. “O que há de errado
com ele?”

Os vampiros lhe deram uma droga, para mantê-lo calmo enquanto eles se
alimentavam. Se ele não for curado, a droga irá enlouquecê-lo e depois matá-lo. Ele já começou a
ter alucinações.
“Não é minha culpa!” Nathaniel gritou. “Eu não tinha escolha! Não é minha culpa!”
Ele voltou seu rosto para Tessa; ela viu com horror que seus olhos tinham se tornado
completamente pretos, como olhos de inseto. Ela suspirou, afastando-se.
“Ajude-o. Por favor, ajude-o.” Ela pegou a manga do Irmão Enoch, e imediatamente
se arrependeu; o braço sob a manga era duro como mármore, e congelante ao toque. Ela
largou a mão dele com horror, mas o Irmão Silencioso não pareceu nem perceber sua
presença. Ele tinha andado para além dela, e agora colocava os dedos marcados contra a
testa de Nathaniel. Nathaniel afundou-se contra o travesseiro, e fechou seus olhos.
Você deve sair. Irmão Enoch falou sem desviar-se da cama. Sua presença só irá atrasar a
cura dele.
“Mas Nate me pediu para ficar—”
Vá. A voz na mente de Tessa estava gelada.
Tessa olhou para o irmão; ele estava imóvel contra os travesseiros, seu rosto frouxo.
Ela virou-se para Charlotte, querendo protestar, mas Charlotte encontrou seu olhar com
um pequeno balançar de cabeça. Seus olhos eram simpáticos, mas inflexíveis. “Assim que
a condição do seu irmão melhorar, eu a chamarei. Eu prometo.”
Tessa olhou para o Irmão Enoch. Ele abriu a bolsa na cintura e estava colocando
objetos sobre a mesa de cabeceira, lento e metodicamente. Frascos de vidro de pó e
líquido, cachos de plantas secas, paus de alguma substância negra como o carvão macio.
“Se alguma coisa acontecer com Nate,” Tessa disse, “eu nunca o perdoarei. Nunca.”
Foi como falar com uma estátua. O Irmão Enoch não respondeu a ela com nem
mesmo uma contração muscular.
Tessa fugiu da sala.

Após a penumbra da enfermaria de Nate, o brilho dos castiçais no corredor
machucou os olhos de Tessa. Ela encostou-se à parede junto à porta, lutando contra as
lágrimas. Era a segunda vez naquela noite que ela tinha quase chorado, e ela estava brava
consigo mesma. Apertando a sua mão direita em um punho, ela bateu contra a parede
atrás dela, forte, enviando uma onda de choque de dor até o braço. Isto afastou as
lágrimas, e limpou sua cabeça.
“Isso pareceu ter doído.”

Tessa virou-se. Jem tinha vindo atrás dela no corredor, silencioso como um gato. Ele
tinha mudado de roupa. Ele usava calças escuras solta amarradas na cintura, e uma camisa
branca somente alguns tons mais clara que sua pele. Seu cabelo bem brilhante estava
úmido, ondulado contra sua têmpora e nuca.
“Doeu.” Tessa embalou sua mão contra o peito. A luva que ela usava tinha
amortecido o golpe, mas seus dedos ainda doíam.
“Seu irmão,” Jem disse. “Ele irá ficar bem?”
“Eu não sei. Ele está lá dentro com uma daquelas—daquelas criaturas monges.”
“Irmão Enoch.” Jem a considerou com olhos simpáticos. “Eu sei como os Irmãos
Silenciosos aparentam, mas eles são médicos realmente muito bons. Eles estabelecem uma
grande importância em cura e artes medicinais. Eles vivem um longo tempo, e sabem
muito.”
“Não parece valer a pena viver um longo tempo se você parecer daquele jeito.”
O canto da boca Jem se contraiu. “Eu suponho que isso depende de pelo quê você
está vivendo.” Ele olhou para ela mais de perto. Havia algo na maneira como Jem a olhava,
ela pensou. Como se ele pudesse ver dentro e através dela. Mas nada dentro dela, nada do
que ele via ou ouvia, poderia incomodar ou perturbar ou desapontá-lo.
“Irmão Enoch,” disse ela de repente. “Você sabe o que ele disse? Ele me disse que
Nate não é como eu. Ele é plenamente humano. Não tem poderes especiais em absoluto.”
“E isso incomoda você?”
“Eu não sei. Por um lado eu não desejaria essa—essa coisa que eu sou—para ele, ou
qualquer outra pessoa. Mas se ele não é como eu, então isso significa que ele não é
completamente meu irmão. Ele é filho dos meus pais. Mas eu sou filha de quem?”
“Você não pode se preocupar com isso. Certamente seria maravilhoso se todos nós
soubéssemos exatamente quem somos. Mas esse conhecimento não vem de fora, mas de
dentro. ‘Conhece-te a ti mesmo56’, como diz o oráculo.” Jem sorriu. “Minhas desculpas se isso
soa como sofisma57. Eu só estou dizendo a você o que aprendi com minha própria
experiência.”
56 Aforismo grego que, segundo a tradição, estaria inscrito nos pórticos do Oráculo de Delfos.
57 Em filosofia, é um raciocínio aparentemente válido, mas inconclusivo, pois é contrário às próprias leis.
“Mas eu não me conheço.” Tessa balançou a cabeça. “Sinto muito. Depois da
maneira que você lutou na casa de de Quincey, deve pensar que sou uma terrível covarde,
chorando porque meu irmão não é um monstro e eu não tenho a coragem de ser um
monstro sozinha.”

“Você não é um monstro,” disse Jem. “Ou uma covarde. Pelo contrário, fiquei
muito impressionado pela forma como você disparou em de Quincey. Você certamente o
teria matado se houvesse mais balas na arma.”
“Sim, eu acho que teria. Eu queria matar todos eles.”
“Isso é o que Camille nos pediu para fazer, você sabe. Matá-los todos. Talvez fossem
as emoções dela que você sentiu?”
“Mas Camille não tem motivos para se preocupar com Nate, ou o que acontece a
ele, e foi quando me senti mais sanguinária. Quando eu vi Nate lá, quando percebi o que
eles estavam planejando fazer—” Ela respirou estremecendo. “Eu não sei o quanto daquilo
foi eu e quanto foi Camille. E eu nem sei se é certo ter esse tipo de sentimentos—”
“Você quer dizer,” perguntou Jem, “para uma garota ter esses sentimentos?”
“Para qualquer pessoa tê-los, talvez—eu não sei. Talvez eu queira dizer para uma
garota tê-los.”
Jem pareceu olhar através dela então, como se estivesse vendo algo além dela, além
do corredor, além do próprio Instituto. “O que quer que você seja fisicamente,” disse ele,
“macho ou fêmea, forte ou fraca, doente ou saudável—todas assas coisas importam menos
do que o que seu coração contém. Se você tem a alma de um guerreiro, você é um
guerreiro. Seja qual for a cor, a forma, o desenho do abajur que a esconde, a chama dentro
da lâmpada continua a mesma. Você é aquela chama.” Ele sorriu, parecendo ter voltado
para si mesmo, um pouco envergonhado. “Isso é o que eu acredito.”
Antes que Tessa pudesse responder, a porta de Nate se abriu, e Charlotte saiu. Ela
respondeu ao olhar interrogativo de Tessa, com um aceno de aparência exausta. “O Irmão
Enoch ajudou muito o seu irmão,” disse ela, “mas há muito ainda a ser feito ainda e será
manhã antes que saibamos mais. Sugiro que você vá dormir, Tessa. Esgotar-se não ajudará
Nathaniel.”
Com um esforço de vontade Tessa forçou-se simplesmente a assentir, e não se
arremessar em Charlotte com uma enxurrada de perguntas que ela sabia que não iriam
receber respostas.
“E Jem.” Charlotte voltou para ele. “Se eu pudesse falar com você por alguns
momentos? Você me acompanha até a biblioteca?”
Jem assentiu. “Claro.” Ele sorriu para Tessa, inclinando a cabeça. “Até amanhã,
então,” ele disse, e seguiu com Charlotte pelo corredor.
No momento em que desapareceram ao virar da esquina, Tessa tentou abrir a porta
do quarto de Nate. Estava trancada. Com um suspiro, ela se virou e se dirigiu para o outro
lado do corredor. Talvez Charlotte estivesse certa. Talvez ela devesse dormir um pouco.

A meio caminho do corredor, ela ouviu um barulho. Sophie, um balde de metal em
cada uma de suas mãos, apareceu de repente no corredor, batendo uma porta atrás dela.
Ela parecia lívida. “Sua Alteza está em um temperamento particularmente bom esta
noite,” ela anunciou quando Tessa se aproximou. “Ele jogou um balde na minha cabeça,
ele fez.”
“Quem?” Tessa perguntou, e então percebeu. “Ah, você quer dizer Will. Ele está
bem?”
“Bom o suficiente para jogar baldes,” disse Sophie irritada. “E para chamar-me de
um nome ruim. Eu não sei o que significava. Acho que era francês, e isso geralmente
significa que alguém a está chamando de prostituta.” Ela apertou os lábios. “Eu achei
melhor correr e chamar a Sra. Branwell. Talvez ela possa ajudá-lo a tomar a cura, se eu não
posso.”
“A cura?”
“Ele deve beber isso.” Sophie jogou um balde para Tessa; Tessa não conseguiu ver o
que tinha nele, mas parecia água comum. “Ele precisa. Ou eu não gostaria de dizer que o
que irá acontecer.”
Um impulso louco tomou conta de Tessa. “Eu o farei tomá-la. Onde ele está?”
“Lá em cima, no sótão.” Os olhos de Sophie estavam arregalados. “Mas eu não faria
se eu fosse você, menina. Ele é absolutamente desagradável quando está assim.”
“Eu não me importo,” disse Tessa, pegando o balde. Sophie o entregou a ela com
um olhar de alívio e apreensão. Era surpreendentemente pesado, cheio até a borda com
água e derramando. “Will Herondale precisa aprender a tomar seu remédio como um
homem,” Tessa adicionou, e empurrou a porta para o sótão, Sophie olhando atrás dela
com uma expressão que claramente dizia que ela pensou que Tessa estava fora si.
Além da porta estava um lance de escadas estreitas subindo. Ela segurou o balde na
frente dela enquanto subia; ele derramou água sobre o corpete de seu vestido, levantando
arrepios em sua pele. Pelo momento que ela havia atingido o topo da escada, ela estava
úmida e ofegante.
Não havia porta no topo da escada; ela terminava abruptamente no sótão, uma
enorme sala cujo teto tinha uma empena58 tão forte que dava a impressão de ser um teto
baixo. Vigas logo acima da cabeça de Tessa corriam o comprimento da sala, e havia janelas
quadradas muito baixas colocadas em intervalos nas paredes, através das quais Tessa
podia ver a luz cinzenta do amanhecer. No chão havia tábuas nuas polidas. Não havia
58 Empena é a parte superior das paredes externas, acima do forro, fechando o vão formado pelas duas águas da
cobertura.

móveis, e nenhuma luz além da iluminação pálida que vinha das janelas. Um conjunto de
escadas ainda mais estreitas levava a um alçapão fechado no teto.
No centro da sala estava Will, descalço, deitado de costas no chão. Um número de
baldes o cercava—e o chão ao redor dele, Tessa viu quando ela se aproximou, estava
encharcado de água. A água corria em regatos pelas tábuas e se juntava nas depressões
desiguais do piso. Parte da água estava avermelhada, como se tivesse sido misturada com
sangue.
Will tinha um braço jogado sobre o rosto, escondendo os olhos. Ele não estava
deitado parado, mas se deslocava inquieto, como se estivesse com alguma dor. Quando
Tessa se aproximou, ele disse algo em voz baixa, algo que soava como um nome. Cecily,
Tessa pensou. Sim, soava muito como se ele tivesse dito o nome Cecily.
“Will?” ela disse. “Com quem você está falando?”
“Voltou, você, Sophie?” Will respondeu sem levantar a cabeça. “Eu disse a você, se
você me trouxer mais um daqueles baldes infernais, eu—”
“Não é Sophie,” disse Tessa. “Sou eu. Tessa.”
Por um momento, Will ficou em silêncio—e imóvel, salvo a ascensão e a queda de
seu peito quando ele respirava. Ele usava apenas um par de calças escuras e uma camisa
branca, e como o chão em torno dele, ele estava todo molhado. O tecido de suas roupas
grudava-se a ele, e seus cabelos negros estavam colados à cabeça como um pano úmido.
Ele devia estar com muito frio.
“Eles mandaram você?” disse ele finalmente. Ele parecia incrédulo, e outra coisa,
também.
“Sim,” respondeu Tessa, embora isso não fosse rigorosamente verdade.
Will abriu os olhos e virou a cabeça na direção dela. Mesmo na escuridão ela podia
ver a intensidade da cor dos seus olhos. “Muito bem, então. Deixe a água e vá embora.”
Tessa olhou para o balde. Por alguma razão as mãos não pareceram querer deixar a
alça de metal. “O que é, então? Quero dizer—o que eu estou trazendo para você,
exatamente?”
“Eles não lhe disseram?” Ele piscou para ela, surpreso. “É água benta. Para queimar
o que está em mim.”
Foi a vez de Tessa piscar. “Você quer dizer—”
“Eu continuo esquecendo tudo o que você não sabe,” Will disse. “Você se lembra de
mais cedo esta noite, quando eu mordi de Quincey? Bem, eu engoli um pouco do seu
sangue. Não muito, mas não é preciso muito para fazê-lo.”

“Para fazer o quê?”
“Para transformar-se em um vampiro.”
Com isso, Tessa quase deixou cair o balde. “Você está se transformando em um
vampiro?”
Will sorriu para ela, apoiando-se sobre um cotovelo. “Não se alarme
desnecessariamente. Requer dias para que a transformação ocorra, e, mesmo então, eu
teria que morrer antes que me pegasse. O que o sangue faria é me tornar irresistivelmente
atraído a vampiros—atraído para eles na esperança de que eles me fizessem um deles.
Como seus subjugados humanos.”
“E a água benta...”
“Neutraliza os efeitos do sangue. Eu devo continuar bebendo. Isso me deixa doente,
claro—me faz tossir o sangue e tudo mais em mim.”
“Bom Senhor.” Tessa colocou o balde em direção a ele com uma careta. “Acho que
seria melhor eu dar pra você, então.”
“Eu suponho que seria.” Will sentou-se e colocou as mãos para pegar a balde dela.
Ele franziu a testa para o conteúdo, em seguida, ergueu-o e jogou-o em direção a sua boca.
Depois de engolir alguns goles, ele fez uma careta e jogou o resto sem cerimônia sobre a
sua cabeça. Quando terminou, ele jogou o balde de lado.
“Isso ajuda?” Tessa perguntou com uma curiosidade sincera. “Derramar sobre sua
cabeça desse jeito?”
Will fez um ruído estrangulado que era apenas meio uma risada. “As perguntas
que você faz...” Ele balançou a cabeça, atirando gotículas de água do seu cabelo na roupa
de Tessa. Água embebia a gola e frente de sua camisa branca, tornando-as transparentes.
A forma como ela se agarrava nele, mostrando as linhas dele por baixo—os cumes dos
músculos rígidos, a linha nítida da clavícula, as Marcas aparecendo como fogo negro—fez
Tessa pensar na maneira como alguém poderia colocar um papel fino sobre uma gravura
em metal, passando carvão sobre ele para desenhar a forma. Ela engoliu em seco
fortemente. “O sangue me deixa febril, faz minha pele queimar,” Will disse. “Eu não
consigo ficar frio. Mas, sim, a água ajuda.”
Tessa só olhou para ele. Quando ele tinha entrado em seu quarto na Casa Sombria,
ela havia pensado que ele era o menino mais bonito que já tinha visto, mas só agora,
olhando-o—ela nunca olhou para um garoto desse jeito, não desta forma que trouxe
sangue quente em seu rosto, e apertou o peito. Mais do que qualquer outra coisa ela queria
tocá-lo, tocar seu cabelo molhado, ver se seus braços, cheios de músculos, eram tão duros
quanto pareciam, ou se a suas palmas das mãos calejadas eram ásperas. Colocar sua
bochecha contra a dele, e sentir o seu cílios em sua pele. Cílios tão longos...

“Will,” disse ela, e sua voz soou fina para seus ouvidos. “Will, eu quero perguntar a
você...”
Ele olhou para ela. A água fez seus cílios se juntarem, de modo que eles formavam
pontas afiadas como de estrelas. “O quê?”
“Você age como se não se importasse com nada,” disse ela em uma exalar de
respiração. Sentia-se como se tivesse estado correndo, e tivesse subido uma colina e estava
descendo correndo o outro lado, e não havia como parar agora. A gravidade a levava onde
ela tinha que ir. “Mas—todos se importam com alguma coisa. Não é?”
“É mesmo?” Will disse suavemente. Quando ela não respondeu, ele se inclinou
para trás em suas mãos. “Tess,” disse ele. “Venha aqui e se sente perto de mim.”
Ela fez. Estava frio e úmido no chão, mas ela se sentou, recolhendo as saias em
torno de si para que tão somente as pontas de suas botas aparecessem. Ela olhou para
Will; eles estavam muito próximos, de frente para o outro. Seu perfil na luz cinzenta
estava frio e limpo, apenas a sua boca tinha alguma suavidade.
“Você nunca ri,” disse ela. “Você se comporta como se tudo fosse engraçado para
você, mas você nunca ri. Às vezes você sorri quando você acha que ninguém está
prestando atenção.”
Por um momento ele ficou em silêncio. Então, “Você,” disse ele, meio relutante.
“Você me faz rir. Desde o momento em que você me bateu com a garrafa.”
“Foi uma jarra,” disse ela automaticamente.
Seus lábios se curvaram nos cantos. “Sem falar do jeito que você sempre me corrige.
Com aquele olhar engraçado em seu rosto quando você faz isso. E do jeito que você gritou
com Gabriel Lightwood. E até mesmo o jeito que você respondeu para de Quincey. Você
me faz...” Ele quebrou, olhando para ela, e ela se perguntou se ela parecia do mesmo jeito
que se sentia—atordoada e sem fôlego. “Deixe-me ver suas mãos,” disse ele de repente.
“Tessa?”
Ela as deu a ele, palmas para cima, mal olhando para si mesma. Ela não conseguia
olhar para longe de seu rosto.
“Ainda há sangue,” disse ela. “Em suas luvas.” E, olhando para baixo, ela viu que
era verdade. Ela não tinha tirado as luvas de couro branco de Camille, e elas estavam
marcadas com sangue e sujeira, rasgadas perto da ponta dos dedos, onde ela tinha forçado
as algemas de Nate.
“Oh,” ela disse, e começou a puxar as mãos para trás, para tirar as luvas, mas Will
soltou somente sua mão esquerda. Ele continuou a deter a direita, levemente, pelo pulso.
Havia um pesado anel de prata em seu dedo indicador direito, ela viu, esculpido com um
delicado desenho de pássaros em voo. Sua cabeça estava inclinada, com o cabelo úmido

preto caindo para frente; ela não podia ver seu rosto. Ele roçou os dedos levemente sobre a
superfície da luva. Havia quatro botões de pérola fechando-a no pulso, e à medida que ele
correu as pontas dos dedos sobre eles, eles se abriram e a almofada do polegar dele roçou
a pele nua de seu pulso interno, onde as veias azuis pulsavam.
Ela quase pulou da sua pele. “Will.”
“Tessa,” disse ele. “O que você quer de mim?”
Ele ainda estava acariciando o interior de seu pulso, seu toque fazendo estranhas
coisas deliciosas para sua pele e nervos. Sua voz tremeu quando ela falou. “Eu—eu quero
te entender.”
Ele olhou para ela, através de seus cílios. “Isso é realmente necessário?”
“Eu não sei,” disse Tessa. “Eu não tenho certeza que alguém te entende, exceto,
possivelmente, Jem.”
“Jem não me entende,” disse Will. “Ele se importa comigo—como um irmão. Não é
a mesma coisa.”
“Você não quer que ele te entenda?”
“Querido Deus, não,” disse ele. “Por que ele precisaria saber a minha razão de viver
a vida como eu vivo?”
“Talvez,” disse Tessa, ”ele simplesmente queira saber que há uma razão.”
“Isso importa?” Will perguntou baixinho, e com um movimento rápido, ele tirou a
luva inteiramente de sua mão. O ar frio da sala atingiu a pele nua de seus dedos com um
choque, e um arrepio passou em todo o corpo de Tessa, como se ela tivesse de repente se
encontrado nua no frio. “Será que as razões importam quando não há nada que pode ser
feito para mudar as coisas?”
Tessa procurou por uma resposta, e não encontrou nada. Ela estava tendo arrepios,
quase fortes demais para falar.
“Você está com frio?” Unindo seus dedos aos dela, Will pegou sua mão e apertou-a
contra a bochecha dele. Ela se assustou com o calor febril de sua pele. “Tess,” ele disse, sua
voz grossa e macia com desejo, e ela se inclinou em direção a ele, balançando como uma
árvore cujos galhos estavam pesados pela neve. Seu corpo todo doía; ela doía, como se
houvesse um terrível vazio oco dentro dela. Ela estava mais consciente de Will do que
jamais havia estado de algo ou alguém em sua vida, do fraco brilho de azul sob as
pálpebras semicerradas, da leve sombra de barba através de sua mandíbula onde ele não
havia se barbeado, de fracas cicatrizes brancas que pontilhavam a pele de seus ombros e
garganta—e, mais do que qualquer outra coisa, de sua boca, a forma crescente da mesma,

o amassado leve no centro do lábio inferior. Quando ele inclinou-se para ela e roçou os
lábios nos dela, ela chegou para ele como se ela caso contrário fosse se afogar.
Por um instante, suas bocas se pressionaram quentes, a mão livre de Will se
enfiando no cabelo dela. Tessa suspirou quando os braços dele uniram-se ao seu redor,
suas saias se arrastando no chão quando ele a puxou com força contra ele. Ela pôs as mãos
levemente em volta do seu pescoço; sua pele estava ardente ao toque. Através do material
fino molhado de sua camisa, ela podia sentir os músculos de seus ombros, duros e lisos.
Os dedos dele encontraram seu prendedor de cabelo com joias e o puxaram, e o cabelo
dela se esparramou sobre os ombros, o pente chocalhando para o chão, e Tessa deu um
pequeno grito de surpresa contra a sua boca. E então, sem aviso, ele arrancou suas mãos
dela e empurrou com força contra seus ombros, empurrando-a para longe dele com tanta
força que ela quase caiu para trás, e só parou desajeitadamente, com as mãos apoiados no
chão atrás dela.
Ela sentou-se com os cabelos caídos ao seu redor como uma cortina emaranhada,
olhando para ele em espanto. Will estava de joelhos, o peito puxando para cima e para
baixo como se ele tivesse corrido incrivelmente rápido e longe. Ele estava pálido, exceto
por duas manchas de vermelho, da febre em seu rosto. “Deus no Céu,” ele sussurrou. “O
que foi isso?”
Tessa sentiu o rosto corar. Não era Will que deveria saber exatamente o que isso era
e não era ela quem deveria tê-lo puxado para longe?
“Eu não posso.” As mãos dele estavam fechadas em punhos ao seu lado; ela podia
vê-las tremer. “Tessa, eu acho que é melhor você ir.”
“Ir?” Sua mente girava; ela se sentia como se tivesse estado em um lugar morno e
seguro, e, sem alerta, houvesse sido expulsa para uma escuridão vazia e congelante. “Eu...
eu não deveria ter sido tão direta. Sinto muito—”
Um olhar de dor intensa brilhou no rosto dele. “Deus, Tessa.” As palavras
pareceram sair arrastadas para fora dele. “Por favor. Apenas saia. Eu não posso ter você
aqui. Não--é possível.”
“Will, por favor—”
“Não.” Ele jogou seu olhar para longe dela, desviando o rosto, os olhos fixos no
chão. “Eu direi o que você quiser saber amanhã. Qualquer coisa. Só me deixe em paz
agora.” Sua voz quebrou de forma irregular. “Tessa. Eu estou lhe implorando. Você
entendeu? Eu estou lhe implorando. Por favor, por favor, vá.”
“Muito bem,” disse Tessa, e viu com uma mistura de espanto e dor que as linhas de
tensão saíram de seus ombros. Era realmente um horror tão grande tê-la lá, e tão grande
alívio que ela estava saindo? Ela levantou-se, o vestido úmido e frio e pesado, os pés quase
escorregando no piso molhado. Will não se mexeu nem olhou para cima, mas ficou onde

ele estava de joelhos, olhando para o chão enquanto Tessa fez seu caminho através da sala
e descendo as escadas, sem olhar para trás.

Algum tempo depois, seu quarto levemente iluminado com o brilho suave do
nascer do sol de Londres, Tessa deitou-se na cama, exausta demais para mudar da roupa
de Camille—exausta demais, até mesmo, para dormir. Tinha sido um dia de primeiras
vezes. A primeira vez que ela usou seu poder por seu próprio desejo e arbítrio, e se
sentido bem com isso. A primeira vez que ela tinha disparado uma pistola. E—a única
primeira vez que ela tinha sonhado, por anos—seu primeiro beijo.
Tessa rolou, escondendo o rosto no travesseiro. Por muitos anos ela havia se
perguntado como seu primeiro beijo seria—se ele seria bonito, se ele iria amá-la, se ele
seria gentil. Ela nunca tinha imaginado que o beijo seria tão breve e desesperado e
selvagem. Ou que teria sabor de água benta. Água benta e sangue.


13
Algo Sombrio


Às vezes nós somos menos infelizes em sermos enganados
por aqueles que amamos, do que em sermos desenganados por eles.
—François La Rochefoucauld, “Máximas”


Tessa acordou no dia seguinte com Sophie acendendo a lâmpada ao lado da cama.
Com um gemido Tessa fez um movimento para cobrir os olhos doloridos.
“Agora, então, senhorita.” Sophie dirigia-se a Tessa com a sua vivacidade habitual.
“Você foi e dormiu o dia inteiro. Já passou das oito horas da noite, e Charlotte disse para
acordá-la.”
“Passou das oito? Da noite?” Tessa jogou para trás seus cobertores, apenas para
perceber, para sua surpresa, que ela ainda estava usando o vestido de Camille, agora
esmagado e amassado, para não mencionar manchado. Ela deve ter desabado na cama
ainda totalmente vestida. Lembranças da noite anterior começaram a fluir em sua mente—
os rostos brancos dos vampiros, o fogo comendo o seu caminho pelas cortinas, Magnus
Bane rindo, de Quincey, Nathaniel, e Will. Oh, Deus, pensou ela. Will.
Ela empurrou o pensamento dele de sua mente e sentou-se, olhando ansiosamente
para Sophie. “Meu irmão,” disse ela. “Ele está...”
O sorriso de Sophie vacilou. “Sem piora, realmente, mas sem melhora, também.”
Vendo a expressão aflita de Tessa, ela disse: “Um banho quente e comida, senhorita, é isso
que você precisa. Não trará nenhuma melhora a seu irmão você morrer de fome e se
deixar ficar imunda.”
Tessa olhou para si mesma. O vestido de Camille estava arruinado, isso era
evidente—rasgado e manchado de sangue e cinzas em uma dúzia de lugares. Suas meias
de seda estavam rasgadas, seus pés sujos, suas mãos e os braços listrados com sujeira. Ela
hesitou em pensar sobre o estado de seu cabelo. “Eu suponho que você esteja certa.”

A banheira era um arranjo oval com pés em garra escondido atrás de um biombo
japonês em um canto do quarto. Sophie a tinha enchido com água quente que já estava
começando a esfriar. Tessa deslizou por trás do biombo, se despiu, e abaixou-se para a
banheira. A água quente veio até os ombros, aquecendo-a. Por um momento ela ficou
imóvel, deixando o calor embeber seus ossos gelados. Lentamente, ela começou a relaxar,
e fechou seus olhos—
Memórias de Will inundaram-na. Will, o sótão, o jeito que ele havia tocado sua
mão... A maneira como ele a tinha beijado, então a mandado ir embora.
Ela abaixou-se sob a superfície da água como se ela pudesse se esconder da
memória humilhante. Não funcionou. Se afogar não ajudará, ela disse a si mesma com
firmeza. Agora, afogar Will, por outro lado... Ela se sentou, pegou o sabonete de lavanda na
borda da banheira, e esfregou sua pele e cabelo com ele até que a água ficou preta com
cinza e sujeira. Talvez não fosse realmente possível varrer para longe os pensamentos de
alguém, mas ela poderia tentar.
Sophie estava esperando por Tessa quando ela saiu de trás do biombo. Havia uma
bandeja de sanduíches e chá preparada. Em frente ao espelho, ela ajudou Tessa a vestir seu
vestido amarelo adornado com galões escuros; era mais exagerado do que Tessa teria
preferido, mas Jessamine tinha gostado muito do design na loja e insistiu que Tessa o
fizesse para ela. Eu não posso usar amarelo, mas é sempre tão adequado para meninas com cabelo
marrom escuro apagado como o seu, ela disse.
A sensação da escova passando por seu cabelo era muito agradável; lembrava Tessa
de quando ela era uma menininha e Tia Harriet havia escovado os cabelos dela. Foi
reconfortante o suficiente para que, quando Sophie falou em seguida, ela se sobressaltasse
ligeiramente.
“Você conseguiu fazer o Sr. Herondale tomar o remédio dele ontem à noite,
senhorita?”
“Oh, eu—” Tessa lutou para se recompor, mas era tarde demais; a cor escarlate
havia inundado do pescoço até seu rosto. “Ele não queria,” ela terminou sem jeito. “Mas
eu o convenci no final.”
“Eu vejo.” A expressão de Sophie não se alterou, mas as traçadas rítmicas da escova
nos cabelos de Tessa começaram a vir mais rápido. “Eu sei que não é meu lugar, mas—”
“Sophie, você pode dizer o que quiser para mim, de verdade.”
“É apenas—o Mestre Will.” As palavras de Sophie sairam com pressa. “Ele não é
alguém de quem você deveria gostar, Srta. Tessa. Não assim. Ele não é confiável, ou
alguém com quem você possa contar. Ele—ele não é o que você acha que ele é.”

Tessa juntou as mãos em seu colo. Ela sentiu uma vaga sensação de irrealidade. As
coisas tinham realmente ido tão longe que ela precisasse ser alertada sobre Will? E ainda
assim, era bom ter alguém com quem conversar sobre ele. Ela sentiu-se um pouco como
uma pessoa faminta sendo oferecida comida. “Eu não sei o que acho que ele é, Sophie. Ele
é como uma coisa, às vezes, e então ele pode mudar completamente, como o vento muda,
e eu não sei porquê, ou o que aconteceu—”
“Nada. Nada aconteceu. Ele simplesmente não se importa com ninguém além dele
mesmo.”
“Ele se importa com Jem,” Tessa disse calmamente.
A escova parou; Sophie havia pausado, congelada. Havia algo que ela queria dizer,
Tessa pensou, algo que ela estava segurando-se para não dizer. Mas o que era?
A escova começou a se mover novamente. “Isso não é suficiente, entretanto.”
“Você quer dizer que eu não deveria torcer meu coração por algum rapaz que
nunca irá se importar comigo—”
“Não!” Disse Sofia. “Há coisas piores do que isso. Está tudo bem amar alguém que
não lhe ama de volta, desde que eles valham a pena você amá-los. Desde que eles
mereçam.”
O sentimento na voz de Sophie surpreendeu Tessa. Ela se virou para olhar para a
outra garota. “Sophie, há alguém de quem você gosta? É Thomas?”
Sophie pareceu atônita. “Thomas? Não. O que lhe deu essa idéia?”
“Bem, porque eu acho que ele tem interesse em você,” disse Tessa. “Eu o vi olhando
para você. Ele lhe observa quando você está no aposento. Acho que eu pensei...”
Sua voz foi sumindo ante o olhar embasbacado de Sophie.
“Thomas?” disse Sophie novamente. “Não, isso não poderia ser. Tenho certeza que
ele não tem tais pensamentos sobre mim.”
Tessa não tentou contradizê-la; claramente, quaisquer fossem os sentimentos que
Thomas poderia ter tido, Sophie não os correspondia. O que sobrava...
“Will?” disse Tessa. “Você quer dizer que gostou de Will uma vez?” Isso explicaria a
amargura e o desgosto, pensou ela, considerando como Will tratava as meninas que
gostavam dele.
“Will?” Sophie soou absolutamente horrorizada—horrorizada o suficiente para se
esquecer de chamá-lo de Sr. Herondale. “Você está me perguntando se eu já estive
apaixonada por ele?”

“Bem, eu pensei—quero dizer, ele é terivelmente bonito.” Tessa percebeu que ela
parecia bastante débil.
“Há mais para alguém ser amável do que sua aparência. Meu último empregador,”
disse Sofia, seu sotaque cuidadoso deslizando com seu entusiasmo, enquanto ela falava,
de modo que “último” soava mais como “últchemo”, “estava sempre fora em safaris na
África e na Índia, atirando em tigres e coisas. E ele me disse a maneira que você pode dizer
se um inseto ou uma cobra é venenoso, assim, é se ele tem marcações brilhantes realmente
adoráveis. Quanto mais bonita sua pele é, mais mortal é. É como Will é. Todo aquele rosto
bonito e tudo mais apenas esconde o quão retorcido e podre ele é no interior.”
“Sophie, eu não sei—”
“Há algo de sombrio nele,” disse Sophie. “Algo negro e escuro que ele está
escondendo. Ele tem algum tipo de segredo, do tipo que te devora por dentro.” Ela
colocou a escova de cerdas prateadas sobre a penteadeira, e Tessa viu com surpresa que
sua mão estava tremendo. “Você anote minhas palavras.”

Depois de Sophie sair, Tessa pegou o anjo mecânico da sua mesa de cabeceira e o
amarrou ao redor de seu pescoço. Quando ele restabeleceu-se contra seu peito, ela sentiu-
se imediatamente tranquilizada. Ela tinha sentido falta dele enquanto estava disfarçada de
Camille. Sua presença era um conforto, e—apesar de ser tolice, ela sabia—ela pensou que
talvez, se ela visitasse Nate enquanto o usasse, ele poderia sentir sua presença e ficar
tranquilo também.
Ela manteve a mão sobre ele enquanto fechava a porta do quarto atrás dela, fazia
seu caminho pelo corredor e batia à sua porta suavemente. Quando não houve resposta,
ela pegou a maçaneta e abriu a porta. As cortinas da sala estavam puxadas para trás, a sala
meio preenchida com luz, e ela podia ver Nate dormindo com suas costas contra um
monte de travesseiros. Ele tinha um braço colocado na testa e as bochechas estavam
brilhantes de febre.
Ele não estava sozinho, também. Na poltrona ao lado da cabeceira da cama estava
sentada Jessamine, um livro aberto no colo. Ela encontrou o olhar surpreso de Tessa com
um olhar frio e nivelado.
“Eu—” Tessa começou, e se recompôs. “O que você está fazendo aqui?”
“Eu pensei em ler para seu irmão por um tempo,” disse Jessamine. “Todo mundo
esteve adormecido por meio dia, e ele estava sendo cruelmente desprezado. Apenas
Sophie o checou, e você não pode contar com ela para uma conversa decente.”
“Nate está inconsciente, Jessamine; ele não quer conversa.”

“Você não pode ter certeza,” disse Jessamine. “Ouvi dizer que as pessoas podem
ouvir o que você diz para elas, mesmo que estejam completamente inconscientes, ou
mesmo mortas.”
“Ele não está morto, tampouco.”
“Certamente que não.” Jessamine deu a ele um olhar demorado. “Ele é lindo
demais para morrer. Ele é casado, Tessa? Ou existe uma menina lá em Nova York que tem
um direito sobre ele?”
“Sobre Nate?” Tessa olhou. Sempre houve garotas, todos os tipos de garotas, que
haviam se interessado por Nate, mas ele tinha a duração de atenção de uma borboleta.
“Jessamine, ele não está nem mesmo consciente. Agora dificilmente é hora—”
“Ele irá melhorar,” Jessamine anunciou. “E quando o fizer, ele saberá que fui eu
quem cuidou dele para ele voltar à saúde. Os homens sempre se apaixonam por mulheres
que os trazem de volta à saúde. ‘Quando dor e a angústia torcem a face, / Um anjo ministrador
tu!59’”, Ela terminou, com um sorriso de satisfação. Vendo o olhar horrorizado de Tessa,
ela fez uma careta. “O que há de errado? Eu não sou boa o suficiente para o seu precioso
irmão?”
59 Citação do livro Marmion, de Sir Walter Scott (1771-1832).
“Ele não tem nenhum dinheiro, Jessie—”
“Eu tenho dinheiro suficiente para nós dois. Eu apenas preciso de alguém para me
levar embora desse lugar. Eu lhe disse isso.”
“Na verdade, você me perguntou se eu seria a pessoa a fazer isso.”
“É isso que está lhe colocando sem aprovação?” Jessamine perguntou. “Realmente,
Tessa, ainda podemos ser melhores amigas uma vez que formos cunhadas, mas um
homem é sempre melhor do que uma mulher para este tipo de coisa, você não acha?”
Tessa não conseguiu pensar em nada a dizer em resposta.
Jessamine deu de ombros. “Charlotte deseja vê-la, a propósito. Na sala de estar. Ela
queria que eu lhe dissesse. Você não precisa se preocupar com Nathaniel. Estive
verificando a sua temperatura a cada quarto de hora e colocando compressas frias em sua
testa, além disso.”
Tessa não tinha certeza se acreditava em nada daquilo, mas como Jessamine estava
manifestamente desinteressada em abandonar o seu lugar ao lado de Nathaniel, e isso
dificilmente parecia valer uma briga, ela virou-se com um suspiro desgostoso e deixou o
quarto.

A porta da sala de estar, quando ela a alcançou, estava entreaberta; ela podia ouvir
vozes do outro lado. Ela hesitou, sua mão meio-levantada para bater—então ela ouviu o
som de seu próprio nome e congelou.
“Este não é o Hospital de Londres. O irmão de Tessa não deveria estar aqui!” Era a
voz de Will, elevada a um berro. “Ele não é um Habitante do Submundo, só um estúpido
mercenário mundano que se viu metido em algo que ele não conseguia administrar—”
Charlotte respondeu, “Ele não pode ser tratada por médicos mundanos. Não pelo
que há de errado com ele. Seja razoável, Will.”
“Ele já sabe sobre o Submundo.” A voz era de Jem: calma, lógica. “Na verdade, ele
pode saber um tanto de informações importantes que nós não sabemos. Mortmain afirmou
que Nathaniel estava trabalhando para de Quincey; ele pode ter informações sobre os
planos de de Quincey, os autômatos, o negócio todo de Magister—tudo disso. De Quincey
queria vê-lo morto, afinal. Talvez fosse porque ele soubesse algo que não devia.”
Houve um longo silêncio. Então, “Podemos chamar os Irmãos Silenciosos de novo,
então,” disse Will. “Eles podem rasgar a mente dele, ver o que eles acham. Nós não
precisamos esperar que ele acorde.”
“Você sabe que esse tipo de processo é delicado com mundanos,” protestou
Charlotte. “Irmão Enoch já disse que a febre levou o Sr. Gray a alucinações. É impossível
para ele classificar o que, na mente do menino, é verdade e o que é delírio febril. Não sem
danificar sua mente, possivelmente de forma permanente.”
“Eu duvido muito que era uma mente muito boa para começar.” Tessa ouviu o tom
de desgosto de Will, mesmo através da porta, e sentiu seu estômago apertar com raiva.
“Você não sabe nada sobre o homem.” Jem falou mais frio do que Tessa nunca o
tinha ouvido falar antes. “Eu não posso imaginar o que está dirigindo você a este humor,
Will, mas isso não lhe dá nenhum crédito.”
“Eu sei o que é,” disse Charlotte.
“Você sabe?” Will parecia chocado.
“Você está tão chateado como eu sobre como foi a noite passada. Nós tivemos
apenas duas fatalidades, é verdade, mas a fuga de de Quincey não reflete bem sobre nós.
Era o meu plano. Empurrei-o no Enclave, e agora eles irão me culpar por tudo que deu
errado. Sem mencionar que Camille teve de se esconder já que não temos ideia de onde de
Quincey está, e por agora ele provavelmente já colocou uma recompensa de sangue pela
cabeça dela. E Magnus Bane, é claro, está furioso conosco porque Camille desapareceu.
Portanto, a nossa melhor informante e o nosso melhor feiticeiro estão perdidos para nós no
momento.”

“Mas nós evitamos que de Quincey matasse o irmão de Tessa e quem sabe mais
quantos mundanos,” Jem disse. “Isso deve contar para alguma coisa. Benedict Lightwood
não queria acreditar na traição de de Quincey no início; mas agora ele não tem escolha. Ele
sabe que você estava certa.”
“Isso,” disse Charlotte, “é provável que só vá deixá-lo mais irritado.”
“Talvez,” disse Will. “E talvez se você não tivesse insistido em amarrar o sucesso do
meu plano à funcionalidade de uma das invenções ridículas de Henry, não estaríamos
tendo essa conversa agora. Você pode dançar em torno disso o quanto quiser, mas a razão
de tudo ter saído errado na noite passada foi porque o Fósforo não funcionou. Nada que
Henry inventa funciona. Se você apenas admitisse que seu marido é um idiota inútil, todos
nós estaríamos muito melhor.”
“Will.” A voz de Jem continha fúria fria.
“Não. James, não.” A voz de Charlotte tremia; houve uma espécie de batida, como
se ela tivesse se sentado de repente em uma cadeira. “Will,” disse ela, “Henry é um
homem bom, gentil e ele te ama.”
“Não seja piegas, Charlotte.” A voz de Will carregava apenas desprezo.
“Ele o conhece desde quando você era um menino. Ele gosta de você como se você
fosse o seu próprio irmão mais novo. Assim como eu. Tudo o que eu sempre fiz foi amar
você, Will—”
“Sim,” disse Will, “e eu gostaria que você não o tivesse feito.”
Charlotte fez um barulho dolorido, como um cachorrinho chutado. “Eu sei que você
não quer dizer isso.”
“Eu quero dizer tudo que eu digo,” disse Will. “Especialmente quando eu lhe digo
que estaremos melhor peneirando a mente de Nathaniel Gray agora do que mais tarde. Se
você é muito sentimental para fazer isso—”
Charlotte começou a interromper, mas não importava. Isso era demais para Tessa.
Ela atirou a porta aberta e seguiu para dentro. O interior da sala estava iluminado por uma
lareira, em contraste com os quadrados de vidro cinza escuro, que deixavam entrar o que
havia do crepúsculo nublado. Charlotte estava sentada atrás da mesa grande, Jem em uma
cadeira ao lado dela. Will, por outro lado, estava encostado à lareira; ele estava vermelho
de raiva óbvia, os olhos brilhando, seu colarinho torto. Seus olhos encontraram os de Tessa
em um momento de puro espanto. Qualquer esperança que ela tinha alimentado que ele
pudesse ter esquecido magicamente o que tinha acontecido no sótão na noite anterior
desapareceu. Ele corou ao vê-la, seus insondáveis olhos azuis escurecendo—e desviou o
olhar, como se ele não aguentasse segurar o olhar dela.

“Eu suponho que você esteve bisbilhotando, então?” perguntou ele. “E agora você
está aqui para me dizer o que pensa sobre seu precioso irmão?”
“Pelo menos eu tenho uma mente para lhe dizer algo, enquanto Nathaniel não, se
você conseguir o que quer.” Tessa virou-se para Charlotte. “Eu não deixarei o Irmão
Enoch ir arranhando através da mente de Nate. Ele já está doente o suficiente; isso
provavelmente iria matá-lo.”
Charlotte balançou a cabeça. Ela parecia exausta, o rosto cinzento, pálpebras caídas.
Tessa se perguntou se ela tinha dormido. “Em verdade, nós permitiremos que ele se cure
antes de pensarmos em interrogá-lo.”
“E se ele ficar doente por semanas? Ou meses?” Will disse. “Podemos não ter tanto
tempo assim.”
“Por que não? O que há de tão urgente que vocês pretendem arriscar a vida do meu
irmão sobre isso?” Tessa vociferou.
Os olhos de Will eram lascas de vidro azul. “Tudo com que você sempre se
preocupou foi encontrar o seu irmão. E agora você o encontrou. Bom para você. Mas esta
nunca foi nossa meta. Você percebe isso, não é? Não costumamos ir tão longe por causa de
um delinquente mundano.”
“O que Will está tentando dizer,” Jem interveio, “embora sem civilidade, é—” Ele
parou, e suspirou. “De Quincey disse que seu irmão era alguém em quem ele havia
confiado. E agora de Quincey se foi, e não temos ideia de onde ele está se escondendo. As
anotações que encontramos em seu escritório sugerem que de Quincey acreditava que em
breve haveria uma guerra entre Habitantes do Submundo e Caçadores das Sombras, uma
guerra na qual aquelas criaturas mecânicas em que ele estava trabalhando, sem dúvida,
figuram em proeminência. Você pode ver porque queremos saber onde ele está, e o que
mais seu irmão poderia saber.”
“Talvez vocês queiram saber dessas coisas,” disse Tessa, “mas não é minha luta. Eu
não sou uma Caçadora das Sombras.”
“Certamente,” disse Will. “Não ache que nós não sabemos isso.”
“Fique quieto, Will.” O tom de Charlotte continha mais que sua aspereza habitual.
Ela virou-se dele para Tessa, seus olhos castanhos suplicando. “Nós confiamos em você,
Tessa. Você precisa confiar em nós, também.”
“Não,” disse Tessa. “Não, eu não confio.” Ela podia sentir o olhar de Will nela e de
repente foi preenchida por uma raiva impressionante. Como ele ousa ser frio com ela, ter
raiva dela? O que ela tinha feito para merecer isso? Ela o deixou beijá-la. Isso era tudo. De
algum modo, era como se isso sozinho tinha apagado todo o resto que ela tinha feito
naquela noite—como se agora que ela tinha beijado Will, já não importava que ela também

tivesse sido corajosa. “Vocês queriam me usar—assim como as Irmãs Sombrias queriam—
e no momento em que vocês tiveram a chance, no momento em que Lady Belcourt
apareceu e vocês precisaram do que eu podia fazer, vocês queriam que eu fizesse. Não
importa o quão perigoso fosse! Vocês se comportam como se eu tivesse alguma
responsabilidade com seu mundo, suas leis e seus Acordos, mas é o seu mundo, e vocês
são aqueles que devem governá-lo. Não é minha culpa se vocês estão fazendo um trabalho
podre!”
Tessa viu Charlotte branquear e sentar-se. Ela sentiu uma forte pontada no peito.
Não era Charlotte quem ela tinha a intenção de ferir. Ainda assim, ela continuou. Ela não
podia evitar, as palavras saindo em uma inundação, “Toda a conversa de vocês sobre
Habitantes do Submundo e como vocês não os odeiam. Isso é tudo um grande nada, não
é? Apenas palavras. Vocês não falam a sério. E quanto aos mundanos, já pensaram que
talvez vocês seriam melhores em protegê-los se não os desprezassem tanto?” Ela olhou
para Will. Ele estava pálido, os olhos brilhando. Ele parecia—ela não tinha certeza se
poderia descrever sua expressão. Horrorizado, ela pensou, mas não com ela; o terror corria
mais profundamente que isso.
“Tessa,” Charlotte protestou, mas Tessa já estava indo para a porta. Ela virou-se no
último momento, na soleira, para vê-los todos olhando para ela.
“Fiquem longe do meu irmão,” ela retrucou. “E não me sigam.”
* * *
Raiva, Tessa pensou, era satisfatória em sua própria maneira, quando você se dava
a ela. Havia algo peculiarmente gratificante sobre gritar em uma fúria cega até que suas
palavras se esgotassem.
Claro, a consequência era menos agradável. Uma vez que você dissesse a todos que
os odiava e para não irem atrás de você, aonde exatamente você iria? Se ela voltasse para
seu quarto, era como dizer que ela estava tendo um acesso de raiva que iria se desgastar.
Ela não podia ir até Nate e levar seu humor negro para sua enfermaria, e se entocar em
qualquer outro lugar significava arriscar ser encontrado emburrada por Sophie ou Agatha.
No final, ela tomou as estreitas e sinuosas escadas que levavam ao longo do
Instituto. Ela fez seu caminho através da nave iluminada por luz de bruxa e saiu nos
largos degraus da frente da igreja, onde ela afundou no degrau de cima e pôs seus braços
em volta de si, tremendo na brisa inesperadamente fria. Deve ter chovido em algum
momento durante o dia, pois os degrais estavam úmidos, e as pedras negras do pátio
brilhavam como um espelho. A lua estava fora, aparecendo rapidamente entre escudos de
nuvens correndo, e o enorme portão de ferro brilhava obscuramente à luz intermitente.
Nós somos pó e sombras.

“Eu sei o que você está pensando.” A voz que vinha da porta atrás de Tessa era tão
suave que quase poderia ter sido parte do vento que sacudia as folhas nos galhos das
árvores.
Tessa virou. Jem estava no arco da soleira, a luz de bruxa branca atrás dele
iluminando seus cabelos de forma que brilhavam como metal. Seu rosto, porém, estava
escondido na sombra. Ele segurava sua bengala na mão direita; os olhos do dragão
brilhavam vigilantes em Tessa.
“Eu não acho que você saiba.”
“Você está pensando, Se eles chamam essa porcaria úmida de verão, como o inverno deve
ser? Você ficaria surpresa. O inverno na verdade é praticamente a mesma coisa.” Ele se
afastou da porta e sentou-se no degrau ao lado de Tessa, mas não perto demais. “É a
primavera que é realmente adorável.”
“É?” Tessa disse, sem muito interesse real.
“Não. Na verdade é nebuloso e úmido também.” Ele olhou de lado para ela. “Eu sei
que você disse para não lhe seguir. Mas eu estava realmente esperando que você quisesse
apenas dizer Will.”
“Eu quis.” Tessa virou-se para olhar para ele. “Eu não deveria ter gritado daquela
forma.”
“Não, você estava totalmente certa em dizer o que disse,” disse Jem. “Nós
Caçadores das Sombras temos sido o que somos por tanto tempo, e somos tão insulares,
que frequentemente nos esquecemos de olhar para qualquer situação do ponto de vista de
outra pessoa. É só sempre sobre se algo é bom para os Nefilins ou ruim para os Nefilins.
Algumas vezes eu acho que esquecemos de perguntar se isso é bom ou ruim para o
mundo.”
“Eu nunca tive a intenção de magoar Charlotte.”
“Charlotte é muito sensível sobre a forma que o Instituto é dirigido. Como uma
mulher, ela tem que lutar para ser ouvida, e mesmo assim suas decisões são questionadas.
Você ouviu Benedict Lightwood no encontro do Enclave. Ela sente que não tem liberdade
para cometer um erro.”
“Alguém de nós tem? Alguém de vocês? Tudo é vida ou morte pra vocês.” Tessa
tomou um longo suspiro de ar nebuloso. Tinha gosto de cidade, metal e cinzas e cavalos e
água de rio. “Eu só—eu me sinto às vezes como se eu não pudesse suportar isso. Nada
disso. Eu queria nunca ter descoberto o que eu sou. Eu queria que Nate tivesse ficado em
casa e nada disso tivesse acontecido!”
“Às vezes,” Jem disse, “nossas vidas podem mudar tão rápido que a mudança
ultrapassa nossas mentes e corações. São esses momentos, eu acho, quando nossas vidas se

alteraram, mas ainda ansiamos pelo tempo antes de tudo se alterar—é quando sentimos a
maior dor. Posso dizer a você, porém, por experiência, você se acostuma com isso. Você
aprende a viver sua nova vida, e você não consegue imaginar, ou mesmo lembrar, como
eram as coisas antes.”
“Você está dizendo que eu irei me acostumar a ser uma feiticeira, ou o que quer que
seja que eu sou.”
“Você sempre foi o que é. Isso não é novo. O que você vai se acostumar é com saber
disso.”
Tessa respirou fundo e soltou devagar. “Eu não quis dizer o que eu disse lá em
cima,” ela afirmou. “Eu não acho que os Nefilins são tão terríveis assim.”
“Eu sei que você não falou a sério. Se tivesse, você não estaria aqui. Estaria ao lado
do seu irmão, protegendo-o contra as nossas intenções nefastas.”
“Will também não falou realmente a sério, não é,” disse Tessa, após um momento.
“Ele não faria mal a Nate.”
“Ah.” Jem olhou em direção ao portão, seus olhos cinzentos pensativos. “Você está
correta. Mas eu estou surpreso que você saiba disso. Eu sei disso. Mas eu tive anos para
entender Will. Para saber quando ele fala a sério e quando não.”
“Então, você nunca fica com raiva dele?”
Jem gargalhou. “Eu dificilmente diria isso. Às vezes eu quero estrangulá-lo.”
“Como na terra você se contém?”
“Eu vou para o meu lugar favorito em Londres,” disse Jem, “e eu fico e olho para a
água, e eu penso sobre a continuidade da vida, e como o rio rola, alheio às viradas
mesquinhas em nossas vidas.”
Tessa estava fascinada. “Isso funciona?”
“Não realmente, mas depois disso eu penso sobre como poderia matá-lo enquanto
ele dorme, se eu realmente quisesse, e então me sinto melhor.”
Tessa deu uma risadinha. “Onde é, então? Este seu lugar preferido?”
Por um momento Jem pareceu pensativo. Então, ele saltou a seus pés, e estendeu a
mão que não segurava a bengala. “Venha comigo, e eu vou lhe mostrar.”
“É longe?”
“Nem um pouco.” Ele sorriu. Ele tinha um sorriso lindo, Tessa pensou—e
contagiante. Ela não pôde deixar de sorrir de volta, pelo que parecia ser a primeira vez em
anos.

Tessa deixou-se ser puxada para ficar em pé. A mão de Jem era quente e forte,
surpreendentemente reconfortante. Ela olhou de volta para o Instituto uma vez, hesitou, e
o deixou levá-la através do portão de ferro e para as sombras da cidade.


14
Ponte Blackfriars


Vinte pontes da Torre até Kew60
60 Bairro do Borough de Richmond upon Thames, no sudoeste de Londres, da Grande Londres
Queriam saber o que o Rio sabia,
Porque elas eram jovens e o Tâmisa era velho,
E este é o conto que o rio contou.
—Rudyard Kipling, “O Conto do Rio”


Passando pelo portão de ferro do Instituto, Tessa se sentiu um pouco como a Bela
Adormecida deixando seu castelo por trás da parede de espinhos. O Instituto ficava no
centro de uma praça, e ruas deixavam a praça em cada direção cardeal, mergulhando em
labirintos estreitos entre casas. Ainda com a mão gentilmente sobre o cotovelo dela, Jem
levou Tessa por uma passagem estreita. O céu acima estava como aço. O chão ainda estava
úmido com a chuva do início do dia, e as laterais dos edifícios que pareciam se estreitar
em ambos os lados estavam manchadas de umidade e sujas com resíduos negros de
poeira.
Jem falava enquanto eles andavam, sem dizer nada de importante, mas mantendo
uma conversa calmante, contando-lhe o que ele tinha pensado sobre Londres assim que
chegou aqui, como tudo lhe parecia um tom uniforme de cinza—até as pessoas! Ele havia
sido incapaz de acreditar que podia chover tanto em um único lugar, e tão
incessantemente. A umidade parecia subir do chão até seus ossos, de modo que ele pensou
que acabaria criando mofo, como uma árvore. “Você realmente se acostuma,” disse ele,
quando saíam da passagem estreita para a larga Rua Fleet. “Mesmo que às vezes você
sinta como se fosse ser capaz de ser espremido como um pano de chão.”
Lembrando-se do caos da rua durante o dia, Tessa foi consolada por ver o quão
mais silenciosa era à noite, a multidão amontoada reduzida à figura ocasional caminhando
pela calçada, de cabeça baixa, mantendo-se nas sombras. Havia ainda carruagens e até
mesmo cavaleiros solitários na estrada, embora nenhum deles parecia notar Tessa e
Jem. Um glamour em trabalho? Tessa pensou, mas não perguntou. Ela estava gostando de

apenas ouvir Jem falar. Esta era a parte mais antiga da cidade, ele lhe disse, onde Londres
tinha nascido. As lojas que ladeavam a rua estavam fechadas, as cortinas fechadas, mas
ainda havia anúncios em cada superfície, anúncios de tudo, desde sabonete Pears61 e
tônico capilar a anúncios incentivando as pessoas a assistir a uma palestra sobre
espiritismo. Enquanto Tessa caminhava, ela viu de relance as torres do Instituto entre os
prédios, e não pode deixar de imaginar se mais alguém poderia vê-las. Ela se lembrou da
mulher papagaio com a pele verde e penas. O Instituto estava realmente escondido bem à
vista? A curiosidade ganhando, ela perguntou a Jem.
61 Marca de sabão produzido e vendido em 1789 por Andrew Pears em uma fábrica na saída da Oxford Street em
Londres, Inglaterra. Foi o primeiro sabão transparente.
“Deixe-me lhe mostrar uma coisa,” disse ele. “Pare aqui.” Tomou Tessa pelo
cotovelo e virou-a de modo que ela estava encarando o outro lado da rua. Ele apontou. “O
que você vê lá?”
Ela apertou os olhos para o outro lado da rua; eles estavam perto do cruzamento da
Rua Fleet e Chancery Lane. Não parecia haver nada de notável sobre onde eles
estavam. “A frente de um banco. O que mais há para ver?”
“Agora deixe sua mente vagar um pouco,” disse ele, ainda com a mesma voz
suave. “Olhe para outra coisa, da maneira como você evitaria olhar diretamente para um
gato de modo a não assustá-lo. Olhe para o banco novamente, pelo canto do olho. Agora
olhe para ele diretamente, e bem rápido!”
Tessa fez como indicado—e ficou olhando. O banco havia sumido; em seu lugar
estava uma taverna com vigas de madeira expostas, com grandes janelas envidraçadas
brilhantes. A luz dentro das janelas era colorida com um brilho avermelhado, e através da
porta da frente aberta mais luz vermelha se derramava no pavimento. Através do vidro,
sombras escuras se moviam—não as sombras familiares de homens e mulheres, mas
formas muito altas e magras, muito estranhamente alongadas ou com muitos membros
para ser humanas. Gargalhadas interrompiam uma música alta, doce e fina, assustadora e
sedutora. Uma placa pendurada na porta mostrava um homem esticando o braço para
beliscar o nariz de um demônio com chifres. Impressas abaixo da imagem estavam as
palavras A Taverna do Diabo.
Este é o lugar onde Will estava a outra noite. Tessa olhou para Jem. Ele olhava para a
taverna, sua mão pousada no braço dela, sua respiração lenta e suave. Ela podia ver a luz
vermelha do bar refletida em seus olhos prateados como o pôr do sol na água. “É este o seu
lugar favorito?” perguntou ela.
A intensidade deixou seu olhar; ele olhou para ela, e riu. “Deus, não,” disse ele. “Só
uma coisa que eu queria que você visse.”

Alguém saiu pela porta da Taverna então, um homem em um longo casaco preto,
um elegante chapéu de seda colocado firmemente em sua cabeça. Enquanto ele olhava
pela rua, Tessa viu que sua pele era azul escura como tinta, o cabelo e a barba brancos
como gelo. Ele se moveu para o leste em direção à Strand enquanto Tessa observava,
imaginando se ele colecionaria olhares curiosos, mas sua passagem não foi mais observada
pelos transeuntes do que a de um fantasma seria. Na verdade, os mundanos que
passavam na frente da Taverna de Diabo pareciam mal percebê-la, mesmo quando várias
figuras chiadoras, altas e esguias, saíram e quase atropelaram um homem de aspecto
cansado empurrando um carrinho vazio. Ele parou para olhar ao redor por um momento,
perplexo, depois deu de ombros e continuou.
“Havia uma taverna muito comum lá uma vez,” disse Jem. “À medida que ela se
tornou mais e mais infestada de Habitantes do Submundo, os Nefilins ficaram
preocupados com o entrelaçamento do Mundo das Sombras com o mundo mundano. Eles
barraram mundanos no lugar pelo simples recurso de usar um glamour para convencê-los
de que a taverna tinha sido demolida e um banco erguido em seu lugar. O Diabo é um
lugar frequentado quase exclusivamente por Habitantes do Submundo agora.” Jem olhou
para a lua, um franzir de cenho atravessando seu rosto. “Está ficando tarde. É melhor
seguir em frente.”
Depois de um único olhar de volta para o Diabo, Tessa foi atrás de Jem, que
continuou a conversar facilmente enquanto eles caminhavam, apontando coisas
interessantes—a Temple Church, onde os tribunais eram agora, e onde outrora os
Cavaleiros Templários tinham mantido peregrinos em sua rota para a Terra Santa. “Eles
eram amigos dos Nefilins, os cavaleiros. Mundanos, mas não sem seu próprio
conhecimento do Mundo das Sombras. E, é claro,” ele acrescentou, enquanto eles saíam do
cruzamento de ruas para a Ponte Blackfriars62, “muitos pensam que os Irmãos Silenciosos
são os Frades Negros63 originais, embora ninguém possa provar. Aí está”, ele acrescentou,
apontando à frente dele. “Meu lugar favorito em Londres.”
62 Blackfriars Bridge é uma ponte rodoviária e tráfego de pedestres sobre o Rio Tamisa, em Londres. Blackfriars
significa Frades Negros.
63 Frade católico romano vestindo o manto negro da Ordem Dominicana.
Olhando para a ponte, Tessa não pôde deixar de se perguntar o que Jem gostava
tanto nesse lugar. Ela se estendia de uma margem à outra do Tâmisa, uma ponte baixa de
granito com arcos múltiplos, os parapeitos pintados de vermelho escuro e adornados com
tinta dourada e vermelha que brilhava à luz do luar. Seria bonita se não fosse pela ponte
ferroviária que corria ao longo do lado leste, silenciosa nas sombras, mas ainda uma treliça
feia de grades de ferro estendendo-se até a margem oposta do rio.
“Eu sei o que você está pensando,” Jem disse novamente, exatamente como tinha
feito fora do Instituto. “A ponte ferroviária, é horrível. Mas isso significa que as pessoas

raramente vêm aqui para admirar a vista. Eu aprecio a solidão, e apenas a vista do rio, em
silêncio, sob a lua.”
Eles caminharam até o centro da ponte, onde Tessa inclinou-se contra um parapeito
de granito e olhou para baixo. O Tâmisa era preto ao luar. A extensão de Londres
estendia-se em ambas as margens, a grande cúpula da Catedral de São Paulo pairando por
trás dela como um fantasma branco, e tudo envolto na névoa suave que estendia um véu
suavemente indefinido sobre as duras linhas da cidade.
Tessa olhou para o rio. O cheiro de sal e sujeira e podridão saía da água,
misturando-se com a neblina. Ainda assim, havia algo solene sobre o rio de Londres, como
se ele carregasse o peso do passado em suas correntes. Um trecho de poesia antiga lhe veio
à cabeça. “'Doce Tâmisa, corre suavemente até eu terminar a minha canção’,” ela recitou
baixinho. Normalmente, ela nunca teria citado poesia em voz alta na frente de ninguém,
mas havia algo sobre Jem que a fazia sentir que, fosse o que ela fizesse, ele não a julgaria.
“Eu já ouvi esse trecho antes,” foi tudo o que ele disse. “Will o citou para mim. O
que é?”
“Spenser. ‘Prothalamion’64.” Tessa franziu o cenho. “Will parece ter uma afinidade
estranha pela poesia para alguém tão... tão...”
64 Poeta inglês. O nome da poesia não tem tradução. Significa “cantiga matrimonial”.
“Will lê constantemente, e tem uma memória excelente,” disse Jem. “Há muito
pouco que ele não se lembre.” Havia algo na voz dele que dava peso à sua afirmação além
da mera declaração do fato.
“Você gosta de Will, não é?” disse Tessa. “Quero dizer, você é afeiçoado a ele.”
“Eu o amo como se fosse meu irmão,” disse Jem sem rodeios.
“Você pode dizer isso,” disse Tessa. “Por mais horrível que ele seja com todo
mundo, ele ama você. Ele é gentil com você. O que você fez, para fazê-lo tratá-lo de forma
tão diferente de todo o resto?”
Jem inclinou-se lateralmente contra o parapeito, seu olhar sobre ela, mas ainda
distante. Ele batia os dedos ponderadamente contra o topo de jade de sua bengala.
Tirando partido da sua clara distração, Tessa deixou-se olhar para ele, admirando um
pouco sua estranha beleza na luz do luar. Ele era todo prata e cinza, não como as cores
fortes de azul e preto e dourado de Will.
Finalmente, ele disse: “Eu não sei, realmente. Eu costumava pensar que era porque
nós dois não tínhamos pais e, portanto ele achava que éramos parecidos—”
“Eu sou órfã,” Tessa comentou. “Jessamine também. Ele não acha que é como nós.”

“Não. Não acha.” Os olhos de Jem estavam cautelosos, como se houvesse algo que
ele não estava dizendo.
“Eu não o entendo,” disse Tessa. “Ele pode ser gentil em um momento e
absolutamente terrível em outro. Eu não consigo decidir se ele é gentil ou cruel, amável ou
odiável—”
“Será que isso importa?” Jem disse. “É necessário você tomar tal decisão?”
“A outra noite,” ela prosseguiu, “em seu quarto, quando Will entrou. Ele disse que
tinha bebido a noite toda, mas então, mais tarde, quando você—mais tarde ele pareceu
ficar sóbrio num piscar de olhos. Eu já vi meu irmão bêbado. Eu sei que não desaparece
assim em um instante; mesmo minha tia jogando um balde de água fria no rosto de Nate
não o teria despertado do torpor, não se ele estivesse realmente embriagado. E Will não
cheirava a álcool, ou parecia mal na manhã seguinte. Mas por que ele mentiria e diria que
estava bêbado, se não estava?”
Jem parecia resignado. “E aí está o mistério essencial de Will Herondale. Eu
costumava me perguntar a mesma coisa. Como alguém poderia beber tanto quanto ele
dizia e sobreviver, ainda mais lutar tão bem quanto ele. Então uma noite, eu o segui.”
“Você o seguiu?”
Jem sorriu torto. “Sim. Ele saiu, alegando um encontro ou algo assim, e eu o segui.
Se eu soubesse o que esperar, eu teria usado sapatos resistentes. Ele caminhou a noite
inteira pela cidade, da Catedral de São Paulo ao Mercado Spitalfields à Rua Alta
Whitechapel. Ele desceu para o rio e perambulou pelo cais. Ele não parou para falar com
uma única alma. Era como seguir um fantasma. Na manhã seguinte, ele estava pronto com
algum conto obsceno de aventuras falsas, e eu nunca exigi a verdade. Se ele deseja mentir
para mim, então deve ter uma razão.”
“Ele mente para você, e você ainda confia nele?”
“Sim,” Jem disse. “Eu confio nele.”
“Mas—“
“Ele mente consistentemente. Ele sempre inventa a história que vai fazê-lo parecer
pior.”
“Então, ele lhe contou o que aconteceu com seus pais? Seja verdade ou mentira?”
“Não inteiramente. Fragmentos,” Jem disse após uma longa pausa. “Eu sei que seu
pai deixou os Nefilins. Antes de Will nascer. Ele se apaixonou por uma garota mundana, e
quando o Conselho se recusou a fazer dela uma Caçadora das Sombras, ele deixou a Clave
e se mudou com ela para uma parte muito remota do País de Gales, onde eles pensavam
que não seriam encontrados. A Clave ficou furiosa.”

“A mãe de Will era uma mundana? Quer dizer que ele é apenas meio Caçador das
Sombras?”
“Sangue Nefilim é dominante,” disse o Jem. “É por isso que existem três regras para
aqueles que deixam a Clave. Primeira, você deve cortar o contato com todo e qualquer
Caçadores das Sombras que você já conheceu, mesmo sua própria família. Eles nunca
podem falar com você de novo, nem você pode falar com eles. Segunda, você não pode
invocar o Clave por ajuda, não importa qual o seu perigo. E terceira ...”
“Qual a terceira?”
“Mesmo se você deixar a Clave,” disse Jem, “eles ainda podem reivindicar seus
filhos.”
Um pequeno arrepio passou por Tessa. Jem ainda estava olhando para o rio, como
se ele pudesse ver Will em sua superfície prateada. “A cada seis anos,” disse ele, “até que a
criança tenha dezoito anos, um representante da Clave vem à sua família e pergunta à
criança se ela gostaria de deixar sua família e se juntar aos Nefilins.”
“Eu não consigo imaginar que alguém iria,” disse Tessa, estarrecida. “Quero dizer,
você nunca seria capaz de falar com sua família novamente, seria?”
Jem balançou a cabeça.
“E Will concordou com isso? Ele se juntou aos Caçadores das Sombras apesar de
tudo?”
“Ele se recusou. Por duas vezes, ele se recusou. Então, um dia—Will tinha uns doze
anos—houve uma batida na porta do Instituto e Charlotte atendeu. Ela devia ter dezoito
então, eu acho. Will estava ali de pé na escada. Ela me disse que ele estava coberto de
poeira e sujeira de estrada, como se tivesse dormido em sebes. Ele disse, ‘Eu sou um
Caçador das Sombras. Um de vocês. Você tem que me deixar entrar. Eu não tenho mais
para onde ir.’”
“Ele disse isso? Will? ‘Eu não tenho mais para onde ir’?”
Ele hesitou. “Você compreende, tudo isso é informação que eu ouvi de
Charlotte. Will nunca mencionou uma palavra de nada disso para mim. Mas é isso que ela
alega que ele disse.”
“Eu não entendo. Os pais dele—estão mortos, não estão? Ou eles teriam vindo à
procura dele.”
“Eles vieram,” Jem disse calmamente. “Algumas semanas depois que Will chegou,
Charlotte me disse, seus pais seguiram. Eles vieram até a porta da frente do Instituto e
bateram nela, chamando por ele. Charlotte foi até o quarto de Will para perguntar se ele
queria vê-los. Ele havia se arrastado para debaixo da cama e tinha as mãos nos

ouvidos. Ele não queria sair, não importava o que ela fizesse, e ele não iria vê-los. Eu acho
que Charlotte finalmente desceu e mandou-os embora, ou eles foram de própria vontade,
não tenho certeza—”
“Mandou-os embora? Mas seu filho estava dentro do Instituto. Eles tinham um
direito—”
“Eles não tinham direito.” Jem falou delicadamente o suficiente, pensou Tessa, mas
havia algo em seu tom que o colocou tão longe dela quanto a lua. “Will optou por se juntar
aos Caçadores das Sombras. Uma vez que ele fez essa escolha, eles não tinham mais
direito sobre ele. Era direito e responsabilidade da Clave mandá-los embora.”
“E você nunca perguntou a ele o porquê?”
“Se ele quisesse que eu soubesse, teria me dito,” Jem disse. “Você perguntou por
que eu acho que ele me tolera melhor do que às outras pessoas. Eu imagino que é
exatamente porque eu nunca lhe perguntei por quê.” Ele sorriu para ela, ironicamente. O ar
frio havia colocado cor em seu rosto e seus olhos estavam brilhantes. Suas mãos estavam
próximas umas das outras sobre o parapeito. Por um momento breve, meio confuso, Tessa
pensou que ele talvez estivesse prestes a colocar sua mão sobre a dela, mas seu olhar
deslizou por ela, e ele franziu a testa. “Pouco tarde para um passeio, não é?”
Seguindo seu olhar, ela viu as figuras sombrias de um homem e uma mulher se
aproximando deles pelo outro lado da ponte. O homem usava um chapéu de feltro de
trabalhador e um casaco de lã escura; a mulher tinha a mão em seu braço, o rosto
inclinado em sua direção. “Eles provavelmente acham a mesma coisa sobre nós,” disse
Tessa. Ela olhou para os olhos de Jem. “E você, veio para o Instituto porque não tinha mais
para onde ir? Por que você não ficou em Xangai?”
“Meus pais dirigiam o Instituto lá,” disse Jem, “mas eles foram assassinados por um
demônio. Ele—a coisa—era chamado de Yanluo.” Sua voz estava muito calma. “Depois
que eles morreram, todos pensaram que a coisa mais segura para mim seria deixar o país,
caso o demônio ou seus companheiros viessem atrás de mim também.”
“Mas por que aqui, por que a Inglaterra?”
“Meu pai era britânico. Eu falava inglês. Parecia razoável.” O tom de Jem estava tão
calmo quanto sempre, mas Tessa sentiu que havia algo que ele não estava dizendo a
ela. “Eu pensei que me sentiria mais em casa aqui do que em Idris, onde nenhum dos
meus pais jamais esteve.”
Do outro lado da ponte o casal que passeava parou no parapeito; o homem parecia
estar apontando características da ponte ferroviária, a mulher concordando enquanto ele
falava. “E fez— você se sentir mais em casa, quero dizer?”

“Não exatamente,” Jem disse. “Quase a primeira coisa que percebi quando cheguei
aqui foi que meu pai nunca pensou em si mesmo como britânico, não como um cidadão
inglês iria. Verdadeiros ingleses são britânicos em primeiro lugar, e cavalheiros em
segundo. Qualquer outra coisa que eles possam ser—médico, funcionário público ou
proprietário rural—vem em terceiro lugar. Para Caçadores das Sombras é diferente. Somos
Nefilins em primeiro lugar, e só depois é que acenamos para qualquer país que
poderíamos ter nascido e sido criados. E em terceiro, não há terceiro. Somos sempre
Caçadores das Sombras. Quando outros Nefilins olham para mim, veem apenas um
Caçador das Sombras. Não como mundanos, que olham para mim e veem um menino que
não é totalmente estrangeiro, mas não é exatamente como eles, também.”
“Metade uma coisa e metade outra,” disse Tessa. “Como eu. Mas você sabe que é
humano.”
A expressão de Jem suavizou. “Como você é. De todas as maneiras que importam.”
Tessa sentiu o fundo de seus olhos arderem. Ela olhou para cima e viu que a lua
tinha passado por trás de uma nuvem, dando-lhe um brilho perolado. “Acho que
deveríamos voltar. Os outros devem estar preocupados.”
Jem aproximou-se para oferecer-lhe o braço—e fez uma pausa. O casal passeando
que Jem tinha notado antes, de repente estava na frente deles, obstruindo seu
caminho. Embora eles devessem ter se movido muito ligeiramente para chegar ao outro
lado da ponte tão rápido, eles estavam estranhamente imóveis agora, com os braços
unidos. O rosto da mulher estava escondido na sombra de uma touca simples, o do
homem escondido debaixo da aba do seu chapéu de feltro.
A mão de Jem apertou o braço de Tessa, mas sua voz era neutra quando ele
falou. “Boa noite. Existe algo em que podemos ajudá-los?”
Nenhum dos dois falou, mas deram um passo mais perto, a saia da mulher
farfalhando ao vento. Tessa olhou em volta, mas não havia mais ninguém na ponte,
ninguém visível em qualquer uma das margens. Londres parecia completamente deserta,
sob o luar nevoento.
“Perdoem-me,” Jem disse. “Eu apreciaria se vocês deixassem eu e minha
acompanhante passar.” Ele deu um passo adiante, e Tessa seguiu. Eles estavam próximos
o suficiente do casal silencioso que quando a lua saiu de trás de sua nuvem, inundando a
ponte com luz prateada e iluminando o rosto do homem com chapéu de feltro, Tessa o
reconheceu instantaneamente.
O cabelo emaranhado; o nariz grande quebrado e queixo marcado; e principalmente
os olhos salientes, projetando-se, os mesmos olhos da mulher que estava ao lado dele, seu
olhar vazio fixo em Tessa de uma forma terrivel que lembrava Miranda.

Mas você está morto. Will o matou. Eu vi seu corpo. Tessa murmurou: “É ele, o
cocheiro. Ele pertence às Irmãs Sombrias.”
O cocheiro deu uma risadinha. “Eu pertenço,” disse ele, “ao Magister. Enquanto as
Irmãs Sombrias lhe serviram, eu as servi. Agora eu sirvo apenas a ele.”
A voz do cocheiro soava diferente de como Tessa se lembrava—menos grossa, mais
articulada, com uma suavidade quase sinistra. Ao lado de Tessa, Jem tinha ficado muito
quieto. “Quem é você?” perguntou. “Por que você está nos seguindo?”
“O Magister nos ordenou a segui-los,” disse o cocheiro. “Você é Nefilim. Você é
responsável pela destruição de sua casa, a destruição de seu povo, os Filhos da
Noite. Estamos aqui para entregar uma declaração de guerra. E nós estamos aqui pela
menina.” Ele virou os olhos para Tessa. “Ela é propriedade do Magister, e ele a terá.”
“O Magister,” disse o Jem, seus olhos muito prateados ao luar. “Você quer dizer de
Quincey?”
“O nome que você lhe da não importa. Ele é o Magister. Ele nos disse para entregar
uma mensagem. Essa mensagem é guerra.”
A mão de Jem apertou a cabeça de sua bengala. “Vocês servem de Quincey, mas
não são vampiros. O que vocês são?”
A mulher de pé ao lado do cocheiro fez um estranho ruído suspirante, como o apito
alto de um trem. “Cuidado, Nefilim. Como você mata outros, assim será morto. Seu anjo
não pode protegê-lo contra o que nem Deus nem o Diabo criaram.”
Tessa começou a virar para Jem, mas ele já estava em movimento. Sua mão golpeou
para cima, a bengala com topo de jade nela. Houve um clarão. Uma lâmina perversamente
afiada e brilhante disparou do final da bengala. Com uma volta rápida de seu corpo, Jem
mergulhou a lâmina para frente e a enfiou no peito do cocheiro. O homem cambaleou para
trás, um zumbido alto de surpresa saindo de sua garganta.
Tessa prendeu sua respiração. Um corte longo abriu através da camisa do cocheiro,
e embaixo dela não era visível nem carne nem sangue, mas metal brilhante, marcado
irregularmente pela lâmina de Jem.
Jem sacou a lâmina de volta, deixando escapar um suspiro, satisfação misturada
com alívio. “Eu sabia—”
O cocheiro rosnou. Com um movimento rápido,sua mão retirou uma longa faca
serrilhada do casaco, do tipo utilizado por açougueiros para cortar osso, enquanto a
mulher, entrando em ação, moveu-se em direção a Tessa, as mãos sem luvas
estendidas. Seus movimentos eram bruscos, irregulares—mas muito, muito rápidos, muito
mais rápidos do que Tessa poderia imaginar que podiam se mover. A companheira do
cocheiro avançou sobre Tessa, o rosto sem expressão, a boca semiaberta. Algo metálico

brilhava dentro dela—metal ou cobre. Ela não tem garganta, e, eu suporia, nem estômago. A
boca dela termina em uma camada de metal por trás dos dentes.
Tessa recuou até suas costas baterem no parapeito. Ela olhou para Jem, mas o
cocheiro estava avançando contra ele novamente. Jem o golpeou com a lâmina, mas isto
pareceu apenas para retardar o homem. O casaco e a camisa do cocheiro pendiam de seu
corpo agora em tiras irregulares, mostrando claramente o revestimento de metal embaixo.
A mulher agarrou Tessa, que se lançou para o lado. A mulher jogou-se para frente e
bateu no parapeito. Ela parecia não sentir mais dor que o cocheiro; ela levantou-se
duramente e virou para avançar em Tessa novamente. O impacto parecia ter danificado
seu braço esquerdo, porém, pois ele estava pendurado amassado ao lado dela. Ela golpeou
em direção a Tessa com seu braço direito, os dedos estendidos, e agarrou-a pelo pulso. Seu
aperto era firme o suficiente para fazer Tessa gritar quando os pequenos ossos no seu
pulso queimaram de dor. Ela agarrou a mão que a segurava, seus dedos afundando
profundamente na pele macia e delicada. Ela descolou como a pele de uma fruta, as unhas
de Tessa arranhando o metal por baixo com uma aspereza que causou arrepios na espinha.
Ela tentou puxar sua mão para trás, mas só conseguiu atrair a mulher para ela; ela
fazia um estridente barulho de zumbido e clique em sua garganta que soava
desagradavelmente como um inseto, e de perto seus olhos eram sem pupilas e pretos.
Tessa puxou o pé para trás para chutar—
E houve o súbito ressoar de metal contra metal; a lâmina de Jem brilhou para baixo
com um golpe perfeito, cortando o braço da mulher no meio no cotovelo. Tessa, liberta,
caiu para trás, a mão sem corpo caindo de seu pulso, atingindo o solo a seus pés; a mulher
estava cambaleando na direção de Jem, zumbe-clique, zumbe-clique. Ele moveu-se para
frente, golpeando a mulher vigorosamente com a superfície lisa da bengala, empurrando-a
um passo atrás, depois outro e outro até que ela bateu no parapeito da ponte tão forte que
se desequilibrou. Sem um grito ela caiu, mergulhando em direção à água abaixo; Tessa
correu para o parapeito a tempo de vê-la deslizar sob a superfície. Nenhuma bolha subiu
para mostrar onde ela havia desaparecido.
Tessa se virou. Jem estava segurando a bengala, respirando com dificuldade.
Sangue escorria de um corte no lado do rosto, mas ele parecia do outro modo ileso. Ele
segurava sua arma livremente em uma das mãos enquanto olhava para uma forma escura
dobrada no chão a seus pés, uma forma que se movia e agitava, brilhos de metal
aparecendo entre as tiras de sua roupa rasgada. Quando Tessa se aproximou, viu que era o
corpo do cocheiro, se contorcendo e agitando. Sua cabeça havia sido perfeitamente
cortada, e uma substância oleosa escura era lançada do coto de seu pescoço, manchando o
chão.
Jem levantou a mão para puxar o cabelo umedecido de suor para trás, espalhando o
sangue em sua bochecha. Sua mão tremia. Hesitante, Tessa tocou em seu braço. “Você está
bem?”

Seu sorriso era fraco. “Eu deveria estar perguntando isso a você." Ele estremeceu
ligeiramente. “Essas coisas mecânicas, me enervam. Eles—” Ele parou, olhando acima dela
ela.
Na extremidade sul da ponte, se deslocando em direção a eles com movimentos
agudos acentuados, estavam pelo menos mais meia dúzia de criaturas mecânicas. Apesar
dos espasmos de seus movimentos, eles estavam se aproximando rapidamente, quase se
arremessando para frente. Eles já estavam a um terço do caminho através da ponte.
Com um clique forte a lâmina desapareceu de volta dentro da bengala de Jem. Ele
pegou a mão de Tessa, sua voz sem fôlego. "Corra."
Eles correram, Tessa agarrando sua mão, olhando para trás uma única vez, em
terror. As criaturas tinham chegado ao centro da ponte e estavam indo na direção deles,
ganhando velocidade. Eles eram do sexo masculino, Tessa viu, vestidos com o mesmo tipo
de casaco de lã e chapéus de feltro escuro que o cocheiro. Seus rostos brilhavam ao luar.
Jem e Tessa alcançaram os degraus no final da ponte, e Jem manteve um controle
apertado sobre a mão de Tessa quando se precipitaram escada abaixo. As botas dela
escorregaram na pedra úmida, e ele a pegou, sua bengala batendo desajeitadamente contra
as costas dela; ela sentiu o peito dele subir e descer contra o dela, forte, como se ele
estivesse ofegante. Mas ele não poderia estar sem ar, poderia? Ele era um Caçador das
Sombras. O Códice dizia que eles podiam correr por milhas. Jem se afastou, e ela viu que
seu rosto estava contraído, como se estivesse sentindo dor. Ela queria perguntar se ele
havia sido ferido, mas não houve tempo. Eles podiam ouvir barulho de passos na escada
acima deles. Sem uma palavra, Jem agarrou seu pulso novamente e puxou-a atrás dele.
Eles passaram pelo Aterro, iluminado pelo brilho de seus postes em forma de
golfinho65, antes de Jem desviar e mergulhar entre dois prédios até um beco estreito. O
beco subia, indo para longe do rio. O ar entre os prédios era úmido e abafado, os
paralelepípedos manchados de imundície. Roupas lavadas sacudiam como fantasmas nas
janelas acima. Os pés de Tessa estavam gritando em suas botas da moda, seu coração
batendo violentamente contra seu peito, mas não houve desaceleração. Ela podia ouvir as
criaturas atrás deles, ouvir o zumbe-clique dos seus movimentos, cada vez mais perto.
65 Esses postes são reais e existem até hoje. Iluminam a margem sul do Tâmisa.
O beco abriu para uma rua larga, e ali, elevando-se diante deles, estava o iminente
edifício do Instituto. Eles correram pela entrada, e Jem a soltou enquanto se virava para
bater e fechar os portões atrás deles. As criaturas os alcançaram na mesma hora em que as
trancas se fecharam; eles se chocaram contra o portão, como brinquedos de corda
incapazes de parar, chacoalhando o ferro com um estrondo enorme.
Tessa recuou, olhando. As criaturas mecânicas estavam pressionadas contra o
portão, esticando suas mãos através das aberturas no ferro. Ela olhou em volta

freneticamente. Jem estava ao seu lado. Ele estava branco como papel, uma mão
pressionando sua lateral. Ela tentou pegar a mão dele, mas ele recuou, fora de seu
alcance. “Tessa.” Sua voz era desigual. “Entre no Instituto. Você precisa entrar.”
“Você está machucado? Jem, você está ferido?”
“Não.” Sua voz estava bafada.
Um barulho do portão fez Tessa olhar para cima. Um dos homens mecânicos
colocou a mão por uma fresta no portão e estava puxando a corrente de ferro que o
mantinha fechado. Enquanto ela encarava com horror fascinado, viu que ele estava
arrastando os elos de metal com tanta força que a pele estava soltando de seus dedos,
mostrando as mãos com juntas de metal embaixo. Havia, obviamente, uma tremenda força
naquelas mãos. O metal estava entortando e torcendo em suas garras; era claramente uma
questão de minutos antes de a corrente partir e se quebrar.
Tessa agarrou o braço de Jem. Sua pele estava ardente ao toque; ela podia sentir isso
através de suas roupas. “Vamos.”
Com um gemido ele a deixou puxá-lo em direção à porta da frente da igreja; ele
estava cambaleando, e apoiando-se nela pesadamente, sua respiração agitando seu
peito. Eles cambalearam até as escadas, Jem deslizando de seu apoio no momento em que
chegaram ao degrau mais alto. Ele bateu no chão de joelhos, tosse asfixiante lhe rasgando,
seu corpo inteiro tendo espasmos.
O portão arrebentou. As criaturas mecânicas derramaram-se pelo caminho,
liderados por aquele que havia despedaçado a corrente, suas mãos sem pele brilhando ao
luar.
Lembrando o que Will tinha dito, que alguém tinha que ter sangue de Caçador das
Sombras para abrir a porta, Tessa alcançou a corda da sineta que pendia ao lado dela e
puxou, vigorosamente, mas não ouvi nenhum som. Desesperada, ela se virou de volta
para Jem, ainda agachado no chão. “Jem! Jem, por favor, você tem que abrir a porta—”
Ele levantou a cabeça. Seus olhos estavam abertos, mas não havia nenhuma cor
neles. Eles estavam completamente brancos, como mármores. Ela podia ver a lua refletida
neles.
"Jem!"
Ele tentou ficar de pé, mas seus joelhos vacilaram; ele caiu no chão, sangue
escorrendo pelos cantos da boca. A bengala tinha rolado de sua mão, quase aos pés de
Tessa.
As criaturas tinham chegado ao pé da escada; eles começaram a impulsionar para
cima, balançando um pouco, aquele com as mãos esfoladas na liderança. Tessa atirou-se
contra as portas do Instituto, batendo os punhos contra o carvalho. Ela podia ouvir as

reverberações ocas de seus golpes, ecoando do outro lado, e se desesperou. O Instituto era
tão grande, e não havia tempo.
Finalmente, ela desistiu. Afastando-se da porta, ela ficou horrorizada ao ver que o
líder das criaturas havia alcançado Jem; estava debruçado sobre ele, suas mãos de metal
esfoladas em seu peito.
Com um grito ela agarrou a bengala de Jem e a brandiu. “Saia de perto dele!”
gritou.
A criatura se endireitou, e sob o luar, pela primeira vez, ela viu seu rosto
claramente. Era suave, quase sem feições, apenas entalhos onde os olhos e a boca
deveriam estar, e sem nariz. Ele levantou suas mãos esfoladas; estavam manchadas com o
sangue de Jem. Jem estava deitado muito quieto, sua camisa rasgada, sangue empoçando
escuro em torno dele. Enquanto Tessa olhava com horror, o homem mecânico mexeu os
dedos sangrentos para ela, em uma espécie de paródia grotesca de um aceno—então
virou-se e lançou-se escada abaixo, quase fugindo, como uma aranha. Ele correu pelo
portões e se perdeu de vista.
Tessa foi em direção a Jem, mas os outros robôs se moveram rapidamente para
bloquear seu caminho. Eles eram todos sem feições como seu líder, um conjunto
combinado de guerreiros sem rosto, como se não tivesse havido tempo suficiente
para terminá-los.
Com um zumbe-clique, um par de mãos metálicas se estendeu para ela, e ela
balançou a bengala, quase às cegas. Bateu na lateral da cabeça de um homem mecânico.
Ela sentiu o impacto da madeira contra o metal vibrando até seu braço, e ele cambaleou
para o lado, mas só por um momento. Sua cabeça virou-se rapidamente de volta com uma
velocidade incrível. Ela balançou novamente, a bengala batendo contra o ombro dele desta
vez; ele cambaleou, mas outras mãos apareceram, agarrando a bengala, arrancando-a de
sua mão com tanta força que a pele da sua mão queimou. Ela lembrou a força do aperto
doloroso de Miranda sobre ela, quando o autômato que arrancou a bengala dela bateu-a
sobre os joelhos com força impressionante.
Ela se quebrou ao meio com um som terrível. Tessa virou-se para correr, mas mãos
metalicas agarraram seus ombros, puxando-a para trás. Ela lutou para se livrar—
E as portas do Instituto se escancararam. As luzes que saiu delas cegou-a
momentaneamente, e ela não conseguiu ver nada além do contorno de figuras escuras,
anelados em luz, saindo do interior da igreja. Alguma coisa zumbiu ao lado de sua cabeça,
arranhando sua bochecha. Houve o rangido de metal contra metal, e em seguida os braços
da criatura mecânica relaxaram e ela caiu para frente nos degraus, sufocando.
Tessa olhou para cima. Charlotte estava acima dela, o rosto pálido e definido, um
disco de metal afiado em uma das mãos. Outro disco igual estava enterrado no peito do

homem mecânico que a segurava. Ele estava se retorcendo e tendo espasmos em círculo,
como um brinquedo com defeito. Faícas azuis saíam do corte de seu pescoço.
Em torno dele o resto das criaturas estava girando e balançando enquanto os
Caçadores das Sombras convergiam sobre eles, Henry baixando sua lâmina de serafim em
um arco, abrindo o peito de um dos robôs, enviando-o cambaleando e sacudindo para as
sombras. Ao seu lado estava Will, balançando o que parecia ser uma espécie de foice,
repetidas vezes, cortando outra das criaturas em pedaços com tanta fúria que emitiu uma
fonte de faíscas azuis. Charlotte, se arremessando pelos degraus, jogou o segundo de seus
discos; ele cortou a cabeça de um monstro de metal com um ruído nauseante. Ele caiu no
chão, soltando mais faíscas e óleo negro.
As duas criaturas restantes, parecendo pensar melhor sobre a situação, viraram-se e
saltaram na direção dos portões. Henry disparou atrás deles com Charlotte em seu
encalço, mas Will, deixando cair sua arma, virou-se e correu de volta para os degraus. “O
que aconteceu?” ele gritou para Tessa. Ela o olhou, atordoada demais para responder. A
voz dele se elevou, com um quê de pânico furioso. “Você está ferida? Onde está Jem?”
“Não estou ferida,” ela sussurrou. “Mas Jem, ele desmaiou. Ali.” Ela apontou para
onde Jem estava, dobrado nas sombras ao lado da porta.
O rosto de Will ficou inexpressivo, como um quadro limpo de giz. Sem olhar para
ela novamente ele subiu correndo a escada e caiu perto de Jem, dizendo algo em voz
baixa. Quando não houve resposta, Will levantou a cabeça, gritando para Thomas vir
ajudá-lo a carregar Jem, e gritando algo mais, algo que Tessa não conseguiu compreender
através da sua tontura. Talvez ele estivesse gritando com ela. Talvez ele pensasse que tudo
isso era culpa dela? Se ela não tivesse ficado tão irritada, se ela não tivesse fugido e feito
Jem segui-la—
Uma sombra escura apareceu na soleira da porta iluminada. Era Thomas, de
cabelos desgrenhados e sério, que foi sem uma palavra se ajoelhar perto de Will. Juntos
eles colocaram Jem de pé, um braço pendurado em cada um de seus ombros. Eles
correram para dentro sem olhar para trás.
Atordoada, Tessa olhou para o pátio. Algo estava estranho, diferente. Era o silêncio
repentino depois de toda a gritaria e barulho. As criaturas mecânicas destruídas estavam
aos pedaços pelo pátio, o chão estava escorregadio com fluido viscoso, os portões estavam
abertos, e a lua brilhava sem expressão sobre tudo tal como tinha brilhado sobre ela e Jem
na ponte, quando ele lhe disse que ela era humana.


15
Lama Estrangeira


Ah Deus, que o amor fosse como uma flor ou chama,
Que a vida fosse como o significado de um nome,
Que a morte não fosse mais lamentável que o desejo,
Que estas coisas não fossem o mesmo!
—Algernon Charles Swinburne, “Laus Veneris”


“Srta. Tessa.” A voz era de Sophie. Tessa se virou e a viu enquadrada no umbral,
uma lanterna balançando em sua mão. “Você está bem?”
Tessa se sentiu lamentavelmente agradecida de ver a outra garota. Ela estava se
sentindo tão sozinha. “Eu não estou machucada. Henry foi atrás das criaturas, porém, e
Charlotte—”
“Eles ficarão completamente bem.” Sophie pôs uma mão no cotovelo de Tessa.
“Vamos, venha para dentro, senhorita. Você está sangrando.”
“Eu estou?” Intrigada, Tessa levantou os dedos para tocar sua testa; eles vieram
manchados de vermelho. “Eu devo ter batido minha cabeça quando caí contra os degraus.
Eu nem mesmo senti.”
“Choque,” Sophie disse calmamente, e Tessa pensou em quantas vezes, em seu
emprego aqui, Sophie devia ter feito essas coisas—posto curativos em cortes, enxugado
sangue. “Venha comigo, e eu conseguirei uma compressa para sua cabeça.”
Tessa assentiu. Com uma última olhada sobre o ombro para a destruição no jardim,
ela deixou Sophie guiá-la de volta para o Instituto. Os próximos momentos foram algo
como um borrão. Depois que Sophie a ajudou a subir as escadas e a sentar em uma
poltrona na sala de estar, ela se apressou a sair e voltou momentos depois com Agatha,
que pressionou uma xícara de algo quente na mão de Tessa.
Tessa sabia o que era no momento em que sentiu o cheiro—conhaque e água. Ela
pensou em Nate e hesitou, mas uma vez que ela havia tomado alguns goles, as coisas

começaram a entrar em foco novamente. Charlotte e Henry retornaram, trazendo consigo
o cheiro de metal e luta. Com os lábios apertados, Charlotte colocou suas armas em uma
mesa e chamou por Will. Ele não respondeu, mas Thomas sim, se apressando pelo
corredor, seu casaco manchado de sangue, para dizer a ela que Will estava com Jem, e que
Jem iria ficar bem.
“As criaturas o machucaram, e ele perdeu algum sangue,” Thomas disse, correndo
uma mão por seu cabelo castanho embaraçado. Ele olhava para Sophie enquanto falava.
“Mas Will deu a ele um iratze—”
“E o remédio dele?” Sophie perguntou rapidamente. “Ele tomou um pouco?”
Thomas assentiu, e a atitude tensa dos ombros de Sophie relaxou apenas um pouco.
O olhar de Charlotte suavizou também. “Obrigada, Thomas,” ela disse. “Talvez você
possa ver se ele precisa de algo mais?”
Thomas assentiu, e saiu de novo pelo corredor com um último olhar sobre o ombro
para Sophie, que não pareceu notar. Charlotte afundou no divã oposto a Tessa. “Tessa,
você pode nos dizer o que aconteceu?”
Agarrando a xícara, seus dedos gelados apesar do calor dela, Tessa estremeceu.
“Vocês pegaram os que escaparam? Os—o que quer que eles eram. Os monstros de
metal?”
Charlotte sacudiu a cabeça gravemente. “Nós os perseguimos pelas ruas, mas eles
desapareceram quando alcançamos a Ponte Hungerford. Henry pensa que houve alguma
mágica envolvida.”
“Ou um túnel secreto,” Henry disse. “Eu também sugeri um túnel secreto, minha
querida.” Ele olhou para Tessa. Seu rosto amigável estava riscado com sangue e óleo, seu
colete listrado brilhante cortado e rasgado. Ele parecia um aluno que havia caído de mau
jeito. “Você os viu saindo de um túnel, talvez, Srta. Gray?”
“Não,” Tessa disse, sua voz um meio sussurro. Para limpar a garganta, ela tomou
outro gole da bebida que Agatha havia lhe dado, e pôs a xícara na mesa antes de discorrer
sobre tudo—a ponte, o cocheiro, a perseguição, as palavras que a criatura havia falado, a
maneira que eles haviam irrompido pelos portões do Instituto. Charlotte ouvia com um
rosto branco apertado; mesmo Henry parecia severo. Sophie, sentada quietamente em
uma cadeira, prestava atenção à história com a solene intensidade de uma estudante.
“Eles disseram que aquilo era uma declaração de guerra,” Tessa terminou. “Que
eles estavam vindo para saciar sua vingança sobre nós—sobre vocês, eu suponho—pelo
que aconteceu a de Quincey.”
“E a criatura se referiu a ele como o Magister?” Charlotte perguntou.

Tessa pressionou seus lábios juntos firmemente para que eles não tremessem. “Sim.
Ele disse que o Magister me queria e que ele havia sido mandado para me reaver.
Charlotte, isso é culpa minha. Se não fosse por mim, de Quincey não teria mandando
aquelas criaturas hoje à noite, e Jem—” Ela baixou os olhos para as mãos. “Talvez vocês
apenas devessem deixá-lo me pegar.”
Charlotte estava sacudindo a cabeça. “Tessa, você ouviu de Quincey noite passada.
Ele odeia Caçadores das Sombras. Ele iria atacar a Clave independentemente de você. E se
nós a déssemos para ele, tudo o que estaríamos fazendo é colocar uma arma
potencialmente valiosa nas mãos dele.” Ela olhou para Henry. “Eu me pergunto por que
ele esperou tanto tempo. Por que não vir por Tessa quando ela estava fora com Jessie? Ao
contrário de demônios, essas criaturas mecânicas podem sair durante o dia.”
“Elas podem,” disse Henry, “mas não sem alarmar a população—não ainda. Elas não
parecem o suficiente com seres humanos normais para passarem sem provocar
comentários.” Ele pegou uma engrenagem brilhante de seu bolso e a levantou. “Eu
examinei os restos dos autômatos no pátio. Esses que de Quincey enviou atrás de Tessa na
ponte não são como aquele na cripta. São mais sofisticados, feitos de metais mais
resistentes, e com juntas mais sofisticadas. Alguém tem estado trabalhando no desenho
naqueles diagramas que Will encontrou, aperfeiçoando-o. As criaturas são mais rápidas
agora, e mais mortais.”
Mas quão aperfeiçoadas? “Havia um feitiço,” Tessa disse rapidamente. “No diagrama.
Magnus o decifrou…”
“O feitiço de ligação. Feito para vincular uma energia demoníaca a um autômato.”
Charlotte olhou para Henry. “De Quincey—?”
“Conseguiu realizá-lo?” Henry sacudiu a cabeça. “Não. Aquelas criaturas são
simplesmente configuradas para seguir um padrão, como caixas de música. Mas não são
animadas. Elas não têm inteligência ou vontade ou vida. E não há nada demoníaco nelas.”
Charlotte exalou em alívio. “Precisamos encontrar de Quincey antes que ele consiga
seu objetivo. Aquelas criaturas são difíceis o suficiente de matar como são. O Anjo sabe
quantas delas ele fez, ou quão difíceis de matar elas seriam se tivessem a astúcia de
demônios.”
“Um exercido nascido nem do Céu, nem do Inferno,” disse Tessa suavemente.
“Exatamente,” disse Henry. “De Quincey deve ser encontrado e parado. E no meio
tempo, Tessa, você precisa ficar no Instituto. Não que nós queiramos mantê-la prisioneira,
mas seria mais seguro se você ficasse aqui dentro.”
“Mas por quanto tempo—?” Tessa começou—e deixou a voz morrer, quando a
expressão de Sophie mudou. Ela estava olhando para algo além do ombro de Tessa, seus
olhos cor de mel subitamente arregalados. Tessa seguiu o olhar dela.

Era Will. Ele estava de pé na soleira da porta da sala de estar. Havia um fio de
sangue em sua camisa branca; parecia tinta. Seu rosto estava imóvel, quase como uma
máscara, seu olhar fixo em Tessa. Quando seus olhares se encontraram, ela sentiu seu
pulso pular em sua garganta.
“Ele quer falar com você,” Will disse.
Houve um momento de silêncio enquanto todos na sala de estar olhavam para ele.
Havia algo ameaçador na intensidade do olhar de Will, a tensão de sua imobilidade.
Sophie tinha a mão na garganta, seus dedos nervosamente mexendo em sua gola.
“Will,” Charlotte disse finalmente. “Você quer dizer Jem? Ele está bem?”
“Ele está acordado e falando,” Will disse. O olhar dele deslizou momentaneamente
para Sophie, que havia olhado para baixo, como se para esconder sua expressão. “E agora
ele quer falar com Tessa.”
“Mas...” Tessa olhou em direção a Charlotte, que parecia perturbada. “Ele está bem?
Ele está bem o suficiente?”
A expressão de Will não mudou. “Ele quer falar com você,” ele disse, enunciando
cada palavra muito claramente. “Portanto você irá levantar, e virá comigo, e falará com
ele. Você entende?”
“Will,” Charlotte começou rispidamente, mas Tessa já estava levantando, alisando
suas saias amassadas com as palmas das mãos. Charlotte olhou preocupadamente para
ela, mas não disse mais nada.
Will estava completamente silencioso enquanto eles desciam o corredor, arandelas
de luz de bruxa jogando suas sombras contra as paredes distantes em padrões espichados.
Havia óleo negro assim como sangue respingado em sua camisa branca, sujando sua
bochecha; seu cabelo estava embaraçado, sua mandíbula firme. Ela se perguntou se ele
sequer havia dormido desde o amanhecer, quando ela o havia deixado no sótão. Ela
queria perguntar, mas tudo sobre ele—sua postura, seu silêncio, a posição de seus
ombros—dizia que nenhuma pergunta seria bem-vinda.
Ele abriu a porta do quarto de Jem e a convidou a entrar antes dele. A única luz no
quarto vinha da janela e de um cone de luz de bruxa na mesa de cabeceira. Jem esta
deitado meio sob as cobertas da alta cama entalhada. Ele estava tão branco quanto seu
camisão de dormir, as pálpebras de seus olhos fechados azul-escuras. Encostada ao lado
da cama estava sua bengala com ponta de jade. De algum modo ela havia sido consertada
e estava inteira novamente, brilhando como nova.
Jem virou o rosto em direção ao som da porta, sem abrir os olhos. “Will?”
Will fez algo então que surpreendeu Tessa. Ele forçou seu rosto em um sorriso, e
disse, em um tom animado passável, “Eu a trouxe, como você pediu.”

Os olhos de Jem se abriram; Tessa estava aliviada em ver que eles haviam retornado
à sua cor usual. Ainda assim, eles tinham a aparência de buracos sombreados em seu rosto
pálido.
“Tessa,” ele disse, “eu sinto muitíssimo.”
Tessa olhou para Will—para permissão ou orientação, ela não tinha certeza, mas ele
estava encarando diretamente em frente. Claramente ele não seria de ajuda alguma. Sem
outro olhar para ele, ela se apressou através do quarto e afundou na cadeira ao lado da
cama de Jem. “Jem,” ela disse em uma voz baixa, “você não deveria sentir muito, ou estar
se desculpando para mim. Eu deveria estar me desculpando a você. Você não fez nada de
errado. Eu era o alvo daquelas coisas mecânicas, não você.” Ela afagou o cobertor
gentilmente; querendo tocar na mão dele, mas não ousando. “Se não fosse por mim, você
nunca teria sido ferido.”
“Ferido.” Jem falou a palavra em uma exalação, quase com desgosto. “Eu não fui
ferido.”
“James.” O tom de Will continha uma nota de aviso.
“Ele deve saber, William. Caso contrário ela pensará que tudo foi culpa dela.”
“Você estava doente,” disse Will, sem olhar para Tessa enquanto falava. “Não é
culpa de ninguém.” Ele pausou. “Eu apenas acho que você deveria ser cuidadoso. Você
ainda não está bem. Falar irá apenas lhe cansar.”
“Há coisas mais importantes do que ser cuidadoso.” Jem se esforçou para sentar, os
tendões em seu pescoço retesando enquanto ele se levantava, apoiando sua costa contra os
travesseiros. Quando ele falou de novo, estava ligeiramente sem fôlego. “Se você não
gosta, Will, não precisa ficar.”
Tessa ouviu a porta abrir e fechar atrás dela com um clique macio. Ela sabia sem
olhar que Will havia ido. Ela não pôde evitar—uma leve angústia correu por ela, do jeito
que sempre parecia fazer quando ele deixava um aposento.
Jem suspirou. “Ele é tão teimoso.”
“Ele estava certo,” Tessa disse. “Pelo menos, ele estava certo de que você não
precisa me contar nada que não queira. Eu sei que nada disso foi culpa sua.”
“Culpa não tem nada a ver com isso,” Jem disse. “Eu apenas acho que você poderia
muito bem ter a verdade. Escondê-la raramente ajuda em alguma coisa.” Ele olhou em
direção à porta por um momento, como se suas palavras tivessem sido meio ditas para o
ausente Will. Então ele suspirou de novo, passando a mão por seu cabelo. “Você sabe,” ele
disse, “que durante a maior parte de minha vida eu morei em Xangai com meus pais? Que
eu fui criado no Instituto de lá?”

“Sim,” Tessa disse, imaginando se ele ainda estava um pouco atordoado. “Você me
contou, na ponte. E me disse que um demônio havia matado seus pais.”
“Yanluo,” disse Jem. Havia ódio em sua voz. “O demônio tinha um rancor contra
minha mãe. Ela havia sido responsável pela morte de um número de sua prole demoníaca.
Eles haviam tido um ninho em uma pequena cidade chamada Lijiang, onde haviam estado
se alimentando de crianças locais. Ela queimou o ninho e escapou antes que o demônio a
encontrasse. Yanluo esperou sua vez por anos—Demônios Maiores vivem para sempre—
mas ele nunca esqueceu. Quando eu tinha onze anos, Yanluo encontrou um ponto fraco
nas barreiras que protegiam o Instituto e cavou um túnel até o lado de dentro. O demônio
matou os guardas e fez minha família prisioneira, prendendo-nos todos em cadeiras na
grande sala da casa. Então ele começou a trabalhar.
“Yanluo me torturou em frente aos meus pais,” Jem disse, sua voz vazia. “Muitas e
muitas vezes ele me injetou com um veneno demoníaco que queimava minhas veias e
dilacerava minha mente. Por dois dias eu entrei e saí de alucinações e sonhos. Eu vi o
mundo afogado em rios de sangue, e ouvi os gritos de todos os mortos e moribundos
através da história. Eu vi Londres queimando, e grandes criaturas de metal andando a
passos largos aqui e ali como aranhas enormes—” Ele pegou fôlego. Ele estava muito
pálido, seu camisão de dormir colado em seu peito com suor, mas desconsiderou a
expressão de preocupação de Tessa com um gesto. “A cada poucas horas eu iria voltar à
realidade por tempo o suficiente para ouvir meus pais gritando por mim. Então no
segundo dia, eu voltei e ouvi apenas minha mãe. Meu pai havia sido silenciado. A voz de
minha mãe estava quebrada e rouca, mas ela ainda estava dizendo meu nome. Não meu
nome em inglês, mas o nome que ela havia me dado quando eu nasci: Jian. Eu ainda posso
ouvi-la algumas vezes, chamando por mim.”
As mãos dele estavam apertadas no travesseiro que ele segurava, apertadas o
suficiente que o tecido havia começado a rasgar.
“Jem,” Tessa disse suavemente. “Você pode parar. Você não precisa me contar tudo
agora.”
“Você lembra quando eu disse que Mortmain provavelmente havia feito sua
fortuna contrabandeando ópio?” ele perguntou. “Os britânicos levam ópio para a China às
toneladas. Eles fizeram uma nação de viciados de nós. Em chinês nós o chamamos de
‘lama estrangeira’ ou ‘fumaça negra’. De certos modos, Xangai, minha cidade, é construída
no ópio. Ela não existiria como é sem ele. A cidade é cheia de antros onde homens de olhos
vazios morrem de fome porque tudo o que eles querem é a droga, mais da droga. Eles
darão qualquer coisa por ela. Eu costumava desprezar homens assim. Eu não conseguia
entender como eles eram tão fracos.”
Ele respirou profundamente.

“Quando o Enclave de Xangai ficou preocupado com o silêncio do Instituto e o
invadiu para nos salvar, meus pais já estavam mortos. Eu não me lembro de nada disso.
Eu estava gritando e delirando. Eles me levaram aos Irmãos Silenciosos, que curaram meu
corpo tão bem quanto podiam. Houve uma coisa que eles não podiam consertar, porém.
Eu havia ficado viciado na substância com que o demônio havia me envenenado. Meu
corpo era dependente dela do jeito que o corpo de um viciado em ópio é dependente da
droga. Eles tentaram me separar dela, mas ficar sem ela me causa uma dor terrível. Mesmo
quando eles eram capazes de bloquear a dor com feitiços de feiticeiros, a falta da droga
levava meu corpo à beira da morte. Após semanas de experimentação, eles decidiram que
não havia nada a ser feito: eu não podia viver sem a droga. A droga por si própria
significava uma morte lenta, mas me tirar dela iria significar uma muito rápida.”
“Semanas de experimentação?” Tessa ecoou. “Quando você tinha onze anos de
idade? Isso parece cruel.”
“Bondade—bondade de verdade—tem sua própria forma de crueldade,” disse Jem,
olhando através dela. “Ali, ao seu lado na mesinha de cabeceira, há uma caixa. Você pode
me dá-la?”
Tessa levantou a caixa. Era feita de prata, sua tampa ornada com uma cena
esmaltada que retratava uma mulher magra em robes brancos, descalça, jogando água de
um vaso em um riacho. “Quem é ela?” ela perguntou, dando a caixa para Jem.
“Kwan Yin. A deusa da piedade e compaixão. Dizem que ela ouve cada oração e
cada choro de sofrimento e faz o que pode para responder. Eu pensei que talvez, se eu
mantivesse a causa do meu sofrimento em uma caixa com a imagem dela, isso poderia
fazer o sofrimento um pouco menor.” Ele abriu o trinco da caixa, e a tampa se abriu.
Dentro havia uma grossa camada do que Tessa primeiramente pensou serem cinzas, mas a
cor era muito brilhante. Era uma camada de grosso pó prateado quase do mesmo prateado
brilhante dos olhos de Jem.
“Esta é a droga,” ele disse. “Ela vem de um negociante feiticeiro que nós
conhecemos em Limehouse. Eu tomo um pouco dela todos os dias. É o motivo de eu
parecer tão—tão fantasmagórico; é o que drena a cor dos meus olhos e cabelo, até mesmo
da minha pele. Eu me pergunto algumas vezes se meus pais iriam até mesmo me
reconhecer...” A voz dele desapareceu. “Se eu tenho que lutar, eu tomo mais. Tomar
menos me enfraquece. Eu não havia tomado nada hoje antes de nós sairmos para a ponte.
É por isso que eu desmaiei. Não por causa das criaturas mecânicas. Por causa da droga.
Sem nada dela em meu sistema, a luta, a corrida, foi demais para mim. Meu corpo
começou a se alimentar de si mesmo, e eu desmaiei.” Ele fechou a caixa com um estalo, e a
entregou de volta a Tessa. “Aqui. Ponha-a de volta onde estava.”
“Você não precisa de um pouco?”
“Não. Tomei o suficiente hoje à noite.”

“Você disse que a droga significava uma morte lenta,” Tessa disse. “Então você
quer dizer que a droga está lhe matando?”
Jem assentiu, mechas de cabelo brilhante caindo por sobre sua testa.
Tessa sentiu seu coração saltar uma batida dolorosa. “E quando você luta, você
toma mais dela? Então por que você não para de lutar? Will e os outros—”
“Iriam entender,” Jem terminou por ela. “Eu sei que iriam. Mas há mais na vida do
que não morrer. Eu sou um Caçador das Sombras. É o que eu sou, não apenas o que faço.
Eu não posso viver sem isso.”
“Você quer dizer que não quer.”
Will, Tessa pensou, teria ficado com raiva se ela tivesse dito isso a ele, mas Jem
apenas olhou intensamente para ela. “Eu quero dizer que não quero. Por um longo tempo
eu procurei por uma cura, mas eventualmente parei, e pedi que Will e os outros parassem
também. Eu não sou essa droga, ou seu poder sobre mim. Acredito que sou melhor que
isso. Que minha vida é sobre mais do que isso, como e quando ela possa acabar.”
“Bem, eu não quero que você morra,” Tessa disse. “Eu não sei por que sinto isso tão
fortemente—acabei de conhecer você—mas não quero que você morra.”
“E eu confio em você,” ele disse. “Eu não sei por que—acabei de conhecer você—
mas eu confio.” As mãos dele não estavam mais agarrando o travesseiro, e sim
descansando espalmadas e paradas na superfície franjada. Elas eram mãos magras, as
articulações um pouco grandes demais para o resto delas, os dedos afunilados e delgados,
uma grossa cicatriz branca correndo pela parte de trás de seu polegar direito. Tessa queria
deslizar sua mão por cima da dele, queria segurar a dele fortemente e confortá-lo—
“Bem, isso tudo é muito tocante.” Era Will, é claro, tendo entrado silenciosamente
no quarto. Ele havia trocado sua camisa ensanguentada, e parecia ter se lavado
apressadamente. Seu cabelo parecia úmido, seu rosto esfregado, embora os crescentes de
suas unhas ainda estivessem negros de sujeira e óleo. Ele elhava de Jem para Tessa, seu
rosto cuidadosamente inexpressivo. “Vejo que você contou a ela.”
“Contei.” Não havia nada desafiador no tom de Jem; ele nunca olhava para Will
com nada além de afeição, Tessa pensou, não importava o quão provocador Will fosse.
“Está feito. Não há mais necessidade de você se incomodar com isso.”
“Eu discordo,” disse Will. Ele deu a Tessa um olhar aguçado. Ela se lembrou do que
ele disse sobre não cansar Jem, e levantou da cadeira.
Jem deu a ela um olhar saudoso. “Você precisa ir? Eu estava realmente esperando
que você ficasse e fosse um anjo auxiliador, mas se você precisa ir, você precisa.”

“Eu ficarei,” Will disse um pouco atravessadamente, e se jogou na poltrona que
Tessa havia acabado de esvaziar. “Eu posso ministrar angelicamente.”
“Não muito convincentemente. E você não é tão bonito de se olhar quanto Tessa,”
Jem disse, fechando os olhos enquanto se encostava contra o travesseiro.
“Que rude. Muitos que deitaram o olhar sobre mim compararam a experiência a
olhar a radiância do sol.”
Jem ainda tinha os olhos fechados. “Se eles queriam dizer que isso lhes dá dor de
cabeça, eles não estão errados.”
“Além do mais,” Will disse, seus olhos em Tessa, “dificilmente é justo manter Tessa
longe de seu irmão. Ela não teve uma chance de vê-lo desde esta manhã.”
“Isto é verdade.” Os olhos de Jem se abriram por um momento; eles estavam preto-
prateados, escuros de sono. “Minhas desculpas, Tessa. Eu quase esqueci.”
Tessa não disse nada. Ela estava ocupada demais estando horrorizada que Jem não
tivesse sido o único que quase esqueceu seu irmão. Está tudo bem, ela quis dizer, mas os
olhos de Jem estavam fechados de novo, e ela pensou que talvez ele estivesse adormecido.
Enquanto ela olhava, Will se inclinou para frente e puxou as cobertas, cobrindo o peito de
Jem.
Tessa se virou e saiu tão silenciosamente quanto podia.
A luz nos corredores estava baixa, ou talvez apenas tivesse estado mais claro no
quarto de Jem. Tessa ficou parada um instante, piscando, antes que seus olhos se
ajustassem. Ela se assustou. “Sophie?”
A outra garota era uma série de borrões pálidos na escuridão—seu rosto pálido, e a
touca branca pendurada em sua mão por uma de suas fitas.
“Sophie?” Tessa disse. “Há algo errado?”
“Ele está bem?” Sophie exigiu, um estranho pequeno nó em sua voz. “Ele irá ficar
bem?”
Surpresa demais para entender o sentido de sua pergunta, Tessa disse, “Quem?”
Sophie a encarou, seus olhos mudamente trágicos. “Jem.”
Não Mestre Jem, ou Sr. Carstairs. Jem. Tessa olhou para ela em absoluto espanto,
subitamente lembrando. Está tudo bem amar alguém que não lhe ama de volta, desde que eles
valham a pena você amá-los. Desde que eles mereçam.
É claro, Tessa pensou. Sou tão estúpida. É por Jem que ela está apaixonada.

“Ele está bem,” ela disse tão gentilmente quanto pôde. “Está descansando, mas ele
estava sentando e falando. Ele estará bem recuperado logo, tenho certeza. Talvez se você
quisesse vê-lo—”
“Não!” Sophie exclamou de uma vez. “Não, isso não seria direito ou apropriado.”
Os olhos dela estavam brilhando. “Sou muito agradecida a você, senhorita. Eu—”
Ela se virou então, e se apressou pelo corridor. Tessa a observou, perturbada e
perplexa. Como ela não pôde ter visto antes? Como ela pôde ter sido tão cega? Quão
estranho é ter o poder de literalmente se transformar em outras pessoas, e ainda assim ser
tão incapaz de se colocar no lugar delas.
* * *
A porta para o quarto de Nate estava levemente aberta; Tessa a terminou de
empurrar tão quietamente quanto pôde, e deu uma olhada lá dentro.
Seu irmão era um amontoado de cobertores. A luz da vela na mesa de cabeceira
iluminava o cabelo claro espalhado pelo travesseiro dele. Seus olhos estavam fechados,
seu peito subindo e descendo regularmente.
Na poltrona ao lado da cama sentava Jessamine. Ela, também, estava adormecida.
Seu cabelo loiro estava saindo de seu chignon cuidadosamente arrumado, os cachos
caindo em seus ombros. Alguém havia jogado um pesado cobertor de lã sobre ela, e as
mãos dela o agarravam, levantando-o até seu peito. Ela parecia mais nova do que Tessa
jamais a tinha visto parecer, e vulnerável. Não havia nada sobre ela da garota que havia
abatido o fada no parque.
Era tão estranho, Tessa pensou, o que trazia a ternura nas pessoas. Nunca era o que
você teria esperado. Tão quietamente quanto pôde, ela se virou, fechando a porta atrás
dela.

Tessa dormiu irregularmente naquela noite, acordando frequentemente em meio a
sonhos de criaturas mecânicas vindo em direção a ela, levantado suas mãos espigadas com
juntas de metal para pegar e rasgar sua pele. Eventualmente aquilo se dissolveu em um
sonho com Jem, que jazia adormecido em uma cama enquanto pó prateado chovia sobre
ele, queimando onde atingia o cobertor sobre o qual ele estava deitado, até que
eventualmente a cama inteira queimava, e Jem dormia pacificamente, inconsciente dos
gritos de aviso de Tessa.
Finalmente ela sonhou com Will, de pé no ápice do domo da Catedral de São Paulo,
sozinho sob a luz de uma lua muito, muito branca. Ele vestia um fraque negro, e as Marcas
em sua pele estavam à mostra em seu pescoço e mãos sob o brilho do céu. Ele olhava

abaixo para Londres como um anjo mau comprometido em salvar a cidade de seus
próprios piores pesadelos, enquanto debaixo dele Londres dormia, indiferente e ignorante.
Tessa foi arrancada de seu sonho por uma voz em seu ouvido, e uma mão
vigorosamente sacudindo seu ombro. “Senhorita!” Era Sophie, sua voz aguda. “Srta. Gray,
você simplesmente precisa acordar. É seu irmão.”
Tessa se levantou de um pulo, espalhando travesseiros. Luz da tarde fluía através
das janelas do quarto, iluminando o aposento—e o rosto ansioso de Sophie. “Nate está
acordado? Ele está bem?”
“Sim—quero dizer, não. Quero dizer, eu não sei, senhorita.” Havia um pequeno nó
na voz de Sophie. “Você vê, ele desapareceu.”


16
O Feitiço de Ligação


E uma, ou duas vezes, lançar os dados
É um jogo próprio de cavalheiros,
Mas não vence quem joga com o Pecado
Na secreta Casa da Vergonha
—Oscar Wilde, “A Balada do Cárcere de Reading”


“Jessamine! Jessamine, o que está acontecendo? Onde está Nate?”
Jessamine, que estava de pé ao lado da porta do quarto de Nate, girou para encarar
Tessa enquanto ela se apressava pelo corredor. Os olhos de Jessamine estavam vermelhos,
a expressão furiosa. Cachos soltos de cabelo loiro saíam do nó geralmente bem arranjado
em sua nuca. “Eu não sei,” ela respondeu com brusquidão. “Adormeci na cadeira ao lado
da cama, e quando acordei ele tinha desaparecido—desapareceu simplesmente!” Ela
semicerrou os olhos. “Amável, você está com um aspecto medonho.”
Tessa baixou os olhos para si mesma. Ela não se tinha dado ao trabalho de vestir
uma crinolina66, ou sequer calçar sapatos. Ela simplesmente tinha pegado um vestido e
enfiado os pés nus em uns chinelos. O seu cabelo estava se espalhando pelos ombros, e ela
imaginou que provavelmente parecia a louca que o Sr. Rochester mantinha no sótão em
Jane Eyre67. “Bem, Nate não pode ter ido muito longe, não tão doente como está,” Tessa
disse. “Não há ninguém procurando por ele?”
66 Armações que as mulheres usavam por debaixo do vestido, para fazer volume.
67 Romance de 1847 da escritora inglesa Charlotte Brontë.
Jessamine atirou as mãos ao ar. “Todos estão à procura dele. Will, Charlotte, Henry,
Thomas, até mesmo Agatha. Suponho que você não quer que arranquemos o pobre Jem da
cama e o façamos participar do grupo de busca também?”
Tessa abanou a cabeça. “Honestamente, Jessamine…” Ela se interrompeu, se
virando. “Bem, vou procurar também. Você pode ficar aqui, se quiser.”

“Quero mesmo.” Jessamine sacudiu a cabeça enquanto Tessa girava e se afastava
pelo corredor, a mente em turbilhão. Onde diabos Nate poderia ter ido? Ele teria estado
com febre, delirando? Ele teria saído da cama sem saber onde estava e teria ido
cambaleando à procura dela? Aquele pensamento fez seu coração apertar. O Instituto era
um labirinto desconcertante, ela pensou enquanto dobrava mais outra esquina para mais
outro corredor forrado de tapeçarias. Se ela mal conseguia encontrar o seu caminho
mesmo agora, como Nate poderia—
“Srta. Gray?”
Tessa virou e viu Thomas saindo de uma das portas ao longo do corredor. Ele
estava em mangas de camisa, seu cabelo desgrenhado como de costume, os olhos
castanhos muito sérios. Ela se sentiu imobilizar. Oh, Deus, são más notícias. “Sim?”
“Eu encontrei o seu irmão,” disse Thomas, para espanto de Tessa.
“Você encontrou? Mas onde ele estava?”
“Na sala de estar. Conseguiu um lugarzinho para se esconder, atrás das cortinas,
isso foi.” Thomas falava com rapidez, parecendo embaraçado. “Mal me viu, perdeu a
cabeça. Começou a gritar e a berrar. Ele tentou passar correndo por mim e eu quase que
tive de lhe dar uma para mantê-lo quieto—” Perante o olhar de incompreensão de Tessa,
Thomas pausou e pigarreou. “Ou seja, receio que possa tê-lo assustado, senhorita.”
Tessa levou a mão à boca. “Oh, nossa. Mas ele está bem?”
Parecia que Thomas não sabia muito bem para onde olhar. Ele estava
envergonhado por ter encontrado Nate se encolhendo atrás das cortinas de Charlotte,
pensou Tessa, e ela sentiu uma onde de indignação por conta de Nate. Seu irmão não era
um Caçador das Sombras; ele não havia crescido matando coisas e arriscando sua vida.
Claro que ele estava aterrorizado. E provavelmente estava delirante de febre, ainda por
cima. “É melhor eu entrar e vê-lo. Só eu, você compreende? Creio que ele precisa ver um
rosto conhecido.”
Thomas pareceu aliviado. “Sim, senhorita. E eu esperarei aqui fora, por agora. Só
me deixe saber quando quiser que eu chame os outros.”
Tessa assentiu e passou por Thomas para empurrar a porta. A sala estava escura, a
única iluminação sendo a luz cinzenta da tarde que se derramava pelas janelas altas. Nas
sombras, os sofás e poltronas espalhados pela sala pareciam bestas agachadas. Nate estava
sentado numa das poltronas maiores junto à lareira. Ele tinha encontrado a camisa e as
calças salpicadas de sangue que estava usando na casa de de Quincey, e as vestira. Seus
pés estavam descalços. Sentava-se com os cotovelos nos joelhos, o rosto entre as mãos. Ele
parecia miserável.
“Nate?” Tessa disse suavemente.

Nisso ele ergueu a cabeça—e saltou para ficar de pé, uma expressão de incrédula
felicidade no rosto. “Tessie!”
Com um pequeno grito, Tessa correu pela sala e atirou os braços ao redor do irmão,
abraçando-o ferozmente. Ouviu-o soltar um pequeno gemido de dor, mas os seus braços a
rodearam também, e durante um momento, abraçando ele, Tessa estava de volta à
pequena cozinha de sua tia em Nova York, com o aroma de coisas cozinhando ao seu
roder e o riso suave da tia enquanto ela ralhava com eles por fazerem tanto barulho.
Nate foi o primeiro a sair do abraço, e olhou para ela. “Deus, Tessie, você parece tão
diferente…”
Um calafrio a percorreu. “O que você quer dizer com isso?”
Ele deu uma palmadinha na bochecha dela, quase distraidamente. “Mais velha,” ele
disse. “Mais magra. Você era uma menininha de cara redonda quando saí de Nova York,
não era? Ou assim é apenas como me lembro de você?”
Tessa tranquilizou o irmão afirmando que ela era ainda a mesma irmãzinha que ele
sempre conheceu, mas sua mente estava apenas parcialmente ocupada com a pergunta
dele. Ela não podia evitar encará-lo com preocupação; ele já não parecia tão acinzentado
como tivera, mas ainda estava pálido e machucados se destacavam em azul, preto e
amarelo no seu rosto e pescoço. “Nate…”
“Não é tão ruim quanto parece,” ele disse, detectando a ansiedade no rosto dela.
“É sim. Você devia estar na cama, descansando. O que você está fazendo aqui?”
“Estava tentando encontrar você. Eu sabia que você estava aqui. Eu a vi, antes
daquele bastardo careca sem olhos me apanhar. Calculei que tinham aprisionado você
também. Ia tentar nos libertar.”
“Aprisionado? Nate, não, não é nada disso.” Ela abanou a cabeça. “Nós estamos
seguros aqui.”
Nate semicerrou os olhos para ela. “Este é o Instituto, não é? Fui avisado sobre este
lugar. De Quincey disse que era dirigido por loucos, monstros que chamavam a si
próprios Nefilins. Ele disse que eles guardavam as almas condenadas de homens
encerradas em algum tipo de caixa, aos gritos—”
“O quê, o Pyxis? Ele encerra pedaços de energia demoníaca, Nate, não almas de
homens! É perfeitamente inofensivo. Mostro a você mais tarde, na sala de armas, se você
não acredita.”
Nate não pareceu menos sombrio. “Ele disse que se os Nefilins pusessem as mãos
em mim, me despedaçariam, pedaço a pedaço, por ter infringido as Leis deles.”

Um calafrio subiu pela espinha de Tessa; ela se afastou do irmão e viu que uma das
janelas da sala estava aberta, as cortinas flutuando na brisa. Então o calafrio fora mais do
que apenas nervosismo. “Você abriu a janela? Está tão frio aqui, Nate.”
Nate abanou a cabeça. “Ela estava aberta quando entrei.”
Sacudindo a cabeça, Tessa atravessou a sala e puxou a janela para baixo. “Ainda vai
ser a sua morte—”
“Não interessa a minha morte,” retorquiu Nate irritado. “E os Caçadores das
Sombras? Você está dizendo que não te mantiveram aprisionada aqui?”
“Não.” Tessa se afastou da janela. “Eles não mantiveram. Eles são pessoas
estranhas, mas os Caçadores das Sombras têm sido gentis comigo. Eu quis ficar aqui. Eles
foram generosos o bastante para me deixar ficar.”
Nate abanou a cabeça. “Eu não entendo.”
Tessa sentiu uma centelha de raiva, o que a surpreendeu; ela a mandou embora. A
culpa não era de Nate. Havia tanto que ele não sabia. “Para onde mais eu iria, Nate?” ela
perguntou, cruzando a sala até ele e pegando no seu braço. Ela o levou de volta à poltrona.
“Sente. Você está se cansando.”
Nate sentou, obediente, e a fitou. Havia uma expressão distante em seus olhos.
Tessa conhecia aquele olhar. Significava que ele estava planejando, tramando algum plano
maluco, sonhando um sonho ridículo. “Ainda podemos fugir deste lugar,” ele disse. “Ir
até Liverpool, apanhar um vapor. Voltar a Nova York.”
“E fazer o quê?”perguntou Tessa com toda a suavidade possível. “Não há nada lá
para nós. Não com Titia morta. Tive de vender todas as nossas coisas para pagar o funeral.
O apartamento se foi. Não havia dinheiro para o aluguel. Não há nenhum lugar para nós
em Nova York, Nate.”
“Nós arranjaremos um lugar. Uma nova vida.”
Tessa fitou o irmão com tristeza. Havia dor em vê-lo assim, o rosto cheio de súplica
desesperada, contusões negras desabrochando em suas bochechas como flores feias, o
cabelo loiro ainda colado em certos lugares com sangue. Nate não era como as outras
pessoas, Tia Harriet sempre dissera. Ele tinha uma encantadora inocência nele que tinha
de ser protegida a todo o custo.
E Tessa havia tentado. Ela e a tia tinham escondido de Nate as suas próprias
fraquezas, as consequências das suas falhas e defeitos. Nunca lhe contando o trabalho que
Tia Harriet tivera de fazer para conseguir o dinheiro que ele havia perdido no jogo, as
provocações que Tessa aguentara de outras crianças, chamando o irmão de bêbedo e
vagabundo. Elas tinham escondido estas coisas para não o magoarem. Mas ele se havia se

magoado de qualquer modo, pensou Tessa. Talvez Jem tivesse razão. Talvez a verdade
fosse sempre melhor.
Sentando no divã em frente ao irmão, ela o olhou com firmeza. “Não pode ser
assim, Nate. Ainda não. Esta confusão em que estamos metidos agora nos seguirá mesmo
que fujamos. E se fugirmos, estaremos sozinhos quando ela finalmente nos apanhar. Não
haverá ninguém para nos ajudar ou proteger. Precisamos do Instituto, Nate. Precisamos
dos Nefilins.”
Os olhos azuis de Nate estavam confusos. “Acho que sim,” ele disse, e a frase
atingiu Tessa, que não ouviu senão vozes britânicas por quase dois meses, como tão
americana que ela sentiu saudades de casa. “É por causa de mim que você está aqui. De
Quincey me torturou. Me obrigou a escrever aquelas cartas, mandar a você aquela
passagem. Ele me disse que não te faria mal quando a tivesse, mas então nunca me deixou
te ver e eu pensei—eu pensei—” Ele levantou a cabeça e olhou para ela, apático. “Você
deveria me odiar.”
A voz de Tessa era firme. “Eu nunca poderia odiar você. Você é o meu irmão.
Sangue do meu sangue.”
“Você acha que, quando tudo isto estiver terminado, nós podemos voltar para
casa?” perguntou Nate. “Esquecer que tudo isto aconteceu? Viver vidas normais?”
Viver vidas normais. As palavras evocaram uma imagem de Nate e ela em algum
pequeno e ensolarado apartamento. Nate podia arranjar outro emprego, e à noite, ela
podia cozinhar e limpar a casa para ele, enquanto nos fins-de-semana eles poderiam
passear no parque, ou pegar o trem para Coney Island e andar no carrossel, ou subir no
topo da Iron Tower e assistir os fogos de artifício explodir à noite, por cima do Manhattan
Beach Hotel. Haveria luz do sol de verdade, não esta versão cinzenta e chuvosa de verão, e
Tessa poderia ser uma menina comum, com a cabeça num livro e os pés firmemente
plantados no pavimento familiar de Nova York.
Mas quando ela tentou manter esta imagem mental na sua cabeça, a visão pareceu
desmoronar e se desprender dela, como uma teia de aranha quando se tenta erguer ela
inteira nas mãos. Ela viu o rosto de Will, o de Jem, o de Charlotte e até o de Magnus
quando disse, Pobre coitada. Agora que você sabe a verdade, já não pode voltar atrás.
“Mas nós não somos normais,” disse Tessa. “Eu não sou normal. E você sabe disso,
Nate.”
Ele olhou para o chão. “Eu sei.” Ele fez um pequeno aceno desamparado com a
mão. “Então é verdade. Você é o que o de Quincey disse que era. Mágica. Ele disse que
você tinha o poder de mudar de forma, Tessa, de se tornar qualquer coisa que quisesse
ser.”

“Você acreditou nele? É verdade—bem, quase verdade—mas eu própria mal
acreditei ao princípio. É tão estranho—”
“Eu já vi coisas mais estranhas.” Sua voz era vazia. “Meu Deus, deveria ter sido
eu.”
Tessa franziu a testa. “O que você quer dizer?”
Mas antes que ele pudesse responder, a porta se abriu de rompante. “Srta. Gray.”
Era Thomas, com ar de quem pede desculpa. “Srta. Gray, Mestre Will está—”
“Mestre Will está bem aqui.” Era Will, se curvando com agilidade por detrás de
Thomas, apesar da corpulência do outro rapaz. Ele ainda estava com as roupas que vestira
na noite anterior, e elas pareciam amarrotadas. Tessa se perguntou se ele havia dormido
na cadeira do quarto de Jem. Haviam sombras cinza-azuladas por baixo de seus olhos, e
ele parecia cansado, embora os seus olhos brilhassem—com alívio? Divertimento? Tessa
não podia dizer—quando o seu olhar caiu sobre Nate.
“O nosso desaparecido, enfim encontrado,” ele disse. “Thomas diz que você estava
escondido atrás das cortinas?”
Nate olhou apático para Will. “Quem é você?”
Rapidamente, Tessa fez as apresentações, embora nenhum dos rapazes parecesse
assim tão feliz por conhecer o outro. Nate ainda parecia prestes a morrer, e Will estava
observando Nate como ele se fosse uma nova descoberta científica, e uma não muito
atrativa.
“Então você é um Caçador das Sombras,” Nate disse. “De Quincey me contou que
vocês eram monstros.”
“Isso foi antes ou depois de ele ter tentado comer você?” inquiriu Will.
Tessa se ergueu com rapidez. “Will. Posso falar com você no corredor por um
momento, por favor?”
Se ela havia esperado resistência, não a teve. Após um último olhar hostil a Nate,
Will assentiu e saiu com ela em silêncio para o corredor, fechando a porta da sala atrás
dele.
A iluminação no corredor sem janelas era variável, a luz de bruxa lançando
discretas poças brilhantes de luz que não se tocavam. Will e Tessa se encontravam nas
sombras entre duas das poças, olhando um para o outro—desconfiados, pensou Tessa,
como gatos furiosos se circulando em uma viela.
Foi Will quem quebrou o silêncio. “Muito bem. Você me tem sozinho no corredor–”

“Sim, sim,” retorquiu Tessa impacientemente, “e milhares de mulheres por toda a
Inglaterra pagariam muito pelo privilégio de tal oportunidade. Podemos pôr de lado a
exibição de sua vivacidade de espírito por um momento? Isto é importante.”
“Você quer que eu me desculpe, não é?” disse Will. “Pelo que aconteceu no sótão?”
Tessa, apanhada desprevenida, pestanejou. “No sótão?”
“Você quer que eu diga que lamento ter beijado você.”
Ouvindo as palavras, a recordação veio novamente a Tessa com inesperada
clareza—os dedos de Will no seu cabelo, o toque da sua mão na luva dela, a sua boca na
dela. Ela se sentiu corando e esperou furiosamente que isso não fosse visível no escuro. “O
quê—não. Não!”
“Então você não quer que eu lamente,” replicou Will. Ele estava sorrindo muito
levemente agora, o tipo de sorriso que uma criança pequena oferece ao castelo que acabou
de construir com cubos, antes de o destruir com um mover de braço.
“Não me importo que lamente ou não,” disse Tessa. “Não era sobre isso que queria
falar com você. Eu queria lhe dizer para ser gentil com o meu irmão. Ele passou por uma
terrível provação. Ele não precisa ser interrogado como alguma espécie de criminoso.”
Will respondeu mais quietamente do que Tessa teria imaginado. “Eu compreendo
isso. Mas se ele estiver escondendo alguma coisa—”
“Toda mundo esconde coisas!” Tessa explodiu, surpreendendo a si própria. “Há
coisas das quais eu sei que ele se sente envergonhado, mas isso não significa que elas
precisam importar a você. Não é como se você contasse tudo a todos, não é?”
Will pareceu desconfiado. “De que está falando?”
E os seus pais, Will? Por que você recusou vê-los? Por que não você não tem outro lugar
para ir senão aqui? E por que, no sótão, você me mandou embora? Mas Tessa não disse nenhuma
dessas coisas. Ao invés disso, ela disse, “E Jem? Por que você não me disse que ele estava
doente como está?”
“Jem?” A surpresa de Will parecia verdadeira. “Ele não queria que eu contasse.
Considera isso assunto dele. E é. Você deve se lembrar, eu nem sequer era a favor de ele te
contar. Ele pensou que devia uma explicação a você, mas não devia. Jem não deve nada a
ninguém. O que aconteceu com ele não foi culpa dele, e ainda assim ele carrega o peso de
tudo aquilo e se sente envergonhado—”
“Ele não tem nada de que se envergonhar.”
“Você pode pensar assim. Outros não vêem qualquer diferença entre a doença dele e
um vício, e o desprezam por ser fraco. Como se ele pudesse apenas deixar de tomar a
droga se tivesse vontade suficiente.” Will soava surpreendentemente amargo. “Disseram

isso a ele, por vezes na cara dele. Eu não queria que ele tivesse também de ouvir você
dizendo isso.”
“Eu nunca teria dito isso.”
“Como eu poderia adivinhar o que você iria dizer?” Will disse. “Eu não conheço
você de verdade, Tessa, conheço? Não mais do que você me conhece.”
“Você não quer que ninguém conheça você,” cortou Tessa. “E muito bem, não vou
tentar. Mas não finja que Jem é exatamente como você. Talvez ele preferisse que as pessoas
conhecessem a verdade de quem ele é.”
“Não,” disse Will, os olhos azuis escurecendo. “Não pense que conhece Jem melhor
do que eu.”
“Se você se preocupa tanto com ele, por que não está fazendo nada para ajudá-lo?
Por que não procurar uma cura?”
“Pensa que não procuramos? Pensa que Charlotte não procurou, que Henry não
procurou, que não contratámos feiticeiros, pagámos informações, trocamos favores? Você
imagina que a morte de Jem é apenas uma coisa que nós todos aceitámos sem lutar contra
isso?”
“Jem me contou que pediu a todos para pararem de procurar,” retorquiu Tessa,
calma frente à fúria de Will, “e que vocês pararam. Não foi?”
“Ele te disse isso, não disse?”
“Vocês pararam?”
“Não há nada para descobrir, Tessa. Não há cura.”
“Você não sabe disso. Vocês podiam continuar procurando e não dizer a ele que
estavam procurando. Pode haver alguma coisa. Mesmo a menor das hipóteses—”
Will levantou as sobrancelhas. A luz tremeluzinte do corredor aprofundava as
sombras sob seus olhos, os ossso angulares das maças do rosto. “Você acha que devemos
desconsiderar os desejos dele?”
“Eu acho que vocês deveriam fazer tudo o que puderem, mesmo que isso signifique
que vocês tenham de mentir para ele. Eu acho que não compreendo sua aceitação da
morte dele.”
“E eu acho que você não compreende que por vezes a única opção é entre a
aceitação e a loucura.”
Atrás deles, no corredor, alguém pigarreou. “Então, o que se passa aqui?” uma voz
familiar perguntou. Ambos Tessa e Will haviam estado tão absortos em sua conversa que

não haviam ouvido Jem se aproximar. Will deu um pulinho culpado antes de virar para
olhar seu amigo, que estava observando-os com calmo interesse. Jem estava
completamente vestido mas parecia como se tivesse acabdo de acordar de um sono febril,
seu cabelo amassado e suas bochechas queimando com cor.
Will pareceu surpreso, e não inteiramente satisfeito, em vê-lo. “O que você está
fazendo fora da cama?”
“Eu encontrei Charlotte no corredor. Ela disse que todos nós estávamos nos
reunindo sa sala de estar para falar com o irmão de Tessa.” O tom de Jem era suave, e era
impossível prever por sua expressão o quanto da conversa de Will e Tessa ele havia
ouvido. “Eu estou bem o suficiente para ouvir, pelo menos.”
“Oh, bom, vocês estão todos aqui.” Era Charlotte, se apressando pelo corredor.
Atrás dela caminhava Henry, e em cada lado dele, Jessamine e Sophie. Jessie havia se
trocado para um de seus vestidos mais bonitos, Tessa observou, um de musselina azul
transparente, e ela estava carregando um cobertor dobrado. Sophie, ao lado dela, segurava
uma bandeja com chá e sanduíches.
“Isso é para Nate?” Tessa perguntou, surpresa. “O chá, e os cobertores?”
Sophie assentiu. “A Sra. Brandwell pensou que ele provavelmente estaria com
fome—”
“E eu pensei que ele poderia estar com frio. Ele estava tremendo tanto noite
passada,” Jessamine interviu avidamente. “Devemos levar essas coisas para ele, então?”
Charlotte olhou para Tessa para sua aprovação, o que a desarmou. Charlotte seria
amável com Nate; ela não podia evitar. “Sim. Ele está esperando por vocês.”
“Obrigada, Tessa,” Charlotte disse suavemente, e então ela empurrou a porta da
sala de estar e entrou, seguida pelos outros. Quando Tessa se moveu para ir atrás deles,
ela sentiu uma mão em seu braço, um toque tão leve que ela quase poderia não ter notado.
Era Jem. “Espere,” ele disse. “Apenas um momento.”
Ela se virou para olhar para ele. Pela porta aberta ela podia ouvir um murmúrio de
vozes—o barítono amigável de Henry, o falsete ansioso de Jessamine aumentando quando
ela disse o nome de Nate. “O que é?”
Ele hesitou. A mão dele no braço dela estava fria; seus dedos pareciam como finas
hastes de vidro contra a pele dela. Ela se perguntou se a pele sobre os ossos das bochechas
dele, onde ele estava corado e febril, seria mais quente ao toque.
“Mas minha irmã—” A voz de Nate flutuou no corredor, soando ansiosa. “Ela irá se
juntar a nós? Onde ela está?”

“Esqueça. Não é nada.” Com um sorriso tranquilizador, Jem deixou a mão cair.
Tessa imaginou, mas se virou e foi para a sala de estar, Jem atrás dela.
Sophie estava ajoelhada perto da grade, atiçando o fogo; Nate ainda estava na
poltrona, onde ele sentava com o cobertor de Jessamine jogado sobre seu colo. Jessamine,
ereta em um banco, estava sorrindo orgulhosamente. Henry e Charlotte sentavam no sofá
oposto a Nate—Charlotte claramente explodindo de curiosidade—e Will, como sempre,
estava segurando a parede mais próxima encostando-se a ela e parecendo irritado e
divertido ao mesmo tempo.
Quando Jem foi se juntar a Will, Tessa fixou sua atenção em seu irmão. Um pouco
da tensão havia saído dele quando ela havia voltado à sala, mas ele ainda parecia
miserável. Ele estava beliscando o cobertor de Jessamine com as postas dos dedos. Ela
cruzou a sala e afundou no divã aos pés dele, resistindo ao impulso de bagunçar o cabelo
dele ou dar um tapinha em seu ombro. Ela podia sentir todos os olhos da sala nela. Todos
estavam observando ela e seu irmão, e ela poderia ter ouvido um alfinete cair.
“Nate,” ela disse suavemente. “Acredito que todos já se apresentaram?”
Nate, ainda beliscando o cobertor, assentiu.
“Sr. Gray,” disse Charlotte, “nós já falamos com o Sr. Mortmain. Ele nos contou
muito sobre você. Sobre sua predileção pelo Submundo. E jogos de azar.”
“Charlotte,” Tessa protestou.
Nate falou pesamente. “É verdade, Tessie.”
“Ninguém culpa seu irmão pelo que aconteceu, Tessa.” Charlotte fez sua voz muito
gentil quando se voltou novamente para Nate. “Mortmain diz que você já sabia que ele
estava envolvido em práticas ocultas quando chegou a Londres. Como você soube que ele
era um membro do Clube Pandemônio?”
Nate hesitou.
“Sr. Gray, nós simplesmente precisamos entender o que aconteceu com você. O
interesse de de Quincey em você—eu sei que você não está bem, e nós não temos desejo de
interrogá-lo cruelmente, mas se você pudesse nos oferecer mesmo pouca informação, ela
pode ser da mais inestimável ajuda—”
“Foram as noções de costura de Tia Harriet,” Nate disse em uma voz baixa.
Tessa piscou. “Foram o quê?”
Nate continuou, em uma voz baixa. “Nossa tia Harriet sempre manteve o porta-
joias velho de mamãe no criado-mudo ao lado de sua cama. Ela disse que guardava noções
de costura nele, mas eu—” Nate inspirou profundamente, olhando para Tessa enquanto
falava. “Eu estava devendo. Eu havia feito algumas apostas imprudentes, perdido algum

dinheiro, e estava em apuros. Não queria que você ou Titia soubessem. Eu lembrei que
havia um bracelete de ouro que Mamãe costumava usar quando estava viva. Botei na
cabeça que ele ainda estava naquele porta-joias e que Tia Harriet era teimosa demais para
vendê-lo. Você sabe como ela é—como ela era. De qualquer forma, eu não podia me livrar
da ideia. Eu sabia que, se empenhasse o bracelete, podia conseguir o dinheiro para pagar
minhas dívidas. Então um dia, quando você e Titia estavam fora, eu peguei a caixa e
procurei nela.
“É claro que o bracelete não estava lá. Mas eu encontrei um fundo falso na caixa.
Não havia nada lá de algum valor, apenas um monte de papéis velhos dobrados. Eu os
apanhei quando ouvi você subindo a escada, e os trouxe para o meu quarto.”
Nate pausou. Todos os olhos estavam nele. Após um momento, Tessa, não mais
capaz de segurar suas perguntas, disse, “E?”
“Eram páginas do diário de Mamãe,” Nate disse. “Arrancadas de seu volume
original, com várias faltando, mas o suficiente para eu juntar uma história estranha.
“Ela começava quando nossos pais estavam vivendo em Londres. Papai estava
longe frequentemente, trabalhando no escritório de Mortmain nas docas, mas mamãe
tinha Tia Harriet para lhe manter companhia, e eu para lhe manter ocupada. Eu havia
acabado de nascer. Isto é, até que Papai começou a voltar para casa noite após noite cada
vez mais aflito. Ele relatava coisas estranhas na fábrica, pedaços de maquinaria dando
defeito de jeitos estranhos, barulhos ouvidos a todas as horas, e até mesmo o vigia noturno
desaparecendo uma noite. Havia rumores, também, de que Mortmain estava envolvido
em práticas ocultas.” Nate soava como se estivesse lembrando tanto quanto recitando a
história. “Papai ignorou os boatos primeiramente, mas eventualmente os repetiu a
Mortmain, que admitiu tudo. Eu percebo que ele conseguiu fazer isso soar bastante
inofensivo, como se ele estivesse apenas fazendo algumas brincadeiras com feitiços e
pentagramas e coisas assim. Ele chamou a organização a que pertencia de Clube
Pandemônio. Sugeriu que Papai fosse a uma das reuniões deles, e trouxesse Mamãe.”
“Trazer Mamãe? Mas ele nunca poderia querer fazer isso—”
“Provavelmente não, mas com uma esposa nova e um filho novo, Papai estaria
ansioso para agradar seu empregador. Ele concordou em ir, e em trazer Mamãe com ele.”
“Papai deveria ter ido à polícia—”
“Um homem rico como Mortmain teria a polícia em seu bolso,” interrompeu Will.
“Se seu pai tivesse ido à polícia, eles teriam rido dele.”
Nathaniel tirou o cabelo da testa; ele estava suando agora, mechas de cabelo
colando em sua pele. “Mortmain providenciou que uma carruagem fosse até eles tarde da
noite, quando ninguém estaria vendo. A carruagem os trouxe para a casa da cidade de
Mortmain. Após isso há muitas páginas faltando, e nenhum detalhe sobre o que aconteceu

naquela noite. Foi a primeira vez que eles foram, mas não, eu descobri, a última. Eles se
encontraram com o Clube Pandemônio várias vezes durante o curso dos próximos poucos
meses. Mamãe, pelo menos, odiava ir, mas eles continuaram a comparecer às reuniões até
que algo mudou abruptamente. Eu não sei o que era; haviam poucas páginas depois
daquilo. Fui capaz de discernir que, quando eles deixaram Londres, o fizeram sob a
sombra da noite, que não contaram a ninguém aonde estavam indo, e não deixaram
nenhum endereço de correspondência. Eles poderiam muito bem ter desaparecido. Nada
no diário, porém, dizia algo sobre o por quê—”
Nathaniel interrompeu sua história com um ataque de tosse seca. Jessamine se
apressou para o chá que Sophie havia deixado na mesa de canto, e um momento depois
estava pressionando uma xícara na mão de Nate. Ele deu a Tessa uma expressão superior
enquanto o fazia, como se para assinalar que Tessa deveria ter pensado nisso antes.
Nate, tendo quietado sua tosse com chá, continuou. “Tendo encontrado as páginas
do diário, eu me senti como se tivesse tropeçado em uma mina de ouro. Eu havia ouvido
falar de Mortmain. Eu sabia que o homem era rico como Creso68, mesmo que fosse
evidentemente um pouco louco. Escrevi para ele e disse que era Nathaniel Gray, o filho de
Richard e Elizabeth Gray, que meu pai estava morto, e também minha mãe, e que entre os
papéis dela eu havia encontrado evidência de suas atividades ocultas. Eu insinuei que
estava ansioso por me encontrar com ele e discutir um possível emprego, e que se ele se
provasse menos ansioso por me encontrar, havia vários jornais que eu imaginava que
fossem se interessar pelo diário de minha mãe.”
68 Último rei da Lídia, conhecido por suas riquezas.
 “Isso foi empreendedor.” Will soava quase impressionado.
Nate sorriu. Tessa lhe lançou um olhar furioso. “Não pareça satisfeito consigo
mesmo. Quando Will diz ‘empreendedor’, ele quer dizer ‘moralmente deficiente’.”
“Não, eu quero dizer empreendedor,” disse Will. “Quando eu quero dizer
moralmente deficiente, eu digo ‘Agora, aí está algo que eu teria feito.’”
“Já basta, Will,” Charlotte interrompeu. “Deixe o Sr. Gray terminar sua história.”
“Eu pensei que talvez ele fosse me mandar um suborno, algum dinheiro para me
calar,” Nate continuou. “Ao invés disso eu ganhei uma passagem de primeira classe em
um navio a vapor para Londres e a oferta oficial de um emprego quando chegasse.
Calculei que estava em direção a uma coisa boa, e pela primeira vez na minha vida, eu não
planejava estragá-la.
“Quando cheguei a Londres, fui direto para a casa de Mortmain, onde fui levado ao
escritório para encontrá-lo. Ele me cumprimentou com grande entusiasmo, dizendo-me o
quanto estava feliz de me ver e como eu parecia exatamente com minha querida mãe
falecida. Então ele ficou sério. Ele me sentou e me disse que sempre havia gostado de

meus pais e havia se entristecido quando eles deixaram a Inglaterra. Ele não havia sabido
que eles estavam mortos até receber minha carta. Mesmo que eu fosse a público com o que
sabia sobre ele, ele afirmou que me daria alegremente um emprego e faria o que pudesse
por mim, por amor de meus pais.
“Eu falei a Mortmain que guardaria seu segredo—se ele me levasse com ele para
participar de uma reunião do Clube Pandemônio, que ele devia a mim me mostrar o que
ele havia mostrado a meus pais. A verdade era, a menção de jogos de azar no diário de
minha mãe havia acendido meu interesse. Eu imaginava uma reunião de um grupo de
homens estúpidos o suficiente para acreditar em mágica e demônios. Certamente não seria
tão difícil ganhar um pouco de dinheiro de tais tolos.” Nate fechou os olhos.
“Mortmain concordou, relutantemente, em me levar. Eu suponho que ele não tinha
escolha. Naquela noite, a reunião era na casa da cidade de de Quincey. No momento em
que a porta se abriu, eu sabia que eu era o tolo. Este não era um grupo de amadores
mexendo com espiritualismo. Isso era a coisa real, o Mundo das Sombras de que minha
mãe havia feito apenas referências indiretas em seu diário. Era real. Eu mal posso
descrever meu senso de choque enquanto olhava ao redor de mim—criaturas de um
grotesco indescritível enchiam a sala. As Irmãs Sombrias estavam lá, me olhando
maliciosamente por detrás de suas cartas de uíste69, suas unhas iguais a garras. Mulheres
com seus rostos e ombros empoados de branco sorriram para mim com sangue escorrendo
dos cantos de suas bocas. Pequenas criaturas cujos olhos mudavam de cor corriam pelo
chão. Eu nunca havia imaginado que tais coisas eram reais, e disso isso para Mortmain.
69 Jogo de cartas jogado em duplas.
70 Conhecida citação de Hamlet, obra de William Shakespeare.
 “‘Há mais coisas no Céu e na Terra, Nathaniel, do que sonha a tua filosofia,70’ ele
disse.
“Bem, eu conhecia a citação por causa de você, Tessa. Você estava sempre lendo
Shakespeare para mim, e eu até mesmo prestava atenção de vez em quando. Eu estava
prestes a dizer a Mortmain para não fazer troça de mim, quando um homem veio a nós.
Eu vi Mortmain ficar teso como uma tábua, como se esse fosse alguém de quem ele tinha
medo. Ele me apresentou como Nathaniel, um novo empregado, e me disse o nome do
homem. De Quincey.
“De Quincey sorriu. Eu soube imediatamente que ele não era humano. Eu nunca
havia visto um vampiro antes, com aquela pele branca como a morte deles, e é claro que
quando ele sorriu, eu vi seus dentes. Eu acho que apenas fiquei olhando. ‘Mortmain, você
está escondendo coisas de mim de novo,’ ele disse. ‘Este é mais do que apenas um novo
empregado. Este é Nathaniel Gray. O filho de Elizabeth e Richard Gray.’

“Mortmain balbuciou algo, parecendo perplexo. De Quincey riu. ‘Eu ouço coisas,
Axel,’ ele disse. Então se virou para mim. ‘Eu conhecia seu pai,’ ele disse. ‘Eu gostava um
tanto dele. Talvez você se juntaria a mim para um jogo de cartas?’
“Mortmain sacudiu a cabeça para mim, mas eu havia visto a sala de carteado
quando entrei na casa, é claro. Fui atraído para as mesas de jogo como uma mariposa para
a luz. Sentei jogando faraó a noite inteira com um vampiro, dois lobisomens, e um
feiticeiro de cabelo emaranhado. Eu fiz minha sorte aquela noite—ganhei uma grande
quantia de dinheiro, e bebi uma grande quantidade dos drinques coloridos e brilhantes
que eram passados pela sala em bandejas de prata. Em algum ponto Mortmain foi embora,
mas eu não me importei. Eu emergi na luz do amanhecer me sentindo exultante, no topo
do mundo—e com um convite de de Quincey para voltar ao clube sempre que quisesse.
“Eu fui um tolo, é claro. Eu estava me divertindo tanto porque os drinques eram
misturados com poções de feiticeiros, viciantes. E haviam deixado que eu ganhasse aquela
noite. Eu voltei, é claro, sem Mortmain, noite após noite. A princípio eu ganhei—ganhei
constantemente, que foi como eu consegui mandar dinheiro de volta para você e Tia
Harriet, Tessie. Certamente não foi de trabalhar para Mortmain. Eu ia para o escritório
irregularmente, mas mal podia me concentrar mesmo nas tarefas simples a que era
designado. Tudo em que eu pensava era voltar para o clube, beber mais daqueles
drinques, ganhar mais dinheiro.
“Então eu comecei a perder. Quanto mais eu perdia, mais obcecado ficava com
ganhar o dinheiro de volta. De Quincey sugeriu que eu começasse a jogar a crédito, então
peguei dinheiro emprestado; eu parei totalmente de ir ao escritório. Eu dormia o dia
inteiro, e jogava a noite inteira. Eu perdi tudo.” Sua voz era distante. “Quando recebi sua
carta que Titia havia morrido, eu pensei que fosse um julgamento sobre mim. Uma
punição por meu comportamento. Eu queria me apressar e comprar uma passagem para
voltar a Nova York naquele dia—mas não tinha dinheiro. Desesperado, fui ao clube— eu
estava com a barba por fazer, miserável, com os olhos vermelhos. Devo ter parecido com
um homem em seu ponto mais baixo, porque foi aí que de Quincey me abordou com uma
proposta. Ele me levou para uma sala dos fundos e indicou que eu havia perdido mais
dinheiro para o clube do que qualquer homem jamais poderia pagar. Ele parecia divertido
com aquilo tudo, o demônio, retirando poeira invisível de seus punhos, sorrindo para mim
com aqueles dentes de agulha. Ele me perguntou o que eu estaria disposto a dar para
pagar minhas dívidas. Eu disse, ‘Qualquer coisa.’ E ele disse, ‘Que tal sua irmã?’”
Tessa sentiu os pelos de seu braço se levantar, e estava desconfortavelmente ciente
dos olhos de todos na sala nela. “O que—o que ele disse sobre mim?”
“Eu fui pego completamente desprevenido,” disse Nate. “Eu não me lembrava de
ter discutido você com ele, nunca, mas eu havia estado bêbado tantas vezes no clube, e nós
havíamos conversado muito abertamente...” A xícara de chá em sua mão tremeu no pires;
ele os depositou na mesa, pesadamente. “Eu perguntei o que ele poderia querer com
minha irmã. Ele me disse que tinha razão para saber que uma das crianças de minha mãe

era... especial. Ele havia pensado que poderia ser eu, mas tendo tido tempo de sobra para
me observar, a única coisa incomum sobre mim era minha insensatez.” O tom de Nate era
amargo. “‘Mas sua irmã, sua irmã é algo mais,’ ele me disse. ‘Ela tem todo o poder que
você não possui. Eu não tenho nenhuma intenção de machucá-la. Ela é importante
demais.’
“Eu balbuciei e implorei por mais informação, mas ele foi inflexível. Ou eu adquiria
Tessa para ele, ou morreria. Ele até mesmo me disse o que é que eu deveria fazer.”
Tessa exalou lentamente. “De Quincey lhe falou para escrever aquela carta,” ela
disse. “Ele lhe fez mandar as passagens para o Main. Ele lhe fez me trazer até aqui.”
Os olhos de Nate imploravam a ela que entendesse. “Ele jurou que não lhe
machucaria. Ele me disse que tudo o que ele queria era lhe ensinar a usar o seu poder. Ele
me disse que você seria honrada e rica além da imaginação—”
“Bem, está tudo bem, então,” interrompeu Will. “Não é como se há coisas mais
importantes que o dinheiro.” Seus olhos estavam ardendo com indignação; os de Jem não
pareciam menos enojados.
“Não é culpa de Nate!” Jessamine estourou. “Você não o ouviu? De Quincey iria
matá-lo. E ele sabia quem Nate era, de onde ele vinha; ele teria encontrado Tessa
eventualmente de qualquer modo, e Nate teria morrido por razão nenhuma.”
“Então esta é sua opinião objetiva e ética, é, Jess?” Will disse. “E eu suponho que ela
não tenha nada que ver com o fato de que você tem estado babando pelo irmão de Tessa
desde que ele chegou. Qualquer mundano serve, eu acho, não importa quão inútil—”
Jessamine deixou escapar um grasnido indignado, e se levantou. Charlote, sua voz
subindo, tentava calá-los quanto eles gritavam um com o outro, mas Tessa havia parado
de escutar; ela estava olhando para Nate.
Ela havia sabido por um tempo que seu irmão era fraco, que o que sua tia havia
chamado de inocência era na verdade infantilidade impertinente e mimada; que sendo um
garoto, o primogênito, e bonito, Nate sempre havia sido o príncipe de seu próprio
pequeno reino. Ela havia compreendido que, embora fosse o trabalho dele como irmão
mais velho protegê-la, na verdade sempre havia sido ela, e sua tia, que o haviam
protegido.
Mas ele era seu irmão; ela o amava; e o velho instinto de proteção cresceu nela,
como sempre acontecia quando Nate estava envolvido, e provavelmente sempre iria.
“Jessamine está certa,” ela disse, erguendo a voz para cortar através das vozes raivosas na
sala. “Não teria feito nenhum bem a ele recusar de Quincey, e não há por que discutir isso
agora. Nós ainda precisamos saber quais são os planos de de Quincey. Você sabe, Nate?
Ele lhe contou o que queria comigo?”

Nate balançou a cabeça. “Assim que concordei em mandar buscar você, ele me
manteve preso em sua casa na cidade. Ele me fez mandar uma carta para Mortmain, claro,
pedindo demissão; o pobre homem deve ter pensado que eu estava jogando sua
generosidade de volta em seu rosto. De Quincey não estava planejando tirar os olhos de
mim até ter você em mãos, Tessie; eu era o seguro dele. Ele deu às Irmãs Sombrias meu
anel para provar a você que eu estava em poder deles. Ele me prometeu vezes e mais
vezes que não machucaria você, que ele simplesmente estava fazendo com que as Irmãs
lhe ensinassem a usar seu poder. As Irmãs Sombrias reportavam seu progresso todos os
dias, então eu sabia que você ainda estava viva.
“Já que eu estava na casa de qualquer modo, eu me encontrei observando o
funcionamento do Clube Pandemônio. Eu vi que havia uma organização nas classes.
Haviam aqueles que estavam bem lá embaixo, se agarrando nas bordas, como Mortmain e
sua laia. De Quincey e os mais acima em sua maioria os mantinham por perto porque eles
tinham dinheiro, e eles os provocavam com pequenos vislumbres de magia e do Mundo
das Sombras para mantê-los voltando por mais. Então haviam aqueles como as Irmãs
Sombrias e outros, aqueles que tinham mais poder e responsabilidade no clube. Eles eram
todos criaturas sobrenaturais, nenhum humano. E então, no topo, estava de Quincey. Os
outros o chamavam de Magister.
“Eles frequentemente realizavam reuniões às quais os humanos e os mais abaixo
não eram convidados. Foi aí que ouvi falar pela primeira vez dos Caçadores das Sombras.
De Quincey despreza Caçadores das Sombras,” Nate disse, virando para Henry e
Charlotte. “Ele tem rancor deles—de vocês. Ele ficava falando sobre quão melhores as
coisas seriam quando os Caçadores das Sombras fossem destruídos e os Habitantes do
Submundo pudessem viver e comercializar em paz—”
“Que disparate.” Henry parecia genuinamente ofendido. “Não sei que tipo de paz
ele pensa que haveria, sem Caçadores das Sombras.”
“Ele falava sobre como nunca tinha havido um jeito de derrotar Caçadores das
Sombras antes porque suas armas eram tão superiores. Ele disse que a lenda era de que
Deus havia pretendido que os Nefilins fossem guerreiros excepcionais, de forma que
nenhuma criatura viva poderia destruí-los. Então, aparentemente ele pensou, ‘Por que não
uma criatura que não era absolutamente viva?’”
“Os autômatos,” disse Charlotte. “Seu exército de máquinas.”
Nate pareceu confuso. “Você os viu?”
“Alguns deles atacaram sua irmã noite passada,” disse Will. “Felizmente, nós
monstros Caçadores das Sombras estávamos por perto para salvá-la.”
“Não que ela estivesse indo mal sozinha,” Jem murmurou.

“Você sabe alguma coisa sobre as máquinas?” Charlotte exigiu, se inclinando para
frente avidamente. “Qualquer coisa? Alguma vez de Quincey falou sobre elas na sua
frente?”
Nate se encolheu em sua cadeira. “Ele falou, mas eu não entendi a maior parte. Eu
não tenho uma mente mecânica, realmente—”
“É simples.” Era Henry, usando o tom de alguém tentando acalmar um gato
assustado. “Por agora essas máquinas de De Quincey apenas funcionam com mecanismos.
Elas precisam ser dadas corda, como relógios. Mas nós encontramos a cópia de um feitiço
na biblioteca dele que indica que ele está tentando encontrar uma maneira de fazê-las
viver, uma maneira de vincular energia demoníaca ao núcleo mecânico e trazê-lo à vida.”
“Oh, isso! Sim, ele falou sobre isso,” Nathaniel respondeu, como uma criança
satisfeita em ser capaz de dar a resposta certa em uma sala de aula. Tessa podia
praticamente ver as orelhas de todos os Caçadores das Sombras levantando de excitação.
Isso era o que eles realmente queriam saber. “Foi para isso que ele contratou as Irmãs
Sombrias—não apenas para treinar Tessa. Elas são feiticeiras, você sabe, e elas deveriam
estar descobrindo como isso poderia ser feito. E elas descobriram. Não faz muito tempo—
algumas semanas—mas elas conseguiram.”
“Elas conseguiram?” Charlotte parecia chocada. “Mas então, por que de Quincey
ainda não fez isso? O que ele está esperando?”
Nate olhou do rosto ansioso dela para o de Tessa, e ao redor da sala. “Eu—eu
pensei que vocês soubessem. Ele disse que o feitiço de ligação poderia ser gerado apenas
na lua cheia. Quando isso acontecer, as Irmãs Sombrias entrarão em ação, e então—ele tem
dúzias das coisas guardadas em seu esconderijo, e eu sei que planeja fazer muitas mais—
centenas, milhares, talvez. Suponho que ele irá animá-las e...”
“A lua cheia?” Charlotte, lançando o olhar para a janela, mordeu o lábio. “Isso será
muito em breve—amanhã à noite, eu acho.”
Jem se endireitou como um raio. “Eu posso checar as tabelas lunares na biblioteca.
Volto já.” Ele desapareceu pela porta.
Charlotte se virou para Nate. “Você tem certeza sobre isso?”
Nate assentiu, engolindo em seco. “Quando Tessa escapou das Irmãs Sombrias, de
Quincey me culpou, embora eu não soubesse nada sobre aquilo. Ele me disse que iria
deixar os Filhos da Noite drenarem meu sangue como punição. Ele me manteve
aprisionado por dias antes da festa. Ele não se importava com o que falava na minha
frente nessa altura. Ele sabia que eu iria morrer. Eu o ouvi falando sobre como as Irmãs
haviam dominado o feitiço de ligação. Que não demoraria muito para os Nefilins serem
destruídos, e todos os membros do Clube Pandemônio poderem governar Londres em seu
lugar.”

Will falou, sua voz áspera. “Você tem alguma ideia de onde de Quincey pode estar
se escondendo agora que sua casa foi queimada?”
Nate parecia exausto. “Ele tem um esconderijo em Chelsea. Ele iria se esconder lá
com aqueles que são leais a ele—ainda há provavelmente uma centena de vampiros de seu
clã que não estavam na casa da cidade aquela noite. Eu sei exatamente onde o lugar é. Eu
posso mostrar a vocês em um mapa—” Ele parou quando Jem irrompeu na sala, seus
olhos muito arregalados.
“Não é amanhã,” Jem disse. “A lua cheia. É hoje à noite.”



17
Mande a Escuridão Descer


A torre e muro do jardim da igreja velha
Estão negras com chuva de outono,
E ventos lúgubres pressentindo chamam
A escuridão novamente a descer.
—Emily Brontë, “A Torre da Igreja Velha”


Enquanto Charlotte corria para a biblioteca para notificar o Enclave de que ações de
emergência precisariam ser tomadas esta noite, Henry permaneceu na sala de estar com
Nathaniel e os outros. Ele foi surpreendentemente paciente enquanto Nate indicava
meticulosamente em um mapa de Londres o ponto onde ele acreditava ser o esconderijo
de de Quincey—uma casa em Chelsea, perto do Tâmisa. “Eu não sei qual é exatamente,”
Nate disse, “então vocês terão que ser cuidadosos.”
“Nós sempre somos cuidadosos,” Henry disse, ignorando o olhar torto de Will em
sua direção. Não muito tempo depois disso, porém, ele mandou Will e Jem para a sala de
armas com Thomas para preparar um estoque de lâminas de serafim e outros
armamentos. Tessa ficou na sala de estar com Jessamine e Nate enquanto Henry se
apressava para a cripta para pegar algumas de suas invenções mais recentes.
Assim que os outros se foram, Jessamine começou a se agitar ao redor de Nate—
aumentando o fogo para ele, indo pegar outro cobertor para cobrir seus ombros, e se
oferecendo para encontrar um livro para ler em voz alta a ele, o que ele recusou. Se
Jessamine estava esperando ganhar o coração de Nate mimando-o, ela iria se desapontar.
Nate esperava ser mimado e dificilmente iria notar as atenções especiais dela.
“Então o que irá acontecer agora?” ele perguntou finalmente, meio enterrado sob
uma montanha de cobertores. “O Sr. e a Sra. Branwell—”
“Oh, chame-os de Henry e Charlotte. Todos o fazem,” Jessamine disse.
“Eles irão notificar o Enclave—o resto dos Caçadores das Sombras de Londres—da
localização do esconderijo de de Quincey, para que eles possam planejar um ataque,”

disse Tessa. “Mas realmente, Nate, você não deveria estar se preocupando com estas
coisas. Você deveria estar descansando.”
“Então seremos apenas nós.” Os olhos de Nate estavam fechados. “Neste grande
lugar antigo. Parece estranho.”
“Oh, Will e Jem não irão com eles,” disse Jessamine. “Eu a ouvi falar com eles na
sala de armas quando fui pegar o cobertor.”
Os olhos de Nate se abriram. “Eles não irão?” Ele soava atônito. “Por que não?”
“São jovens demais,” disse Jessamine. “Caçadores das Sombras são considerados
adultos aos dezoito, e para este tipo de empreitada—algo perigoso em que todo o Enclave
esteja participando—eles tendem a deixar os mais novos em casa.”
Tessa sentiu uma estranha pequena dor de alívio, que ela disfarçou perguntando
apressadamente, “Mas isto é tão estranho. Eles deixaram Will e Jem iram a de Quincey—”
“E é por isso que eles não podem ir agora. Aparentemente, Benedict Lightwood está
argumentando que a incursão a de Quincey acabou tão ruim quanto foi porque Will e Jem
são insuficientemente treinados, embora como qualquer coisa disso devesse ser culpa de
Jem, eu não tenho certeza. Se você me pergunta, ele que uma desculpa para fazer Gabriel
ficar em casa, embora ele já tenha dezoito. Ele o mima horrivelmente. Charlotte disse que
ele contou a ela que houveram Enclaves inteiros destruídos em uma única noite antes, e
que os Nefilins têm uma obrigação de deixar a geração mais nova de pé, para continuar,
como era.”
O estômago de Tessa girou. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, a porta
abriu e Thomas entoru. Ele estava carregando uma pilha de roupas dobradas. “Estas são
coisas antigas do Mestre Jem,” ele disse a Nate, parecendo levemente embaraçado. “Parece
que vocês podem ser do mesmo tamanho, e, bem, você precisa ter algo para vestir. Se você
me acompanhar de volta a seu quarto, nós podemos ver se elas servem.”
Jessamine rolou os olhos. Tessa não tinha certeza do por que. Talvez ela pensasse
que roupas usadas não fossem boas o suficiente para Nate.
“Obrigado, Thomas,” Nate disse, se levantando. “E eu preciso oferecer minhas
desculpas por meu comportamento mais cedo, quando eu, ah, me escondi de você. Eu
devo ter estado febril. É a única explicação.”
Thomas ruborizou. “Apenas fazendo meu trabalho, senhor.”
“Talvez você devesse dormir um pouco,” Tessa disse, notando os círculos escuros
de exaustão ao redor dos olhos de seu irmão. “Não haverá muito para fazermos agora, não
até eles retornarem.”

“Na verdade,” Nate disse, olhando de Jessamine para Tessa, “acho que já descansei
o suficiente. Uma pessoa deve voltar a ficar em pé eventualmente, não deve? Eu poderia
aguentar comer um pouco de alguma coisa, e não me importaria em ter alguma
companhia. Se vocês não se importam de eu me juntar a vocês quando estiver vestido?”
“É claro que não!” Jessamine parecia encantada. “Pedirei a Agatha para preparar
algo leve. E talvez um jogo de cartas para nos manter ocupados depois de comermos.
Sanduíches e chá, penso.” Ela bateu as mãos juntas enquanto Thomas e Nate deixavam a
sala, e virou para Tessa, seus olhos brilhantes. “Não será divertido?”
“Cartas?” Tessa, que havia se chocado quase sem palavras pela sugestão de
Jessamine, encontrou sua voz. “Você pensa que devemos jogar cartas? Enquanto Henry e
Charlotte estão fora lutando com de Quincey?”
Jessamine sacudiu a cabeça. “Como se nossas lamentações fossem ajudá-los! Tenho
certeza de que eles prefeririam que estivéssemos animados e ativos em sua ausência do
que parados e melancólicos.”
Tessa franziu a testa. “Eu realmente não acho,” ela disse, “que sugerir cartas a Nate
foi uma ideia gentil, Jessamine. Você sabe perfeitamente bem que ele tem... problemas...
com apostas.”
“Nós não iremos apostar,” Jessamine disse alegremente. “Apenas um jogo amigável
de cartas. Francamente, Tessa, por que você precisa ser tão desanimadora?”
“O quê? Jessamine, eu sei que você está apenas tentando manter Nate feliz. Mas este
não é o caminho—”
“E eu suponho que você dominou a arte de ganhar as afeições dos homens?”
Jessamine estourou, seus olhos castanhos brilhando de raiva. “Pensa que não a vi olhando
para Will com olhos de filhote de cachorro? Como se ele fosse ao menos—Oh!” Ela jogou
as mãos para o alto. “Esqueça. Você me deixa doente. Vou falar com Agatha sem você.”
Com aquilo, ela se levantou e saiu agitadamente da sala, pausando na porta apenas para
dizer “E eu sei que você não se importa com sua aparência, mas você deveria ao menos
ajeitar seu cabelo, Tessa. Parece que pássaros estão vivendo nele!” antes da porta fechar
com uma batida atrás dela.

Tolo com Tessa sabia que era, as palavras de Jessamine doeram. Ela se apressou de
volta pra seu quarto para jogar água no rosto e passar uma escova por seus cabelos
embaraçados. Olhando para seu próprio rosto branco no espelho, ela tentou não imaginar
se ainda parecia com a irmã que Nate lembrava. Tentou não imaginar como ela poderia ter
mudado.

Terminando, ela se apressou para o corredor—e quase andou diretamente para
cima de Will, que estava encostado contra a parede do corredor oposta à porta dela,
examinando suas unhas. Com seu habitual desprezo às boas maneiras, ele estava em
mangas de camisa, e acima da camisa estava uma serie de correias de couro cruzando seu
peito. Ao longo de sua costa corria uma lâmina longa e fina; ela podia ver apenas o punho
dela sobre os ombros dele. Enfiadas em seu cinto estavam várias longas e finas lâminas de
serafim brancas.
“Eu—” A voz de Jessamine ecoou na mente de Tessa: Pensa que não a vi olhando para
Will com olhos de filhote de cachorro? A luz de bruxa estava queimando brandamente. Tessa
esperou que estivesse escuro o suficiente no corredor para ele a ver corar. “Pensei que
você não estivesse indo com o Enclave esta noite,” ela disse finalmente, mais para ter algo
para falar do que qualquer outra coisa.
“Não estou. Estou levando estas para Charlotte e Henry no pátio. Benedict
Lightwood está enviando sua carruagem para eles. É mais rápida. Ela deverá estar aqui
brevemente.” Estava escuro no corredor, escuro o suficiente para que, embora Tessa
pensasse que Will estava sorrindo, ela não tivesse certeza. “Preocupada com minha
segurança, você? Ou você tinha planejado me presentear com uma proteção para que eu
pudesse usá-la em batalha como Wilfred de Ivanhoé71?”
71 Romance de Walter Scott, publicado em 1819.
“Eu nunca gostei desse livro,” Tessa disse. “Rowena era tão tola. Ivanhoé deveria
ter escolhido Rebecca.”
“A garota de cabelos escuros, não a loira? De verdade?” Agora ela estava quase
certa de que ele estava sorrindo.
“Will—?”
“Sim?”
“Você acha que o Enclave irá realmente conseguir matá-lo? De Quincey, isto é?”
“Sim.” Ele falou sem hesitação. “O tempo para negociar já passou. Se você alguma
vez já viu terriers em um fosso de iscar ratos—bem, não suponho que você tenha. Mas é
assim que será hoje. O Clave irá despachar os vampiros um por um até que eles sejam
completamente aniquilados.”
“Você quer dizer que não haverá mais vampiros em Londres?”
Will deu de ombros. “Sempre há vampiros. Mas o clã de de Quincey terá
desaparecido.”
“E quando estiver terminado—quando o Magister tiver ido—suponho que não
haverá mais razão para Nate e eu permanecermos no Instituto, haverá?”

“Eu—” Will pareceu genuinamente surpreendido. “Eu suponho— Bem, sim, é
verdade. Imagino que você preferiria ficar em um local menos... violento. Talvez você
pudesse até mesmo ver algumas das partes mais agradáveis de Londres. A Abadia de
Westminster—”
“Eu preferiria ir para casa,” Tessa disse. “Para Nova York.”
Will não disse nada. A luz de bruxa no corredor havia enfraquecido; nas sombras
ela não podia ver claramente o rosto dele.
“A não ser que houvesse uma razão para eu ficar,” ela continuou, meio se
perguntando o que ela mesma queria dizer com aquilo. Era mais fácil conversar com Will
desse jeito, quando ela não podia ver o rosto dele, e podia apenas sentir sua presença perto
da dela no corredor escuro.
Ela não o viu se mover, mas sentiu os dedos dele tocar a costa de sua mão
levemente. “Tessa,” ele disse. “Por favor, não se preocupe. Logo tudo estará resolvido.”
O coração dela bateu dolorosamente contra as costelas. Logo o quê estaria resolvido?
Ele não podia significar aquilo que ela achava. Ele tinha que ter querido dizer outra coisa.
“Você não deseja ir para casa?”
Ele não se moveu, seus dedos ainda roçando a mão dela. “Eu nunca posso ir para
casa.”
“Mas por que não?” ela sussurrou, mas era tarde demais. Ela o sentiu recuando
dela. A mão dele se afastou da dela. “Eu sei que seus pais vieram ao Instituto quando você
tinha doze anos e você se recusou a vê-los. Por quê? O que eles fizeram a você que foi tão
terrível?”
“Eles não fizeram nada.” Ele sacudiu a cabeça. “Eu preciso ir. Henry e Charlotte
estão esperando.”
“Will,” ela disse, mas ele já estava indo embora, uma sombra escura e magra se
movendo em direção às escadas. “Will,” ela chamou na direção dele. “Will, quem é
Cecily?”
Mas ele já havia ido.

Quando Tessa retornou à sala de estar, Nate e Jessamine estavam lá, e o sol havia
começado a se pôr. Ela foi imediatamente para a janela e olhou para fora. No pátio lá
embaixo, Jem, Henry, Will e Charlotte estavam reunidos, suas sombras lançadas longas e
escuras através dos degraus do Instituto. Henry estava colocando uma última runa iratze
em seu braço enquanto Charlotte parecia estar dando instruções a Jem e Will. Jem estava
assentindo, mas Tessa podia dizer mesmo a esta distância que Will, cujos braços estavam

cruzados sobre seu peito, estava sendo teimoso. Ele quer ir com eles, ela pensou. Ele não quer
ficar aqui. Jem provavelmente queria ir também, mas ele não iria reclamar sobre isso. Esta
era a diferença entre os dois garotos. Uma das diferenças, de qualquer modo.
“Tessie, você tem certeza de que não quero jogar?” Nate se virou para olhar para
sua irmã. Ele estava de volta em sua poltrona, uma manta sobre suas pernas, cartas
colocadas em uma pequena mesa entre ele e Jessamine ao lado de um serviço de chá de
prata e um pequeno prato de sanduíches. O cabelo dele parecia ligeiramente úmido, como
se ele o houvesse lavado, e ele estava vestindo as roupas de Jem. Nathaniel havia perdido
peso, Tessa podia dizer, mas Jem era esguio o suficiente que sua camisa ainda ficasse um
pouco apertada em Nate na gola e nos punhos—embora os ombros de Jem ainda fossem
maiores, e Nate parecia um pouco mais franzino de porte no paletó de Jem.
Tessa ainda estava olhando pela Janela, Uma grande carruagem preta havia
estacionado, com um desenho na porta de duas tochas flamejantes, e Henry e Charlotte
estavam entrando nela. Will e Jem haviam desaparecido de vista.
“Ela tem certeza.” Jessamine bufou quando Tessa não respondeu. “Apenas olhe
para ela. Ela parece tão desaprovadora.”
Tessa tirou o olhar da janela. “Eu não estou desaprovando. Apenas parece errado
jogar jogos enquanto Henry e Charlotte e outros estão fora arriscando suas vidas.”
“Sim, eu sei, você disse isso antes.” Jessamine baixou suas cartas para a mesa.
“Francamente, Tessa. Isso acontece o tempo todo. Eles vão para a batalha; eles voltam.
Não há nada com que valha a pena se preocupar.”
Tessa mordeu o lábio. “Sinto como se devesse ter tido adeus ou boa sorte, mas com
toda a pressa—”
“Você não precisa se preocupar,” Jem disse, entrando na sala de estar, Will logo
atrás dele. “Caçadores das Sombras não dizem adeus, não antes de uma batalha. Ou boa
sorte. Você precisa se comportar como se o retorno fosse certo, não uma questão de sorte.”
“Nós não precisamos de sorte,” disse Will, se jogando em uma cadeira ao lado de
Jessamine, que lhe lançou um olhar bravo. “Temos um mandato celestial, afinal. Com
Deus ao seu lado, de que importa a sorte?” Ele soava surpreendentemente amargo.
“Oh, pare de ser tão deprimente, Will,” disse Jessamine. “Estamos jogando cartas.
Você pode ou se juntar ao jogo ou ficar quieto.”
Will levantou uma sobrancelha. “O que vocês estão jogando?”
“Papisa Joana,” disse Jessamine impassível, distribuindo cartas. “Eu estava acabado
de explicar as regras para o Sr. Gray.”

“A Srta. Lovelace diz que você ganha ao se livrar de todas as suas cartas. Isso me
parece ao contrário.” Nate sorriu através da mesa para Jessamine, que mostrou covinhas
irritantemente.
Will cutucou a caneca fumegante que estava ao lado do cotovelo de Nathaniel. “Há
algum chá nisso,” ele inquiriu, “Ou é apenas conhaque puro?”
Nate corou. “Conhaque é restaurador.”
“Sim,” disse Jem, um pequeno gume em sua voz. “Ele geralmente restaura homens
direto ao asilo.”
“Francamente! Vocês dois! Tão hipócritas. Não é como se Will não bebesse, e Jem—
” Jessamine parou, mordendo o lábio. “Vocês dois só estão se exasperando porque Henry
e Charlotte não os levaram com eles,” ela disse finalmente. “Porque vocês são novos
demais.” Ela sorriu para Nate através da mesa. “Eu mesma prefiro a companhia de um
cavalheiro mais maduro.”
Nate, Tessa pensou com desgosto, é exatamente dois anos mais velho que Will.
Dificilmente um século. Nem ele é, de nenhuma forma, “maduro.” Mas antes que ela pudesse
dizer qualquer coisa, um grande estrondo ecoante soou pelo Instituto.
Nate levantou as sobrancelhas. “Eu pensei que aqui não era uma igreja de verdade.
Pensei que não houvesse sinos.”
“Não há. Esse som não é de sinos de igreja tocando.” Will se levantou. “Essa é a
campainha. Significa que alguém está no andar de baixo e exige uma audiência com os
Caçadores das Sombras. E como James e eu somos os únicos aqui...”
Ele olhou para Jessamine, e Tessa percebeu que ele estava esperando que Jessamine
o contradissesse, que ela dissesse que era uma Caçador das Sombras, também. Mas
Jessamine estava sorrindo para Nate, e ele estava se inclinando para dizer algo em seu
ouvido; nenhum deles estava prestando atenção ao que mais estava acontecendo na sala.
Jem olhou para Will e balançou a cabeça. Ambos se voltaram para a porta; enquanto
saíam, Jem olhou para Tessa e deu a ela um pequeno dar de ombros. Gostaria que você fosse
uma Caçador das Sombras, ela pensou que os olhos dele estavam dizendo, mas talvez fosse
simplesmente o que ela queria que estivessem dizendo. Talvez ele estivesse apenas
sorrindo gentilmente para ela e não houvesse nenhum significado nisso.
Nate se serviu de mais água quente e conhaque. Ele e Jessamine haviam
abandonado o fingimento de estar jogando cartas e estavam se inclinando um perto do
outro, murmurando em vozes baixas. Tessa sentiu um baque entorpecido de
desapontamento. De algum modo ela havia esperado que a provação de Nate o tivesse
feito mais pensativo—mais inclinado a entender que havia coisas maiores em trabalho no
mundo, coisas mais importantes do que seus próprios prazeres imediatos. Ela não

esperava nada diferente de Jessamine, mas o que uma vez pareceu encantador em Nate
agora raspava em seus nervos de um jeito que a surpreendeu.
Ela se inclinou em direção à janela novamente. Havia uma carruagem no pátio. Will
e Jem estavam nos degraus frontais. Com eles estava um homem em vestimenta de noite—
casaca negra elegante, chapéu alto de seda, um colete branco que brilhava sob as tochas de
luz de bruxa. Ele parecia um mundano para Tessa, embora a essa distância fosse difícil
dizer. Enquanto ela assistia, ele levantou os braços e fez um gesto amplo. Ela viu Will
olhar para Jem, e Jem assentir, e se perguntou sobre o que na terra eles estavam falando.
Ela passou o olhar do homem para o coche atrás dele—e congelou. Ao invés de um
brasão, o nome de uma empresa de negócios estava pintado de lado a lado de uma das
portas: MORTMAIN E COMPANHIA.
Mortmain. O homem para quem seu pai havia trabalhado, a quem Nathaniel havia
chantageado, que havia apresentado seu irmão ao Mundo das Sombras. O que ele estava
fazendo aqui?
Ela olhou para Nate novamente, seu sentimento de aborrecimento lavado por uma
onda de proteção. Se ele soubesse que Mortmain estava aqui, iria indubitavelmente ficar
chateado. Seria melhor se ela descobrisse o que estava acontecendo antes dele. Ela
escorregou do peitoril da janela e se encaminhou quietamente para a porta; absorto na
conversa com Jessamine, Nate dificilmente pareceu notar quando ela deixou a sala.

Foi surpreendentemente fácil para Tessa encontrar seu caminho para a enorme
escada espiral esculpida em pedra que cortava através do centro do Instituto. Ela devia
estar aprendendo seu caminho pelo lugar, finalmente, ela decidiu enquanto descia os
degraus para o térreo, e encontrou Thomas em pé na entrada.
Ele estava segurando uma espada massiva, de ponta para baixo, seu rosto muito
sério. Atrás dele as massivas portas duplas do Instituto estavam abertas em um retângulo
de crepúsculo azul-enegrecido de Londres, iluminado pelo fulgor das tochas de luz de
bruxa do pátio. Ele pareceu surpreendido ao avistar Tessa. “Srta. Gray?”
Ela manteve sua voz baixa. “O que está acontecendo lá fora, Thomas?”
Ele deu de ombros. “O Sr. Mortmain,” ele disse. “Ele queria falar com o Sr. e a Sra.
Branwell, mas como eles não estão aqui—”
Tessa começou a ir em direção à porta.
Thomas, sobressaltado, se moveu para impedi-la. “Srta. Gray, eu não acho—”
“Você terá que usar essa espada em mim para me parar, Thomas,” Tessa disse em
uma voz fria, e Thomas, após hesitar um momento, saiu da frente. Tessa, com uma

pontada de remorso, esperou não ter machucado os sentimentos dele, mas ele parecia
mais atônito que qualquer outra coisa.
Ela passou por ele, para os degraus do lado de fora do Instituto, onde Will e Jem
estavam de pé. Uma brisa forte estava vindo, agitando seu cabelo e a fazendo se arrepiar.
No pé da escada estava o homem que ela havia visto da janela. Ele era mais baixo do que
ela teria imaginado: pequeno e com aparência rija, com um rosto bronzeado e amigável
embaixo da aba de seu chapéu alto. Apesar da elegância de suas roupas, ele tinha o
comportamento natural e franco de um marinheiro ou comerciante.
“Sim,” ele estava dizendo, “o Sr. e a Sra. Branwell foram gentis o suficiente para me
chamar na semana passada. E foram ainda mais gentis, entendo, em manter nosso
encontro como segredo.”
“Eles não contaram ao Enclave sobre suas experiências com o oculto, se é disso que
está falando,” Will disse um pouco bruscamente.
Mortmain corou. “Sim. Isto foi um favor. E pensei em retornar o favor da mesma
maneira—” Ele parou, olhando após Will para Tessa. “E quem é essa? Outra Caçadora das
Sombras?”
Will e Jem se viraram ao mesmo tempo e viram Tessa. Jem parecia satisfeito em vê-
la; Will, é claro, parecia exasperado, e talvez um pouco divertido. “Tessa,” ele disse. “Não
podia deixar seu nariz fora disso, não é?” Ele se virou de volta para Mortmain. “Esta é a
Srta. Gray, é claro. A irmã de Nathaniel Gray.”
Mortmain parecia chocado. “Oh, bom Deus. Eu deveria ter percebido. Você parece
com ele. Srta. Gray—”
“Eu não acho que ela pareça, na verdade,” Will disse, mas muito quietamente,
então Tessa duvidou que Mortmain pudesse ouvi-lo.
“Você não pode ver Nate,” Tessa disse. “Não sei se é por isso que você veio aqui, Sr.
Mortmain, mas ele não está bem o suficiente. Ele precisa se recuperar de sua provação, não
ser lembrado dela.”
As rugas se aprofundaram nos cantos da boca de Mortmain. “Não estou aqui para
ver o garoto,” ele disse. “Reconheço que falhei com ele, falhei abominavelmente com ele. A
Sra. Branwell deixou isso claro—”
“Você deveria ter procurado por ele,” Tessa disse. “Meu irmão. Você o deixou se
afundar no Mundo das Sombras sem deixar vestígios. Alguma pequena parte da mente de
Tessa estava assombrada que ela estivesse sendo tão audaz, mas ela continuou,
indiferentemente. “Quando ele lhe contou que tinha ido trabalhar para de Quincey, você
deveria ter feito algo. Você sabia que tipo de homem de Quincey era—se você pode até
mesmo chamá-lo de homem.”

“Eu sei.” Mortmain parecia cinza debaixo do chapéu. “É por isso que estou aqui.
Para tentar compensar o que fiz.”
“E como você sugere fazer isso?” perguntou Jem, em sua voz clara e forte. “E por
que agora?”
Mortmain olhou para Tessa. “Seus pais,” ele disse, “eram pessoas boas, amáveis. Eu
sempre me arrependi por tê-los apresentado ao Mundo das Sombras. Na época, eu
pensava que tudo aquilo fosse um jogo encantador e meio que uma piada. Aprendi o
contrário desde então. Para amenizar essa culpa, eu direi a você o que sei. Mesmo que isto
signifique que eu precise fugir da Inglaterra para escapar da fúria de de Quincey.” Ele
suspirou. “Algum tempo atrás, de Quincey encomendou de mim um número de partes
mecânicas—rodas dentadas, motores excêntricos, engrenagens, e coisas do gênero. Eu
nunca perguntei para quê ele precisava delas. Uma pessoa não inquere tais coisas do
Magister. Apenas quando vocês Nefilins vieram me ver me ocorreu que a necessidade
dele por elas pudesse estar conectada a um propósito nefasto. Eu investiguei, e um
informante de dentro do clube me disse que de Quincey tencionava construir um exército
de monstros mecânicos com o objetivo de destruir as fileiras de Caçadores das Sombras.”
Ele sacudiu a cabeça. “De Quincey e sua laia podem desprezar Caçadores das Sombras,
mas eu não. Sou apenas um homem humano. Sei que eles são tudo que está entre eu e um
mundo no qual eu e minha espécie somos os joguetes de demônios. Não posso ficar atrás
do que de Quincey está fazendo.”
“Tudo isto está muito bem,” Will disse, uma nota de impaciência em sua voz, “mas
você não está nos contando nada que já não saibamos.”
“Vocês também sabiam,” Mortmain disse, “que ele pagou uma dupla de feiticeiras
chamadas as Irmãs Sombrias para criar um feitiço de ligação que iria animar essas
criaturas não com mecânica, mas com energias demoníacas?”
“Sabíamos,” disse Jem. “Embora eu acredite que há apenas uma Irmã Sombria
restando. Will destruiu a outra.”
“Mas a irmã dela a trouxe de volta via um amuleto necromântico,” disse Mortmain,
uma sugestão de triunfo em sua voz, como se ele estivesse aliviado por finalmente ter um
pedaço de informação que eles não tinham. “Mesmo agora as duas estão abrigadas em
uma mansão em Highgate—costumava pertencer a um feiticeiro, até que de Quincey
mandou matá-lo—trabalhando no feitiço de ligação. Se minhas fontes estão corretas, as
Irmãs Sombrias tentarão implementar o feitiço esta noite.”
Os olhos azuis de Will estavam escuros e pensativos. “Obrigado pela informação,”
ele disse, “mas de Quincey logo não será mais uma ameaça para nós, ou seus monstros
mecânicos, também.”
Os olhos de Mortmain se arregalaram. “A Clave irá se mover contra o Magister?
Hoje à noite?”

“Nossa,” disse Will. “Você realmente sabe todos os termos, não é. Isto é muito
desconcertante em um mundano.” Ele sorriu agradavelmente.
“Você quer dizer que não irá me contar,” disse Mortmain pesarosamente. “Suponho
que você não contaria. Mas você deveria saber que de Quincey tem à sua disposição
centenas daquelas criaturas mecânicas. Um exército. No momento em que as Irmãs
Sombrias fizerem seu feitiço funcionar, o exército irá se levantar e se juntar a de Quincey.
Se o Enclave irá derrotá-lo, seria sábio assegurar que esse exército não se levante, ou eles
serão praticamente impossíveis de derrotar.”
“Você está ciente da localização das Irmãs Sombrias, além do fato de que é em
Highgate?” perguntou Jem.
Mortmain assentiu. “Muito certamente,” ele disse, e balbuciou um nome de rua e
número de casa.
Will assentiu. “Bem, nós certamente iremos levar tudo isto em consideração.
Obrigado.”
“Realmente,” disse Jem. “Boa noite, Sr. Mortmain.”
“Mas—” Mortmain parecia surpreendido. “Vocês irão fazer alguma coisa sobre o
que eu lhes falei, ou não?”
“Eu disse que iríamos levar isso em consideração,” Will contou a ele. “Quanto a
você, Sr. Mortmain, você parece alguém com algum lugar para ir.”
“O quê?” Mortmain baixou o olhar para sua vestimenta de noite, e riu. “Suponho
que sim. É só que—se o Magister descobrir que contei tudo isso a vocês, minha vida
poderia estar em perigo.”
“Então talvez seja hora para umas férias,” Jem sugeriu. “Ouvi que a Itália é muito
agradável nesta época do ano.”
Mortmain olhou de Wiil para Jem e de volta, e então pareceu desistir. Seus ombros
caíram. Ele levantou os olhos para Tessa. “Se você puder passar minhas desculpas para o
seu irmão...”
“Penso que não,” Tessa disse, “mas obrigada, Sr. Mortmain.”
Após uma longa pausa ele assentiu, então se virou. Os três assistiram enquanto ele
entrava de volta em sua carruagem. O som dos cascos dos cavalos era alto no pátio
enquanto a carruagem se afastava e chocalhava através dos portões do Instituto.
“O que vocês irão fazer?” Tessa perguntou no momento em que a carruagem sumiu
de vista. “Sobre as Irmãs Sombrias?”

“Ir atrás delas, é claro.” A cor de Will estava acentuada, seus olhos brilhando. “Seu
irmão disse que de Quincey tinha dúzias daquelas criaturas à sua disposição; Mortmain
diz que são centenas. Se Mortmain estiver correto, nós precisamos chegar às Irmãs
Sombrias antes que elas façam seu feitiço, ou o Enclave pode muito bem estar entrando em
um massacre.”
“Mas—talvez fosse melhor avisar Henry e Charlotte e os outros—”
“Como?” Will conseguiu fazer a única palavra soar cortante. “Suponho que
poderíamos mandar Thomas para prevenir o Enclave, mas não há garantia que ele chegará
lá a tempo, e se as Irmãs Sombrias conseguirem levantar o exército, ele poderia
simplesmente ser morto com o resto. Não, precisamos cuidar das Irmãs Sombrias nós
mesmos. Eu matei uma delas antes; Jem e eu devemos ser capazes de cuidar das duas.”
“Mas talvez Mortmain esteja errado,” Tessa disse. “Você só tem a palavra dele; ele
pode ter informação falha.”
“Ele pode,” Jem reconheceu, “mas você pode imaginar se ele não estiver? E nós o
ignorarmos? A consequência para o Enclave poderia ser destruição absoluta.”
Tessa, sabendo que ele estava certo, sentiu seu coração afundar. “talvez eu pudesse
ajudar. Eu lutei contra as Irmãs Sombrias com vocês uma vez antes. Se eu pudesse
acompanhá-los—”
“Não,” disse Will. “Está fora de cogitação. Temos tão pouco tempo para nos
preparar que precisamos contar com nossa experiência de luta. E você não tem nenhuma.”
“Eu lutei com de Quincey na festa—”
“Eu disse não.” O tom de Will era final. Tessa olhou para Jem, mas ele deu a ela um
dar de ombros apologético, como se para dizer que ele sentia muito, mas Will estava certo.
Ela levou seu olhar de volta para Will. “Mas e Boadiceia?”
Por um momento ela pensou que ele havia esquecido o que tinha dito a ela na
biblioteca. Então o vislumbre de um sorriso puxou os cantos da boca dele, como se ele
tivesse tentado lutar contra aquilo e não conseguisse. “Você será Boadiceia algum dia,
Tessa,” ele disse, “mas não esta noite.” Ele se virou para Jem. “Devemos pegar Thomas e
dizer a ele para preparar a carruagem. Highgate não é perto; é melhor começarmos.”

A noite já havia descido na cidade quando Will e Jem ficaram do lado de fora ao
lado da carruagem, se preparando para partir. Thomas estava checando os arreios dos
cavalos enquanto Will, seu stele um brilho branco na escuridão, rabiscava uma Marca no
antebraço nu de Jem. Tessa, tendo registrado sua desaprovação, estava de pé nos degraus
e os observava, uma sensação vazia em seu estômago.

Após se satisfazer que os arreios estavam seguros, Thomas se virou e correu
levemente subindo os degraus, parando quando Tessa levantou um braço para impedi-lo.
“Eles estão indo agora?” ela perguntou. “Isso é tudo?”
Ele assentiu. “Tudo pronto para partir, senhorita.” Ele havia tentado fazer com que
Jem e Will o levassem junto, mas Will estava preocupado que Charlotte fosse ficar com
raiva de Thomas por participar de sua façanha e havia dito a ele para não ir.
“Além do mais,” Will havia dito, “precisamos ter um homem na casa—alguém para
proteger o Instituto enquanto estamos fora. Nathaniel não conta,” ele havia adicionado,
com um olhar de esguelha para Tessa, que o ignorou.
Will puxou a manga de Jem para baixo, cobrindo as marcas que ele havia feito.
Enquanto ele devolvia o stele ao seu bolso, Jem ficou olhando para ele; seus rostos eram
manchas pálidas na luz das tochas. Tessa levantou a mão, então a abaixou lentamente. O
que é que ele havia dito? Caçadores das Sombras não dizem adeus, não antes de uma batalha. Ou
boa sorte. Você precisa se comportar como se o retorno fosse certo, não uma questão de sorte.
Os garotos, como se alertados por seu gesto, olharam para ela. Ela pensou que
podia ver o azul dos olhos de Will, mesmo de onde ela estava. Ele tinha um olhar estranho
quando seus olhos se encontraram, o olhar de alguém que acabou de acordar e se
pergunta se o que eles estão olhando é real ou um sonho.
Foi Jem que fugiu e subiu as escadas correndo até ela. Quando ele a alcançou, ela
viu que ele tinha uma cor forte no rosto, e seus olhos estavam brilhantes e quentes. Ela se
perguntou quanto da droga Will o havia deixado tomar, para que ele estivesse preparado
para lutar.
“Tessa—” ele disse.
“Eu não queria dizer adeus,” ela disse rapidamente. “Mas—parece estranho deixá-
los partir sem dizer nada.”
Ele olhou para ela curiosamente. Ele fez algo que a surpreendeu então, e pegou a
mão dela, virando-a. Ela baixou o olhar para ela, para suas unhas roídas, os arranhões
ainda cicatrizando nas costas dos dedos.
Ele beijou as costas da mão dela, apenas um leve toque de sua boca, e seu cabelo—
macio e leve como seda—roçou o pulso dela quando ele baixou a cabeça. Ela sentiu um
choque passar por ela, forte o suficiente para surpreendê-la, e ela ficou sem fala enquanto
ele se levantava, sua boca se curvando em um sorriso.
“Mispá,” ele disse.
Ela piscou para ele, um pouco atordoada. “O quê?”

“Um tipo de adeus sem dizer adeus,” ele disse. “É uma referência a uma passagem
da Bíblia. ‘E Mispá, porquanto disse: Atente o Senhor entre mim e ti, quando estivermos apartados
um do outro.’72”
72 Gênese, 31:49
Não houve chance de Tessa dizer qualquer coisa em resposta, porque ele havia
virado e descido os degraus para se juntar a Will, que estava imóvel como uma estátua,
seu rosto virado para cima, no pé dos degraus. As mãos dele, revestidas em luvas negras,
estavam em punhos ao seu lado, Tessa pensou. Mas talvez fosse um truque de luz, porque
quando Jem o alcançou e o tocou no ombro, ele se virou com uma risada, e sem outro
olhar para Tessa, ele se balançou para o assento do cocheiro, Jem o seguindo. Ele estalou o
chicote, e a carruagem crepitou pelo portão, que se fechou atrás dela como se puxado por
mãos invisíveis. Tessa ouviu a tranca se fechar, um clique pesado no silêncio, e então o
som de sinos de igreja tocando em algum lugar da cidade.
Sophie e Agatha estavam esperando na entrada por Tessa quando ela voltou para
dentro; Agatha estava dizendo algo para Sophie, mas Sophie não parecia estar escutando.
Ela olhou para Tessa quando esta entrou, e algo no modo como ela a olhou, por um
momento, lembrou Tessa do jeito que Will a tinha olhado no pátio. Mas isto era ridículo;
não haviam duas pessoas no mundo mais diferentes que Sophie e Will.
Tessa saiu do caminho quando Agatha foi fechar as grandes, pesadas portas duplas.
Ela havia acabado de fechá-las, ofegando levemente, quando a maçaneta da porta à
esquerda, intocada, começou a girar.
Sophie franziu a testa. “Eles não podem estar de volta tão rápido, podem?”
Agatha baixou o olhar, perplexa, para a maçaneta girando, suas mãos ainda
apoiadas contra a porta—então recuou quando as portas se abriam de uma vez à sua
frente.
Uma silhueta estava na soleira, iluminada por trás pela luz de fora. Por um
momento tudo que Tessa podia dizer era que ele era alto e estava vestindo um casaco
desgastado. Agatha, sua cabeça se inclinando para trás quando olhou para cima, disse em
uma voz assustada, “Oh, meu Deu—”
A silhueta se moveu. Luz refletiu em metal; Agatha gritou e cambaleou. Ela parecia
estar tentando se afastar do estranho, mas algo a estava impedindo.
“Deus querido no Céu,” Sophie sussurrou. “O que é aquilo?”
Por um momento Tessa viu toda a cena congelada, como se fosse uma pintura—a
porta aberta, o autômato mecânico, aquele das mãos descarnadas, ainda no mesmo casaco
cinza usado. E ainda, Deus amado, com o sangue de Jem nas mãos, seco vermelho-preto
na carne acinzentada, e as tiras de cobre aparecendo onde a pele havia sido arranhada ou

arrancada. Uma mão ensanguentada agarrou o pulso de Agatha; presa na outra estava
uma faca longa e fina. Tessa se moveu para frente, mas já era tarde demais. A criatura
girou a faca com enorme velocidade, e a enterrou no peito de Agatha.
Agatha engasgou, suas mãos indo para a faca. A criatura estava de pé, esfarrapada
e aterrorizante e imóvel enquanto ela golpeava o cabo da faca; então, com apavorante
rapidez, a criatura arrancou a faca, deixando-a cair no chão. O autômato não ficou para vê-
la cair, mas se virou e saiu de volta pela mesma porta que havia entrado.
Estimulada, Sophie gritou “Agatha!” e correu para seu lado. Tessa correu para a
porta. A criatura mecânica estava descendo os degraus, para o pátio vazio. Ela ficou
encarando-a. Para que na terra ela havia vindo, e por que estava saindo agora? Mas não
havia tempo para alongar-se naquilo. Ela alcançou a corda da campainha e a puxou, forte.
Enquanto o som ressoava pelo edifício, ela fechou rapidamente a porta, deixando a tranca
cair em seu lugar, então se virou para ajudar Sophie.
Juntas elas conseguiram levantar Agatha e meio carregar, meio arrastá-la pelo
aposento, onde elas caíram de joelhos a seu lado. Sophie, rasgando tiras de tecido de seu
avental branco e pressionando-as contra a ferida de Agatha, disse em um tom de pânico
selvagem, “Eu não compreendo, senhorita. Nada deveria ser capaz de tocar aquela
porta—ninguém exceto alguém com sangue Caçador das Sombras deveria ser capaz de
girar a maçaneta.”
Mas ele tinha sangue Caçador das Sombras, Tessa pensou com um horror súbito. O
sangue de Jem, manchando suas mãos de metal como tinta. Seria por isso que ele havia se
inclinado sobre Jen naquela noite depois da ponte? Seria por isso que ele havia fugido,
uma vez que havia conseguido o que queria—o sangue de Jem? E isso não significaria que
ele poderia voltar quando quisesse?
Ela começou a se levantar, mas já era tarde demais. A barra que mantinha a porta
fechada se quebrou com um barulho de tiro, e caiu no chão em dois pedaços. Sophie
levantou o olhar e gritou novamente, mas não se moveu de perto de Agatha quando a
porta se abria com um estrondo, uma janela para a noite.
Os degraus do Instituto já não estavam mais vazios; estavam repletos, mas não de
pessoas. Monstros mecânicos os enxameavam, seus movimentos bruscos, seus rostos
vazios e encarando. Eles não eram totalmente como os que Tessa havia visto antes. Alguns
pareciam como se tivessem sido montados tão apressadamente que não tinham rostos,
apenas ovais lisos de metal emplastrados aqui e ali com pedaços desiguais de pele
humana. Ainda mais horrível, vários deles tinham pedaços de maquinaria no lugar de
braços ou pernas. Um autômato tinha uma foice onde seu braço deveria estar; outro
ostentava uma serra que sobressaía da manga pendente de sua camisa como um arremedo
de um braço de verdade.

Tessa se levantou e se jogou contra a porta aberta, tentando atirá-la fechada. Era
pesada, e parecia se mover agonizantemente devagar. Atrás dela, Sophie estava gritando,
desamparadamente, de novo e de novo. Agatha estava horrivelmente silenciosa. Com um
arquejo entrecortado Tessa empurrou a porta mais uma vez—
E puxou suas mãos de volta quando a porta foi arrancada de seu aperto, arrancada
de suas dobradiças como um punhado de ervas-daninhas arrancadas da terra. Ela recuou
quando o autômato que havia agarrado a porta a jogava de lado e se jogava para frente,
seus pés de metal retinindo contra a pedra enquanto ele se jogava pela soleira—seguido
por outro e depois outro de seus irmãos mecânicos, pelo menos uma dúzia deles,
avançando em direção a Tessa com seus braços monstruosos estendidos.

Quando Jem e Will alcançaram a mansão em Highgate, a lua havia começado a
subir. Highgate era em uma colina na parte norte de Londres, dominando uma excelente
vista da cidade abaixo, pálida sob a luz da lua, que tornava a névoa e fumaça de carvão
que pairavam sobre a cidade uma nuvem prateada. Uma cidade de sonho, Will pensou,
flutuando no ar. Um pouco de poesia perdurava nos cantos de sua mente, algo sobre a
terrível maravilha de Londres, mas seus nervos estavam tensos com a tensão estridente da
batalha iminente, e ele não conseguia lembrar as palavras.
A casa era uma grande pilha Georgiana, construída em uma abundante área
arborizada. Um muro alto de tijolos corria em volta dela, o escuro teto inclinado com
mansardas mal visível sobre ele da rua. Um arrepio de frio passou por Will enquanto eles
se aproximavam, mas ele não estava surpreso por sentir tal coisa em Highgate. Eles
estavam perto do que os londrinos chamavam de Bosques da Cascalheira nos limites da
cidade, onde milhares de corpos haviam sido despejados durante a Grande Praga. Sem um
enterro adequado, suas sombras raivosas assombravam a vizinhança mesmo agora, e Will
havia sido enviado para cá mais de uma vez, graças às atividades deles.
Um portão negro de metal encaixado no muro da mansão mantinha intrusos fora,
mas a runa de Abertura de Jem fez pouco trabalho da tranca. Após deixar a carruagem
logo dentro do portão, os dois Caçadores das Sombras se encontraram na estrada curva
que levava à entrada da frente da casa. O caminho estava cheio de ervas daninhas e
coberto pela grama alta, e os jardins se estendiam ao redor dela, pontilhados com
construções externas desmoronando e os tocos enegrecidos de árvores mortas.
Jem se virou para Will, com os olhos febris. “Vamos continuar?”
 Will tirou uma lâmina de serafim de seu cinto. “Israfel,” ele sussurrou, e a arma
resplandeceu como um garfo de relâmpago contido. Lâminas de serafim queimavam tão
brilhantemente que Will sempre esperava que elas soltassem calor, mas suas lâminas eram
frias como gelo ao toque. Ele se lembrou de Tessa dizendo a ele que o Inferno era frio, e ele
lutou contra o estranho impulso de sorrir à memória. Eles haviam estado correndo por

suas vidas, ela deveria estar aterrorizada, e lá ela estava, contando a ele sobre o Inferno em
tons americanos precisos.
“Sim,” ele disse para Jem. “Está na hora.”
Eles subiram os degraus da frente e tentaram as portas. Embora Will tivesse
esperado que elas estivessem trancadas, elas estavam abertas, e cederam ao toque com um
rangido ressonante. Ele e Jem se esgueiraram para dentro da casa, a luz de suas lâminas de
serafim iluminando o caminho.
Eles se encontraram em um grande vestíbulo. As janelas arqueadas atrás deles
haviam provavelmente sido magníficas um dia. Agora elas alternavam painéis inteiros e
quebrados. Através das rachaduras no vidro, uma vista do parque descuidado e crescido
além era visível. O passeio de mármore estava rachado e quebrado, ervas daninhas
crescendo como se estivessem crescendo pelas pedras do passeio. À frente de Will e Jem,
uma grande escadaria curva se inclinava para cima, em direção ao primeiro andar cheio de
sombras.
“Isso não pode estar certo,” Jem sussurrou. “É como se ninguém tivesse estado aqui
nos últimos cinquenta anos.”
Mal ele acabou de falar quando um som surgiu no ar noturno, um som que eriçou
os cabelos do pescoço de Will e fez as Marcas em seu ombro queimarem. Era um canto—
mas não um canto agradável. Era uma voz capaz de alcançar notas que nenhuma voz
humana conseguiria. Acima, os pingentes de cristal do candelabro chocalhavam como
taças de vinho colocadas para vibrar ao toque de um dedo.
“Alguém está aqui,” Will murmurou de volta. Sem outra palavra ele e Jem se
viraram para que estivessem virados de costas um para o outro. Jem estava de frente para
a porta da frente aberta; Will, para a vasta escadaria curva.
Algo apareceu no topo da escada. A princípio Will viu apenas um padrão alternado
de preto e branco, uma sombra que se movia. À medida que aquilo foi descendo, o som
cantante ficou mais alto, e os cabelos no pescoço de Will se eriçaram ainda mais. Suor
umedecia o cabelo em suas têmporas e corria pela curva de sua coluna, apesar do ar
gelado.
Ela estava a meio caminho nas escadas antes de ele reconhecê-la—Sra. Dark, seu
corpo longo e ossudo vestido em um tipo de hábito de freira, uma túnica escura sem
forma que caía de seu pescoço até seus pés. Uma lanterna sem luz balançava de uma mão
em garra. Ela estava sozinha—embora não exatamente, Will percebeu quando ela pausou
no pé da escada, pois a coisa que ela estava agarrando em sua mão não era uma lanterna,
afinal. Era a cabeça cortada de sua irmã.
“Pelo Anjo,” Will sussurrou. “Jem, olhe.”

Jem olhou, e praguejou também. A cabeça da Sra. Black balançava de uma trança de
cabelo grisalho, que a Sra. Dark agarrava como se fosse um artefato inestimável. Os olhos
da cabeça estavam abertos, e perfeitamente brancos, como ovos cozidos. A boca também
estava aberta, uma linha de sangue seco saindo de um dos cantos da boca.
A Sra. Dark parou sua canção e deu risadinhas, como uma estudante. “Malcriados,
malcriados,” ela disse. “Invadindo minha casa assim. Maus pequenos Caçadores das
Sombras.”
“Eu pensei,” Jem disse baixinho, “Que a outra irmã estava viva.”
“Talvez esta trouxe a irmã de volta à vida e então cortou a cabeça dela de novo?”
Will murmurou. “Parece muito trabalho pra nenhum ganho real, mas então...”
“Nefilim assassino,” a Sra. Dark rosnou, fixando seu olhar em Will. “Não contente
em matar minha irmã uma vez, não é? Você precisa voltar e me impedir até de dar a ela
uma segunda vida. Você sabe—você tem alguma ideia—como é estar completamente
sozinha?”
“Mais do que você jamais possa imaginar,” Will disse rijamente, e viu Jem olhar de
lado para ele, parecendo intrigado. Estúpido, Will pensou. Eu não deveria dizer tais coisas.
A Sra. Dark oscilou em seus pés. “Você é mortal. Você está sozinho por um
momento de tempo, uma única respiração do universo. Eu estou sozinha para sempre.”
Ela abraçou a cabeça fortemente. “Que diferença faz a você? Certamente há crimes piores
em Londres que requerem a atenção dos Caçadores das Sombras do que minhas pobres
tentativas de trazer minha irmã de volta.”
O olhar de Will encontrou o de Jem. O outro garoto deu de ombros. Claramente ele
estava tão confuso quanto Will. “É verdade que necromancia é contra a Lei,” Jem disse,
“mas vincular energias demoníacas também é. E isso exige nossa atenção, bastante
urgentemente.”
A Sra. Dark os encarou. “Vincular energias demoníacas?”
“Não há por que fingir. Sabemos seus planos exatamente,” disse Will. “Sabemos
dos autômatos, o feitiço de ligação, seu serviço ao Magister—a quem o resto do nosso
Enclave está, exatamente agora, localizando até seu esconderijo. Até o fim desta noite ele
será completamente apagado. Não há ninguém para você chamar, nenhum lugar para se
esconder.”
Àquilo, a Sra. Dark empalideceu marcadamente. “O Magister?” ela sussurrou.
“Vocês encontraram o Magister? Mas como…”
“Isso mesmo,” Will disse. “De Quincey nos escapou uma vez, mas não desta.
Sabemos onde ele está, e—”

Mas as palavras dele foram abafadas—por risadas. A Sra. Dark estava dobrada no
corrimão da escadaria, uivando de contentamento. Will e Jem encararam em confusão
enquanto ela se endireitava. Lágrimas negras de hilaridade riscavam seu rosto. “De
Quincey, o Magister!” ela gritou. “Aquele vampiro rufião, envaidecido! Oh, que piada!
Seus tolos, seus estúpidos tolinhos!”


18
Trinta Peças de Prata


Borremos seu nome, então, façamos o registro de mais uma alma perdida,
Uma tarefa a mais recusada, mais um passeio não trilhado,
Mais um triunfo do diabo e tristeza para os anjos,
Um erro a mais para o homem, um insulto a mais para Deus!
—Robert Browning, “O Caudilho Perdido”


Tessa cambaleou para trás da porta. Atrás dela, Sophie estava congelada, ajoelhada
sobre Agatha, com as mãos apertadas contra o peito da mulher mais velha. Sangue
encharcava através da lamentável bandagem de pano em seus dedos; Agatha havia ficado
de uma cor horrível e estava fazendo um barulho como uma chaleira fervendo. Quando
ela viu os autômatos mecânicos, seus olhos se arregalaram e ela tentou empurrar Sophie
para longe com as mãos sangrentas, mas Sophie, ainda gritando, agarrou-se tenazmente à
mulher mais velha, se recusando a se mover.
“Sophie!” Houve um barulho de passos na escada, e Thomas irrompeu na porta de
entrada, seu rosto muito branco. Em sua mão ele segurava a espada enorme que Tessa o
tinha visto segurando mais cedo. Com ele estava Jessamine, guarda-sol na mão. Atrás dela
estava Nathaniel, parecendo absolutamente aterrorizado. “O que na terra—?”
Thomas interrompeu, olhando de Sophie, Tessa, e Agatha para a porta e de volta.
Os autômatos tinham chegado a um impasse. Eles estavam em uma linha dentro da porta,
imóveis como marionetes cujas cordas já não estavam sendo puxadas. Suas faces em
branco olhavam diretamente para frente.
“Agatha!” A voz de Sophie levantou-se a um grito. A mulher mais velha estava
imóvel, os olhos abertos, mas sem foco. Suas mãos pendiam molemente em seus lados.
Apesar de fazer sua pele arrepiar virar as costas para as máquinas, Tessa se curvou
e colocou a mão no ombro de Sophie. A outra menina a tirou; ela estava choramingando
baixinho, como um cachorro chutado. Tessa lançou um olhar por trás dela para os
autômatos. Eles ainda estavam imóveis como peças de xadrez, mas quanto tempo isso
podia durar? “Sophie, por favor!”

Nate estava respirando em arquejos, os olhos fixos na porta, seu rosto tão branco
como giz. Ele parecia como se não quisesse nada mais do que virar e correr. Jessamine
olhou para ele uma vez, um olhar de surpresa e desdém, antes de se virar para Thomas.
“Levante-a,” disse ela. “Ela irá ouvir você.”
Depois de um simples olhar surpreso para Jessamine, Thomas se abaixou e, gentil,
mas firmemente, tirou as mãos de Sophie de Agatha, levantando-a a seus pés. Ela se
agarrou a ele. Suas mãos e braços estavam vermelhos como se ela tivesse vindo de um
matadouro, e seu avental estava quase rasgado ao meio e marcado com impressões de
mãos ensanguentadas. “Srta. Lovelace,” disse ele em voz baixa, mantendo Sophie perto
contra ele com a mão que não segurava a espada. “Leve Sophie e a Srta. Gray ao
Santuário—”
“Não,” disse uma voz arrastada atrás de Tessa, “eu acho que não. Ou melhor, com
certeza, pegue a serva e vá aonde quiser com ela. Mas a Srta. Gray ficará aqui. Assim como
seu irmão.”
A voz era familiar—chocantemente. Muito lentamente, Tessa virou.
Parado entre as máquinas congeladas como se ele tivesse simplesmente aparecido
ali por magia estava um homem. De aparência tão comum quanto Tessa havia pensado
antes, embora o seu chapéu tivesse sumido agora, e sua cabeça grisalha estivesse nua sob a
luz de bruxa.
Mortmain.
Ele estava sorrindo. Não como tinha sorrido antes, com alegria afável. Seu sorriso
era agora quase doentio em sua alegria. “Nathaniel Gray,” disse ele. "Muito bem feito.
Admito que minha fé em você foi testada—testada dolorosamente—mas você se
recuperou admiravelmente de seus erros passados. Estou orgulhoso de você.”
Tessa virou-se para olhar para o irmão, mas Nate parecia ter esquecido que ela
estava lá—que qualquer outra pessoa estava lá. Ele estava olhando através dela para
Mortmain, com a mais estranha expressão—uma mistura de medo e adoração—
estampada no rosto. Ele moveu-se para frente, empurrando Tessa; ela estendeu a mão
para segurá-lo, mas ele sacudiu a mão dela com um movimento de aborrecimento. Por
fim, ele estava de pé em frente a Mortmain.
Com um grito, ele caiu de joelhos e apertou as mãos na frente dele, quase como se
estivesse rezando.
“Sempre foi meu único desejo,” disse ele, “servi-lo, Magister.”
* * *
Sra. Dark ainda estava rindo.

“Mas o que é isso?” Jem disse em confusão, erguendo a voz para ser ouvido sobre
ela gargalhadas. “O que você quer dizer?”
Apesar de sua aparência desgastada a Sra. Dark conseguiu um ar de triunfo. “De
Quincey não é o Magister,” ela zombou. “Ele é apenas um estúpido sugador de sangue,
nada melhor do que os outros. Que vocês foram tão facilmente enganados prova que
vocês não têm ideia de quem o Magister é—ou o que estão enfrentando. Vocês estão
mortos, pequenos Caçadores das Sombras. Pequenos homens mortos andando.”
Aquilo era demais para o temperamento de Will. Com um grunhido, ele se lançou
em direção aos degraus, sua lâmina de serafim estendida. Jem gritou para ele parar, mas
era tarde demais. Sra. Dark, os lábios puxados para trás de seus dentes como uma cobra
silvando, girou o braço para frente e atirou a cabeça decepada de sua irmã em direção a
Will. Com um grito de nojo ele desviou, e ela aproveitou a oportunidade para descer os
degraus, passando por Will, e pelo portal arqueado no lado oeste do vestíbulo, para além
das sombras.
A cabeça da Sra. Black, enquanto isso, desceu rolando vários degraus e veio parar
gentilmente contra a ponta da bota de Will. Ele olhou para baixo, e fez uma careta. Uma de
suas pálpebras havia se fechado, e sua língua estava pendurada, pálida e parecida com
couro, fora de sua boca, para todo o mundo como se ela o estivesse olhando de soslaio.
“Posso estar doente,” anunciou.
“Não há tempo para você ficar doente,” disse Jem. “Venha—”
 E ele correu através do arco atrás da Sra. Dark. Cutucando a cabeça decepada da
feiticeira para fora do caminho com a ponta da bota, Will seguiu seu amigo em uma
corrida.
* * *
“Magister?” Tessa repetiu sem entender. Mas isso é impossível. De Quincey é o
Magister. Aquelas criaturas sobre a ponte, elas disseram que o serviam. Nate disse... Ela encarou o
irmão. “Nate?”
Falar em voz alta foi um erro. O olhar de Mortmain caiu sobre Tessa, e ele sorriu.
“Capturem a trocadora de formas,” disse ele para as criaturas mecânicas. “Não deixe-a ir.”
“Nate!” Tessa gritou, mas seu irmão nem mesmo se virou para olhar para ela
quando as criaturas, trazidas de volta à vida subitamente, lançaram-se para frente,
zumbindo e clicando, movendo-se em direção a Tessa. Uma delas a agarrou, os braços de
metal como um torno enquanto cercaram seu peito, esmagando sua respiração.
Mortmain sorriu para Tessa. “Não seja muito dura com o seu irmão, Srta. Gray. Ele
realmente é mais inteligente do que eu lhe dei crédito. Foi ideia dele que eu atraísse os

jovens Carstairs e Herondale para outro lugar com um conto rebuscado, para que eu
pudesse entrar sem ser molestado.”
“O que está acontecendo?” A voz de Jessamine tremia enquanto ela olhava de Nate,
para Tessa, para Mortmain, e de volta. “Eu não entendo. Quem é este, Nate? Por que você
está ajoelhando por ele?”
“Ele é o Magister,” disse Nate. “Se você fosse inteligente, se ajoelharia também.”
Jessamine pareceu incrédula. “Este é de Quincey?”
Os olhos de Nate brilharam. “De Quincey é um peão, um servo. Ele responde ao
Magister. Poucos até mesmo sabem a verdadeira identidade do Magister, eu sou um dos
escolhidos. Dos favorecidos.”
Jessamine fez um barulho grosseiro. “Escolhido para se ajoelhar no chão, não é?”
Os olhos de Nate brilharam, e ele ficou de pé. Ele gritou alguma coisa para
Jessamine, mas Tessa não pôde ouvi-lo. O manequim de metal tinha reforçado seu aperto
sobre ela ao ponto onde ela mal conseguia respirar, e manchas escuras estavam
começando a flutuar na frente de seus olhos. Ela estava vagamente consciente de
Mortmain gritando com a criatura para afrouxar o aperto sobre ela, mas a criatura não
obedeceu. Tessa golpeou os braços de metal com dedos enfraquecidos, mal consciente de
algo flutuando em sua garganta, uma vibração que parecia como se um pássaro ou uma
borboleta estivesse preso sob a gola do vestido. A corrente ao redor de seu pescoço estava
vibrando e se contraindo. Ela conseguiu olhar para baixo, sua visão embaçada, e viu, para
sua perplexidade, que o pequeno anjo de metal tinha saído de baixo da gola de seu
vestido; ele se elevou, levantando a corrente sobre a cabeça dela. Seus olhos pareciam
brilhar quando ele voou para cima. Pela primeira vez as suas asas metálicas estavam
estendidas, e Tessa viu que cada asa era afiada com algo brilhante e amolado como uma
navalha. Enquanto ela observava em espanto, o anjo mergulhou como uma vespa,
cortando com as bordas de suas asas na cabeça da criatura segurando-a—cortando através
do cobre e metal, formando uma chuva de faíscas vermelhas.
As faíscas picaram o pescoço de Tessa como uma chuva de cinzas quentes, mas ela
mal percebeu; os braços da criatura afrouxaram em volta dela, e ela arrancou-se dali,
enquanto a criatura girava e cambaelava, sacudindo os braços cegamente à frente. Ela não
podia deixar de ser lembrada de alguma forma de um desenho que ela tinha visto de um
cavalheiro com raiva em uma festa no jardim espantando abelhas. Mortmain, notando
uma batida muito tarde o que estava acontecendo, gritou, e as outras criaturas
cambalearam em movimento, indo para Tessa. Ela olhou ao redor freneticamente, mas não
pôde ver o minúsculo anjo. Ele parecia ter desaparecido.
“Tessa! Saia da frente!” Uma pequena mão fria pegou em seu pulso. Era Jessamine,
puxando-a para trás, quando Thomas, tendo soltado Sophie, mergulhava na frente dela.
Jessamine puxou Tessa para trás dela, em direção às escadas na parte oposta da porta de

entrada, e seguiu em frente com seu guarda-sol girando. Seu rosto estava fixo com
determinação. Foi Thomas quem desferiu o primeiro golpe. Jogando-se para frente com
sua espada, ele cortou o peito de uma criatura que estava cambaleando em direção a ele,
mãos estendidas. O homem-máquina cambaleou para trás, zumbindo alto, faíscas
vermelhas borrifando de seu peito como sangue. Jessamine riu com a visão e golpeou ao
redor com seu guarda-sol. A borda girante dele cortou as pernas de duas das criaturas,
enviando-as para frente para cair no chão como pescado desembarcado.
Mortmain parecia vexado. “Oh, pelo amor de Deus. Seus—” Ele estalou os dedos,
apontando para um autômato, um que tinha algo que parecia um tubo de metal soldado
ao seu pulso direito. “Livre-se dela. A Caçadora das Sombras.”
A criatura levantou seu braço de forma desajeitada. Um raio de fogo vermelho saiu
do tubo de metal. Ele atingiu Jessamine direto no peito, derrubando-a para trás. Seu
guarda-sol deslizou de sua mão quando ela bateu no chão, seu corpo se contorcendo, os
olhos abertos e vidrados.
Nathaniel, que tinha se movido para ficar ao lado Mortmain, à margem da
confusão, riu.
Um raio crepitante de ódio passou por Tessa, chocando-a com sua intensidade. Ela
queria se jogar em Nate e rasgar seu rosto com as unhas, chutá-lo até que ele gritasse. Não
demoraria muito, ela sabia. Ele sempre foi um covarde quando dor estava envolvida. Ela
começou a avançar, mas as criaturas, tendo lidado com Jessamine, já se voltavam na
direção dela. Thomas, seu cabelo grudado em seu rosto com o suor e um longo e
sangrento rasgo na frente de sua camisa, moveu-se para se colocar na frente dela. Ele
estava se virando magnificamente com a espada, com grandes, vastos golpes. Era difícil
acreditar que ele não estava cortando as criaturas em tiras—e ainda assim, elas se
mostraram surpreendentemente ágeis. Esquivando-se de seu caminho, elas contiuaram
vindo, os olhos fixos em Tessa. Thomas se virou para olhar para ela, seu olhar selvagem.
“Srta. Gray! Agora! Pegue Sophie!”
Tessa hesitou. Ela não queria correr. Ela queria manter-se firme. Mas Sophie estava
encolhida, paralisada trás dela, os olhos cheios de terror.
“Sophie!” Thomas gritou, e Tessa podia ouvir o que estava em sua voz, e sabia que
ela estava certa sobre seus sentimentos por Sophie. “O Santuário! Vá!”
“Não!” Mortmain gritou, virando-se para a criatura mecânica que tinha atacado
Jessamine. Enquanto a criatura levantava o braço, Tessa segurou o pulso de Sophie e
começou a arrastá-la em direção à escada. Um raio de fogo vermelho atingiu a parede ao
lado delas, queimando a pedra. Tessa gritou, mas não diminuiu a velocidade, puxando
Sophie até a escada em espiral, o cheiro de fumaça e morte seguindo-as enquanto elas
corriam.


Will correu pelo arco que separava o vestíbulo da sala além—e parou subitamente.
Jem já estava lá, olhando ao seu redor em confusão. Embora não houvesse saídas da sala
além da que eles tinham acabado de passar, a Sra. Dark não estava em nenhum lugar
visível.
A sala, porém, estava longe de estar vazia. Provavelmente tinha sido uma sala de
jantar uma vez, e enormes retratos adornavam as paredes, embora tivessem sido rasgados
e cortados até o não reconhecimento. Um enorme lustre de cristal estava pendurado
acima, frondoso com traços de teias de aranha cinza que vagavam no ar perturbado, como
antigas cortinas de renda. Ele provavelmente tinha uma vez pendido sobre uma grande
mesa. Agora balançava sobre um piso de mármore nu que havia sido pintado com uma
série de padrões de necromancia—uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo
dentro de um quadrado. Dentro do pentagrama havia uma estátua de pedra repulsiva, a
imagem de algum demônio hediondo, com membros deformados e mãos com garras.
Chifres subiam de sua cabeça.
Ao redor da sala estavam espalhados os restos de magia negra—ossos, penas e tiras
de pele, poças de sangue que pareciam borbulhar como champanhe negro. Havia gaiolas
vazias jogadas de lado, e uma mesinha baixa sobre a qual estava espalhada uma série de
facas sangrentas e tigelas de pedra cheias de desagradáveis líquidos escuros.
Em todas as lacunas entre as cinco pontas dos pentagramas estavam runas e
rabiscos que feriram os olhos de Will quando ele olhou para eles. Eles eram o oposto das
runas no Livro Cinza, que pareciam falar de glória e paz. Estes eram símbolos
necromânticos que falavam de ruína e morte.
“Jem,” Will disse, “estes não são os preparativos para um feitiço de ligação. Isto é
trabalho de necromancia.”
“Ela estava tentando trazer de volta sua irmã, não foi isso que ela disse?”
“Sim, mas ela não estava fazendo mais nada.” Uma terrível suspeita sombria
começou a aflorar no fundo da mente de Will.
Jem não respondeu; sua atenção parecia estar fixa em alguma coisa do outro lado da
sala. “Há um gato,” disse ele em um sussurro baixo, apontando. “Em uma daquelas
gaiolas ali.”
Will olhou para onde seu amigo apontou. Realmente, um eriçado gato cinza estava
encolhido em uma das gaiolas de animais fechadas ao longo da parede. “E?”
 “Ele ainda está vivo.”
 “É um gato, James. Temos coisas maiores com que nos preocupar—”
Mas Jem já estava se afastando. Ele alcançou a gaiola do animal e a recolheu,
segurando a gaiola ao nível dos olhos. O gato parecia ser um persa cinza, com uma cara

amassada e olhos amarelos que fitavam Jem malevolamente. De repente, o gato arqueou
as costas e chiou alto, os olhos fixos no pentagrama. Jem olhou para cima—e ficou
olhando.
“Will,” disse ele em tom de aviso. “Veja.”
 A estátua no meio do pentagrama havia se movido. Em vez de agachar, ela tinha se
esticado até que estivesse em pé. Seus olhos ardiam com um brilho sulfúrico. Foi apenas
quando sua linha tripla de bocas sorria que Will percebeu que não era de pedra afinal,
apenas uma criatura de rígida pele cinza de aspecto pétreo. Um demônio.
Will se abaixou e atirou Israfel reflexivamente, não esperando realmente que o
gesto fizesse muito. E não fez. Enquanto flutuava perto do pentagrama, a lâmina
ricocheteou em uma parede invisível e caiu no chão de mármore. O demônio no
pentagrama gargalhou. “Você me ataca aqui?” perguntou em uma voz alta e fina. “Você
poderia trazer o exército do Paraíso contra mim e eles não poderiam fazer nada! Nenhum
poder angelical pode quebrar este círculo!”
“Sra. Dark,” Will disse entre os dentes.
“Então você me reconhece agora, não é? Ninguém jamais disse que vocês Caçadores
das Sombras eram inteligentes.” O demônio arreganhou seus dentes esverdeados. “Esta é
a minha verdadeira forma. Uma surpresa feia para você, eu suponho.”
“Eu ousaria dizer que é uma melhoria,” disse Will. “Você não era muito de se olhar
antes, e pelo menos os chifres são dramáticos.”
“O que você é, então?” Jem perguntou, colocando a gaiola no chão junto a seus pés,
o gato ainda dentro dela. “Pensei que você e sua irmã fossem feiticeiras.”
“Minha irmã era uma feiticeira,” sibilou a criatura que tinha sido a Sra. Dark. “Eu
sou um demônio puro-sangue—Eidolon. Um trocador de formas. Como sua preciosa Tessa.
Mas, ao contrário dela, eu não posso me tornar o que eu me transformo. Eu não posso tocar
as mentes dos vivos ou mortos. Então o Magister não me quis.” Uma pequena mágoa na
voz da criatura. “Ele me pediu para treiná-la. Sua preciosa pequena protegida. Minha irmã
também. Nós sabemos os caminhos da Transformação. Fomos capazes de forçá-los nela.
Mas ela nunca foi grata.”
“Isso deve ter machucado você,” Jem disse em sua voz mais tranquilizante. Will
abriu a boca, mas vendo o olhar de aviso de Jem, fechou-a novamente. “Ver Tessa
conseguir o que você queria, e não apreciar isso.”
“Ela nunca compreendeu. A honra que estava sendo dada a ela. A glória que seria
dela.” Os olhos amarelos flamejavam. “Quando ela fugiu, a raiva do Magister caiu sobre
mim—eu o tinha desapontado. Ele lançou uma recompensa por mim.”

Isso balançou Jem, ou pareceu balançar. “Você quer dizer que de Quincey a queria
morta?”
“Quantas vezes devo lhe dizer que de Quincey não é o Magister? O Magister é—” O
demônio parou com um rosnado. “Você tenta me enganar, pequeno Caçador das Sombras,
mas seu truque não irá funcionar.”
Jem encolheu os ombros. “Você não pode permanecer nesse pentagrama para
sempre, Sra. Dark. Eventualmente, o resto do Enclave virá. Deixaremos você morrer à
míngua. E então você será nossa, e você sabe como a Clave lida com aqueles que violam a
Lei.”
Sra. Dark silvou. “Talvez ele tenha me abandonado,” disse ela, “mas eu ainda temo
mais o Magister do que temo você, ou seu Enclave.”
Mais do que temo o Enclave. Ela deveria ter ficado com medo, Will pensou. O que Jem
disse era verdade. Ela devia ter medo, mas não tinha. Na experiência de Will, quando
alguém que deveria ter medo não tinha, a razão era raramente bravura. Normalmente,
significava que eles sabiam algo que você não sabia.
“Se você não irá nos dizer quem é o Magister,” disse Will, sua voz afiada com aço,
“talvez você possa responder uma pergunta simples, em vez disso. É Axel Mortmain o
Magister?”
O demônio soltou um lamento, em seguida fechou as mãos ósseas sobre a sua boca
e se afundou, com os olhos queimando, ao chão. “O Magister. Ele irá pensar que eu lhe
disse. Eu nunca ganharei o seu perdão, agora—”
“Mortmain?” ecoou Jem. “Mas foi ele quem nos alertou— Ah.” Ele fez uma pausa.
“Eu vejo.” Ele tinha ficado muito branco; Will sabia que seus pensamentos estavam
seguindo o mesmo caminho tortuoso que os de Will. Ele provavelmente teria chegado lá
primeiro—Will suspeitava que Jem era na verdade mais inteligente do que ele próprio—
mas ele não tinha a tendência de Will para esperar o pior absoluto das pessoas e continuar
de lá. “Mortmain mentiu para nós sobre as Irmãs Sombrias e o feitiço,” acrescentou ele,
pensando em voz alta. “Na verdade, foi Mortmain que colocou a ideia na cabeça de
Charlotte, em primeiro lugar, que de Quincey era o Magister. Se não fosse por ele, nunca
teríamos suspeitado do vampiro. Mas por quê?”
“De Quincey é um animal repugnante,” lamentou a Sra. Dark, ainda agachada
dentro do pentagrama. Ela parecia ter decidido que não havia mais motivo para
dissimulação. “Ele desobedeceu Mortmain em cada turno, desejando ser o Magister ele
mesmo. Tal insubordinação deve ser punida.”
O olhar de Will encontrou o de Jem. Ele podia dizer que ambos estavam pensando a
mesma coisa. “Mortmain viu uma oportunidade para lançar suspeita sobre um rival,” Jem
disse. “É por isso que ele escolheu de Quincey.”

 “Ele poderia ter escondido aqueles planos para autômatos na biblioteca de de
Quincey,” concordou Will. “Não é como se de Quincey alguma vez admitiu que fossem
dele, ou mesmo pareceu reconhecê-los quando Charlotte os mostrou a ele. E Mortmain
poderia ter dito àqueles autômatos na ponte para dizerem que estavam trabalhando para o
vampiro. Na verdade, ele poderia ter gravado o simbolo de de Quincey no peito daquela
menina mecânica e a deixado na Casa Sombria para nós encontramos, também—tudo para
desviar a suspeita de si mesmo.”
“Mas Mortmain não é o único que já apontou o dedo a de Quincey,” disse Jem, e
sua voz era pesada. “Nathaniel Gray, Will. O irmão de Tessa. Quando duas pessoas
contam a mesma mentira...”
“Elas estão trabalhando juntas,” Will terminou. Ele sentiu, por um momento, algo
quase como satisfação, que rapidamente desapareceu. Ele não havia gostado de Nate
Gray, odiava a forma como Tessa o tratava como se ele não pudesse fazer nada errado, e
então desprezou a si mesmo por seu próprio ciúme. Saber que ele estava correto sobre o
caráter de Nate era uma coisa, mas a que preço?
A Sra. Dark riu, um som alto, lamentante. “Nate Gray,” ela cuspiu. “O pequeno
cachorrinho de colo humano do Magister. Ele vendeu a irmã a Mortmain, você sabe. Por
apenas um punhado de prata, foi. Por apenas alguns afagos à sua vaidade. Eu nunca teria
tratado minha própria irmã assim. E você diz que são os demônios que são maus, e os
seres humanos que precisam de proteção contra nós!” Sua voz levantou-se a uma
gargalhada.
Will a ignorou; sua mente estava girando. Deus, toda aquela história de Nathaniel
sobre de Quincey havia sido um truque, uma mentira para colocar a Clave perseguindo
uma pista falsa. Então, por que Mortmain apareceu assim que eles tinham ido? Para se
livrar de nós, Jem e eu, Will pensou sombriamente. Nate não poderia saber que nós dois não
estaríamos indo com Charlotte e Henry. Ele teve que improvisar algo rapidamente quando nós
ficamos para trás. Portanto, Mortmain e este artifício extra. Nate tinha estado junto com
Mortmain desde o início.
E agora, Tessa está no Instituto com ele. Will sentiu-se mal do estômago. Ele queria
virar e correr pela porta, correr de volta ao Instituto, e bater a cabeça de Nathaniel contra
uma parede. Somente anos de treinamento, e medo por Henry e Charlotte, o mantiveram
onde ele estava.
Will virou-se para a Sra. Dark. “Qual é o plano dele? O que o Enclave encontrará
quando chegar à Carleton Square? Abate certo? Responda-me!” ele gritou. O medo fez a sua
voz falhar. “Ou pelo Anjo, eu irei fazer com que a Clave lhe torture antes de você morrer.
Qual é o seu plano para eles?”

Os olhos amarelos da Sra. Dark brilharam. “Com o que o Magister importa?” ela
sibilou. “Com o que ele sempre se preocupou? Ele despreza os Nefilins, mas o que é que
ele quer?”
“Tessa,” disse Jem imediatamente. “Mas ela está segura no Instituto, e até mesmo o
maldito exército mecânico dele não pode invadir. Mesmo sem nós lá—”
Com uma voz persuasiva Sra. Dark disse, “Uma vez, quando eu estava na confiança
do Magister, ele me falou de um plano que ele tinha para invadir o Instituto. Ele planejou
pintar as mãos de suas criaturas mecânicas com o sangue de um Caçador das Sombras,
permitindo-lhes abrir as portas.”
“O sangue de um Caçador das Sombras?” Will repetiu. “Mas—”
“Will.” Jem tinha a mão em seu peito, onde a criatura mecânica havia rasgado a
pele naquela noite nos degraus do Instituto. “Meu sangue.”
Por um instante, Will esteve perfeitamente imóvel, encarando seu amigo. Então,
sem uma palavra, ele virou-se e correu para as portas da sala de jantar; Jem, parando
apenas para pegar a gaiola do gato, o seguiu. Quando eles chegaram até elas, as portas se
fecharam como se empurradas, e Will parou em uma derrapagem. Ele se virou para ver
Jem atrás dele, olhando perplexo.
Em seu pentagrama a Sra. Dark uivava de tanto rir. “Nefilins,” ela ofegou entre
repiques. “Estúpidos, estúpidos Nefilins. Onde está o seu Anjo agora?”
 Enquanto eles olhavam, chamas enormes saltaram ao redor das paredes, lambendo
as cortinas que cobriam as janelas, cintilando ao longo das bordas do piso. As chamas
queimavam com uma cor azul-esverdeada estranha, e o cheiro era grosso e feio—o cheiro
de um demônio. Dentro de sua jaula o gato estava selvagem, jogando-se contra as grades
várias vezes e uivando.
Will pegou uma segunda lâmina de serafim de seu cinto e gritou, “Anael!” Luz
estourou da lâmina, mas a Sra. Dark apenas riu.
“Quando o Magister vir seus cadáveres carbonizados,” ela gritou, “então ele irá me
perdoar! Então ele irá me receber de volta!”
Sua risada aumentou, alta e horrível. A sala estava já escura de fumaça. Jem,
levantando a manga para cobrir a boca, disse a Will com voz asfixiada, “Mate-a. Mate-a, e
o fogo vai acabar.”
Will, sua mão apertada no punho da Anael, resmungou, “Você não acha que eu
faria, se pudesse? Ela está no pentagrama.”
“Eu sei.” Os olhos de Jem estavam cheios de significado. “Will, corte-o.”

Porque era Jem, Will soube o que ele queria dizer imediatamente, sem ter dito
explicitamente. Virando-se de frente para o pentagrama, ele levantou a brilhante Anael,
mirou, e arremessou a lâmina—não em direção ao demônio, mas na direção da corrente de
metal grossa que suportava o lustre maciço. A lâmina cortou ao longo da corrente como
uma faca através de papel, houve um som de rasgo, e o demônio teve tempo apenas de
gritar uma vez antes que o enorme lustre descesse, um cometa cadente de metal torcido e
estilhaços de vidro. Will jogou o braço sobre os olhos quando os estilhaços choveram sobre
todos eles—pedaços esmagados de pedra, fragmentos de cristal, e pedaços de ferrugem. O
chão tremeu debaixo dele, como se a terra estivesse tremendo.
Quando tudo finalmente ficou quieto, ele abriu os olhos. O lustre estava caído como
os restos de algum navio imenso, torcido e destruído, no fundo do mar. Poeira levantava
como fumaça dos escombros, e de um canto da pilha de vidro quebrado e metal uma gota
de sangue negro esverdeado escorria pelo mármore...
Jem tinha razão. As chamas tinham ido embora. O próprio Jem, ainda segurando a
alça da gaiola do gato, estava olhando para os destroços. Seu cabelo já pálido tinha
esbranquiçado ainda mais com pó de gesso, e suas bochechas estavam sujas com cinzas.
“Muito bem feito, William,” disse ele.
Will não respondeu; não havia tempo para isso. Jogando as portas—que abriram
com facilidade em suas mãos agora—abertas, ele saiu correndo da sala.

Tessa e Sophie voaram pelas escadas do Instituto juntas até Sophie suspirar, “Aqui!
Esta porta!” e Tessa a abriu e invadiu o corredor mais além. Sophie puxou seu pulso do
aperto de Tessa e girou para bater a porta atrás delas e fechar a tranca. Ela encostou-se a
ela por um momento, respirando com dificuldade, seu rosto coberto de lágrimas.
“Srta. Jessamine,” ela sussurrou. “Você acha—”
“Eu não sei,” disse Tessa. “Mas você ouviu Thomas. Temos de chegar ao Santuário,
Sophie. É onde nós estaremos seguras.” E Thomas quer que eu tenha certeza que você fique
segura. “Você terá que me mostrar onde é. Eu não posso encontrar meu caminho até lá
sozinha.”
Lentamente Sophie assentiu e colocou-se de pé. Em silêncio, ela levou Tessa através
de uma quantidade imensa de corredores até chegar ao corredor que ela se lembrava da
noite em que conheceu Camille. Depois de tirar uma lamparina de um suporte na parede,
Sophie a acendeu, e elas se apressaram adiante, até que finalmente chegaram às enormes
portas de ferro, com seu padrão de Cs. Indo bruscamente na frente das portas, Sophie pôs
a mão à boca. “A chave!” ela sussurrou. “Eu esqueci a maldita—perdoe-me, senhorita—
chave!”

Tessa sentiu uma onda de raiva frustrada, mas acalmou-se. Sophie tinha acabado de
ver uma amiga morrer em seus braços; ela dificilmente poderia ser responsabilizada por
esquecer uma chave. “Mas você sabe onde Charlotte a guarda?”
Sophie assentiu. “Eu irei correr e buscá-la. Você espera aqui, senhorita.”
 Ela correu pelo corredor. Tessa observou-a ir até que sua touca e mangas brancas
desbotassem nas sombras, deixando Tessa sozinha na escuridão. A única luz do corredor
vinha da iluminação que escoava por baixo as portas do Santuário. Ela apertou-se contra a
parede à medida que as sombras densas reuniam-se em torno dela, como se ela pudesse
desaparecer na parede. Ela continuava vendo o sangue escorrendo do peito de Agatha,
manchando as mãos de Sophie; continuava ouvindo o som frágil do riso de Nate quando
Jessamine foi abatida—
Ele veio de novo, duro e frágil como o vidro, ecoando na escuridão atrás dela.
Certa de que estava imaginando coisas, Tessa virou, de costas para a porta do
Santuário. Ante ela no corredor, onde um momento antes havia ar vazio, alguém estava de
pé. Alguém com cabelos louros e um sorriso largo em seu rosto. Alguém portando uma
faca longa e fina na mão direita.
Nate.
“Minha Tessie,” disse ele. “Isso foi muito impressionante. Eu não teria pensado que
você ou a serva podiam correr tão rápido.” Ele girou a faca entre os dedos. “Infelizmente
para você, meu mestre me presenteou com certos... poderes. Eu posso me mover mais
rápido do que você pode pensar.” Ele sorriu. “Provavelmente muito mais rápido, a julgar
por quanto tempo você demorou para entender o que estava acontecendo lá embaixo.”
“Nate.” A voz de Tessa tremia. “Não é tarde demais. Você pode parar com isso.”
“Parar o quê?” Nate olhou diretamente para ela, pela primeira vez desde que se
ajoelhou ante Mortmain. “Parar de adquirir um poder incrível e imenso conhecimento?
Parar de ser o acólito favorito do homem mais poderoso de Londres? Eu seria um tolo em
parar com tudo isso, pequena irmã.”
“Acólito favorito? Onde ele estava quando de Quincey estava prestes a drenar seu
sangue?”
“Eu o havia desapontado,” disse Nate. “Você o desapontou. Você fugiu das Irmãs
Sombrias, sabendo o que me custaria. Seu afeto fraternal deixa algo a desejar, Tessie.”
“Eu deixei as Irmãs Sombrias me torturarem por sua causa, Nate. Eu fiz tudo por
você. E você—você me deixou acreditar que de Quincey era o Magister. Todas as coisas
que você afirmou que de Quincey fez foram feitas por Mortmain, não é? É ele quem me
queria aqui. É ele que usou as Irmãs Sombrias. Todo o lixo sobre de Quincey era apenas
para atrair o Enclave para longe do Instituto.”

 Nate sorriu. “O que era que tia Harriet costumava dizer, que a esperteza que chega
tarde demais dificilmente é esperteza, no final de contas?”
“E o que o Enclave irá encontrar quando for para o endereço que você alegou ser o
ninho de de Quincey? Nada? Uma casa vazia, ruinas queimadas?” Ela começou a recuar,
até suas costas baterem nas portas de ferro frio.
Nate a seguiu, seus olhos brilhando como a lâmina na mão. “Oh, meu Deus, não.
Essa parte era verdade. Não serviria se o Enclave percebesse cedo demais que eles tinham
sido feitos de tolos, não é? É melhor mantê-los ocupados, e limpar o pequeno esconderijo
de de Quincey irá mantê-los muito ocupados, de fato.” Ele deu de ombros. “Você foi quem
me deu a ideia de deixar a culpa por tudo cair sobre o vampiro, você sabe. Depois do que
aconteceu na outra noite, ele era um homem morto, de qualquer maneira. Os Nefilins
tinham os olhos postos sobre ele, o que o deixava inútil para Mortmain. Enviar o Enclave
para se livrar dele e Will e Jem para livrar meu mestre da pestífera Sra. Dark—bem, são
três coelhos com uma só cajadada, realmente, não é? E um plano muito inteligente meu, se
me permite dizê-lo.”
 Ele estava se vangloriando, Tessa pensou com nojo. Orgulhoso de si mesmo. A
maior parte dela queria cuspir em seu rosto, mas ela sabia que devia mantê-lo falando,
dar-se uma chance de pensar em um jeito para sair da situação. “Você certamente nos
enganou,” disse ela, se odiando. “Quanto daquela história que você contou era verdade?
Quanto era mentira?”
“Muita coisa era verdade, se você realmente quer saber. As melhores mentiras são
baseadas na verdade, pelo menos em parte,” ele se gabou. “Eu vim para Londres,
pensando que iria chantagear Mortmain com o meu conhecimento de suas atividades
ocultas. O fato era que ele não poderia se importar menos com isso. Ele queria dar uma
olhada em mim, porque ele não tinha certeza, você vê. Não tinha certeza se eu era o
primeiro filho dos nossos pais ou o segundo. Ele pensou que eu poderia ser você.” Ele
sorriu. “Ele ficou tão feliz quando percebeu que eu não era a criança que ele estava
procurando. Ele queria uma menina, você vê.”
“Mas por quê? O que ele quer comigo?”
 Nate deu de ombros. “Eu não sei. Nem me importo. Ele me disse que se eu a
procurasse para ele e você acabasse por ser tudo o que ele esperava que seria, ele me faria
seu discípulo. Depois que você fugiu, ele me deu a de Quincey em vingança. Quando você
me trouxe aqui, para o coração dos Nefilins, foi uma segunda chance para oferecer ao
Magister o que eu tinha perdido para ele antes.”
 “Você o contatou?” Tessa sentiu-se mal. Ela pensou na janela aberta na sala de
estar, o rosto ruborizado de Nate, sua alegação de que ele não havia aberto. De alguma
forma, ela sabia, ele havia enviado uma mensagem a Mortmain. “Deixou que ele soubesse

que você estava aqui? Que estava disposto a nos trair? Mas você poderia ter ficado! Você
teria ficado a salvo!”
 “A salvo, e sem poder. Aqui eu sou um ser humano comum, fraco e desprezível.
Mas, como discípulo de Mortmain, serei sua mão direita quando ele dirigir o Império
Britânico.”
“Você está louco,” disse Tessa. “A coisa toda é ridícula.”
 “Eu lhe asseguro que não é. A esta época no ano que vem, Mortmain estará
morando no Palácio de Buckingham. O Império irá se curvar diante de seu governo.”
“Mas você não estará ao lado dele. Eu vejo como ele olha para você. Você não é um
discípulo; você é uma ferramenta a ser utilizada. Quando ele conseguir o que quer, irá
jogá-lo fora como lixo.”
O punho de Nate apertou a faca. “Não é verdade.”
“É verdade,” disse Tessa. “Titia sempre disse que você era confiante demais. É por
isso que você é um jogador horrível, Nate. Você mesmo é um grande mentiroso, mas você
nunca pode dizer quando está sendo enganado. Titia disse—”
“Tia Harriet.” Nate riu baixinho. “Tão infeliz o jeito que ela morreu.” Ele sorriu.
“Você não acha que foi um pouco estranho eu enviar uma caixa de chocolates? Algo que
eu sabia que você não comeria? Algo que eu sabia que ela comeria?”
 Náuseas tomaram Tessa, uma dor no estômago, como se a faca de Nate estivesse
retorcendo lá. “Nate—você não poderia—tia Harriet o amava!”
“Você não tem ideia do que eu poderia fazer, Tessie. Não faz a menor idéia.” Ele
falou rapidamente, quase febril em sua intensidade. “Você pensa em mim como um tolo.
Seu irmão insensato que precisa ser protegido do mundo. Tão facilmente enganado e
aproveitado. Ouvi você e Titia discutindo sobre mim. Eu sei que nenhuma de vocês nunca
pensou que eu ia fazer de mim alguma coisa, jamais faria qualquer coisa que você pudesse
se orgulhar de mim. Mas agora eu fiz. Agora eu fiz,” ele rosnou, como se completamente
inconsciente da ironia de suas palavras.
“Você fez de si mesmo um assassino. E acha que eu deveria estar orgulhosa? Eu
tenho vergonha de ser relacionada a você.”
“Relacionada a mim? Você não é nem humana. É alguma coisa. Você não é parte de
mim. A partir do momento que Mortmain me disse o que você realmente é, você estava
morta para mim. Eu não tenho nenhuma irmã.”
 “Então por que,” disse Tessa com uma voz tão baixa que ela mal conseguia ouvir-
se, “você continua me chamando de Tessie?”

Ele olhou para ela por um momento em confusão gritante. E quando ela olhou de
volta para sei irmão—o irmão que ela pensava que era tudo que restava a ela no mundo—
algo se moveu além do ombro de Nate, e Tessa se perguntou se ela estava vendo coisas, se
talvez ela fosse desmaiar.
 “Eu não estava te chamando de Tessie,” disse ele. Ele parecia perplexo, quase
perdido.
Um sentimento de tristeza insuportável tomou conta dela. “Você é meu irmão,
Nate. Você sempre será meu irmão.”
 Os olhos dele se estreitaram. Por um momento Tessa pensou que talvez ele a tinha
ouvido. Talvez ele reconsiderasse. “Quando você pertencer a Mortmain,” disse ele, “ele
será grato a mim para sempre. Porque sou eu quem tornou possível para ele ter você.”
O coração dela afundou. A coisa além do ombro de Nate moveu-se novamente,
uma perturbação das sombras. Era real, Tessa pensou. Não era imaginação dela. Havia
algo por trás de Nate. Algo se movendo em direção aos dois. Ela abriu a boca, depois
fechou de novo. Sophie, ela pensou. Ela esperava que a outra garota tivesse o juízo de fugir
antes que Nate a pegasse com a faca.
“Venha, então,” ele disse a Tessa. “Não há nenhuma razão para fazer um alarido. O
Magister não irá machucá-la—”
“Não pode ter certeza disso,” disse Tessa. A figura por trás de Nate estava quase
em cima dele. Havia algo pálido e brilhando na sua mão. Tessa lutou para manter os olhos
presos no rosto de Nate.
“Eu tenho certeza.” Ele parecia impaciente. “Eu não sou um tolo, Tessa—”
A silhueta explodiu em movimento. O objeto claro e reluzente subiu acima da
cabeça de Nate e desceu com uma forte queda. Nate se inclinou para frente, caindo no
chão. A lâmina rolou de sua mão quando ele bateu no tapete e ficou imóvel, sangue
manchando o seu cabelo loiro.
Tessa olhou para cima. Na penumbra, ela podia ver Jessamine sobre Nate, uma
expressão furiosa no rosto. Os restos de uma lâmpada quebrada ainda estavam agarrados
em sua a mão esquerda.
“Não um tolo, talvez.” Ela cutucou a forma caída de Nate com um dedo do pé
desdenhoso. “Mas não em seu momento mais brilhante, também.”
Tessa só podia olhar. “Jessamine?”
Jessamine olhou para cima. O decote de seu vestido estava rasgado, seu cabelo
tinha caído dos grampos, e havia uma contusão púrpura na bochecha direita. Ela deixou
cair a lâmpada, que por pouco não acertou mais uma vez na cabeça de Nate, e disse,

“Estou muito bem, se é sobre isso que você está tão alarmada. Não era eu que eles
queriam, afinal.”
 “Srta. Gray! Srta. Lovelace!” Era Sophie, sem fôlego de correr para cima e para
baixo nas escadas. Em uma mão ela segurava a fina chave de ferro do Santuário. Ela olhou
para Nate quando ela chegou ao final do corredor, ela abriu a boca em surpresa. “Ele está
bem?”
“Oh, quem se importa se ele está bem?” Jessamine disse, inclinando-se para pegar a
faca que Nate tinha deixado cair. “Depois de todas as mentiras que ele disse! Ele mentiu
para mim! Eu realmente pensei—” Ela ficou vermelho escuro. “Bem, isso não importa
agora.” Ela se ajeitou e girou para Sophie, com o queixo erguido. “Agora, não fique aí
parada olhando, Sophie, coloque-nos para dentro do Santuário antes que Deus saiba o quê
venha atrás de todas nós e tente nos matar de novo.”

 Will estourou para fora da mansão e para os degraus da frente, Jem logo atrás dele.
O gramado à frente deles era gritante ao luar; a carruagem estava no lugar onde tinham
deixado no meio da estrada. Jem ficou aliviado ao ver que os cavalos não tinham se
assustado, apesar de todo o ruído, embora ele supusesse que Balios e Xanthos,
pertencendo aos Caçadores das Sombras, deviam ter visto coisas muito piores.
“Will.” Jem parou ao lado de seu amigo, tentando esconder o fato de que ele
precisava recuperar o fôlego. “Devemos voltar ao Instituto o mais depressa possível.”
 “Você não terá nenhum desacordo de mim nessa parte,” Will deu a Jem um olhar
afiado; Jem se perguntou se seu rosto estava tão vermelho e febril quanto ele temia. A
droga, que ele havia tomado em grande quantidade antes que eles deixassem o Instituto,
estava passando mais rápido do que deveria; em outro momento, tal realização teria
formigado Jem com ansiedade. Agora ele a colocou de lado.
“Você acha que Mortmain esperava que nós matássemos a Sra. Dark?” perguntou
ele, menos porque sentia que a pergunta era urgente do que porque precisava de mais
alguns instantes para recuperar seu fôlego antes de subir na carruagem.
Will tinha o casaco aberto e estava remexendo em um dos bolsos. “Eu imagino que
sim,” ele disse, quase distraidamente, “ou, provavelmente, ele esperava que todos nós
mataríamos uns aos outros, o que teria sido ideal para ele. É evidente que ele também quer
de Quincey morto, e decidiu usar os Nefilins como seu próprio bando de assassinos
pessoais.” Will tirou uma faca dobrável de seu bolso interno e olhou para ela com
satisfação. “Um único cavalo,” observou ele, “é muito mais rápido que uma carruagem.”
Jem agarrou mais forte a gaiola que ele estava segurando. O gato cinzento, por trás
das grades, estava olhando ao redor com enormes olhos amarelos interessados. “Por favor,
me diga que você não fará o que suspeito que você fará, Will.”

Will abriu a faca e começou a andar para a estrada. “Não há tempo a perder, James.
E Xanthos pode puxar a carruagem perfeitamente bem sozinho, se você for o único nela.”
 Jem foi atrás dele, mas a gaiola pesada, bem como o seu próprio esgotamento
febril, abrandou seu progresso. “O que você está fazendo com essa faca? Você não irá
matar os cavalos, irá?”
 “Claro que não.” Will levantou a lâmina e começou a cortar os arreios que
prendiam Balios, seu preferido dos dois animais, à carruagem.
“Ah,” disse Jem. “Eu vejo. Você irá montar no cavalo como Dick Turpin e me deixar
aqui. Você enlouqueceu?”
“Alguém tem que cuidar do gato.” A cilha e as cordas cairam, e Will se lançou para
montar em Balios.
“Mas—” Realmente alarmado agora, Jem abaixou a gaiola. “Will, você não pode—”
Era tarde demais. Will cravou seus calcanhares nos lados do cavalo. Balios ergueu-
se e relinchou, Will agarrado resolutamente—Jem podia jurar que ele estava sorrindo—e
então o cavalo girou e correu na direção dos portões. Dentro de um momento, cavalo e
cavaleiro estavam fora de vista.


19
Boadiceia


Selaram-na minha em sua primeira respiração doce.
Minha, minha por direito, desde o nascimento até a morte.
Minha, minha—nossos pais juraram.
—Alfred, Lorde Tennyson, “Maud”


Quando as portas do Santuário se fecharam atrás delas, Tessa olhou em volta
apreensiva. A sala estava mais escura do que esteve quando ela tinha vindo conhecer
Camille. Não havia velas acesas nos grandes candelabros, apenas luz de bruxa
bruxuleante que emanava de arandelas nas paredes. A estátua de anjo continuava a chorar
suas lágrimas sem fim na fonte. O ar na sala era frio de arrepiar os ossos, e ela estremeceu.
Sophie, guardando a chave de volta em seu bolso, parecia tão nervosa quanto
Tessa. “Aqui estamos, então,” disse. “Está terrivelmente frio neste lugar.”
“Bem, não ficaremos aqui muito tempo, tenho certeza,” disse Jessamine. Ela ainda
estava segurando a faca de Nate, que brilhava em sua mão. “Alguém voltará para nos
resgatar. Will, ou Charlotte—”
“E encontrará o Instituto cheio de monstros mecânicos,” Tessa lembrou. “E
Mortmain.” Estremeceu. “Eu não tenho certeza que será tão simples como você faz
parecer.”
Jessamine olhou Tessa com frios olhos escuros. “Bem, você não precisa soar como se
a culpa fosse minha. Se não fosse por você, não estaríamos nessa confusão.”
Sophie tinha se movido para ficar entre os maciços pilares, e estava parecendo
muito pequena. Sua voz ecoou pelas paredes de pedra. “Isso não é muito gentil,
senhorita.”
Jessamine empoleirou-se na beira da fonte, então levantou-se novamente, franzindo
a testa. Ela limpou a parte traseira de seu vestido, agora manchado de umidade, de forma

exasperada. “Talvez não, mas é verdade. A única razão para o Magister estar aqui é por
causa de Tessa.”
 “Eu disse a Charlotte que tudo isso era culpa minha.” Tessa falou baixinho. “Eu
disse a ela para me mandar embora. Ela não quis.”
 Jessamine sacudiu a cabeça. “Charlotte é coração mole, e Henry também. E Will—
Will pensa que é Galahad. Quer salvar a todos. Jem, também. Nenhum deles é prático.”
“Eu suponho,” Tessa disse, “que se tivesse sido sua decisão para tomar...”
“Você teria sido posta para fora com nada além da chave da rua com seu nome,”
disse Jessamine, e fungou. Vendo a forma como Sophie a estava olhando, acrescentou,
“Oh, realmente! Não seja tão sentimental, Sophie. Agatha e Thomas ainda estariam vivos
se eu estivesse no comando, não é?”
Sophie empalideceu, sua cicatriz destacando-se ao longo de sua face como a marca
de um tapa. “Thomas está morto?”
Jessamine pareceu como se soubesse que tinha cometido um erro. “Eu não quis
dizer isso.”
 Tessa olhou para ela, duramente. “O que aconteceu, Jessamine? Vimos você
ferida—”
“E muito pouco qualquer uma de vocês fez sobre isso, tampouco,” Jessamine disse,
e sentou-se com um movimento brusco na mureta da fonte, aparentemente esquecendo-se
de se preocupar com o estado de seu vestido. “Eu estava inconsciente... e quando acordei,
vi que todos vocês tinham ido, menos Thomas. Mortmain tinha ido embora também, mas
aquelas criaturas ainda estavam lá. Uma delas começou a vir atrás de mim, e eu procurei
pelo meu guarda-sol, mas tinha sido pisoteado em retalhos. Thomas estava cercado por
aquelas criaturas. Eu fui em direção a ele, mas ele me disse para correr, então... eu corri.”
Ela inclinou a cabeça erguida em desafio.
Os olhos de Sophie piscaram. “Você o deixou lá? Sozinho?”
 Jessamine colocou a faca na mureta com um barulho irritado. “Eu sou uma dama,
Sophie. Espera-se que um homem se sacrifique pela segurança de uma dama.”
 “Isso é besteira!” As mãos de Sophie eram pequenos punhos apertados em seus
lados. “Você é uma Caçadora das Sombras! E Thomas é apenas um mundano! Você poderia
tê-lo ajudado. Você só não ajudou—porque você é egoísta! E—e abominável!”
Jessamine olhou boquiaberta para Sophie, sua boca escancarada. “Como você ousa
falar comigo como—”

Ela parou quando a porta do Santuário ressoou com o ruído da aldrava pesada
caindo. Soou novamente, e então uma voz familiar, elevada, chamou por elas, “Tessa!
Sophie! É Will.”
“Oh, graças a Deus,” Jessamine disse—claramente tão aliviada por estar livre de sua
conversa com Sophie quanto estava por ser resgatada—e correu em direção à porta. “Will!
É Jessamine. Estou aqui também!”
“E vocês três estão bem?” Will parecia ansioso de uma forma que apertou o peito de
Tessa. “O que aconteceu? Corremos pra cá de Highgate. Eu vi a porta do Instituto aberta.
Como, em nome do Anjo, Mortmain entrou?”
 “Ele se esquivou das barreiras de alguma forma,” disse Jessamine amargamente,
alcançando a maçaneta da porta. “Eu não tenho ideia de como.”
“Isso não importa agora. Ele está morto. As criaturas mecânicas estão destruídas.”
O tom de Will era tranquilizador—então por que, pensou Tessa, ela não se sentia
tranquilizada? Ela virou-se para olhar Sophie, que estava encarando a porta, uma severa
ruga acentuada entre os olhos, os lábios se movendo ligeiramente como se estivesse
sussurrando algo. Sophie tinha a Visão, Tessa lembrou—Charlotte havia dito. O senso de
inquietação de Tessa cresceu como uma onda.
 “Jessamine,” ela chamou. “Jessamine, não abra a porta—”
 Mas era tarde demais. A porta tinha aberto amplamente. E na soleira estava
Mortmain, ladeado por monstros mecânicos.

Obrigado ao Anjo pelos glamours, Will pensou. A visão de um menino montado no
pelo em um cavalo preto a galope descendo a Farringdon Road normalmente seria o
suficiente para chamar atenção mesmo em uma metrópole tão esgotada quanto Londres.
Mas enquanto Will passava—o cavalo levantando grandes lufadas de poeira de Londres
enquanto se erguia e bufava seu caminho pelas ruas—ninguém deu sinal de perturbação
ou virou para olhar. No entanto, mesmo que não parecessem vê-lo, encontraram motivos
para sair de seu caminho—um par de óculos caído, um passo para o lado para evitar uma
poça d'água na estrada—e evitar ser pisoteados.
Eram quase oito quilômetros de Highgate até o Instituto; havia levado três quartos
de hora para cobrir a distância na carruagem. Will e Balios demoraram apenas vinte
minutos para fazer a viagem de volta, embora o cavalo estivesse ofegante e espumando
com suor na hora em que Will correu através dos portões do Instituto e parou na frente
dos degraus.

 Seu coração parou imediatamente. As portas estavam abertas. Escancaradas, como
se convidando a noite. Era rigorosamente contra a Lei do Tratado deixar as portas de um
Instituto entreabertas. Ele estava certo; algo estava terrivelmente errado.
Ele deslizou do lombo do cavalo, as botas fazendo barulho ruidosamente contra os
paralelepípedos. Ele procurou uma forma de prender o animal, mas como ele havia
cortado seus arreios, não havia nenhuma, e além disso, Balios parecia inclinado a mordê-
lo. Ele deu de ombros e subiu os degraus.

Jessamine arfou e saltou para trás quando Mortmain entrou na sala. Sophie gritou e
se escondeu atrás de um pilar. Tessa estava chocada demais para se mover. Os quatro
autômatos, dois de cada lado de Mortmain, olhavam para frente com seus rostos
brilhantes como máscaras de metal.
Atrás de Mortmain estava Nate. Um curativo improvisado, manchado de sangue,
estava atado em volta da cabeça. A parte inferior de sua camisa—a camisa de Jem—tinha
uma faixa irregular rasgada. Seu olhar perverso caiu sobre Jessamine.
“Sua prostituta estúpida,” ele rosnou e começou a avançar.
“Nathaniel.” A voz de Mortmain estalou como um chicote; Nate congelou. “Esta
não é uma arena na qual representar suas vinganças insignificantes. Há mais uma coisa
que preciso de você; você sabe o que é. Pegue-o para mim.”
Nate hesitou. Ele estava olhando para Jessamine como um gato com o olhar fixo em
um rato.
“Nathaniel. Para a sala de armas. Agora.”
Nate arrastou seu olhar de Jessie. Por um momento ele olhou para Tessa, a raiva em
sua expressão suavizando para um olhar de desprezo. Então ele se virou e saiu da sala;
duas das criaturas mecânicas afastaram-se do lado de Mortmain e o seguiram.
A porta se fechou atrás dele, e Mortmain sorriu amigavelmente. “Vocês duas,” disse
ele olhando de Jessamine para Sophie, “saiam.”
 “Não.” A voz era de Sophie, baixa, mas teimosa, embora, para surpresa de Tessa,
Jessamine não mostrasse nenhuma inclinação para sair também. “Não sem Tessa.”
Mortmain deu de ombros. “Muito bem.” Virou-se para as criaturas mecânicas. “As
duas meninas,” disse. “A Caçadora das Sombras e a serva. Matem as duas.”
Ele estalou os dedos e as criaturas mecânicas saltaram para frente. Eles tinham a
velocidade grotesca de ratos deslizando. Jessamine virou-se para correr, mas ela tinha
dado apenas alguns passos quando um deles a agarrou, erguendo-a do chão. Sophie
disparou entre os pilares como Branca de Neve fugindo para a floresta, mas não adiantou

muito. A segunda criatura alcançou-a rapidamente e a jogou no chão enquanto ela gritava.
Em contraste, Jessamine estava completamente silenciosa; a criatura que a segurava tinha
uma mão de metal presa em sua boca e outra na cintura, cravando os dedos de forma
cruel. Seus pés chutavam inutilmente no ar, como os pés de um criminoso pendurado na
forca.
 Tessa ouviu sua própria voz emergir de sua garganta como se fosse de uma
estranha. “Pare com isso. Por favor, por favor, pare com isso!”
 Sophie tinha escapado da criatura que a segurava e estava arrastando-se de quatro
pelo chão. Alcançando-a, a criatura a pegou pelo tornozelo e puxou-a no chão, rasgando
seu avental enquanto Sophie soluçava.
“Por favor,” disse Tessa novamente, fixando os olhos em Mortmain.
 “Você pode parar isso, Srta. Gray,” disse ele. “Prometa-me que não tentará fugir.”
Seus olhos ardiam quando ele olhou para ela. “Então eu as deixarei ir.”
Os olhos de Jessamine, visíveis por cima do braço de metal tampando sua boca,
imploraram a Tessa. A outra criatura estava em pé, segurando Sophie, que pendia
molemente em suas garras.
“Eu ficarei,” disse Tessa. “Você tem minha palavra. Claro que irei. Apenas deixe-as
ir.”
Houve uma longa pausa. Então, “Vocês ouviram,” Mortmain disse aos seus
monstros mecânicos. “Levem as meninas para fora desta sala. Levem-nas para baixo. Não
as machuquem.” Ele sorriu então, um sorriso fino e astuto. “Deixem a Srta. Gray sozinha
comigo.”

Mesmo antes de passar pela porta da frente, Will sentiu—a sensação estridente de
que algo terrível estava acontecendo aqui. A primeira vez que teve essa sensação, ele tinha
12 anos de idade, segurando aquela maldita caixa—mas ele nunca imaginou sentir isso na
solidez do Instituto.
Ele viu o corpo de Agatha primeiro, no momento em que ultrapassou a soleira. Ela
estava deitada de costas, com os olhos vidrados olhando para o teto, a frente de seu
vestido cinza simples encharcada de sangue. Uma onda de fúria quase esmagadora tomou
conta de Will, deixando-o tonto. Mordendo o lábio com força, ele se inclinou para fechar
os olhos dela antes de se levantar e olhar ao redor.
Os sinais de uma luta corporal estavam por toda parte—pedaços rasgados de metal
e engrenagens quebradas e amassadas, manchas de sangue misturadas com poças de óleo.
Quando Will se moveu em direção à escada, seus pés pisaram sobre os restos

esfrangalhados da sombrinha de Jessamine. Ele rangeu os dentes e deslocou-se para a
escada.
E ali, caído nos degraus inferiores, estava Thomas, olhos fechados, imóvel em uma
crescente poça escarlate. Uma espada descansava no chão ao lado dele, um pouco longe de
sua mão; sua lâmina estava quebrada e amassada como se ele a tivesse usado para cortar
pedras. Um grande pedaço de metal dentado se projetava de seu peito. Parecia um pouco
com a lâmina despedaçada de uma serra, Will pensou enquanto se agachava ao lado de
Thomas, ou como um pedaço afiado de alguma geringonça maior de metal.
Havia uma queimação seca no fundo da garganta de Will. Sua boca tinha gosto de
metal e raiva. Ele raramente sofria durante uma batalha; ele guardava suas emoções para
depois—aquelas que ele ainda não tinha aprendido a enterrar tão profundamente que mal
as sentia. Ele vinha enterrando-as desde que tinha doze anos. Seu peito deu um nó com a
dor agora, mas sua voz estava firme quando falou. “Salve e adeus, Thomas,” disse ele,
levantando a mão para fechar os olhos do outro rapaz. “Ave—”
 Uma mão voou e agarrou seu pulso. Will olhou para baixo, aturdido, enquanto os
olhos vidrados de Thomas deslizaram em sua direção, castanhos claros sob a película
esbranquiçada da morte. “Não sou,” disse ele, com um claro esforço para conseguir falar,
“um Caçador das Sombras.”
“Você defendeu o Instituto,” Will disse. “Tão bem quanto qualquer um de nós teria
feito.”
“Não.” Thomas fechou os olhos, como se esgotado. Seu peito subiu, com
dificuldade; sua camisa estava encharcada quase preta de sangue. “Você os teria
expulsado, mestre Will. Você sabe que teria.”
 “Thomas,” Will sussurrou. Ele queria dizer, fique quieto, e você ficará bem quando os
outros chegarem aqui. Mas Thomas evidentemente não ficaria bem. Ele era humano;
nenhuma runa de cura poderia ajudá-lo. Will desejou que Jem estivesse aqui, ao invés dele
mesmo. Jem era quem você queria consigo quando estivesse morrendo. Jem poderia fazer
qualquer um sentir que as coisas iam dar certo, enquanto Will particularmente suspeitava
de que havia poucas situações que sua presença não faria pior.
“Ela está viva,” disse Thomas, sem abrir os olhos.
“O quê?” Will foi pego de surpresa.
“Aquela por quem você voltou. Ela. Tessa. Ela está com Sophie.” Thomas falou
como se fosse um fato óbvio a qualquer um que Will teria voltado por causa de Tessa. Ele
tossiu, e uma grande massa de sangue escorreu de sua boca por seu queixo. Ele não
pareceu notar. “Cuide de Sophie, Will. Sophie é—”

Mas Will nunca descobriu o que Sophie era, porque o aperto de Thomas afrouxou
de repente, e sua mão caiu e atingiu o chão de pedra com um baque feio. Will recuou. Ele
tinha visto a morte vezes suficientes, e sabia quando ela havia chegado. Não houve
necessidade de fechar os olhos de Thomas; eles já estavam fechados. “Durma, então,” ele
disse, sem saber muito bem de onde as palavras vieram, “bom e fiel servo dos Nefilins. E
obrigado.”
Não era suficiente, nem de longe o suficiente, mas era tudo o que havia. Will ficou
de pé e subiu correndo a escada.

As portas se fecharam por trás das criaturas mecânicas; o Santuário estava muito
silencioso. Tessa podia ouvir a água batendo na fonte atrás dela.
Mortmain permaneceu observando-a calmamente. Ele ainda não era assustador de
olhar, Tessa pensou. Um homem pequeno e comum, com cabelo escuro ficando grisalho
nas têmporas, e aqueles estranhos olhos claros. “Srta. Gray,” disse, “eu esperava que nossa
primeira vez a sós fosse uma experiência mais agradável para nós dois.”
Os olhos de Tessa queimavam. Ela disse: “O que você é? Um feiticeiro?”
Seu sorriso foi rápido, e sem sentimento. “Apenas um ser humano, Srta. Gray.”
“Mas você fez mágica,” disse ela. “Você falou com a voz de Will—”
“Qualquer um pode aprender a imitar vozes, com o treinamento apropriado,” disse
ele. “Um simples truque, como passe de mágica. Ninguém espera por eles. Certamente
não os Caçadores das Sombras. Eles acreditam que os seres humanos não são bons em
nada, além de não serem bons para nada.”
“Não,” murmurou Tessa. “Eles não acham isso.”
Sua boca retorceu. “Quão rápido você progrediu a amá-los, seus inimigos
naturais. Em breve vamos treiná-la a esquecer disso.” Ele moveu-se para frente, e Tessa
encolheu. “Não irei machucá-la,” disse. “Apenas quero lhe mostrar algo.” Ele enfiou a
mão no bolso do casaco e tirou um relógio de ouro, de muito boa aparência, em uma
grossa corrente de ouro.
Ele quer saber que horas são? A vontade louca de rir cresceu na parte de trás da
garganta de Tessa. Ela a segurou.
Ele segurou o relógio para ela. “Srta. Gray,” disse, “por favor, tome isso.”
Ela olhou para ele. “Eu não quero isso.”
Ele moveu-se até ela novamente. Tessa recuou até que a parte de trás de suas saias
encostou-se à mureta baixa da fonte. “Pegue o relógio, Srta. Gray.”

Tessa balançou a cabeça.
“Pegue,” disse ele. “Ou eu irei trazer de volta meus servos mecânicos e mandá-los
esmagar as gargantas de suas duas amigas até estarem mortas. Eu preciso apenas ir até a
porta e chamá-los. A escolha é sua.”
Bile subiu no fundo da garganta de Tessa. Ela olhou para o relógio que ele estendia,
pendurado em sua corrente de ouro. Estava claramente parado. Os ponteiros há muito
tempo havia parado de girar, o tempo parecendo congelado à meia-noite. As iniciais
J.T.S. estavam gravadas na parte de trás em caligrafia elegante.
“Por quê?” Ela sussurrou. “Por que você quer que eu o pegue?”
“Porque eu quero que você se Transforme,” disse Mortmain.
 Tessa ergueu a cabeça. Olhou para ele, incrédula. “O quê?”
“Este relógio pertencia a alguém,” disse ele. “Alguém que eu gostaria muito de
encontrar novamente.” Sua voz era a mesma, mas havia uma espécie de tensão sob ela, um
desejo ansioso que aterrorizou Tessa mais do que qualquer raiva. “Eu sei que as Irmãs
Sombrias lhe ensinaram. Eu sei que você sabe o seu poder. Você é a única no mundo que
pode fazer o que você faz. Eu sei disso porque eu fiz você.”
“Você me fez?” Tessa olhou. “Você não está dizendo—você não pode ser meu pai–”
“Seu pai?” Mortmain riu. “Eu sou um ser humano, não um Habitante do
Submundo. Não há demônio em mim, nem eu me associo com demônios. Não há sangue
partilhado entre nós dois, Srta. Gray. E ainda, se não fosse por mim, você não existiria.”
“Eu não entendo,” murmurou Tessa.
“Você não precisa entender.” A serenidade de Mortmain estava visivelmente
desgastando-se. “Você precisa fazer o que eu digo. E eu estou dizendo a você para se
Transformar. Agora.”
Era como estar na frente das Irmãs Sombrias de novo, aterrorizada e alerta, seu
coração batendo forte, sendo ordenada a acessar uma parte de si mesma que a
aterrorizava. Sendo ordenada para se perder na escuridão, no nada entre o eu e o
outro. Talvez fosse mais fácil de fazer como ele disse a ela—alcançar e pegar o relógio
conforme ordenado, abandonar-se na pele de outra pessoa como ela tinha feito antes, sem
vontade ou escolha própria.
Ela olhou para baixo, longe do olhar abrasador de Mortmain, e viu algo brilhante na
parede da fonte logo atrás dela. Um respingo de água, pensou por um momento—mas
não. Era outra coisa. Ela falou então, quase sem querer.
“Não,” disse ela.

Os olhos de Mortmain se estreitaram. “Eu não entendi?”
“Eu disse não.” Tessa sentia como se de alguma forma estivesse fora de si,
observando-se enfrentar Mortmain como se estivesse assistindo a um estranho. “Eu não o
farei. Não, a menos que me diga o que você quer dizer quando diz que me fez. Por que
sou assim? Por que é que você precisa tanto do meu poder? O que você planeja me forçar a
fazer por você? Você está fazendo mais do que apenas construir um exército de
monstros. Eu posso ver isso. Não sou uma tola como meu irmão.”
Mortmain deslizou o relógio de volta para o bolso. Seu rosto era uma máscara feia
de raiva. “Não,” disse ele. “Você não é uma tola como seu irmão. Ele é um tolo
covarde. Você é uma tola que tem um pouco de coragem. Ainda que isso não vá lhe
ajudar. E são suas amigas que sofrerão por isso. Enquanto você assiste.” Ele virou-se
então, e caminhou em direção à porta.
Tessa abaixou-se e agarrou o objeto que estava brilhando por trás dela. Era a faca
que Jessamine tinha posto ali, a lâmina brilhava na luz de bruxa do Santuário. “Pare,” ela
gritou. “Sr. Mortmain. Pare.”
Ele virou-se então, e a viu segurando a faca. Um olhar de diversão enojada
espalhou-se em seu rosto. “Realmente, Srta. Gray,” disse. “Você honestamente acha que
pode me machucar com isso? Você achou que eu vim totalmente desarmado?” Ele abriu
seu casaco um pouco, e ela viu a coronha de uma pistola, brilhando em seu cinto.
“Não,” disse ela. “Não, eu não acho que posso te machucar.” Ela então virou a faca,
de modo que o cabo estava longe dela, a lâmina apontando diretamente para o seu próprio
peito. “Mas se você der mais um passo em direção à porta, eu prometo, enfiarei esta faca
em meu coração.”

Consertar a bagunça que Will tinha feito nos arreios da carruagem tomou mais
tempo do que Jem gostaria, e a lua estava preocupantemente alta no céu no momento em
que ele atravessou os portões do Instituto e puxou Xanthos ao pé da escadaria.
Balios, solto, estava de pé no pilar de apoio ao pé da escada, parecendo
exausto. Will deve ter montado como o diabo, Jem pensou, mas pelo menos ele havia
chegado em segurança. Era um pouquinho de tranquilidade, considerando que as portas
do Instituto estavam escancaradas, produzindo uma pontada de horror nele. Era uma
visão que parecia tão errada que era como olhar para um rosto sem olhos ou um céu sem
estrelas. Era algo que simplesmente não deveria ser.
Jem levantou sua voz. “Will?” Ele chamou. “Will, você pode me ouvir?” Quando
não houve resposta, ele pulou do banco do condutor da carruagem e estendeu a mão para
puxar sua bengala com ponta de jade. Ele segurou-a levemente, equilibrando o peso. Seus
pulsos começaram a doer, o que o preocupou. Normalmente, abstinência do pó de

demônio começava como dor nas articulações, uma dor surda que se espalhava
lentamente até que todo o seu corpo ardia como fogo. Mas ele não podia permitir-se essa
dor agora. Havia Will a pensar, e Tessa. Ele não conseguia se livrar da imagem dela nos
degraus, olhando-o enquanto ele falava as palavras antigas. Ela parecia tão preocupada, e
pensar que ela poderia ter ficado preocupada com ele havia lhe dado um prazer
inesperado.
Ele virou-se para começar a subir os degraus e parou. Alguém estava descendo.
Mais de uma pessoa—uma multidão. Eles estavam iluminados por trás pela luz do
Instituto, e por um momento ele piscou, vendo apenas silhuetas. Algumas pareciam
estranhamente disformes.
“Jem!” A voz era alta, desesperada. Familiar.
Jessamine.
Reanimado, Jem disparou escada acima, e então parou. Em frente a ele estava
Nathaniel Gray, as roupas rasgadas e manchadas com sangue. Um curativo improvisado
envolvia sua cabeça e estava encharcado de sangue em sua têmpora direita. Sua expressão
era sombria.
Em cada lado dele se moviam autômatos mecânicos, como servos obedientes. Um
defendendo a sua direita e outro a sua esquerda. Atrás dele havia mais dois. Um segurava
uma inquieta Jessamine; o outro uma Sophie mole, quase sem sentidos.
“Jem!” Jessamine gritou. “Nate é um mentiroso. Ele estava ajudando Mortmain
todo este tempo—Mortmain é o Magister, não de Quincey—”
Nathaniel virou-se. “Cale-a,” ele gritou para a criatura mecânica atrás dele. Seus
braços de metal apertaram Jessamine, que sufocou e calou-se, seu rosto branco de dor.
Seus olhos lançaram-se em direção ao autômato à direita de Nathaniel. Seguindo seu
olhar, Jem viu que a criatura segurava o familiar quadrado dourado do Pyxis em suas
mãos.
Ao ver a expressão em seu rosto, Nate sorriu. “Ninguém além de um Caçador das
Sombras pode tocá-lo,” disse. “Nenhuma criatura viva, quer dizer. Mas um autômato não
está vivo.”
“Isso é tudo do que se tratava?” Jem questionou, atônito. “O Pyxis? Que possível
uso pode ter para você?”
“Meu mestre quer energias demoníacas, e energias demoníacas ele terá,” disse Nate
pomposamente. “Nem ele esquecerá que fui eu quem a forneceu a ele.”
Jem balançou a cabeça. “E o que ele lhe dará, então? O que ele lhe deu por trair sua
irmã? Trinta moedas de prata?”

O rosto de Nate se contorceu, e por um momento Jem pensou que podia ver,
através da máscara suavemente bonita, o que realmente estava por baixo—algo maligno e
repulsivo que fez Jem querer se afastar e ter ânsia de vômito. “Aquela coisa,” disse ele,
“não é minha irmã.”
“É difícil de acreditar, não é,” disse Jem, não fazendo nenhum esforço para
esconder sua aversão, “que você e Tessa compartilhem qualquer coisa afinal, mesmo uma
única gota de sangue. Ela é muito mais agradável que você.”
Os olhos de Nathaniel se estreitaram. “Ela não é do meu interesse. Ela pertence a
Mortmain.”
“Eu não sei o que Mortmain lhe prometeu,” disse Jem, “mas posso prometer que se
você machucar Jessamine ou Sophie—e se você levar o Pyxis desse local—a Clave irá caçá-
lo. E encontrá-lo. E matá-lo.”
Nathaniel balançou a cabeça lentamente. “Você não entende,” disse. “Nenhum dos
Nefilins entende. O máximo que vocês podem oferecer é me deixar viver. Mas o Magister
pode me prometer que não morrerei nunca.” Virou-se para a criatura mecânica à sua
esquerda, a que não segurava o Pyxis. “Mate-o,” ordenou.
 O autômato saltou em direção a Jem. Era, de longe, mais rápido do que as criaturas
que Jem tinha enfrentado na Ponte Blackfriars. Ele mal teve tempo de puxar o gatilho que
soltava a lâmina na extremidade da bengala e erguê-la antes que a coisa estivesse sobre
ele. A criatura deu um grito agudo como um trem freando quando Jem enfiou a lâmina
diretamente em seu peito e a rasgou de lado a lado, escancarando o metal. A criatura
rodopiou para longe, pulverizando uma roda Catarina73 de faíscas vermelhas.
73 Instrumento de tortura usado na Idade Média.
Nate, pego pelo jato de fogo, gritou e pulou para trás, batendo nas centelhas
queimando buracos em sua roupa. Jem aproveitou a oportunidade para saltar dois
degraus e golpear as costas de Nate com a parte larga da sua lâmina, derrubando-o de
joelhos. Nate se virou para olhar para seu protetor mecânico, mas ele estava cambaleando
de lado a lado nos degraus, faíscas saltando do seu peito; parecia evidente que Jem havia
danificado um de seus mecanismos centrais. O autômato segurando o Pyxis permaneceu
imóvel; claramente Nate não era a sua primeira prioridade.
“Larguem-nas!” Nate gritou para as criaturas mecânicas que seguravam Sophie e
Jessamine. “Matem o Caçador das Sombras! Matem-no, ouviram?”
Jessamine e Sophie, soltas, caíram no chão, ambas ofegantes, mas nitidamente ainda
estavam vivas. O alívio de Jem foi de curta duração, entretanto, quando o segundo par de
autômatos se lançou em sua direção, se movendo com incrível velocidade. Ele golpeou um
com sua bengala. Ele saltou para trás, fora de alcance, e o outro levantou uma mão—não

uma mão, realmente, mais um bloco quadrado de metal, sua lateral afiado com dentes
irregulares como uma serra—
Um grito veio de trás de Jem, e Henry passou por ele, empunhando uma enorme
espada bastarda. Ele a balançou forte, golpeando o braço levantado do autômato e
fazendo sua mão voar. Ela escorregou na calçada, faiscando e assobiando, antes de
estourar em chamas.
“Jem!” Era a voz de Charlotte, aumentada em aviso. Jem girou, e viu o outro
autômato chegando por trás. Ele lançou sua lâmina no pescoço da criatura, cortando os
tubos de cobre no interior, enquanto Charlotte golpeava os joelhos com seu chicote. Com
um gemido alto, ele desabou no chão, as pernas decepadas. Charlotte, seu rosto pálido
firme, lançou o chicote novamente, enquanto Jem se virou para ver que Henry, seu cabelo
ruivo colado à testa com suor, estava baixando a espada. O autômato que ele havia
atacado era agora um amontoado de sucata de metal no chão.
Na verdade, pedaços de máquinas estavam espalhados pelo pátio, alguns ainda em
chamas, como um campo de estrelas caídas. Jessamine e Sophie estavam agarradas uma à
outra; Jessamine apoiando a outra menina, cuja garganta estava manchada com
hematomas escuros. Jessamine encontrou os olhos de Jem ao longo dos degraus. Ele
pensou que devia ser a primeira vez que ela realmente parecia estar feliz em vê-lo.
“Ele se foi,” disse ela. “Nathaniel. Ele desapareceu com aquela criatura—e o Pyxis.”
“Eu não entendo.” O rosto ensanguentado de Charlotte era uma máscara de
choque. “O irmão de Tessa...”
“Tudo o que ele nos disse era uma mentira,” disse Jessamine. “Todo o negócio de
enviar você atrás dos vampiros era uma distração.”
“Santo Deus,” disse Charlotte. “Então, de Quincey não estava mentindo—” Ela
balançou a cabeça, como se para limpá-la de teias de aranha. “Quando chegamos à casa
dele em Chelsea, o encontramos lá com apenas alguns vampiros, não mais que seis ou
sete—certamente não a centena que Nathaniel nos havia alertado, e nenhuma criatura
mecânica que alguém pudesse encontrar. Benedict matou de Quincey, mas não antes de os
vampiros rirem de nós por chamá-lo de Magister—disseram que tínhamos deixado
Mortmain nos fazer de idiotas. Mortmain. E eu achava que ele era apenas—apenas um
mundano.”
Henry deixou-se cair no degrau mais alto, sua espada larga retinindo. “Isso é um
desastre.”
“Will,” disse Charlotte atordoada, como se estivesse em um sonho. “E Tessa. Onde
eles estão?”

“Tessa está no Santuário. Com Mortmain. Will—” Jessamine abanou a cabeça. “Eu
não sabia que ele estava aqui.”
“Ele está lá dentro,” Jem disse, erguendo os olhos para o Instituto. Ele se lembrou
de seu sonho envenenado—o Instituto em chamas, uma névoa de fumaça sobre Londres, e
grandes criaturas mecânicas caminhando para lá e para cá entre os prédios, como aranhas
monstruosas. “Ele dever ter ido atrás de Tessa.”

O rosto de Mortmain havia ficado sem sangue. “O que você está fazendo?” ele
exigiu, caminhando em sua direção.
Tessa firmou a ponta da lâmina em seu peito e empurrou. A dor foi aguda, súbita.
Sangue floresceu no peito do seu vestido. “Não se aproxime mais.”
Mortmain parou, o rosto contorcido de fúria. “O que faz você pensar que eu me
importo se você viver ou morrer, Srta. Gray?”
“Como você disse, você me fez,” disse Tessa. “Por alguma razão, você desejou que
eu existisse. Você me valorizou o suficiente para não querer que as Irmãs Sombrias me
ferissem de nenhuma maneira permanente. De alguma forma, eu sou importante para
você. Oh, não o meu eu, é claro. Meu poder. Isso é o que importa para você.” Ela podia
sentir o sangue, quente e úmido, escorrendo em sua pele, mas a dor não era nada
comparada à sua satisfação ao ver o olhar de medo no rosto de Mortmain.
 Ele falou com os dentes cerrados. “O que é que você quer de mim?”
“Não. O que você quer de mim? Diga-me. Diga-me porque você me criou. Diga-me
quem são os meus pais verdadeiros. A minha mãe era realmente a minha mãe? Meu pai, o
meu pai?”
O sorriso de Mortmain era torcido. “Você está fazendo as perguntas erradas, Srta.
Gray.”
“Por que eu sou... o que eu sou, e Nate é apenas humano? Por que ele não é como
eu?”
“Nathaniel é apenas o seu meio-irmão. Ele nada mais é que um ser humano, e não
um exemplo muito bom disso. Não lamente que não seja mais como ele.”
“Então...” Tessa fez uma pausa. Seu coração estava disparado. “Minha mãe não
poderia ter sido um demônio,” disse ela baixinho. “Ou qualquer coisa sobrenatural,
porque tia Harriet era sua irmã, e ela era apenas humana. Então deve ter sido meu
pai. Meu pai era um demônio?”

Mortmain sorriu, um súbito sorriso feio. “Abaixe a faca e eu lhe darei as suas
respostas. Talvez possamos até mesmo invocar a coisa que lhe gerou, se você está tão
desesperada para encontrá-lo—ou devo dizer ‘aquilo’?”
“Então eu sou uma feiticeira,” disse Tessa. Sua garganta estava apertada. “É o que
você está dizendo.”
Os pálidos olhos de Mortmain estavam cheios de escárnio. “Se você insiste,” disse
ele, “eu suponho que é a melhor palavra para o que você é.”
Tessa ouviu a voz clara de Magnus Bane em sua cabeça: Oh, você é uma
feiticeira. Acredite nisso. E mesmo assim—
 “Eu não acredito em nada disso,” disse Tessa. “Minha mãe, ela nunca teria—não
com um demônio.”
“Ela não tinha ideia.” Mortmain soou quase piedoso. “Nenhuma ideia de que
estava sendo infiel ao seu pai.”
O estômago de Tessa revolveu. Isso não era nada que ela não tinha pensado ser
possível, nada que ela não tinha imaginado. Entretanto, ouvi-lo falar em voz alta era outra
coisa. “Se o homem que eu achava que era meu pai, não o era, e meu verdadeiro pai era
um demônio,” disse ela, “então porque não sou marcada como uma feiticeira?”
 Os olhos de Mortmain brilhavam com malevolência. “De fato, por que você não
é? Talvez porque sua mãe não tinha ideia do que ela era, não mais do que você tem.”
“O que você quer dizer? Minha mãe era humana!”
Mortmain balançou a cabeça. “Srta. Gray, você continuar a fazer as perguntas
erradas. O que você deve compreender é que muito foi planejado para que você um dia
viesse a existir. O planejamento começou mesmo antes de mim—e eu o levei adiante,
sabendo que eu estava supervisionando a criação de algo único no mundo. Algo único que
me pertenceria. Eu sabia que um dia casaria com você, e você seria minha para sempre.”
Tessa olhou para ele com horror. “Mas por quê? Você não me ama. Você não me
conhece. Você nem mesmo sabia como eu parecia! Eu poderia ter sido horrível!”
“Isso não teria importância. Você pode parecer tão horrível ou tão bonita quanto
quiser. O rosto que você usa agora é apenas uma das milhares de possibilidades. Quando
você aprenderá que não existe a Tessa Gray real?”
“Saia,” disse Tessa.
Mortmain a olhou com seus olhos pálidos. “O que você disse?”
“Saia. Deixe o Instituto. Leve seus monstros com você. Ou eu me apunhalarei no
coração.”

Por um momento ele hesitou, suas mãos abrindo e fechando ao seu lado. Este
deveria ser ele quando era forçado a tomar uma decisão de negócios ultrarrápida—
comprar ou vender? Investir ou expandir? Ele era um homem acostumado a avaliar a
situação em um instante, pensou Tessa. E ela era apenas uma garota. Que chance ela tinha
de enganá-lo?
Lentamente ele balançou a cabeça. “Eu não acredito que fará isso. Você pode ser
uma feiticeira, mas ainda é uma menina. Uma mulher delicada.” Ele deu um passo em sua
direção. “Violência não está em sua natureza.”
Tessa segurou o cabo da faca com força. Ela podia sentir tudo—a dura superfície
lisa sob seus dedos, a dor onde ela perfurou sua pele, a batida de seu próprio coração.
“Não se aproxime mais,” disse com voz trêmula, “ou farei. Enfiarei a faca.”
O tremor em sua voz pareceu dar convicção a ele; ele apertou a mandíbula, e andou
em direção a ela com passo confiante. “Não, não irá.”
Tessa ouviu a voz de Will em sua cabeça. Ela tomou veneno em vez de deixar-se
capturar pelos romanos. Ela era mais corajosa do que qualquer homem.
“Sim,” ela disse. “Eu irei.”
Algo em seu rosto deve ter mudado, pois a confiança se foi da expressão dele e ele
avançou em direção a ela, sua arrogância desaparecendo, tentando desesperadamente
alcançar a faca. Tessa rodopiou para longe de Mortmain, voltando-se para a fonte. A
última coisa que ela viu foram salpicos de água prateada acima dela enquanto levava a
faca em direção a seu peito.

Will estava sem fôlego quando se aproximou das portas do Santuário. Ele havia
lutado com dois dos autômatos na escada e pensou que tinha sido derrotado, até o
primeiro—tendo sido atravessado diversas vezes com a espada de Thomas—começar a
funcionar mal e empurrar a segunda criatura por uma janela antes de quebrar e desabar
pelas escadas em um turbilhão de metal amassado e faíscas voando.
Will tinha arranhões em suas mãos e braços da pele de metal dentada das criaturas,
mas ele não diminuiu a velocidade para um iratze. Ele tirou seu stele enquanto corria, e
alcançou as portas do Santuário em uma corrida implacável. Ele talhou o stele sobre a
superfície da porta, criando a runa de Abertura mais rápida de sua vida.
As trancas das portas deslizaram para trás. Will levou uma fração de segundo para
trocar seu stele por uma das lâminas de serafim em seu cinto. “Jerahmeel,” ele sussurrou, e
enquanto a lâmina ardeu com fogo branco, ele chutou as portas do Santuário para abrir.
E congelou de horror. Tessa estava caída dobrada junto à fonte, cujas águas estavam
manchadas de vermelho. A frente de seu vestido azul e branco era uma camada escarlate,

e sangue se espalhava debaixo de seu corpo em uma poça. Uma faca estava em sua mão
direita caída, seu cabo manchado com sangue. Seus olhos estavam fechados.
Mortmain estava ajoelhado ao seu lado, sua mão no ombro dela. Ele olhou para
cima quando as portas se abriram, e então cambaleou de pé, afastando-se do corpo de
Tessa. Suas mãos estavam vermelhas de sangue, e sua camisa e paletó estavam manchados
com ele.
“Eu...,” ele começou.
“Você a matou,” Will disse. Sua voz soava estúpida para seus próprios ouvidos, e
muito longe. Ele viu novamente em sua mente a biblioteca da casa em que tinha vivido
com sua família quando criança. Suas próprias mãos na caixa, dedos curiosos liberando o
ferrolho que a mantinha fechada. A biblioteca cheia com o som de gritos. A estrada para
Londres, prateada ao luar. As palavras que haviam passado por sua cabeça,
repetidamente, enquanto ele se afastava de tudo o que já tinha conhecido, para sempre. Eu
perdi tudo. Perdi tudo.
Tudo.
“Não.” Mortmain balançou a cabeça. Ele estava brincando com alguma coisa—um
anel em sua mão direita, feito de prata. “Eu não toquei nela. Ela fez isso a si mesma.”
“Você mente.” Will avançou, a forma da lâmina de serafim sob seus dedos
reconfortante e familiar em um mundo que parecia mudar e se transformar ao redor dele
como a paisagem de um sonho. “Você sabe o que acontece quando eu introduzo isso em
carne humana?” ele falou asperamente, levantando Jerahmeel. “Ela queimará enquanto
corta você. Você morrerá em agonia, queimando de dentro pra fora.”
“Você acha que lamenta a perda dela, Will Herondale?” A voz de Mortmain estava
cheia de tormento. “Seu sofrimento não é nada diante do meu. Anos de trabalho—
sonhos—mais do que você jamais poderia imaginar, perdidos.”
“Então se console, porque sua dor será de curta duração,” disse Will, e avançou,
lâmina estendida. Ele a sentiu esfolar o tecido do paletó de Mortmain—e não encontrou
nenhuma resistência. Ele cambaleou para frente, endireitou-se e fixou o olhar. Algo
ressoou no chão a seus pés, um botão de bronze. Sua lâmina deve tê-lo arrancado do
paletó de Mortmain. Ele piscava para ele do chão como um olho zombador.
Chocado, Will soltou a lâmina do serafim. Jerahmeel caiu no chão ainda em chamas.
Mortmain tinha sumido—totalmente. Ela havia desaparecido como um feiticeiro pode
desaparecer, um feiticeiro que havia treinado a prática da magia durante anos. Para um
humano, mesmo um humano com conhecimentos ocultos, realizar tal coisa...

Mas isso não importava; não agora. Will só conseguia pensar em uma coisa. Tessa.
Meio com receio, meio com esperança, ele atravessou a sala até onde ela estava. A fonte
fez seus miseráveis ruídos suaves enquanto ele se ajoelhou e a ergueu em seus braços.
Ele havia a segurado assim apenas uma vez antes, no sótão, na noite em que eles
queimaram a casa de de Quincey. Essa memória havia vindo a ele, espontaneamente,
frequentemente desde então. Agora era tortura. Seu vestido estava encharcado de sangue;
assim como seu cabelo, e seu rosto estava riscado com ele. Will tinha visto ferimentos
suficientes para saber que ninguém poderia perder tanto sangue assim e continuar vivo.
“Tessa,” ele sussurrou. Ele a apertou contra si; não importava agora o que ele fazia.
Ele enterrou seu rosto no pescoço dela, onde o pescoço encontrava o ombro. O cabelo dela,
já começando a endurecer com o sangue, roçou sua bochecha. Ele podia sentir a batida de
seu pulso através de sua pele.
Ele congelou. Seu pulso? Seu coração saltou; ele se afastou, com a intenção de deitá-
la no chão, e encontrou-a olhando para ele com grandes olhos cinzentos.
“Will,” ela disse. “É você mesmo, Will?”
Primeiro ele sentiu alívio, seguido imediatamente de um terror fervente. Ver
Thomas morrendo diante de seus olhos, e agora isso também. Ou talvez ela pudesse ser
salva? Embora não com Marcas. Como os Habitantes do Submundo eram curados? Isso
era um conhecimento que apenas os Irmãos Silenciosos tinham. “Ataduras,” Will disse
meio para si mesmo. “Eu preciso de ataduras.”
Ele começou a afrouxar o aperto sobre ela, mas Tessa segurou seu pulso. “Will, você
deve ter cuidado. Mortmain—ele é o Magister. Ele estava aqui—”
Will sentia como se estivesse sufocando. “Silêncio. Guarde sua energia. Mortmain
se foi. Devo pedir ajuda—”
“Não.” Ele aumentou o aperto contra ele. “Não, você não precisa fazer isso, Will.
Não é meu sangue.”
“O quê?” disse, pasmado. Talvez ela estivesse delirando, pensou, mas seu aperto e
sua voz eram surpreendentemente fortes para alguém que deveria estar morta. “O que
quer que ele tenha feito a você, Tessa—”
“Eu fiz isso,” ela disse com a mesma vozinha firme. “Eu fiz isso a mim mesma, Will.
Foi a única maneira que encontrei de fazê-lo ir embora. Ele nunca teria me deixado aqui.
Não se ele pensasse que eu estava viva.”
“Mas—”

“Eu me Transformei. Quando a faca me tocou, eu me Transformei, apenas naquele
momento. Foi algo que Mortmain tinha dito que me deu a ideia—que passes de mágica
são um truque simples e que ninguém nunca os espera.”
“Eu não entendo. O sangue?”
Ela assentiu, seu rosto pequeno aceso com alívio, com seu prazer em dizer-lhe o que
tinha feito. “Houve uma mulher uma vez, em quem as Irmãs Sombrias me fizeram
Transformar, que morreu com um ferimento de bala, e quando me Transformei o sangue
dela derramou em mim. Eu lhe contei isso? Pensei que talvez tivesse contado, mas não
importa—eu me lembrei disso, e me Transformei nela, apenas naquele momento, e o
sangue veio como tinha vindo antes. Eu me afastei de Mortmain para que ele não pudesse
me ver transformando, e me curvei para frente como se a faca tivesse realmente entrado—
e de fato, a força da Transformação, sendo tão rápida, me fez enfraquecer de verdade. O
mundo escureceu, e então ouvi Mortmain chamando meu nome. Eu sabia que devia ter
voltado a ser eu mesma, e sabia que precisava fingir que estava morta. Temo que
certamente ele teria me descoberto se você não tivesse chegado.” Ela olhou para si mesma,
e Will podia jurar que havia um tom ligeiramente presunçoso em sua voz quando ela
disse, “Eu enganei o Magister, Will! Eu não teria imaginado que fosse possível—ele estava
tão confiante de sua superioridade sobre mim. Mas me lembrei do que você havia dito
sobre Boadiceia. Se não fosse por suas palavras, Will...”
Ela olhou para ele com um sorriso. O sorriso quebrou o que restava da resistência
dele—a destruiu. Ele havia deixado as muralhas caírem quando pensou que ela havia
morrido, e não houve tempo para reconstruí-las. Desamparado, puxou-a contra ele. Por
um momento ela se agarrou firmemente a ele, quente e viva em seus braços. Seu cabelo
roçando a bochecha dele. A cor tinha voltado para o mundo; ele podia respirar
novamente, e por aquele momento ele a repirou—ela cheirava a sal, sangue, lágrimas, e
Tessa.
Quando ela se afastou de seu abraço, seus olhos estavam brilhando. “Eu pensei
quando ouvi sua voz que era um sonho,” disse. “Mas você é real.” Seus olhos procuraram
o rosto dele, e como se estivesse satisfeita com o que encontrou, ela sorriu. “Você é real.”
Ele abriu a boca. As palavras estavam lá. Ele estava prestes a dizê-las quando um
choque de terror passou por ele, terror de alguém que, vagando em uma névoa, para
apenas para perceber que parou a centímetros da borda de um enorme abismo. O jeito que
ela estava olhando para ele—ela podia ler o que havia em seus olhos, ele imaginou. Devia
estar escrito ali claramente, como as palavras na página de um livro. Não houve tempo,
sem chance de esconder.
“Will,” ela sussurrou. “Diga alguma coisa, Will.”
Mas não havia nada para dizer. Havia apenas o vazio, como havia sido antes dela.
Como sempre seria.

Eu perdi tudo, Will pensou. Tudo.



20
Terrível Maravilha


Ainda assim cada homem mata a coisa que ele ama,
por cada vez que esta seja ouvida,
Alguns fazem com um olhar amargo,
Alguns com uma palavra lisonjeira,
O covarde o faz com um beijo,
O homem bravo com uma espada!
—Oscar Wilde, “A Balada do Cárcere de Reading”


As Marcas que indicavam luto eram vermelhas para os Caçadores das Sombras. A
cor da morte era branca.
Tessa não sabia disso, não tinha lido isso no Códice, e assim foi surpreendida ao ver
os cinco Caçadores das Sombras do Instituto sairem para a carruagem todos vestidos de
branco como uma festa de casamento, enquanto ela e Sophie assistiam das janelas da
biblioteca. Vários membros do Enclave tinham sido mortos acabando com o ninho de
vampiros de de Quincey. Em nome,o funeral era para eles, embora também estivessem
enterrando Thomas e Agatha. Charlotte tinha explicado que os sepultamentos de Nefilins
eram geralmente apenas para Nefilins, mas uma exceção poderia ser feita para aqueles que
morreram ao serviço da Clave.
Sophie e Tessa, no entanto, haviam sido proibidas de ir. A cerimônia em si ainda
estava fechada para elas. Sophie disse a Tessa que era melhor assim mesmo, que ela não
queria ver Thomas queimado e suas cinzas espalhadas na Cidade Silenciosa. “Eu prefiro
lembrar-me dele como ele era,” ela disse, “e Agatha também.”
O Enclave tinha deixado uma guarda atrás deles, vários Caçadores das Sombras
que tinham se voluntariado para ficar e vigiar o Instituto. Seria um longo tempo, Tessa
pensou, antes de eles retirarem a guarda novamente.
Ela tinha passado o tempo em que eles se foram lendo na alcova da janela—nada a
ver com Nefilins ou demônios ou Habitantes do Submundo, mas uma cópia de Um Conto
de Duas Cidades que ela havia encontrado na estante de livros de Charlotte de livros de

Dickens. Ela tinha resolutamente tentado forçar-se a não pensar sobre Mortmain, sobre
Thomas e Agatha, sobre as coisas que Mortmain lhe dissera no Santuário—e,
principalmente, não pensar sobre Nathaniel ou onde ele poderia estar agora. Qualquer
pensamento sobre seu irmão fazia seu estômago apertar e o fundo dos seus olhos
formigar.
Não que fosse tudo o que estava em sua mente. Dois dias antes, ela havia sido
forçada a comparecer perante a Clave na biblioteca do Instituto. Um homem que os outros
chamavam o Inquisidor lhe havia questionado sobre o seu tempo com Mortmain, de novo
e de novo, alerta para quaisquer mudanças em sua história, até que ela estivesse exausta.
Eles a haviam questionado sobre o relógio que ele queria dar a ela, e se ela sabia a quem
tinha pertencido, ou o que as iniciais J.T.S. poderiam representar. Ela não sabia, e como ele
o tinha levado com ele quando desapareceu, ela salientou, era pouco provável que isso
fosse mudar. Eles questionaram Will, também, sobre o que Mortmain lhe tinha dito antes
de desaparecer. Will tinha assumido o inquérito com uma impaciência mal-humorada,
para a surpresa de ninguém, e eventualmente foi liberado com sanções, por grosseria e
insubordinação.
O Inquisidor até mesmo pediu que Tessa despisse as suas roupas, para que ela
pudesse ser revistada por uma marca de feiticeiro, mas Charlotte colocou um rápido fim
nisso. Quando Tessa tinha finalmente sido autorizada a sair, ela saiu correndo para o
corredor atrás de Will, mas ele havia ido. Fazia dois dias desde então, e nesse tempo ela
mal o tinha visto, nem haviam se falado além da troca de palavras educadas ocasionais na
frente dos outros. Quando ela olhava para ele, ele desviava o olhar. Quando ela saía do
aposento, esperando que ele a seguisse, ele não seguia. Tinha sido enlouquecedor.
Ela não podia evitar se perguntar se estava sozinha em pensar que algo significativo
tinha passado entre eles lá no chão do Santuário. Ela havia acordado de uma escuridão
mais profunda do que ela havia encontrado durante uma Transformação antes, para
encontrar Will segurando-a, com o olhar mais claramente perturbado que ela poderia ter
imaginado em seu rosto. E certamente ela não poderia ter imaginado a forma como ele
disse seu nome, ou olhou para ela?
Não. Ela não poderia ter imaginado isso. Will se importava com ela, ela tinha
certeza disso. Sim, ele havia sido rude com ela quase desde que a tinha conhecido, mas
então, isso acontecia em romances o tempo todo. Veja quão rude Darcy tinha sido com
Elizabeth Bennet74, antes que propusesse casamento, e realmente, muito rude enquanto
isso também. E Heathcliff nunca foi nada além de grosseiro com Cathy75. Embora ela
tivesse de admitir que, em Um Conto de Duas Cidades, ambos Sydney Carton e Charles
Darnay tinham sido muito gentis com Lucie Manette. E ainda eu tive a fraqueza, e ainda tenho
74 Personagens do livro “Orgulho e Preconceito”.
75 Personagens do livro “O Morro dos Ventos Uivantes”

fraqueza, por desejar que você saiba com que subito domínio você me incendiou, monte de cinzas que
eu sou, no fogo...
O fato preocupante era que, desde aquela noite no Santuário, Will não havia nem
olhado para ela, nem dito seu nome novamente. Ela achava que sabia o motivo para isso—
tinha adivinhado pela maneira que Charlotte havia olhado para ela, o modo como todos
estava sendo tão quietos ao seu redor. Era evidente. Os Caçadores das Sombras iam
mandá-la embora.
E por que não? O Instituto era para Nefilins, não Habitantes do Submundo. Ela havia
trazido morte e destruição sobre o lugar no pouco tempo que esteve aqui; só Deus sabia o
que aconteceria se ela ficasse. Claro, ela não tinha para onde ir, e ninguém a quem recorrer,
mas por que isso importaria para eles? Lei do Tratado era Lei do Tratado; não podia ser
mudada ou quebrada. Talvez ela acabasse vivendo com Jessamine afinal, em alguma casa
da cidade em Belgravia. Havia destinos piores.
O ruído de rodas de carruagens nos paralelepípedos lá fora, sinalizando o retorno
dos outros da Cidade do Silêncio, a tirou de seu devaneio melancólico. Sophie correu
escada abaixo para cumprimentá-los enquanto Tessa assistia pela janela enquanto eles
deixavam a carruagem, um por um.
Henry tinha seu braço ao redor de Charlotte, que estava encostada nele. Então veio
Jessamine, com flores pálidas colocadas por seu cabelo louro. Tessa teria admirado como
ela se parecia, se ela não tivesse a suspeita de que Jessamine provavelmente gostava
funerais, porque ela sabia que ficava especialmente bonita de branco. Então veio Jem, e
então Will, parecendo duas peças de xadrez de algum jogo estranho, tanto o cabelo
prateado de Jem quanto o emaranhado de cabelos negros de Will realçados pela palidez
de suas roupas. Cavalo Branco e Cavalo Preto76, Tessa pensou enquanto eles subiam os
degraus e desapareciam dentro do Instituto.
76 Refere-se aos cavalos do jogo de xadrez.
Ela tinha recém colocado o seu livro no assento ao lado dela quando a porta da
biblioteca se abriu e Charlotte entrou, ainda tirando as luvas. Seu chapéu já havia sido
tirado, e seu cabelo castanho se destacava em volta do rosto em cachos frisados com a
umidade.
“Eu pensei que encontraria você aqui,” disse ela, cruzando a sala para se afundar
em uma cadeira em frente do assento na janela onde estava Tessa. Ela deixou cair as luvas
brancas de pelica na mesa vizinha e suspirou.
“Foi...?” Tessa começou.
“Horrível? Sim. Detesto funerais, embora o Anjo saiba que fui a dezenas.” Charlotte
fez uma pausa e mordeu o lábio. “Pareço Jessamine. Esqueça que eu disse isso, Tessa.
Sacrifício e morte são parte da vida dos Caçadores das Sombras, e eu sempre aceitei isso.”

“Eu sei.” Estava muito quieto. Tessa imaginava que podia sentir a batida oca do seu
coração, como o tiquetaque de um relógio de pêndulo em uma grande sala vazia.
“Tessa...” Charlotte começou.
“Eu já sei o que você irá dizer, Charlotte, e está tudo bem.”
Charlotte piscou. “Você sabe? E... está?”
“Você quer que eu vá,” disse Tessa. “Eu sei que você se encontrou com a Clave
antes do funeral. Jem me disse. Eu não posso imaginar que eles sequer pensariam que você
deveria me deixar ficar. Após todos os problemas e o terror que eu trouxe para você. Nate.
Thomas e Agatha—”
“A Clave não se preocupa com Thomas e Agatha.”
“O Pyxis, então.”
“Sim,” Charlotte disse lentamente. “Tessa, acho que você tem uma ideia totalmente
errada. Eu não vim para pedir-lhe para sair, eu vim para pedir-lhe para ficar.”
“Para ficar?” As palavras pareceram desconectadas de qualquer significado.
Certamente Charlotte não poderia ter querido dizer o que ela disse. “Mas a Clave... Eles
devem estar com raiva...”
“Eles estão com raiva,” disse Charlotte. “De Henry e eu. Fomos completamente
enganados por Mortmain. Ele nos usou como seus instrumentos, e nós permitimos isso. Eu
estava tão orgulhosa pela maneira inteligente e útil que eu o tinha comandado que nunca
parei para pensar que talvez fosse ele que tivesse comandado. Eu nunca parei para pensar
que nenhuma única criatura viva que não fosse Mortmain e seu irmão já havia confirmado
que de Quincey era o Magister. Todas as demais provas eram circunstanciais, e ainda
assim eu me deixei ser convencida.”
“Foi muito convincente.” Tessa apressou-se a tranquilizar Charlotte. “O selo que
encontramos no corpo de Miranda. As criaturas na ponte.”
Charlotte fez um som amargo. “Todos personagens em um jogo que Mortmain fez
para nosso benefício. Você sabe que, tendo buscado como nós buscamos, não fomos
capazes de encontrar um único pedaço de evidência de quais outros Habitantes do
Submundo controlavam o Clube Pandemônio? Nenhum dos membros mundanos tem
uma pista, e como destruímos o clã de de Quincey, os Habitantes do Submundo estão
mais desconfiados de nós do que nunca.”
“Mas se passaram apenas alguns dias. Levou seis semanas para Will encontrar as
Irmãs Sombrias. Se você continuar procurando...”
“Nós não temos tanto tempo assim. Se o que Nathaniel disse a Jem era verdade, e
Mortmain planeja usar as energias demoníacas dentro do Pyxis para animar os seus

bonecos mecânicos, nós só temos o tempo que ele levará para aprender a abrir a caixa.”
Ela deu de ombros. “Naturalmente, a Clave acredita que é impossível. O Pyxis só pode ser
aberto com runas, e apenas um Caçador das Sombras pode desenhá-las. Mas, novamente,
apenas um Caçador das Sombras deveria ter sido capaz de ganhar acesso ao Instituto.”
“Mortmain é muito inteligente.”
“Sim.” As mãos de Charlotte estavam fortemente atadas no colo. “Você sabia que
foi Henry quem disse a Mortmain sobre o Pyxis? Do que era chamado, e o que fazia?”
“Não...” As palavras tranquilizadoras de Tessa a abandonaram.
“Você não poderia. Ninguém sabe disso. Seu, e Henry. Ele quer que eu diga a
Clave, mas não o farei. Eles já o tratam tão mal, e eu...” A voz de Charlotte tremeu, mas
seu rosto pequeno estava firme. “A Clave está convocando um tribunal. Minha conduta, e
a de Henry, serão examinadas e votadas. É possível que percamos o Instituto.”
Tessa ficou estarrecida. “Mas você é maravilhosa em comandar o Instituto! A
maneira como você mantem tudo organizado e no lugar, a maneira que gerencia tudo
isso.”
Os olhos de Charlotte estavam molhados. “Obrigada, Tessa. O fato é que Benedict
Lightwood sempre quis o lugar de chefe do Instituto para si ou para seu filho. O
Lightwoods tem uma grande quantidade de orgulho familiar e desprezam acatar ordens.
Se não fosse o fato de que o próprio Cônsul Wayland nomeou meu marido e eu como os
sucessores do meu pai, tenho a certeza de que Benedict seria o encarregado. Tudo o que eu
sempre quis foi dirigir o Instituto, Tessa. Eu farei de tudo para mantê-lo. Se você me
ajudasse—”
“Eu? Mas o que posso fazer? Eu não sei nada das políticas dos Caçadores das
Sombras.”
“As alianças que forjamos com Habitantes do Submundo são alguns dos nossos
bens mais preciosos, Tessa. Parte da razão pela qual eu ainda estou onde estou é minha
afiliação com feiticeiros como Magnus Bane e vampiros como Camille Belcourt. E você,
você é um bem precioso. O que você pode fazer já ajudou o Enclave uma vez; a ajuda que
você poderia nos oferecer, no futuro, poderia ser incalculável. E se você for conhecida por
ser uma firme aliada minha, isso só irá me ajudar.”
Tessa prendeu a respiração. Em sua mente ela viu Will—Will como ele tinha
parecido no Santuário—mas, quase, para sua surpresa, ele não era tudo o que seus
pensamentos continham. Havia Jem, com sua bondade e mãos gentis, e Henry fazendo-a
rir com suas roupas estranhas e engraçadas invenções, e até mesmo Jessamine, com sua
ferocidade peculiar e ocasional bravura surpreendente.
“Mas a Lei,” disse ela em voz baixa.

“Não há nenhuma Lei contra você ficar aqui como nossa convidada,” disse
Charlotte. “Eu procurei nos arquivos e não encontrei nada que a impeça de ficar, se você
consentir. Então, você consente, Tessa? Você ficará?”

Tessa subiu correndo as escadas do sótão; pela primeira vez no que parecia como
sempre, seu coração estava quase leve. O sótão em si era muito como ela lembrava, as
janelas altas pequenas deixando entrar um pouco da luz do sol, pois era quase crepúsculo
agora. Havia um balde tombado no chão; ela desviou dele em seu caminho para a escada
estreita que levava até o telhado.
Ele muitas vezes pode ser encontrado lá quando está incomodado, Charlotte havia dito. E
raramente vi Will tão perturbado. A perda de Thomas e Agatha tem sido mais difícil para ele do que
eu previa.
Os degraus terminavam em uma porta quadrada basculante, articulada de um lado.
Tessa empurrou o alçapão aberto, e saiu para o teto do Instituto.
Endireitando-se, ela olhou ao redor. Ela estava no centro do largo e plano telhado,
que era cercado por um gradeamento de ferro forjado da altura de sua cintura. As barras
da cerca terminavam em remates na forma de afiadas flores-de-lis. Na outra extremidade
do telhado estava Will, encostado na grade. Ele não se virou, mesmo quando o alçapão se
fechou atrás dela e ela deu um passo adiante, esfregando as palmas das mãos arranhadas
contra o tecido do vestido.
“Will,” disse ela.
Ele não se moveu. O sol começava a se pôr numa torrente de fogo. Do outro lado do
Tâmisa, chaminés de fábricas expeliam fumaça que arrastava dedos escuros no céu
vermelho. Will estava encostado no parapeito, como se estivesse exausto, como se ele
pretendesse cair para frente em todos os remates afiados e acabar com tudo. Ele não deu
nenhum sinal de ter ouvido Tessa enquanto ela se aproximava e se movia para ficar ao
lado dele. A partir dali a inclinaçao do telhado caía para uma visão vertiginosa da calçada
abaixo.
“Will,” disse ela novamente. “O que você está fazendo?”
Ele não olhou para ela. Ele estava olhando para a cidade, um contorno negro contra
o céu avermelhado. A cúpula de São Paulo brilhava através do ar sujo, e o Tâmisa corria
como um chá forte e escuro abaixo, quebrado aqui e ali com as linhas pretas de pontes.
Formas escuras moviam-se pela borda do rio—mudlarks, buscando através da sujeira
lançada pela água, na esperança de encontrar algo valioso para vender.
“Eu me lembro agora,” Will disse sem olhar para ela, “o que foi que eu estava
tentando lembrar o outro dia. Era Blake. ‘E eu contemplo Londres, uma terrível maravilha

Humana de Deus.'” Ele olhou a paisagem. “Milton pensava que o Inferno fosse uma cidade,
você sabe. Eu acho que talvez ele estivesse meio certo. Talvez Londres seja apenas a
entrada do Inferno, e nós somos as almas condenadas se recusando a atravessar, temendo
que o que encontraremos do outro lado será pior do que o horror que já conhecemos.”
“Will.” Tessa estava confusa. “Will, o que foi, o que há de errado?”
Ele agarrou o corrimão com ambas as mãos, os dedos embranquecendo. Suas mãos
estavam cobertas com cortes e arranhões, os nós dos dedos raspados em vermelho e preto.
Havia hematomas no rosto, também, escurecendo a linha do queixo, deixando roxa a pele
sob seu olho. Seu lábio inferior estava cortado e inchado, e ele não tinha feito nada para
curar nada. Ela não podia imaginar o porquê.
“Eu deveria ter sabido,” disse ele. “Que era um truque. Que Mortmain estava
mentindo quando ele veio aqui. Charlotte tantas vezes vangloriou minha habilidade em
táticas, mas um bom estrategista não é cegamente confiante. Eu fui um tolo.”
“Charlotte acredita que é culpa dela. Henry acredita que a culpa é dele. Eu acredito
que é minha culpa,” disse Tessa com impaciência. “Nós não podemos todos ter o luxo de
nos culpar, agora, podemos?”
“Sua culpa?” Will parecia intrigado. “Porque Mortmain é obcecado por você? Isso
dificilmente parece ser—”
“Por trazer Nathaniel aqui,” disse Tessa. Dizer isso em voz alta a fazia sentir como
se seu peito estivesse sendo espremido. “Por obrigar vocês a confiar nele.”
“Você o amava,” disse Will. “Ele era seu irmão.”
“Ele ainda é,” disse Tessa. “E eu ainda o amo. Mas eu sei o que ele é. Eu sempre
soube o que ele era. Eu só não queria acreditar. Suponho que todos nós mentimos para nós
mesmos às vezes.”
“Sim.” Will soava apertado e distante. “Eu suponho que nós fazemos isso.”
Rapidamente Tessa disse, “Eu vim aqui porque eu tenho uma boa notícia, Will. Por
que você não me deixa dizer o que é?”
“Diga-me.” Sua voz estava morta.
“Charlotte disse que eu posso ficar aqui,” disse Tessa. “No Instituto.”
Will não disse nada.
“Ela disse que não há lei contra isso,” Tessa continuou, um pouco confusa agora.
“Então eu não precisarei ir embora.”

“Charlotte nunca teria feito você ir embora, Tessa. Ela não pode suportar abandonar
até mesmo uma mosca apanhada numa teia de aranha. Ela não a teria abandonado.” Não
havia vida na voz de Will e nenhum sentimento. Ele estava simplesmente declarando um
fato.
“Eu pensei...” A euforia de Tessa estava desaparecendo rapidamente. “Que você
ficaria pelo menos um pouco satisfeito. Eu pensei que estávamos nos tornando amigos.”
Ela viu a linha de sua garganta se movimentar como se ele estivesse engolindo, com
dificuldade, as mãos enrijecendo novamente na cerca. “Como uma amiga,” continuou ela,
sua voz caindo, “Eu aprendi a admirá-lo, Will. A me preocupar com você.” Ela estendeu a
mão, querendo tocar a dele, mas recuou, assustada com a tensão em sua postura, a
brancura das juntas que agravam a grade de metal. As marcas vermelhas de luto se
destacavam, escarlates sobre a pele esbranquiçada, como se tivessem sido cortadas lá com
facas. “Eu pensei que talvez...”
Finalmente Will se virou para olhar diretamente para ela. Tessa ficou chocada com
a expressão em seu rosto. As sombras sob seus olhos eram tão escuras, que eles pareciam
vazios.
Ela parou e olhou para ele, querendo que ele dissesse o que um herói de um livro
diria agora, neste momento. Tessa, meus sentimentos por você cresceram além do mero
sentimento de amizade. Eles são muito mais raros e preciosos do que isso...
“Venha aqui,” disse ele em vez disso. Não havia nada de boas-vindas em sua voz,
ou na forma como ele estava. Tessa lutou contra seu instinto de fugir, e aproximou-se dele,
perto o suficiente para que ele a tocasse. Ele estendeu as mãos e tocou levemente seu
cabelo, ajeitando os cachos ao redor do rosto. “Tess.”
Ela olhou para ele. Seus olhos eram da mesma cor do céu manchado de fumaça;
mesmo ferido, seu rosto era bonito. Ela queria tocá-lo, queria isso de algum modo
rudimentar, instintivo, que ela não podia nem explicar, nem controlar. Quando ele se
inclinou para beijá-la, tudo que ela pôde fazer foi se manter para trás até que seus lábios
encontraram os dela. Sua boca roçou a dela, e ela provou sal nele, o cheiro de pele ferida e
macia, onde o lábio estava cortado. Ele a pegou pelos ombros e puxou-a para perto, seus
dedos atados ao tecido do vestido. Ainda mais que no sótão, ela se sentia presa no
turbilhão de uma poderosa onda que ameaçava atirá-la para cima e para baixo, esmagá-la
e quebrá-la, consumi-la até a suavidade como o mar pode desgastar um pedaço de vidro.
Ela estendeu as mãos para colocá-las em seus ombros, e ele recuou, olhando para
ela, a respiração muito difícil. Seus olhos estavam brilhantes, os lábios agora vermelhos e
inchados de beijar, assim como das lesões.
“Talvez,” disse ele, “nós devêssemos discutir os nossos arranjos, então.”
Tessa, ainda sentindo como se estivesse se afogando, sussurrou, “Arranjos?”

“Se você irá ficar,” disse ele, “seria da nossa vantagem sermos discretos. Talvez seja
melhor usar o seu quarto. Jem tende a entrar e sair do meu como se vivesse no lugar, e ele
pode ficar confuso ao encontrar a porta trancada. Seus aposentos, por outro lado—”
“Usar meu quarto?” ela repetiu. “Usá-lo pra quê?”
A boca de Will curvou-se no canto; Tessa, que estava pensando sobre como
maravilhosamente moldados seus lábios eram, levou um instante para perceber com um
sentimento de surpresa distante que o sorriso era muito frio. “Você não pode fingir que
não sabe... Você não é inteiramente ignorante do mundo, eu acho, Tessa. Não com um
irmão daqueles.”
“Will.” O calor estava saindo de Tessa como o mar recua da terra; ela sentia frio,
apesar do ar de verão. “Eu não sou como meu irmão.”
“Você se importa comigo,” disse Will. Sua voz era fria e segura. “E você sabe que eu
admiro você, do jeito que toda mulher sabe quando um homem a admira. Agora você veio
me dizer que estará aqui, disponível para mim, enquanto eu puder desejá-la. Eu estou lhe
oferecendo o que pensei que você queria.”
“Você não pode estar querendo dizer isso.”
“E você não pode ter imaginado que eu quisesse algo mais,” disse Will. “Não há
futuro para um Caçador das Sombras que se envolve com feiticeiros. Alguém pode ajudá-
los, utilizá-los, mas não...”
“Casar com eles?” disse Tessa. Havia uma imagem clara do mar em sua cabeça. Ele
tinha recuado inteiramente da costa, e ela podia ver as pequenas criaturas que tinham sido
deixadas ofegantes em seu rastro, debatendo-se e morrendo na areia nua.
“Quão avançada.” Will sorriu; ela queria dar um tapa na expressão de seu rosto. “O
que você realmente esperava, Tessa?”
“Eu não esperava que você me insultasse.” A voz de Tessa ameaçou tremer; de
alguma forma, ela a manteve firme.
“Não podem ser as consequências indesejadas de um namorico que lhe
preocupam,” Will meditou. “Já que feiticeiros são incapazes de ter filhos—”
“O quê?” Tessa deu um passo atrás como se ele a tivesse empurrado. O terreno
parecia instável sob seus pés.
Will olhou para ela. O sol estava quase completamente desaparecido do céu. Na
quase escuridão, os ossos de seu rosto pareciam proeminentes e as linhas nos cantos da
sua boca eram tão duras como se ele fosse atormentado por dores físicas. Mas sua voz,
quando ele falou, era a mesma. “Você não sabe disso? Eu pensei que alguém já havia lhe
contado.”

“Não,” disse Tessa em voz baixa. “Ninguém me disse.”
Seu olhar era firme. “Se você não está interessada na minha oferta...”
“Pare,” disse ela. Este momento, ela pensou, era como a borda de um pedaço de
vidro quebrado, claro e afiado e doloroso. “Jem dizque você mente para se fazer parecer
mau,” disse ela. “E talvez isso seja verdade, ou talvez ele simplesmente queira acreditar
nisso a seu respeito. Mas não há razão ou desculpa para uma crueldade como esta.”
Por um momento ele pareceu realmente nervoso, como se ela o tivesse realmente
surpreendido. A expressão desapareceu um instante, como a forma mutante de uma
nuvem. “Então não há mais nada para eu dizer, não é?”
Sem outra palavra, ela girou nos calcanhares e afastou-se dele, em direção aos
degraus que levavam de volta para dentro do Instituto. Ela não se virou para vê-lo
olhando para ela, uma silhueta negra imóvel contra as últimas brasas do céu em chamas.

Filhos de Lilith, conhecidos também pelo nome de feiticeiros, são, como as mulas e
outros mestiços, estéreis. Eles não podem produzir descendentes. Nenhuma exceção para esta
regra foi notada...
 Tessa olhou para cima a partir do Códice e olhou, sem ver, pela janela da sala de
música, embora estivesse muito escuro lá fora para uma boa paisagem. Ela havia se
refugiado aqui, não querendo voltar para seu próprio quarto, onde acabaria por ser
descoberta lamentando-se por Sophie, ou pior, Charlotte. A fina camada de poeira sobre
tudo nesta sala afirmava que ela era muito menos provável de ser encontrada aqui.
Ela se perguntou como ela não tinha visto este fato sobre feiticeiros antes. Para ser
justa, aquilo não estava na seção do Códice sobre feiticeiros, mas sim na seção mais adiante
sobre Habitantes do Submundo mestiços, como meio-fadas e meio-lobisomens. Não havia
meio-feiticeiros, aparentemente. Feiticeiros não podiam ter filhos. Will não tinha mentido
para machucá-la; ele tinha dito a verdade. O que parecia pior, de uma forma. Ele saberia
que suas palavras não eram um golpe leve, de fácil resolução.
Talvez ele estivesse certo. O que mais ela realmente achou que aconteceria? Will era
Will, e ela não deveria ter esperado que ele fosse qualquer outra coisa. Sophie a havia
avisado, e ainda assim ela não tinha escutado. Ela sabia o que Tia Harriet teria dito sobre
garotas que não ouvem bons conselhos.
Um ligeiro som sussurrado interrompeu seus pensamentos. Ela se virou, e, à
primeira vista, não viu nada. A única luz da sala vinha de uma única arandela de luz de
bruxa. Sua luz bruxuleante brincava sobre a forma do piano, a curvada massa escura da
harpa coberta com um pesado pano. Enquanto ela olhava, dois pontos brilhantes de luz se

mostraram, perto do chão, uma cor verde-amarelada estranha. Eles estavam se movendo
em direção a ela, ambos no mesmo ritmo, como fogos de Santelmo gêmeos.
Tessa liberou sua respiração presa de repente. Claro. Ela se inclinou para frente.
“Aqui, gatinho.” Ela fez um chamado de persuasão. “Aqui, gatinho, gatinho!”
O miado de resposta do gato se perdeu no meio do ruído da porta se abrindo. Luz
entrou na sala, e por um momento a figura que estava na porta era apenas uma sombra.
“Tessa? Tessa, é você?”
Tessa conheceu a voz imediatamente—era tão próxima da primeira coisa que ele já
tinha dito ela, na noite em que ela havia entrado em seu quarto: Will? Will, é você?
“Jem,” ela disse, resignada. “Sim, sou eu. Seu gato parece ter entrado aqui.”
“Não posso dizer que estou surpreso.” Jem parecia divertido. Ela podia vê-lo
claramente agora que ele estava entrando na sala; a luz de bruxa do corredor iluminou, e
até mesmo o gato estava claramente visível, sentado no chão e limpando seu rosto com a
pata. Ele parecia irritado, do jeito que os gatos persas sempre pareciam. “Ele parece ser um
pouco vagabundo. É como se ele exigisse ser apresentado a todos—” Jem parou então,
com os olhos no rosto de Tessa. “O que há de errado?”
Tessa foi tão tomada pela surpresa que ela gaguejou. “P-Por que você me
perguntaria isso?”
“Eu posso ver em seu rosto. Algo aconteceu.” Ele sentou no banquinho do piano à
frente dela. “Charlotte me contou a boa notícia,” disse ele enquanto o gato ficava em pé e
atravessava a sala para ficar ao lado dele. “Ou pelo menos, eu pensei que era uma boa
notícia. Você não está contente?”
“Claro que estou contente.”
“Hm.” Jem não parecia convencido. Abaixando-se, estendeu a mão para o gato, que
esfregou sua cabeça contra a traseira de seus dedos. “Bom gato, Church77.”
77 Church: igreja, em inglês.
“Church? É esse o nome do gato?” Tessa achou engraçado, apesar de si mesma.
“Senhor, esse não costumava ser um dos familiares da Sra. Dark ou algo assim? Talvez
Church não seja o melhor nome para isso!”
“Ele,” Jem corrigiu com uma severidade simulada, “não era um familiar, mas uma
pobre criatura que ela planejava sacrificar, como parte de sua invocação de magia
necromântica. E Charlotte disse que devemos mantê-lo porque é boa sorte ter um gato em
uma igreja. Então, nós começamos a chamar-lo de ‘o gato da igreja’, e disso...” Ele deu de
ombros. “Church. E se o nome ajuda a mantê-lo fora de confusão, muito melhor.”

“Eu acredito que ele está olhando para mim de uma forma superior.”
“Provavelmente. Os gatos pensam que são superiores a todos.” Jem acariciou
Church por trás das orelhas. “O que você está lendo?”
Tessa mostrou-lhe o Códice. “Will o deu para mim...”
Jem estendeu a mão e pegou-o dela, com tal destreza que Tessa não teve tempo de
puxar a mão para trás. Ele ainda estava aberto na página que ela estava estudando. Jem
olhou para ele, e depois de volta para ela, sua expressão mudando. “Você não sabia
disso?”
Ela balançou a cabeça. “Não é que eu tenha sonhado em ter filhos,” disse ela. “Eu
não tinha pensado tão longe em minha vida. É mais que isso parece ainda mais outra coisa
que me separa da humanidade. Que faz de mim um monstro. Algo diferente.”
Jem ficou em silêncio por um longo momento, seus longos dedos acariciando o pelo
do gato cinza. “Talvez,” disse ele, “não seja uma coisa tão ruim ser diferente.” Ele se
inclinou para frente. “Tessa, você sabe que, apesar de parecer que você é uma feiticeira,
você tem uma capacidade que nunca tinhamos visto. Você não carrega nenhuma marca de
feiticeiro. Com tanta incerteza sobre você, você não pode permitir que este pedaço de
informação leve você ao desespero.”
“Não estou desesperada,” disse Tessa. “É só—eu tenho ficado acordada essas
últimas noites passadas. Pensando sobre meus pais. Eu mal me lembro deles, você vê. E
ainda assim, não posso evitar imaginar. Mortmain disse que minha mãe não sabia que
meu pai era um demônio, mas ele estava mentindo? Ele disse que ela não sabia o que ela
era, mas o que isso significa? Será que ela sabia o que eu era, que eu não era humana? É
por isso que eles deixaram Londres como o fizeram, tão secretamente, na calada da noite?
Se eu sou o resultado de algo—algo hediondo—que foi feito à minha mãe sem ela saber,
então, como poderia ela ter ter me amado?”
“Eles a esconderam do Mortmain,” disse Jem. “Eles devem ter sabido que ele a
queria. Todos esses anos, ele procurou por você, e eles a mantiveram a salvo—primeiro
seus pais, então sua tia. Isso não é o ato de uma família sem amor.” Seu olhar estava
intenso no rosto dela. “Tessa, eu não quero fazer promessas a você que não posso cumprir,
mas se você realmente deseja saber a verdade sobre o seu passado, podemos procurá-la.
Depois de tudo que você fez por nós, devemos-lhe isso. Se existem segredos a serem
descobertos sobre como você chegou a ser o que é, podemos descobri-los, se é isso que
você deseja.”
“Sim. Isso é o que eu quero.”
“Você pode,” disse Jem, “não gostar do que descobrir.”

“É melhor saber a verdade.” Tessa ficou surpresa com a convicção em sua própria
voz. “Eu sei a verdade sobre Nate, agora, e por mais doloroso que seja, é melhor do que
ser enganada. É melhor do que continuar a amar alguém que não pode me amar de volta.
Melhor do que desperdiçar todo esse sentimento.” Sua voz tremeu.
“Eu acho que ele amou,” disse Jem, “e ama você, do jeito dele, mas você não pode
se culpar por isso. É tão grande coisa amar quanto é ser amado. O amor não é algo que
pode ser desperdiçado.”
“É difícil. Só isso.” Tessa sabia que ela estava tendo autopiedade, mas ela não
conseguia parar. “Ser tão sozinha.”
Jem inclinou-se e olhou para ela. As Marcas vermelhas se destacavam como o fogo
em sua pele pálida, fazendo com que ela pensasse nos padrões que traçavam as bordas das
vestes dos Irmãos Silenciosos. “Meus pais, como os seus, estão mortos. Também estão os
de Will, e os de Jessie, e até os de Henry e Charlotte. Não tenho certeza que há alguém no
Instituto que não seja órfão. Caso contrário, nós não estaríamos aqui.”
Tessa abriu a boca, e depois fechou de novo. “Eu sei,” disse ela. “Eu sinto muito. Eu
estava sendo perfeitamente egoísta em não pensar—”
Ele ergueu uma mão delgada. “Eu não estou culpando você,” ele disse. “Talvez
você esteja aqui porque está só de outra maneira, mas eu também. Will também. Jessamine
também. E até mesmo, de certa forma, Charlotte e Henry. Onde mais poderia Henry ter
seu laboratório? Onde mais Charlotte seria autorizada a colocar sua mente brilhante para
funcionar do jeito que ela pode aqui? E embora Jessamine finja odiar tudo, e Will jamais
admitiria precisar de nada, ambos já fizeram lares para si aqui. De certa forma, não
estamos aqui apenas porque não temos nenhum outro lugar; não precisamos de nenhum
outro lugar, porque nós temos o Instituto, e aqueles que estão nele são nossa família.”
“Mas não a minha família.”
“Eles poderiam ser,” disse Jem. “Quando cheguei aqui, eu tinha doze anos. E
decididamente não me sentia em casa, então. Eu via apenas como Londres não era como
Xangai, e estava com saudades. Então Will desceu até uma loja no East End e comprou-me
isso.” Ele puxou a corrente que estava pendurada em seu pescoço, e Tessa viu que o clarão
de verde que ela tinha notado antes era uma pedra verde no pingente em forma de uma
mão fechada. “Eu acho que ele gostou porque o lembrou de um soco. Mas era de jade, e
ele sabia que jade vinha da China, então ele o comprou para mim e eu coloquei em uma
corrente para usá-lo. Eu ainda uso.”
A menção de Will fez o coração de Tessa contrair. “Eu suponho que é bom saber
que ele pode ser gentil às vezes.”

Jem olhou para ela com perspicazes olhos prateados. “Quando entrei—esse olhar
em seu rosto—não era apenas por causa do que você leu no Códice, não era? Tratava-se de
Will. O que ele disse a você?”
Tessa hesitou. “Ele deixou bem claro que não me quer aqui,” disse ela finalmente.
“Que minha permanência no Instituto não é o feliz acaso que eu pensei que era. Não na
visão dele.”
“E depois que eu acabei de terminar de dizer por que você deveria considerá-lo
como família,” Jem disse, um pouco pesarosamente. “Não admira que você pareceu como
se eu lhe tivesse dito que algo terrível tinha acontecido.”
“Sinto muito,” murmurou Tessa.
“Não sinta. É Will quem deve se arrepender.” Os olhos de Jem escureceram.
“Vamos jogá-lo nas ruas,” proclamou. “Eu prometo a você que ele terá ido embora pela
manhã.”
Tessa alarmou-se e sentou-se muito reta. “Oh—não, você não pode estar falando
sério—”
Ele sorriu. “Claro que não. Mas você se sentiu melhor por um momento, não é?”
“Foi como um sonho lindo,” disse Tessa gravemente, mas sorriu quando disse isso,
o que a surpreendeu.
“Will é... difícil,” Jem disse. “Mas família é difícil. Se eu não achasse que o Instituto
fosse o melhor lugar para você, Tessa, eu não diria que era. E pode-se construir a própria
família. Eu sei que você sente desumana, e como se você estivesse separada, longe da vida
e do amor, mas...” Sua voz falhou um pouco, a primeira vez que Tessa o tinha ouvido soar
inseguro. Ele limpou a garganta. “Eu prometo a você, o homem certo não se importará.”
Antes que Tessa pudesse responder, houve um ruído afiado batendo contra o vidro
da janela. Ela olhou para Jem, que deu de ombros. Ele ouviu também. Atravessando a sala,
ela viu que havia algo lá fora—uma forma negra com asas, como um pássaro pequeno
lutando para entrar. Ela tentou levantar o caixilho da janela, mas parecia preso.
Ela se virou, mas Jem já havia aparecido ao seu lado, e ele abriu a janela. À medida
que o vulto escuro flutuava para dentro, ele voou direto para Tessa. Ela levantou as mãos
e pegou-o no ar, sentindo as afiadas asas de metal flutuar contra as palmas das mãos.
Enquanto ela segurava, elas fecharam, e seus olhos fecharam também. Mais uma vez
aquilo segurava a sua espada de metal em silêncio, como se à espera de ser acordado de
novo. Tique-tique fazia o seu coração mecânico contra seus dedos.
Jem se afastou da janela aberta, o vento despenteando seus cabelos. Na luz amarela,
eles brilhavam como ouro branco. “O que é isso?”

Tessa sorriu. “Meu anjo,” disse ela.


Epílogo


Estava tarde, e as pálpebras de Magnus Bane estavam caindo de exaustão. Ele
colocou as Odes de Horácio sobre a mesa de canto e olhou pensativo para os rastros de
chuva nas janelas que davam para a praça.
Esta era a casa de Camille, mas hoje ela não estava nela; parecia improvável a
Magnus que ela fosse voltar para casa novamente por muitas noites mais, se não por mais
tempo. Ela havia deixado a cidade depois daquela noite desastrosa na casa de de Quincey,
e embora ele houvesse lhe enviado uma mensagem dizendo que era seguro voltar, ele
duvidava que ela iria. Ele não podia evitar se perguntar se, agora que ela havia se vingado
de seu clã de vampiros, ela ainda desejaria sua companhia. Talvez ele só tivesse sido algo
para jogar na cara de de Quincey.
Ele podia sempre partir—fazer as malas e ir embora, deixar todo esse luxo
emprestado para trás. Esta casa, os servos, os livros, até mesmo suas roupas, eram dela; ele
tinha chegado a Londres com nada. Não era como se Magnus não pudesse ganhar seu
próprio dinheiro. Ele havia sido bastante rico no passado, ocasionalmente, embora ter
muito dinheiro normalmente o entediasse. Mas ficar aqui, apesar de irritante, ainda era o
jeito mais provável de ver Camille novamente.
Uma batida na porta rompeu o seu devaneio, e ele se virou para ver Archer, o
lacaio, em pé na porta. Archer havia sido o subjugado a Camille por anos, e fitava Magnus
com repugnância, provavelmente porque ele sentia que uma ligação com um feiticeiro não
era o tipo certo de amizade para sua amada senhora.
“Há alguém para vê-lo, senhor.” Archer permaneceu sobre a palavra “senhor”
apenas tempo suficiente para ser um insulto.
“A esta hora? Quem é?”
“Um dos Nefilins.” Uma tênue aversão coloriu as palavras de Archer. “Ele diz que
seu negócio com você é urgente.”
Então não era Charlotte, a única dos Nefilins de Londres que Magnus poderia ter
esperado ver. Por vários dias agora ele esteve ajudando o Enclave, observando quando
eles questionavam mundanos aterrorizados que tinham sido membros do Clube
Pandemônio, e usando magia para remover as memórias dos mundanos do tormento,
quando este acabava. Uma tarefa desagradável, mas a Clave sempre pagava bem, e era
sábio permanecer em seu favor.

“Ele está,” acrescentou Archer, com profundo desgosto, “também muito molhado.”
“Molhado?”
“Está chovendo, senhor, e o cavalheiro não está usando um chapéu. Ofereci-me
para secar suas roupas, mas ele recusou.”
“Muito bem. Mande-o entrar.”
Os lábios de Archer se estreitaram. “Ele está esperando por você na saleta de
espera. Eu pensei que ele podia querer aquecer-se perto do fogo.”
Magnus suspirou interiormente. Ele poderia, naturalmente, exigir que Archer
trouxesse o hóspede à biblioteca, uma sala que ele preferia. Mas parecia que era um
grande esforço para pouco retorno e, além disso, se o fizesse, o lacaio ficaria de mau
humor pelos próximos três dias. “Muito bem.”
Gratificado, Archer saiu, deixando Magnus fazer o seu próprio caminho para a sala.
A porta estava fechada, mas ele podia ver, pela luz que brilhava debaixo da porta, que
havia um fogo, e luz, dentro da sala. Ele abriu a porta.
A saleta de espera tinha sido a sala favorita de Camille e continha seus toques de
decoração. As paredes eram pintadas com uma cor de vinho exuberante, os móveis de
jacarandá importados da China. As janelas que de outra forma davam para a praça
estavam cobertas com cortinas de veludo que pendiam direto do teto ao chão, bloqueando
toda a luz. Alguém estava em pé na frente da lareira, as mãos atrás das costas—alguém
delgado com cabelos escuros. Quando ele se virou, Magnus o reconheceu imediatamente.
Will Herondale.
Ele estava, como Archer havia dito, molhado, à maneira de alguém que não se
importava de um jeito ou de outro se chovia sobre ele ou não. Suas roupas estavam
encharcadas, seu cabelo caído em seus olhos. Água riscava seu rosto como lágrimas.
“William,” disse Magnus, sinceramente surpreendido. “Que diabos você está
fazendo aqui? Aconteceu algo no Instituto?”
“Não.” A voz de Will soava como se estivesse sufocando. “Eu estou aqui por minha
própria conta. Preciso da sua ajuda. Não há—não há absolutamente ninguém mais a quem
eu possa pedir.”
“Sério.” Magnus olhou para o rapaz mais de perto. Will era bonito; Magnus tinha
estado apaixonado muitas vezes ao longo dos anos e, normalmente, a beleza de todo o tipo
o motivava, mas a de Will nunca fez isso. Havia algo sombrio sobre o menino, algo
escondido e estranho que era difícil de admirar. Ele parecia não mostrar nada de real para
o mundo. No entanto, agora, sob o seu cabelo molhado preto, ele estava branco como

pergaminho, as mãos fechadas em seus lados com tanta força que elas estavam tremendo.
Parecia claro que alguma turbulência terrível estava rasgando-o de dentro para fora.
Magnus virou-se para trás e trancou a porta da sala. “Muito bem,” disse ele. “Por
que você não me diz qual é o problema?”

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